CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTHONY MICHAEL COLLINS

apresentadas em 26 de janeiro de 2023 ( 1 )

Processo C‑817/21

R.I.

contra

Inspecţia Judiciară,

N.L.

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia)]

«Reenvio prejudicial — Estado de direito — Artigo 2.o TUE — Artigo 19.o, n.o 1, TUE — Decisão 2006/928/CE — Tutela jurisdicional efetiva — Independência do poder judicial — Inquérito e processo disciplinar — Inspecţia Judiciară (Inspeção Judiciária) — Poderes do inspetor‑chefe — Tratamento do processo disciplinar contra o inspetor‑chefe — Funções do inspetor‑chefe adjunto»

I. Introdução

1.

A Inspecţia Judiciară (Inspeção Judiciária, Roménia) é o órgão judicial responsável pela condução de inquéritos disciplinares e pela instauração de processos disciplinares contra juízes e procuradores na Roménia. Nos termos das normas que regulam a Inspeção Judiciária, o inspetor‑chefe nomeia o inspetor‑chefe adjunto segundo o seu próprio critério, o mandato do inspetor‑chefe adjunto depende e coincide com o do inspetor‑chefe, e todos os inspetores judiciários estão subordinados ao inspetor‑chefe do qual depende a progressão da sua carreira.

2.

R.I. (a seguir «recorrente») apresentou à Inspeção Judiciária várias queixas contra juízes e procuradores implicados em processos penais contra si. A Inspeção Judiciária arquivou as suas queixas. O inspetor‑chefe confirmou as decisões da Inspeção Judiciária. A recorrente impugnou estas decisões nos órgãos jurisdicionais da Roménia. No âmbito desses processos, a Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia) pretende saber se um órgão, como a Inspeção Judiciária, deve oferecer as mesmas garantias de independência e de imparcialidade exigidas pelo direito da União aos órgãos jurisdicionais ( 2 ). Em especial, pergunta se, à luz das regras acima descritas, o direito da União se opõe a uma legislação ou regulamentação nacional que atribua ao inspetor‑chefe adjunto da Inspeção Judiciária a responsabilidade de supervisionar o exame das queixas apresentadas contra o inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária, bem como pelos eventuais inquéritos e processos disciplinares que possam resultar das mesmas.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União ‑ Decisão 2006/928/CE

3.

A Decisão 2006/928/CE da Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Roménia relativamente a objetivos de referência específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção e a criminalidade organizada ( 3 ) tem a sua origem em dois riscos conhecidos. O primeiro era o de uma perturbação grave no funcionamento do mercado interno devido ao facto de a Roménia não respeitar os compromissos assumidos no âmbito da sua adesão à União Europeia. O segundo risco consistia em deficiências graves por parte da Roménia quanto ao cumprimento do direito da União no espaço de liberdade, segurança e justiça. A fim de sanar estas lacunas, o anexo da Decisão 2006/928 fixou objetivos de referência para a reforma do sistema judiciário e a luta contra a corrupção. Estes objetivos de referência visam assegurar o respeito pela Roménia do valor do Estado de direito, conforme estabelecido no artigo 2.o TUE. A Roménia está obrigada a tomar as medidas adequadas para cumprir esses objetivos de referência, tendo devidamente em conta, em virtude do princípio da cooperação leal enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, os relatórios elaborados pela Comissão Europeia com base na Decisão 2006/928 e, especialmente, as recomendações aí contidas ( 4 ).

4.

O artigo 1.o da Decisão 2006/928 prevê, assim, que, a partir de 2007, a Roménia deve, até 31 de março de cada ano, apresentar à Comissão um relatório sobre os progressos realizados relativamente a cada um dos objetivos de referência previstos no seu anexo. A Comissão pode, a qualquer momento, prestar assistência técnica através de diferentes atividades ou recolher e trocar informações sobre a realização desses objetivos de referência, podendo igualmente enviar missões de peritos à Roménia com esta finalidade. Neste contexto, as autoridades romenas devem prestar à Comissão todo o apoio necessário. O anexo da Decisão 2006/928 inclui entre os objetivos de referência a que o artigo 1.o se refere:

«1.   Garantir processos judiciais mais transparentes e eficazes, nomeadamente mediante o reforço das capacidades e da responsabilização do Consiliul Superior al Magistraturii (Conselho Superior da Magistratura). Apresentar relatórios e acompanhar o impacto dos novos Códigos de Processo Civil e Penal.

[...]

3.   Continuar, com base nos progressos já efetuados, a realizar inquéritos profissionais e imparciais sobre as alegações de corrupção de alto nível.

4.   Tomar medidas suplementares para prevenir e combater a corrupção, nomeadamente no âmbito da administração local.»

B.   Direito romeno

1. Lei n.o 317/2004

5.

O artigo 44.o da Legea nr. 317/2004 privind Consiliul Superior al Magistraturii (Lei n.o 317/2004 sobre o Conselho Superior da Magistratura), de 1 de julho de 2004 ( 5 ), conforme alterada e completada (a seguir «Lei 317/2004»), dispõe:

«1)   O Conselho Superior da Magistratura exerce, através das suas secções, funções de instância de julgamento em matéria de responsabilidade disciplinar dos juízes e dos procuradores pelos factos previstos na Lei n.o 303/2004, republicada, conforme alterada e completada.

[...]

3)   Os processos disciplinares nos casos de infrações cometidas por juízes, procuradores e juízes auxiliares são instaurados pela Inspeção Judiciária através dos inspetores judiciários.

[...]

6)   Para que um processo disciplinar possa ser instaurado, a Inspeção Judiciária deve obrigatoriamente levar a cabo um inquérito disciplinar.»

6.

O artigo 45.o da Lei 317/2004 dispõe:

«1)   A Inspeção Judiciária pode instaurar oficiosamente um processo, ou qualquer pessoa interessada, incluindo o Conselho Superior da Magistratura, pode apresentar‑lhe uma queixa escrita e fundamentada respeitante às infrações disciplinares cometidas por juízes e procuradores.

[...]

