CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTHONY MICHAEL COLLINS

apresentadas em 2 de março de 2023 ( 1 )

Processos apensos C‑711/21 e C‑712/21

XXX (C‑711/21)

XXX (C‑712/21)

contra

Estado belga, representado pelo Secrétaire d’État à l’Asile et la Migration

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Política de imigração — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 4.o, 7.o e 47.o — Diretiva 2008/115/CE — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Decisão de regresso — Alteração de circunstâncias relativas à vida familiar e ao estado de saúde do nacional do país terceiro após a adoção da decisão de regresso — Invocação da alteração de circunstâncias após o encerramento do procedimento de proteção internacional — Limite temporal para invocar uma alteração de circunstâncias — Artigo 267.o TFUE — Subsistência do litígio no processo principal — Obrigação de verificação do órgão jurisdicional de reenvio — Princípio da cooperação leal — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Admissibilidade do pedido de decisão prejudicial»

I. Introdução

1.

Os pedidos de decisão prejudicial em apreço dizem respeito a duas decisões de regresso que as autoridades belgas adotaram em relação aos recorrentes no processo principal («requerentes»), na sequência do indeferimento dos seus pedidos de proteção internacional. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) ( 2 ) pede ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a compatibilidade das decisões de regresso com os artigos 4.o, 7.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia («Carta») e com os artigos 5.o, 6.o, n.o 6, e 14.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular ( 3 ) («Diretiva Regresso»). Neste contexto, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) procura determinar se um órgão jurisdicional que aprecia a legalidade dessas decisões de regresso pode ter em conta alterações da vida familiar e/ou do estado de saúde dos requerentes ocorridas após ter sido confirmada a validade das decisões de indeferimento dos seus pedidos de proteção internacional.

II. Litígio no processo principal

A.   Processo C‑711/21

2.

XXX, nacional de um país terceiro, terá chegado à Bélgica em 16 de março de 2017. Em 24 de março de 2017, requereu à autoridade competente belga o seu reconhecimento como refugiado. Em 20 de julho de 2017, o Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Comissário‑Geral para os Refugiados e os Apátridas, Bélgica; a seguir «CGRA») indeferiu o pedido de XXX e recusou também conceder‑lhe a proteção subsidiária. Com base nessa recusa, em 26 de julho de 2017, a autoridade competente ordenou a XXX que abandonasse o território belga.

3.

Em 21 de agosto de 2017, XXX interpôs no Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica; a seguir «CCE») um recurso da Decisão do CGRA, de 20 de julho de 2017, através da qual lhe foi recusada a proteção internacional. O CCE negou provimento a esse recurso em 11 de janeiro de 2018.

4.

Em 24 de agosto de 2017, XXX interpôs no CCE um recurso da Decisão de 26 de julho de 2017 que o ordenou a abandonar a Bélgica. Na audiência, XXX apresentou documentos comprovativos de alterações da sua vida familiar e do seu estado de saúde. Por Acórdão de 22 de outubro de 2019, o CCE negou provimento ao seu recurso. O CCE considerou que XXX já não podia impugnar a Decisão de 26 de julho de 2017 que ordenou que abandonasse a Bélgica, uma vez que o Acórdão de 11 de janeiro de 2018, que negou provimento ao seu recurso da recusa do CGRA de lhe conceder proteção internacional, tinha decidido definitivamente a questão. Entendeu que, ao apreciar a legalidade de uma ordem para abandonar o território belga, não podia ter em conta os desenvolvimentos posteriores à emissão dessa ordem ( 4 ). O CCE considerou igualmente que não podia proceder o argumento de XXX segundo o qual as autoridades não podiam adotar uma ordem para o obrigar a abandonar o território enquanto estivesse pendente o seu recurso da Decisão do CGRA de não lhe conceder proteção internacional, uma vez que o seu recurso dessa decisão tinha sido decidido em 11 de janeiro de 2018.

5.

Em 6 de novembro de 2019, o requerente interpôs no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) um recurso do Acórdão do CCE de 22 de outubro de 2019. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considera, em primeiro lugar, que, no âmbito de um pedido de anulação de uma ordem para abandonar o território belga, o CCE deveria, em princípio, apreciar essa ordem ex tunc. Em segundo lugar, entende que o Acórdão Gnandi não identifica claramente o momento em que um nacional de um país terceiro pode invocar uma alteração de circunstâncias para esse efeito e, por conseguinte, não declara se um tribunal pode ter em conta circunstâncias que ocorram após a tomada de uma decisão de regresso ( 5 ). Esta abordagem pode ter implicações significativas para a aplicação da Diretiva Regresso, nomeadamente do seu artigo 5.o, que prevê que, na aplicação desta diretiva, os Estados‑Membros devem ter em devida conta, designadamente, a vida familiar e o estado de saúde do nacional do país terceiro em causa.

B.   Processo C‑712/21

6.

Em 29 de fevereiro de 2016, XXX requereu à autoridade competente o seu reconhecimento como refugiado. O CGRA indeferiu o seu pedido em 30 de setembro de 2016 e recusou também conceder‑lhe a proteção subsidiária. Por referência à Decisão do CGRA, em 6 de outubro de 2016, a autoridade belga competente ordenou a XXX que abandonasse o território.

7.

Em 28 de outubro de 2016, XXX interpôs no CCE um recurso da Decisão do CGRA de 30 de setembro de 2016. Foi negado provimento a este recurso em 19 de janeiro de 2017. Em 7 de novembro de 2016, XXX interpôs no CCE um recurso da ordem de 6 de outubro de 2016 para abandonar o território. Após uma audiência em que XXX apresentou documentos relativos à sua vida privada, por Acórdão de 22 de outubro de 2019, o CCE negou provimento ao seu recurso da ordem de abandonar o território. Este órgão jurisdicional seguiu a mesma fundamentação que a enunciada no n.o 4 das presentes conclusões.

8.

XXX interpôs no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) um recurso do Acórdão do CCE de 22 de outubro de 2019. Pelas mesmas razões que as expostas no n.o 5 das presentes conclusões, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou que o Acórdão Gnandi não determina até que momento um organismo que aprecia a legalidade de uma decisão de regresso pode ter em conta uma alteração de circunstâncias relativas à vida familiar de um nacional de um país terceiro.

9.

No processo principal nos processos C‑711/21 e C‑712/21, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou que os artigos 4.o ( 6 ), 7.o e 47.o da Carta e os artigos 5.o, 6.o, n.o 6, e 14.o da Diretiva Regresso podem exigir que o órgão jurisdicional que aprecia a legalidade de uma ordem para abandonar o território, adotada na sequência do indeferimento de um pedido de proteção internacional, tenha em conta alterações relativas à vida familiar ou ao estado de saúde do requerente ocorridas antes da data em que essa apreciação é efetuada. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) suspendeu, assim, a instância em ambos os processos e submeteu ao Tribunal as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Devem os artigos 4.o ( 7 ), 7.o e 47.o da [Carta] e os artigos 5.o, [6.o, n.o 6] e 13.o da [Diretiva Regresso], lidos à luz do [Acórdão Gnandi], ser interpretados no sentido de que o juiz que conhece do recurso interposto de uma decisão de regresso adotada na sequência de uma decisão de recusa de concessão da proteção internacional apenas pode, na apreciação da legalidade da decisão de regresso, ter em conta alterações de circunstâncias, suscetíveis de ter uma incidência significativa na apreciação da situação ao abrigo do […] artigo 5.o [da Diretiva Regresso], ocorridas antes do encerramento do procedimento de proteção internacional pelo [CCE]?

2.

Devem as circunstâncias referidas no artigo 5.o da [Diretiva Regresso] ter ocorrido num momento em que o cidadão estrangeiro estava em situação regular ou possuía uma autorização de permanência?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

10.

Por Despacho de 4 de janeiro de 2022, o presidente do Tribunal de Justiça apensou os processos C‑711/21 e C‑712/21, para efeitos do processo oral e escrito, bem como do acórdão.

11.

Os requerentes, os Governos belga e neerlandês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

12.

Nas suas observações escritas de 29 de março de 2022, o Governo belga alegou que ambos os processos eram inadmissíveis, uma vez que a interpretação do direito da União solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio já não era necessária para proferir a sua decisão. Em 30 de março de 2020, a autoridade competente concedeu ao requerente no processo C‑711/21 uma autorização de residência ( 8 ). Em 8 de março de 2021, a autoridade competente concedeu ao requerente no processo C‑712/21 uma autorização de residência válida até 18 de fevereiro de 2021, posteriormente renovada até 18 de fevereiro de 2023 ( 9 ). O Governo belga informou igualmente o Tribunal de Justiça de que a autoridade belga competente ( 10 ) tinha, em 24 de fevereiro de 2022, comunicado esses desenvolvimentos ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional).

13.