4)   Se as averiguações preliminares revelarem que não existem indícios de infração disciplinar, a queixa é arquivada e o resultado é comunicado diretamente à pessoa que apresentou a queixa e à pessoa alvo da queixa. A decisão de arquivamento está sujeita a confirmação pelo inspetor‑chefe. A decisão pode ser anulada uma única vez pelo inspetor‑chefe que, por decisão escrita e fundamentada, pode ordenar a realização de averiguações complementares.

[…]»

7.

Nos termos do artigo 451, da Lei 317/2004:

«A pessoa que apresentou a queixa pode apresentar uma reclamação ao inspetor‑chefe contra a decisão de arquivamento referida no artigo 45.o, n.o 4, no prazo de 15 dias a contar da notificação dessa decisão. A reclamação é tratada no prazo de 20 dias a contar da data do seu registo na Inspeção Judiciária.»

8.

O artigo 47.o da Lei 317/2004 dispõe:

«1)   Uma vez concluído o inquérito disciplinar, o inspetor judiciário pode, mediante decisão escrita e fundamentada, ordenar:

a)

que a queixa seja julgada procedente, instaurando um processo disciplinar e remetendo‑o à secção pertinente do Conselho Superior da Magistratura;

b)

que a queixa seja arquivada se, na sequência de um inquérito disciplinar, o [inspetor judiciário] concluir que não estão verificadas as condições para a instauração do processo.

[...]

3)   A decisão do inspetor judiciário está sujeita a confirmação pelo inspetor‑chefe. O inspetor‑chefe pode ordenar ao inspetor judiciário que complete o inquérito disciplinar. Este inquérito complementar é realizado pelo inspetor judiciário no prazo de 30 dias a contar da data em que foi ordenado pelo inspetor‑chefe.

4)   A decisão do inspetor judiciário pode ser anulada uma única vez, por escrito e indicando os respetivos fundamentos, pelo inspetor‑chefe, que pode ordenar, mediante decisão escrita e fundamentada, um inquérito disciplinar complementar. Após a conclusão do inquérito disciplinar, o inspetor‑chefe pode ordenar, medidas previstas nas alíneas a) ou b) do n.o 1.

[…]»

9.

O artigo 65.o, n.os 2 a 4, da Lei 317/2004 especifica:

«2)   A Inspeção Judiciária é dirigida por um inspetor‑chefe, juiz nomeado na sequência de um concurso organizado pelo [Conselho Superior da Magistratura, Roménia], assistido por um inspetor‑chefe adjunto, procurador, nomeado pelo inspetor‑chefe.

3)   A Inspeção Judiciária atua em conformidade com o princípio da independência operacional em relação ao Conselho Superior da Magistratura, aos tribunais, às procuradorias adstritas aos mesmos e às outras autoridades públicas, exercendo as suas competências de análise, investigação e supervisão em domínios específicos de atividade, nos termos da lei e para assegurar o seu cumprimento.

4)   As normas aplicáveis à execução do trabalho de inspeção são aprovadas pelo inspetor‑chefe mediante regulamento.»

10.

Nos termos do artigo 66.o, n.o 3, da Lei 317/2004:

«3) A organização e o funcionamento da Inspeção Judiciária, bem como a estrutura organizacional e as funções dos respetivos departamentos, são estabelecidas por regulamento aprovado por despacho do inspetor‑chefe [...]»

11.

Nos termos do artigo 69.o, n.os 1 e 4, da Lei 317/2004:

«1)   O inspetor‑chefe tem as seguintes funções principais:

a)

designa, de entre os inspetores judiciários, a equipa dirigente — o inspetor‑chefe adjunto, os responsáveis pelas direções — com base num processo que inclui a avaliação dos planos de gestão específicos de cada cargo, de modo a garantir a coesão da gestão, a competência profissional e a uma comunicação eficaz. O seu mandato cessa ao mesmo tempo que o do inspetor‑chefe;

a1) exerce as funções de direção e organização da atividade da Inspeção Judiciária;

a2) toma medidas para coordenar o trabalho dos outros membros do pessoal da Inspeção Judiciária que não sejam inspetores judiciários;

[...]

g)

nomeia, nos termos da lei, os inspetores judiciários e as outras categorias do pessoal da Inspeção Judiciária, e ordena a alteração, suspensão e cessação das suas relações de trabalho ou de prestação de serviços;

h)

determina as funções e tarefas individuais do pessoal sob a sua autoridade, aprovando as descrições das suas funções;

i)

procede, nos termos da lei, à avaliação do pessoal sob a sua autoridade;

[...]

4)   O inspetor‑chefe adjunto atua como substituto oficioso do inspetor‑chefe, presta‑lhe assistência na verificação e emissão de pareceres sobre os atos e decisões adotados pelos inspetores judiciários e exerce todas as outras funções determinadas pelo inspetor‑chefe.»

12.

O artigo 70.o da Lei 317/2004 dispõe:

«1)   Os inspetores da Inspeção Judiciária são nomeados pelo inspetor‑chefe mediante concurso organizado pela Inspeção Judiciária [...].

2)   Este concurso consiste numa prova escrita e numa entrevista. O regulamento sobre a organização e a realização do concurso é aprovado por despacho do inspetor‑chefe e é publicado no Monitorul Oficial al României, parte I.»

13.

De acordo com o disposto no artigo 71.o, n.o 2, da Lei 317/2004:

«2) As disposições relativas às sanções, às infrações disciplinares e aos processos disciplinares aplicam‑se mutatis mutandis aos inspetores judiciários.»

14.

Nos termos do artigo 72.o da Lei 317/2004:

«1)   Os inspetores judiciários exercem a sua atividade de forma independente e imparcial.

[…]»

15.

O artigo 77.o da Lei 317/2004 dispõe:

«1)   A atividade profissional dos inspetores judiciários é avaliada anualmente por uma comissão composta pelo inspetor‑chefe e por outros dois membros eleitos pela assembleia geral dos inspetores judiciários, através da avaliação de: “muito bom”, “bom”, “satisfatório” ou “insatisfatório”.

[...]

5)   O inspetor judiciário que receba a avaliação de “insatisfatório” ou duas avaliações consecutivas de “satisfatório” é destituído do cargo de inspetor judiciário.

6)   Os critérios de avaliação da atividade profissional dos inspetores judiciários e o procedimento de avaliação são estabelecidos pelo regulamento sobre a organização e o funcionamento da Inspeção Judiciária.»