Em 17 de junho de 2022, o presidente do Tribunal de Justiça escreveu ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) para confirmar se os requerentes tinham o direito de residir na Bélgica e, em caso afirmativo, se desejava manter os seus pedidos de decisão prejudicial. Em 27 de junho de 2022, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) confirmou, após ouvir o advogado dos requerentes, que tinha sido concedido a cada um deles um direito de residência na Bélgica. Todavia, desejava manter os seus pedidos de decisão prejudicial. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) declarou que, segundo o advogado dos requerentes, o seu direito de permanecer na Bélgica é temporário e o Governo belga não revogou as decisões de regresso. O advogado dos requerentes sustentou que se o seu direito de residência na Bélgica não for prorrogado, o Governo belga pode procurar retomar o procedimento de regresso com base nas decisões de regresso adotadas em relação aos requerentes.

14.

À luz da resposta do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), em 6 de julho de 2022, o juiz relator e o advogado‑geral pediram ( 11 ) ao Governo belga que informasse o Tribunal de Justiça sobre a situação atual das decisões de regresso tomadas em relação aos requerentes ou de quaisquer outras decisões de regresso que tivessem sido adotadas relativamente aos mesmos. Em 15 de julho de 2022, o Governo belga respondeu, declarando que «a concessão de uma autorização de residência é incompatível com uma decisão de regresso. Uma decisão de regresso é revogada por força da lei mediante a concessão de uma autorização de residência, sem que seja necessário que a autoridade competente adote uma nova decisão sobre o regresso.» O Governo belga concluiu que, à luz da recente jurisprudência do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) precisamente sobre este ponto ( 12 ), os requerentes já não tinham interesse em prosseguir com o processo de anulação das decisões de regresso.

15.

Em 20 de julho de 2022, o Tribunal de Justiça transmitiu a resposta do Governo belga de 15 julho de 2022 ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional). Perguntou novamente se desejava manter os seus pedidos de decisão prejudicial e, em caso afirmativo, pediu que indicasse as suas razões para o fazer.

16.

Em 3 de agosto de 2022, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) declarou que, à luz das posições divergentes do advogado dos requerentes e do Governo belga, não podia retirar os seus pedidos de decisão prejudicial sem ouvir previamente as partes e decidir sobre o interesse dos requerentes em manter os seus recursos de anulação. Indicou ainda que a instância estava suspensa até à resposta do Tribunal de Justiça aos seus pedidos de decisão prejudicial. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou, por conseguinte, que não estava em condições de se pronunciar sobre a situação das decisões de regresso e o interesse dos requerentes na prossecução dos seus recursos.

IV. Competência do Tribunal de Justiça para responder às questões submetidas

17.

É jurisprudência constante que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas por um órgão jurisdicional nacional nos termos do artigo 267.o TFUE gozam de uma presunção de pertinência. No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída por esta disposição, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Não obstante, resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo prejudicial pressupõe que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão do Tribunal de Justiça proferido a título prejudicial. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça pode verificar oficiosamente a persistência do litígio no processo principal. O Tribunal de Justiça não pode emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas. Assim, um pedido de decisão prejudicial deve ser necessário para a resolução efetiva de um litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio ( 13 ).

18.

Daqui decorre que o Tribunal de Justiça, se for caso disso, pode examinar as condições em que um órgão jurisdicional nacional lhe submete um pedido prejudicial, de modo que verifique se é competente, e, em especial, determine se a interpretação do direito da União que é solicitada tem ligação com os factos ou o objeto do litígio no processo principal, de modo que não seja levado a formular pareceres sobre questões gerais ou hipotéticas ( 14 ). Se concluir que a questão submetida não é manifestamente pertinente para a resolução do litígio, o Tribunal de Justiça não pode pronunciar‑se sobre as questões prejudiciais ( 15 ).

19.