2. Regulamentos adotados pelo inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária

16.

Em 2018, o inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária adotou três regulamentos ( 6 ) no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 66.o, n.o 3, da Lei 317/2004.

17.

Nos termos do Ordinul nr. 131/2018, al inspetorului‑șef al Inspecției judiciare privind aprobarea Regulamentului de organizare și desfășurare a concursului pentru numirea în funcție a inspetorlor judiciari (Despacho n.o 131/2018 do inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária, que aprova os regulamentos de organização e realização do concurso para a nomeação dos inspetores judiciários) ( 7 ), o inspetor‑chefe nomeia os inspetores judiciários na sequência de um concurso que consiste numa uma prova escrita e numa prova escrita. O inspetor‑chefe preside ao júri da entrevista, de que é membro, juntamente com os diretores das direções da Inspeção Judiciária e um psicólogo, com funções consultivas, nomeado pelo inspetor‑chefe.

18.

Nos termos do Ordinul nr. 134/2018 al inspetorului‑șef al Inspecției judiciare privind aprobarea Regulamentului de organizare și funcționare a Inspecției judiciare (Despacho n.o 134/2018 do inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária que aprova os Regulamentos de Organização e Funcionamento da Inspeção Judiciária) ( 8 ), o inspetor‑chefe nomeia, de entre os inspetores judiciários, a equipa dirigente da Inspeção Judiciária, composta pelo inspetor‑chefe adjunto e pelos diretores das direções da Inspeção Judiciária. O processo de nomeação para estes cargos consiste na realização, pelo inspetor‑chefe, de entrevistas com os candidatos com base num projeto de gestão. A avaliação do desempenho do pessoal da Inspeção Judiciária é efetuada por uma comissão composta pelo inspetor‑chefe e dois inspetores judiciários eleitos pela assembleia geral dos inspetores judiciários. Entre os critérios de avaliação figuram o comportamento e a sua comunicação com o inspetor‑chefe.

19.

O Ordinul nr. 136/2018 al inspectorului‑șef al Inspecției Judiciare de aprobare a Regulamentului privind normele de efectuare a lucrărilor de inspecție (Despacho n.o 136/2018 do inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária, que aprova o Regulamento que estabelece as normas para a condução das atividades de inspeção), de 11 de dezembro de 2018 ( 9 ), define a metodologia da análise, verificação e supervisão dos inquéritos disciplinares dos juízes e procuradores. Regula, nomeadamente, o processo de tratamento das queixas, a designação dos inspetores, o estabelecimento, o cálculo e a prorrogação dos prazos, bem como a notificação de determinados atos processuais.

III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

20.

A recorrente é parte em vários processos penais nos órgãos jurisdicionais da Roménia. Apresentou várias queixas disciplinares à Inspeção Judiciária contra alguns juízes e procuradores que participaram nesses processos. O pedido de decisão prejudicial tem origem em processos no Judecătoria Bolintin‑Vale (Tribunal de Primeira Instância de Bolintin‑Vale, Roménia) e no Tribunalul Giurgiu (Tribunal Regional de Giurgiu, Roménia). A Inspeção Judiciária adotou várias decisões relativas às queixas da recorrente ( 10 ), algumas das quais foram confirmadas pelo inspetor‑chefe.

21.

A demandante interpôs recurso de uma Decisão da Inspeção Judiciária de 2 de julho de 2018, que o inspetor‑chefe tinha confirmado ( 11 ). Em 27 de setembro de 2019, a Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste) anulou a Decisão de 2 de julho de 2018 com o fundamento de que a Inspeção Judiciária não tinha examinado corretamente os argumentos da demandante. Remeteu os autos à Inspeção Judiciária para nova apreciação ( 12 ). Em 29 de setembro de 2020, a Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Supremo de Cassação e de Justiça, Roménia) declarou inadmissível o recurso da Inspeção Judiciária contra o referido acórdão.

22.

Em 11 de março de 2021, a Inspeção Judiciária adotou uma nova decisão através da qual arquivou novamente a queixa disciplinar da demandante ( 13 ). Em 31 de maio de 2021, o inspetor‑chefe rejeitou a reclamação da recorrente contra esta decisão. A demandante interpôs recurso de anulação da decisão do inspetor‑chefe, que está pendente na Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste) ( 14 ).

23.

Nas suas reclamações apresentadas à Inspeção Judiciária e no presente processo, a demandante alegou que a queixa relativa ao processo n.o 6172/2/2018 tinha sido tratada de forma dilatória. Por conseguinte, o prazo legal em que poderia ter sido instaurado um processo disciplinar contra a pessoa objeto da sua queixa tinha expirado. A recorrente alegou que o inspetor‑chefe era responsável pelo referido atraso.

24.

Em 29 de novembro de 2019, a recorrente apresentou uma queixa no Ministerului Justiţiei (Ministro da Justiça, Roménia), alegando que os seus direitos constitucionais tinham sido violados. Fez referência a um «grupo» de pessoas, incluindo o inspetor‑chefe, «com funções importantes que alegadamente participaram na investigação criminal contra ela ou na violação dos seus direitos processuais.» A recorrente, alegou, nomeadamente, que o inspetor‑chefe «é um juiz [...] que reside na cidade de Giurgiu e que, ao longo da sua carreira, exerceu as suas funções de uma forma que teve um impacto significativo no exercício da justiça na região de Giurgiu e a nível nacional». Após ter enumerado essas funções, a recorrente alegou que, no seu caso, «as decisões [da Inspeção Judiciária] conduziram à ocultação de abusos e de ilegalidades cometidas pelo Ministério Público de Bolintin‑Vale, departamento de Giurgiu». A recorrente alegou igualmente que «o [inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária] deve ser considerado responsável por abalar seriamente a confiança no sistema judicial, uma vez que, na sua qualidade de chefe e supervisor [...] deste órgão, que desempenha um papel fundamental no sistema judicial, estava obrigado a assegurar que os controlos efetuados [por este órgão] cumprem inteiramente as disposições legais».

25.

O Ministro da Justiça considerou que não tinha competência para conhecer de questões disciplinares desta natureza e encaminhou a queixa da recorrente para a Inspeção Judiciária ( 15 ).

26.

Em 16 de fevereiro de 2021, a recorrente apresentou uma queixa na Inspeção Judiciária, que se referia exclusivamente às alegadas ações do inspetor‑chefe. A recorrente criticava, nomeadamente, a falta de uma investigação propriamente dita das suas queixas, a investigação tardia da sua queixa de 29 de novembro de 2019 contra a Inspeção Judiciária e o seu inspetor‑chefe, o facto de o inspetor‑chefe, não se ter abstido de participar na investigação dessa queixa, apesar de este ser objeto da mesma, bem como a não execução pela Inspeção Judiciária do Acórdão da Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste) de 27 de setembro de 2019. A Inspeção Judiciária indeferiu arquivou esta queixa em 17 de março de 2021 ( 16 ). O inspetor‑chefe adjunto indeferiu a reclamação apresentada contra esta decisão em 11 de maio de 2021 ( 17 ).

27.

Em 31 de maio de 2021, a recorrente interpôs no órgão jurisdicional de reenvio um recurso em que pedia, nomeadamente a anulação das Decisões de 17 de março de 2021 e de 11 de maio de 2021, bem como uma indemnização pelo alegado dano causado por estas decisões. Alegou que o inspetor‑chefe adjunto, P.M., não tinha dado execução ao Acórdão de 27 de setembro de 2019 da Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste), uma vez que não tinha procedido à investigação que esse acórdão ordenado. A recorrente alega igualmente que a Inspeção Judiciária e o seu inspetor‑chefe, N.L., não deram sistematicamente seguimento adequado às suas queixas contra determinados juízes. A demandante denuncia pelo menos três irregularidades sistemáticas na organização e no funcionamento da Inspeção Judiciária que impediram um tratamento imparcial das suas queixas. Em primeiro lugar, o inspetor‑chefe nomeava, avaliava e, em última análise, podia destituir os inspetores judiciários responsáveis pela realização de inquéritos disciplinares sobre o comportamento do inspetor‑chefe. Em segundo lugar, o inspetor‑chefe nomeia o inspetor‑chefe adjunto, que confirmou a decisão de arquivamento da queixa da recorrente e que ocupa igualmente um cargo ligado e dependente do mandato do inspetor‑chefe. Em terceiro lugar, o inspetor‑chefe adota os regulamentos internos que regulam a organização e o funcionamento da Inspeção Judiciária.

28.

Tendo em conta as dúvidas expressas quanto à organização e ao funcionamento da Inspeção Judiciária, bem como à responsabilidade do seu inspetor‑chefe no âmbito de inquéritos e processos disciplinares, a Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, [TUE], a Decisão 2006/928 [...], bem como as garantias de independência e de imparcialidade impostas pelo direito da União Europeia, ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que permite ao inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária emitir atos administrativos de natureza normativa (subordinados à lei) e/ou individual através dos quais decide autonomamente sobre a organização do quadro institucional da Inspeção Judiciária para a seleção dos inspetores judiciários e a avaliação da sua atividade, a condução das atividades de inspeção, bem como a nomeação do inspetor‑chefe adjunto, no caso de, com base na lei orgânica, essas pessoas serem as únicas que podem realizar, aprovar ou rejeitar atos de inquérito disciplinar contra o inspetor‑chefe?»

29.

O órgão jurisdicional de reenvio pediu o tratamento do seu pedido de decisão prejudicial mediante de tramitação acelerada nos termos, nomeadamente, do artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Por Decisão de 1 de fevereiro de 2022, o presidente do Tribunal de Justiça indeferiu este pedido.

30.

A recorrente, a Inspeção Judiciária ( 18 ) e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV. Quanto à questão prejudicial

A.   Admissibilidade

31.

A Inspeção Judiciária alega que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível. Em primeiro lugar, considera que o órgão jurisdicional de reenvio procura obter uma interpretação da Lei 317/2004 e não uma decisão sobre a interpretação dos Tratados ou sobre a validade e/ou a interpretação de um ato de uma instituição da União nos termos do artigo 267.o TFUE. Em segundo lugar, a Inspeção Judiciária considera que, a falta da constatação de que uma disposição de direito nacional é contrária ao direito da União, a alegação de que os poderes do inspetor‑chefe violam a independência dos inspetores judiciários é infundada.

32.

Proponho ao Tribunal de Justiça que julgue improcedente a primeira exceção deduzida pela Inspeção Judiciária quanto à admissibilidade da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Resulta claramente do texto da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que este pretende obter uma decisão sobre a interpretação do direito da União e não do direito romeno. A segunda exceção de inadmissibilidade deduzida pela Inspeção Judiciária diz respeito ao mérito da questão prejudicial. Pela sua própria natureza, tal exceção não pode justificar uma declaração de inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial ( 19 ).

B.   Quanto ao mérito

1. Observações preliminares

33.

O pedido de decisão prejudicial centra‑se na organização e no funcionamento da Inspeção Judiciária, nos amplos poderes atribuídos ao seu inspetor‑chefe ( 20 ) e na alegada falta de responsabilidade deste nos inquéritos e processos disciplinares instaurados contra o si ( 21 ). O órgão jurisdicional de reenvio observa que os regulamentos internos adotados pelo inspetor‑chefe ( 22 ) regulam a organização e o funcionamento da Inspeção Judiciária. As decisões da Inspeção Judiciária relativas à aceitação ou arquivamento de queixas disciplinares e relativas ao início inquéritos e processos disciplinares estão também sujeitas a confirmação do inspetor‑chefe ( 23 ). O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as queixas contra o inspetor‑chefe podem ser tratadas de forma objetiva e imparcial, uma vez que são investigadas pelos inspetores judiciários que são nomeados, avaliados e podem ser destituídos por essa pessoa ( 24 ). O inspetor‑chefe adjunto, que é diretamente nomeado pelo inspetor‑chefe e que o assiste e cujo mandato cessa ao mesmo tempo que o seu, é, além disso, responsável pela fiscalização das decisões sobre as queixas apresentadas contra o inspetor‑chefe.

34.