O processo prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, que institui um diálogo entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, constitui a pedra angular do sistema jurisdicional concebido pelos Tratados. Procura assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assim assegurar, nomeadamente, a sua coerência, o seu pleno efeito e a sua autonomia ( 16 ). O artigo 267.oTFUE e o sistema de diálogo e cooperação judiciários que estabelece é uma lex specialis que expressa o princípio de base enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE ( 17 ), nos termos do qual a União e os Estados‑Membros estão vinculados a uma cooperação leal no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados ( 18 ). Os órgãos jurisdicionais nacionais, enquanto emanações do Estado, estão vinculados a esse princípio nas suas relações com as instituições da União, incluindo o Tribunal de Justiça ( 19 ). O dever de cooperação leal é de natureza recíproca, como resulta claramente da redação do artigo 4.o, n.o 3, TUE, segundo o qual a União e os Estados‑Membros «respeitam‑se […] mutuamente» ( 20 ). No âmbito da repartição de funções jurisdicionais entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça definida no artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça decide a título prejudicial sem que tenha, em princípio, de se interrogar sobre as circunstâncias nas quais os órgãos jurisdicionais nacionais lhes colocaram as questões e se propõem aplicar a disposição ou disposições do direito da União em questão. Só assim não será na hipótese de o processo do artigo 267.o TFUE ser desviado do seu objeto de modo que vise, por meio de um litígio simulado, que o Tribunal de Justiça profira uma decisão, ou ser manifesto que a disposição do direito da União submetida à interpretação do Tribunal de Justiça não é aplicável na resolução do processo a partir do qual foi apresentado o pedido de decisão prejudicial ( 21 ).

20.

À luz da exceção de inadmissibilidade deduzida pelo Governo belga nas suas observações escritas e da correspondência trocada entre o Tribunal de Justiça, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) e o Governo belga, persiste uma grande incerteza quanto a saber se o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) deve tomar em consideração a resposta do Tribunal de Justiça às questões prejudiciais submetidas para resolver os litígios pendentes no mesmo. A este respeito, a jurisprudência do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) que o Governo belga referiu na sua resposta ao Tribunal de Justiça de 15 de julho de 2022 indica claramente que é desnecessária uma decisão do Tribunal de Justiça para a resolução efetiva dos recursos interpostos no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), visto que as decisões de regresso, objeto desses recursos, parecem ter sido retiradas da ordem jurídica belga ( 22 ).

21.

Embora seja, em última análise, uma questão a decidir pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), este órgão jurisdicional, quando o Tribunal de Justiça lhe pediu novamente, em 20 de julho de 2022, que indicasse se desejava manter os seus pedidos de decisão prejudicial e, em caso afirmativo, por que razão, não abordou a pertinência da sua própria jurisprudência recente, tendo simplesmente confirmado o seu desejo de manter esses pedidos sem explicar por que razão eram relevantes para a solução dos litígios que lhe foram submetidos ( 23 ). O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) limita‑se a mencionar a necessidade de ouvir as partes antes de se pronunciar sobre esta questão em circunstâncias em que a instância se encontra suspensa.

22.

Dada a recente jurisprudência do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ( 24 ), o facto de a autoridade belga competente o ter informado de que tinha emitido autorizações de residência aos requerentes e de esse órgão jurisdicional ter questionado o advogado dos requerentes em diversas ocasiões sobre este assunto ( 25 ), não é claro por que razão o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) não está aparentemente disposto a responder na íntegra à questão que o Tribunal de Justiça lhe dirigiu, ajudando assim o Tribunal de Justiça no cumprimento da sua missão de garantir o respeito do direito na interpretação dos Tratados ( 26 ).

23.

Nas suas Conclusões no processo Di Donna, a advogada‑geral J. Kokott observou que o espírito de colaboração que preside ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o órgão jurisdicional nacional tenha em consideração a função cometida ao Tribunal de Justiça, «que é a de contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros e não a de formular opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas» ( 27 ). Nas suas Conclusões no processo Pohotovosť, o advogado‑geral N. Wahl declarou que «é indispensável que os órgãos jurisdicionais nacionais expliquem, quando tal não resultar inequivocamente dos autos, as razões pelas quais consideram necessária uma resposta às suas questões para a resolução do litígio. O dever de o Tribunal de Justiça respeitar as responsabilidades próprias do juiz nacional implica, ao mesmo tempo, que o juiz nacional tenha em consideração a função própria que o Tribunal de Justiça desempenha em matéria de reenvio prejudicial. Assim, ainda recentemente, o Tribunal de Justiça concluiu que não havia que decidir, num caso em que o órgão jurisdicional de reenvio, apesar do convite que lhe fora feito, tinha mantido o seu pedido de decisão prejudicial, abstendo‑se de tomar posição sobre as consequências de um desenvolvimento ou de um acontecimento de que o Tribunal de Justiça tinha tido conhecimento, tanto para a decisão a tomar no processo principal, como sobre a pertinência das questões prejudiciais para a resolução do litígio no processo principal» ( 28 ).

24.