A Inspeção Judiciária é um órgão judicial independente, dotado de personalidade jurídica autónoma no seio do Conselho Superior da Magistratura ( 25 ). Ao passo que o Conselho Superior da Magistratura atua como «juiz» em processos disciplinares ( 26 ), a Inspeção Judiciária é responsável pela condução de inquéritos disciplinares e pela instauração de processos disciplinares contra juízes e procuradores. A Inspeção Judiciária exerce assim amplos poderes de inquérito no âmbito dos processos disciplinares contra os magistrados ( 27 ).

35.

Os relatórios da Comissão elaborados ao abrigo do artigo 2.o da Decisão 2006/928 referem‑se à estrutura institucional e à atividade da Inspeção Judiciária ( 28 ). O relatório de 2021 da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre os progressos realizados pela Roménia no âmbito do Mecanismo de Cooperação e de Verificação ( 29 ) refere que, «[n]os últimos anos, as instituições judiciais, incluindo o próprio [Conselho Superior da Magistratura], manifestaram preocupação pela falta de responsabilização da Inspeção [Judiciária], referindo a elevada percentagem de processos instaurados pela Inspeção que acabaram por ser rejeitados nos tribunais, a concentração da tomada de decisão no inspetor‑chefe e os limites aos poderes de supervisão do [Conselho Superior da Magistratura]». A este respeito, «[o] inspetor principal só pode ser sujeito a uma auditoria externa ordenada pela própria [Inspeção Judiciária], e o relatório de auditoria é examinado apenas por um pequeno número de membros selecionados do [Conselho Superior da Magistratura]».

36.

Apesar das preocupações da Comissão, não resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que esta instituição tenha dado início a um processo por incumprimento contra a Roménia relativamente à organização e ao funcionamento da Inspeção Judiciária. Também nada indica que a Roménia tenha adotado medidas para responder às preocupações manifestadas pela Comissão nos relatórios acima referidos.

37.

O órgão jurisdicional de reenvio faz referência, incidentalmente, às graves alegações que a demandante formulou contra a Inspeção Judiciária, o seu inspetor‑chefe e determinados juízes e procuradores que, se fossem consideradas procedentes, suscitariam dúvidas quanto à sua conformidade com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com a Decisão 2006/928 ( 30 ). Manifesta antes preocupações de natureza sistémica sobre a estrutura institucional da Inspeção Judiciária e a sua falta de responsabilização. Em especial, preocupa‑se quanto ao poder ilimitado do inspetor‑chefe para adotar todas as decisões relativas à organização e ao funcionamento da Inspeção Judiciária, à seleção, avaliação e destituição dos inspetores judiciários, incluindo o inspetor‑chefe adjunto, bem como para aprovar e vetar qualquer decisão individual adotada pela Inspeção Judiciária.

2. Análise

38.

Embora a organização da justiça, incluindo as normas que regulam o processo disciplinar contra os juízes, seja da competência dos Estados‑Membros, o exercício desse poder deve respeitar o direito da União. A exigência de um poder judicial independente nos termos do direito da União significa que o regime disciplinar aplicável aos juízes deve prever as garantias necessárias para evitar qualquer risco de utilização do mesmo como sistema de controlo político das suas atividades. Regras que definam tanto os comportamentos constitutivos de infrações disciplinares como as sanções concretamente aplicáveis, que prevejam a intervenção de uma instância independente em conformidade com um processo que garanta plenamente os direitos consagrados nos artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, designadamente os direitos de defesa, e que consagrem a possibilidade de impugnar as decisões dos órgãos disciplinares constituem uma garantia essencial da independência judicial ( 31 ).

39.

O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, uma vez que a perspetiva da abertura de um inquérito disciplinar é suscetível de exercer pressão sobre as pessoas que têm a missão de julgar, é essencial que o órgão competente para conduzir os inquéritos e intentar a ação disciplinar aja no exercício das suas funções de maneira objetiva e imparcial. Para esse efeito, deve estar ao abrigo de qualquer influência externa, direta ou indireta ( 32 ). O regime disciplinar não deve ser desviado da sua finalidade legítima ( 33 ).

40.

A fim de garantir a independência do poder judicial, a jurisprudência do Tribunal de Justiça salienta as garantias conferidas aos juízes que são objeto de inquéritos e processos disciplinares. As mesmas garantias de objetividade e de imparcialidade aplicam‑se independentemente de um juiz ser objeto de um processo disciplinar ou, como no processo no órgão jurisdicional de reenvio, de as queixas contra os juízes ou procuradores serem arquivadas e de os inquéritos e os processos disciplinares não serem instaurados. A este respeito, importa sublinhar que estas garantias asseguram que o público mantenha a perceção, crucial numa sociedade democrática, da independência e da imparcialidade do poder judicial. O abalo da confiança do público devido à condução de inquéritos e de processos disciplinares de forma não profissional ou parcial, segundo as alegações da recorrente, pode ter como consequência, de facto, a recusa de uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União nos termos do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE ( 34 ).

41.

No Acórdão Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., o Tribunal de Justiça considerou que a regulamentação romena relativa à nomeação ad interim para os lugares de direção da Inspeção Judicial está abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928 e deve respeitar as exigências decorrentes do direito da União, nomeadamente o Estado de direito ( 35 ). Tendo em conta o alcance das competências da Inspeção Judiciária para conduzir inquéritos disciplinares e instaurar processos disciplinares contra juízes e procuradores, essas exigências aplicam‑se igualmente à nomeação ad interim do seu inspetor‑chefe e à organização e ao funcionamento da Inspeção Judiciária. Por outro lado, uma vez que a lei confere amplos poderes e prerrogativas ao inspetor‑chefe ( 36 ), este está também obrigado a satisfazer essas mesmas exigências.

42.

Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que as decisões da Inspeção Judiciária de arquivar uma queixa contra um juiz ou um procurador podem ser objeto de recurso para a Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste) e subsequentemente para a Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Tribunal Superior de Cassação e Justiça) ( 37 ). A existência dessas vias de recurso é essencial ( 38 ) para preservar a confiança do público no regime disciplinar. Contudo, os processos judiciais instaurados pelos autores das queixas para impugnar as decisões de um órgão disciplinar pode ser insuficiente para responder às preocupações sistémicas suscitadas no contexto da aplicação do referido regime disciplinar. No órgão jurisdicional de reenvio, a recorrente alegou que, devido à expiração dos prazos em que poderia ter sido tomada uma medida disciplinar efetiva, os atrasos e as deficiências no tratamento das suas queixas a tinham impedido de obter qualquer benefício do regime disciplinar e de utilizar quaisquer vias de recurso previstas no mesmo. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que não está obrigado a pronunciar‑se sobre esta questão nesta fase do processo que lhe foi submetido. Limita‑se a referir o nexo de causalidade entre os pedidos da recorrente e a interpretação do direito da União que pede ao Tribunal de Justiça ( 39 ).