Parece‑me que, no exercício desta cooperação, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) poderia ter levantado a suspensão da instância, ouvido as partes sobre o assunto e decidido da existência, no direito belga, das decisões de regresso tomadas em relação aos requerentes. Nesse contexto, constitui jurisprudência constante que uma disposição do direito nacional que impeça a aplicação do processo previsto no artigo 267.o TFUE deve ser afastada ( 29 ). Com base nas informações que estavam na posse do Tribunal de Justiça, o presente processo preliminar é, à primeira vista, académico, já que as respostas do Tribunal de Justiça às questões submetidas podem não ser necessárias para permitir que o órgão jurisdicional de reenvio resolva os litígios que lhe foram submetidos ( 30 ). Devido à alteração das circunstâncias dos requerentes desde a apresentação dos pedidos de decisão prejudicial, existe também um risco evidente de o Tribunal de Justiça desperdiçar recursos valiosos para responder a esses pedidos. Estas observações são feitas sem prejuízo do direito que assiste ao Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) de apresentar novos pedidos de decisão prejudicial, após ter verificado que as respetivas respostas são necessárias para a resolução efetiva de um litígio que lhe seja submetido ( 31 ).

V. Conclusão

25.

Tendo em conta o exposto, proponho que o Tribunal declare que não tem competência, nos termos do artigo 267.o TFUE, para responder à questão que o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) lhe submeteu em 4 de novembro de 2021.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Em 4 de novembro de 2021.

( 3 ) JO 2008, L 348, p. 98.

( 4 ) Invocando o Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C—181/16, EU:C:2018:465) («Acórdão Gnandi»).

( 5 ) O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva Regresso dispõe que «[s]em prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território». O artigo 6.o, n.o 6, da mesma diretiva prevê que «[a] presente diretiva não obsta a que os Estados‑Membros tomem decisões de cessação da permanência regular a par de decisões de regresso, ordens de afastamento, e/ou proibições de entrada, por decisão ou ato administrativo ou judicial previsto no respetivo direito interno, sem prejuízo das garantias processuais disponíveis ao abrigo do capítulo III e de outras disposições aplicáveis do direito comunitário e do direito nacional».

( 6 ) O artigo 4.o da Carta não é relevante para o processo C‑712/21, uma vez que o requerente não alegou que essa disposição tinha sido violada.

( 7 ) As questões prejudiciais submetidas no processo C‑711/21 e no processo 712/21 são idênticas; no entanto, no processo C‑712/21, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou desnecessário submeter uma questão sobre o artigo 4.o da Carta.

( 8 ) A autorização de residência em questão é uma «Carte F». É válida por cinco anos.

( 9 ) A autorização de residência em questão é uma «Carte A». É válida por um ano e é renovável.

( 10 ) O Office des étrangers (Serviço de Imigração belga).

( 11 ) Nos termos do artigo 62.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

( 12 ) C.E., n.o 254.100, de 24 de junho de 2022. Nesse acórdão, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou que, dado que tinha sido concedida uma autorização de residência a um recorrente, «tal decisão é incompatível com a ordem de abandonar o território» e «constitui um ato contrário a esta última, pelo que retirou esta decisão da ordem jurídica. Dado que o ato administrativo impugnado […] desapareceu da ordem jurídica, o dispositivo do acórdão recorrido já não é suscetível de dar origem a uma queixa por parte do recorrente. O recorrente já não tem, por conseguinte, o interesse necessário no presente recurso.»

( 13 ) V. Acórdãos de 27 de junho de 2013, Di Donna (C‑492/11, EU:C:2013:428, n.os 24 a 26 e jurisprudência referida), de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.os 27 a 29 e jurisprudência referida), e de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documentos) (C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 27 e jurisprudência referida).

( 14 ) Embora o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) não tivesse conhecimento de que os requerentes estavam na posse de uma autorização de residência em 4 de novembro de 2021, não informou posteriormente o Tribunal de Justiça sobre esses desenvolvimentos, apesar de ter sido notificado dos mesmos em 24 de fevereiro de 2022. Neste contexto, o n.o 26 da Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1) refere, nomeadamente, que «incumbe [ao órgão jurisdicional de reenvio] advertir o Tribunal de Justiça de qualquer incidente processual que possa ter consequências sobre o processo que lhe cabe decidir […]».