43.

A recorrente e a Comissão consideram que a prorrogação, pelo Governo romeno, do mandato do inspetor‑chefe a título interino em 2018 ( 40 ), sem respeitar o processo comum de nomeação, suscitou preocupação quanto ao facto de as prorrogativas e funções da Inspeção Judiciária poderem ser utilizados para exercer pressão ou controlo político sobre a atividade dos juízes e procuradores ( 41 ). Por conseguinte, o presente processo deve tomar em consideração a referida prorrogação.

44.

A assembleia geral do Conselho Superior da Magistratura nomeou N.L., o inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária a partir de 1 de setembro de 2015. Não obstante o termo, em 31 de agosto de 2018, do seu mandato de três anos, o Governo romeno prorrogou essa nomeação a título interino entre 1 de setembro de 2018 e 14 de maio de 2019. No momento da apresentação do pedido de decisão prejudicial, em 10 de dezembro de 2021, o inspetor‑chefe permanecia em funções na sequência da sua nova nomeação pelo Conselho Superior da Magistratura para um segundo mandato ( 42 ). Mais importante, em 7 de dezembro de 2021, num acórdão que põe termo à instância, o Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia) ( 43 ) declarou que a prorrogação interina da nomeação do inspetor‑chefe não suscitava dúvidas quanto a uma possível pressão política exercida sobre os juízes e os procuradores ( 44 ). Portanto, a relevância para o presente processo, da forma como foi prorrogada a nomeação do inspetor‑chefe a título interino entre 1 de setembro de 2018 e 14 de maio de 2019, não é imediatamente percetível.

45.

A recorrente alega que os Regulamentos de 2018 são inválidos face ao direito da União, uma vez que o inspetor‑chefe, N.L., os adotou num momento em que a sua nomeação a título interino tinha sido ilegalmente prorrogada. A Inspeção Judiciária sustenta que o Acórdão do Tribunal de Justiça Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o. ( 45 ) não se pronunciou sobre a validade desses regulamentos. Além disso, afirma que, para garantir a segurança jurídica, os Regulamentos de 2018 devem ser considerados válidos.

46.

Tendo em conta o teor do Acórdão n.o 3014/2021 da Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova), para o qual remete o n.o 44 das presentes conclusões, a alegação de que os Regulamentos de 2018 são inválidos uma vez que o inspetor‑chefe, N.L., os tinha adotado durante o período da sua nomeação interina, não pode proceder.

47.

Além disso, importa ainda sublinhar que o artigo 66.o, n.o 3, da Lei n.o 317/2004 prevê claramente a adoção, pelo inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária, de regulamentos relativos à organização e ao funcionamento deste órgão. O artigo 45.o e o artigo 451.o, n.o 1, alínea a), da Lei 317/2004 conferem igualmente ao inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária amplos poderes para aprovar ou vetar as decisões individuais deste órgão tomadas em matéria de inquéritos e processos disciplinares ( 46 ).

48.

O facto de o inspetor‑chefe desempenhar um papel determinante na gestão e na organização da Inspeção Judiciária e de poder adotar regulamentos internos e aprovar ou vetar todas as decisões individuais da Inspeção Judiciária, na ausência de outros fatores, não suscita necessariamente dúvidas razoáveis quanto ao à utilização efetiva das prorrogativas e funções da Inspeção Judiciária como instrumento para exercer pressão ou controlo político sobre a atividade jurisdicional ou para prejudicar, ainda que indiretamente, a confiança do público no poder judicial ( 47 ).

49.

Tendo em conta os amplos poderes do inspetor‑chefe, o seu papel determinante na Inspeção Judiciária e a inexistência de um mecanismo interno ( 48 ) para impedir uma utilização indevida desses poderes, a Inspeção Judiciária ( 49 ) deve tratar as queixas disciplinares apresentadas contra si com o máximo profissionalismo e imparcialidade, a fim de assegurar a confiança do público neste órgão e em todo o poder judicial.

50.

Como afirma a Inspeção Judiciária, pode não ser necessário criar um órgão distinto para tratar das queixas disciplinares apresentadas contra o inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária ( 50 ). Esta observação está sujeita à condição de que existam procedimentos eficazes e transparentes para tratar de forma imparcial todas essas queixas ( 51 ). Neste contexto, o facto de o inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária nomear o inspetor‑chefe adjunto da Inspeção Judiciária segundo o seu próprio critério ( 52 ) pode suscitar preocupações, uma vez que cabe ao inspetor‑chefe adjunto decidir investigar as queixas e instaurar um processo disciplinar contra o inspetor‑chefe.

51.

Antes da adoção da Legea nr. 234/2018 (Lei n.o 234/2018), de 4 de outubro de 2018 ( 53 ) (a seguir «Lei 234/2018»), o Conselho Superior da Magistratura nomeava tanto o inspetor‑chefe como o inspetor‑chefe adjunto na sequência de um procedimento semelhante e o mandato do inspetor‑chefe adjunto era independente do mandato do inspetor‑chefe. Sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, afigura‑se que, desde a adoção da Lei 234/2018, o inspetor‑chefe adjunto da Inspeção Judiciária é nomeado unicamente segundo o critério do inspetor‑chefe e que o seu mandato depende e coincide com o do inspetor‑chefe ( 54 ). As leis e os regulamentos que regulam a Inspeção Judiciária não preveem nenhum mecanismo interno de controlo das alegações relativas a uma utilização indevida dos amplos poderes do inspetor‑chefe, a não ser através de processos disciplinares. Tendo em conta todas estas circunstâncias, considero que a Lei 234/2018 pode prejudicar consideravelmente a perceção do público de que o inspetor‑chefe adjunto pode supervisionar os inquéritos e os processos disciplinares relativos a queixas contra o inspetor‑chefe de forma objetiva e imparcial. Assim, adoção da Lei 234/2018 parece corresponder a uma regressão da proteção do Estado de direito na Roménia.