( 15 ) Acórdão de 24 de outubro de 2013, Stoilov i Ko (C‑180/12, EU:C:2013:693, n.o 38). Embora o Governo belga tenha suscitado a questão da admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial no presente processo, resulta claramente do acórdão acima mencionado e do Acórdão Gnandi (n.o 31) que o Tribunal de Justiça pode suscitar oficiosamente a questão da admissibilidade de tais pedidos. Em conformidade com o artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o órgão jurisdicional de reenvio suspende a instância. No entanto, o artigo 101.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça prevê que o Tribunal de Justiça pode pedir esclarecimentos ao órgão jurisdicional de reenvio.

( 16 ) Acórdão de 2 de março de 2021, A.B. e o. (Nomeação de juízes para o Supremo Tribunal — Recursos) (C‑824/18, EU:C:2021:153, n.o 90).

( 17 ) V. Temple Lang, J., The Development by the Court of Justice of the Duties of Cooperation of National Authorities and Community Institutions Under Article 10 EC, Fordham International Law Journal, 2007, vol. 31, 5.a edição, p. 1517. V. também Klamert, M., «Article 4 TEU»in Kellerbauer, M., Klamert, M., e Tomkin, J. (eds), The EU Treaties and the Charter of Fundamental Rights: A Commentary, Oxford University Press, New York (em linha), 2019, p. 35‑60.

( 18 ) Os Estados‑Membros devem tomar todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União. Facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União.

( 19 ) Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros são obrigados a adotar todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito da União. V. Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Comissão/Eslovénia (Arquivos do BCE) (C‑316/19, EU:C:2020:1030, n.os 119 e 124).

( 20 ) Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o. (C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.o 17).

( 21 ) Acórdão de 8 de novembro de 1990, Gmurzynska‑Bscher (C‑231/89, EU:C:1990:386, n.o 23).

( 22 ) V. C.E., n.o 254.100, de 24 de junho de 2022. O Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) deve verificar a pertinência e o conteúdo dessa jurisprudência nacional no âmbito dos litígios no processo principal. Parece, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que a sua posição sobre esta matéria foi alterada recentemente. V. Acórdão de 15 de abril de 2021, Estado belga (Elementos posteriores a uma decisão de transferência) (C‑194/19, EU:C:2021:270, n.o 20), que dizia respeito a um processo de recurso semelhante interposto no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional). Nesse processo, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) indicou, na sequência de um pedido de informação do Tribunal de Justiça, que o recurso no processo principal, que impugnava a legalidade de uma decisão que indeferiu o pedido de asilo do recorrente e lhe ordenou que abandonasse o território belga, tinha objeto, na medida em que visava uma decisão judicial que nenhuma circunstância de facto podia fazer desaparecer da ordem jurídica.

( 23 ) V., em contrapartida, n.os 32 e 33 do Acórdão Gnandi, onde o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) explicou claramente por que razão a resposta do Tribunal de Justiça era necessária para resolver o litígio que lhe tinha sido submetido e por que motivo desejava manter o seu pedido de decisão prejudicial. V., também, Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín (C‑165/14, EU:C:2016:675, n.os 30 e 31), onde o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), explicou que, embora o processo que lhe foi submetido relativo à recusa de concessão de uma autorização de residência temporária tivesse concluído, a resposta do Tribunal de Justiça ao pedido de decisão prejudicial foi útil para resolver uma questão pendente relativa à indemnização devida em consequência dessa recusa.

( 24 ) V. C.E., n.o 254.100, de 24 de junho de 2022.

( 25 ) Afigura‑se, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que não questionou a autoridade belga competente a este propósito.

( 26 ) V., por analogia, Acórdão de 2 de março de 2021, A.B. e o. (Nomeação de juízes para o Supremo Tribunal — Recursos) (C‑824/18, EU:C:2021:153, n.o 107).

( 27 ) Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Di Donna (C‑492/11, EU:C:2013:225, n.o 22).

( 28 ) Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2013:844, n.o 29).

( 29 ) Acórdão de 2 de março de 2021, A.B. e o. (Nomeação de juízes para o Supremo Tribunal — Recursos) (C‑824/18, EU:C:2021:153, n.o 141 e jurisprudência referida).

( 30 ) A resposta do Tribunal de Justiça às questões colocadas em tais circunstâncias poderia equivaler a emitir uma opinião consultiva sobre questões hipotéticas, não tendo em consideração a tarefa do Tribunal no âmbito da cooperação judiciária instituída pelo artigo 267.o TFUE.

( 31 ) V., por analogia, Despacho de 12 de maio de 2016, Security Service e o. (C‑692/15 a C‑694/15, EU:C:2016:344, n.o 30).