52.

A Lei 234/2018 entrelaça as carreiras do inspetor‑chefe e do inspetor‑chefe adjunto da Inspeção Judiciária. Apesar da obrigação do inspetor‑chefe adjunto de agir de forma independente e imparcial, pode ter‑se a perceção de que tem um interesse pessoal no resultado de qualquer inquérito e/ou processo disciplinar contra o inspetor‑chefe. Além disso, é evidente que todos os Inspetores Judiciários da Inspeção Judiciária estão subordinados ao inspetor‑chefe e que a sua progressão na carreira depende da pessoa que ocupar esse cargo ( 55 ). Isto pode também prejudicar a perceção pública de que os inspetores judiciários investigam de forma profissional e imparcial as queixas contra o inspetor‑chefe.

V. Conclusão

53.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pela Curtea de Apel Bucureşti (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia) da seguinte forma:

O artigo 2.o TUE, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e a Decisão 2006/928/CE da Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Roménia relativamente a objetivos de referência específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção,

devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação ou regulamentos nacionais que prevejam a supervisão dos inquéritos e dos processos disciplinares contra o inspetor‑chefe da Inspecţia Judiciară (Inspeção Judiciária, Roménia) pelo seu inspetor‑chefe adjunto e a investigação dessas queixas pelos inspetores judiciários deste órgão quando o inspetor‑chefe adjunto seja nomeado unicamente segundo o critério do inspetor‑chefe, o mandato do inspetor‑chefe adjunto depende e coincide com o do inspetor‑chefe, e todos os inspetores judiciários estão subordinados ao inspetor‑chefe do qual depende a sua progressão na carreira.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) As garantias de independência e de imparcialidade exigidas aos órgãos jurisdicionais pelo direito da União postulam a existência de regras, designadamente no que respeita à composição da instância, à nomeação, à duração das funções, bem como às causas de abstenção, de impugnação da nomeação e de destituição dos seus membros, que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 20 de abril de 2021, Repubblika, C‑896/19, EU:C:2021:311, n.o 53).

( 3 ) JO 2006, L 354, p. 56.

( 4 ) Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 158 e 178). V. também Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o. (C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.os 155 a 175). No n.o 223 deste último acórdão, o Tribunal de Justiça salientou que decorre, designadamente, dos objetivos de referência em questão que a existência de um sistema judicial imparcial, independente e eficaz é de particular importância na luta contra a corrupção, nomeadamente na de alto nível. O Tribunal de Justiça declarou que os objetivos de referência têm efeito direto. Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 249).

( 5 ) Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 827, de 13 de setembro de 2005.

( 6 ) Também denominados coletivamente «Regulamentos de 2018».

( 7 ) Monitorul Oficial al României, parte I., n.o 1038, de 6 de dezembro de 2018.

( 8 ) Monitorul Oficial al României, parte I., n.o 1049, de 11 de dezembro de 2018.

( 9 ) Não publicado. V. também artigo 65.o, n.o 4, da Lei 317/2004. Os Despachos n.o 131/2018 e n.o 134/2018 foram revogados e substituídos em 2021. O órgão jurisdicional de reenvio indica que os despachos iniciais são aplicáveis ratione temporis ao caso em apreço.

( 10 ) Embora não resulte claramente do pedido de decisão prejudicial, afigura‑se que a Inspeção Judiciária arquivou as queixas da recorrente.

( 11 ) Decisão n.o 3935/IJ/1000/DIP/2018.

( 12 ) Processo n.o 6172/2/2018.

( 13 ) Decisão n.o 654.

( 14 ) Processo n.o 4402/2/2021.

( 15 ) A Inspeção Judiciária registou essa queixa em 29 de janeiro de 2020.

( 16 ) Decisão n.o 728/2021.

( 17 ) Decisão n.o C21‑723.

( 18 ) A Inspeção Judiciária foi representada pelo seu inspetor‑chefe, N.L.

( 19 ) V. Acórdão de 20 de abril de 2021, Repubblika (C‑896/19, EU:C:2021:311, n.o 33 e jurisprudência referida).

( 20 ) «[o] inspetor‑chefe tem poderes‑chave [...]: nomeia os inspetores com cargos de direção; gere a atividade da inspeção e os procedimentos disciplinares; organiza a atribuição dos processos; define as áreas específicas de atividade em que são exercidas ações de fiscalização; é o principal emissor de instruções e tem a capacidade de instaurar ele próprio um processo disciplinar.»: Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19 e C‑355/19, EU:C:2020:746, n.o 267).

( 21 ) O presente processo não invoca a possibilidade de instaurar processos cíveis ou penais contra a Inspeção Judiciária ou o seu inspetor‑chefe.

( 22 ) V., por exemplo, artigo 66.o, n.o 3, da Lei 317/2004.

( 23 ) V., por exemplo, artigo 45.o, n.o 4, e artigo 47.o, n.o 3, da Lei 317/2004.

( 24 ) V. artigo 69.o, n.o 1, alínea g), artigos 70.o e 77.o da Lei 317/2004. Não obstante os plenos poderes atribuídos ao inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária, o artigo 72.o, n.o 1, da Lei n.o 317/2004 obriga os inspetores judiciários a atuarem de forma independente e imparcial.

( 25 ) V. artigo 65.o, n.os 1 e 3, da Lei 317/2004.

( 26 ) Em conformidade com o artigo 133.o, n.o 1, da Constituția României (Constituição romena), o Conselho Superior da Magistratura é o garante da independência do poder judicial. O artigo 134.o, n.o 2, da Constituição romena prevê que o Conselho Superior da Magistratura exerce «a função de instância de julgamento em matéria de responsabilidade disciplinar dos juízes e dos procuradores». V. também artigo 44.o, n.o 1, da Lei 317/2004. As decisões do Conselho Superior da Magistratura nos processos disciplinares podem ser objeto de recurso para uma formação de cinco juízes da Înalta Curte de Casație şi Justiție (Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia). O anexo da Decisão 2006/928 refere expressamente as capacidades e a responsabilização do Conselho Superior da Magistratura num processo judicial mais transparente e eficaz.

( 27 ) V. artigo 44.o, n.o 6, da Lei 317/2004. V. também Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 182).

( 28 ) Designadamente, os adotados em 2010, 2011, 2017 a 2019 e 2021.

( 29 ) COM (2021) 370 final.

( 30 ) V., por exemplo, n.o 24 das presentes conclusões.

( 31 ) Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 198).

( 32 ) Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 199).

( 33 ) Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito das decisões de um tribunal constitucional) (C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 84).

( 34 ) V., por analogia, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 196, 197 e 216). No n.o 216 desse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a secção do Ministério Público com competência para investigar as infrações cometidas pelos juízes e procuradores, na medida em que, em função das regras que regulam as competências, da composição e funcionamento dessa estrutura e do contexto nacional pertinente, possa ser entendida no sentido de que visa instituir um instrumento de pressão e de intimidação em relação aos juízes, e conduzir, assim, a uma aparente falta de independência ou de imparcialidade desses juízes, é suscetível de afetar a confiança que a justiça deve inspirar nos sujeitos de direito numa sociedade democrática e num Estado de direito. V. também Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o. (C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 226).

( 35 ) Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 182 e 184). As disposições legais nacionais em causa no caso em apreço aplicam‑se à magistratura romena no seu conjunto e, por conseguinte, aos tribunais de direito comum chamados a pronunciar‑se sobre questões relativas à aplicação ou à interpretação do direito da União. Uma vez que estes, enquanto «órgãos jurisdicionais» na aceção do direito da União, atuam no sistema judicial romeno nos «domínios abrangidos pelo direito da União», nos termos do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, devem satisfazer as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva.

( 36 ) A Inspeção Judiciária não nega que o inspetor‑chefe goza de poderes tão amplos. Pelo contrário, sublinha que a Lei 317/2004 lhe confere especificamente esses poderes e que o seu exercício está delimitado de forma precisa. A Inspeção Judiciária alega que a recorrente na realidade contesta o reforço institucional da Inspeção Judiciária pela Lei 317/2004 e a sua maior independência em relação ao Conselho Superior da Magistratura.

( 37 ) Esses órgãos jurisdicionais podem confirmar ou anular as decisões da Inspeção Judiciária de arquivamento das queixas.

( 38 ) E exigido pelo direito da União. V. n.o 38 das presentes conclusões.

( 39 ) Conforme consta do n.o 22 do pedido de decisão prejudicial.

( 40 ) A base jurídica dessa prorrogação interina foi a Ordonanța de Urgență a Guvernului nr. 77/2018 (Decreto Urgente do Governo n.o 77/2018), de 5 de setembro de 2018 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 767, de 5 de setembro de 2018) (a seguir «Decreto n.o 77/2018»).

( 41 ) No Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 206 e 207), o Tribunal de Justiça sublinhou que compete, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar esta questão.

( 42 ) Afigura‑se, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o inspetor‑chefe, N.L., se reformou e que ele e o inspetor‑chefe adjunto, P.M., foram substituídos depois da apresentação do presente pedido de decisão prejudicial na Secretaria do Tribunal de Justiça.

( 43 ) Órgão jurisdicional competente para decidir no processo principal sobre o objeto do reenvio prejudicial no processo C‑83/19. V. Acórdão n.o 3014/2021 (disponível em http://rolii.ro/hotarari/61d2683fe4900928170001a5).

( 44 ) O Tribunal de Justiça não conhece o teor preciso deste acórdão, que é posterior ao presente pedido de decisão prejudicial, pelo que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificá‑lo.

( 45 ) Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociația Forumul Judecătorilor din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393).

( 46 ) V. artigo 69.o da Lei 317/2004.

( 47 ) A Inspeção Judiciária alega que os Regulamentos de 2018 são necessários para assegurar a sua independência e o seu funcionamento de forma coerente. Observa ainda que o capítulo VII da Lei 317/2004 contém normas pormenorizadas sobre o funcionamento da Inspeção Judiciária, a nomeação do inspetor‑chefe e o seu mandato, bem como sobre a nomeação do pessoal que ocupa cargos de direção na Inspeção Judiciária.

( 48 ) Sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, afigura‑se que, nos termos do artigo 67.o, n.o 5, da Lei 317/2004, a assembleia geral do Conselho Superior da Magistratura pode destituir o inspetor‑chefe quando este não exerce as suas funções de direção ou as exerce de forma inadequada.

( 49 ) O Ministro da Justiça parece considerar que a Inspeção Judiciária é competente para tratar das queixas disciplinares apresentadas contra o seu inspetor‑chefe, v. n.o 25 das presentes conclusões.

( 50 ) A inexistência de tal órgão distinto pode reforçar a independência do inspetor‑chefe da Inspeção Judiciária.

( 51 ) O órgão jurisdicional de reenvio considera que deve ser adotado um quadro legal «ao nível da lei orgânica»«que preveja garantias objetivas quanto à independência e à imparcialidade dos inspetores judiciários em relação ao inspetor‑chefe, quando este é objeto de uma queixa disciplinar». À luz do princípio da subsidiariedade previsto no artigo 5.o TUE, considero que um Estado‑Membro pode determinar a natureza das medidas a adotar relativamente aos inquéritos e processos disciplinares contra juízes e procuradores, incluindo os inspetores judiciários, para cumprir os requisitos do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e da Decisão 2006/928, desde que essas medidas respeitem os princípios da equivalência e da efetividade.

( 52 ) V. Ordinul nr. 134/2018.

( 53 ) Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 850, de 8 de outubro de 2018.

( 54 ) V. artigo 69.o, n.o 1, alínea a), da Lei 317/2004. Em conformidade com esta disposição, o inspetor‑chefe nomeia igualmente os diretores da Inspeção Judiciária para mandatos dependentes do mandato do inspetor‑chefe.

( 55 ) O inspetor‑chefe intervém na nomeação, avaliação e destituição dos inspetores judiciários. V., nomeadamente, Despacho n.o 131/2018. Não parece existir nenhum mecanismo que impeça o inspetor‑chefe de instaurar um inquérito e um processo disciplinar contra os inspetores judiciários que estejam a conduzir, ou tenham conduzido, inquéritos disciplinares contra si.