CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ATHANASIOS RANTOS

apresentadas em 16 de dezembro de 2021 ( 1 )

Processos apensos C‑562/21 PPU e C‑563/21 PPU

X (C‑562/21 PPU)

Y (C‑563/21 PPU)

contra

Openbaar Ministerie

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 1.o, n.o 3 — Entrega das pessoas procuradas à autoridade judiciária de emissão — Fundamentos de recusa de execução — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o — Direito de acesso a um tribunal independente e imparcial — Falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência da autoridade judiciária de emissão — Inexistência de uma solução jurisdicional efetiva que permita impugnar a validade da nomeação dos juízes no Estado‑Membro de emissão — Risco sério, para a pessoa que é objeto do mandado de detenção europeu, de violação do seu direito a um processo equitativo — Critérios de verificação da independência pela autoridade judiciária de execução»

I. Introdução

1.

Os presentes pedidos de decisão prejudicial, apresentados pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), têm por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI ( 2 ), na perspetiva do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), e, mais em especial, às condições que permitem à autoridade judiciária de execução de um mandado de detenção europeu (MDE) recusar a entrega da pessoa procurada, devido ao risco, em relação a essa pessoa, de violação do direito a um processo equitativo num tribunal independente no Estado‑Membro de emissão ( 3 ).

2.

A principal questão que se coloca nestes processos é clarificar, à luz dos ensinamentos decorrentes dos Acórdãos do Tribunal de Justiça de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) ( 4 ), e de 17 de dezembro de 2020, Openbaar Ministerie (Independência da autoridade judiciária de emissão) ( 5 ), se e em que medida a existência de falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão pode, nas circunstâncias do presente processo, levar a autoridade judiciária de execução a opor‑se à entrega da pessoa procurada.

3.

Esses processos têm como contexto a evolução e as reformas recentes do sistema judiciário polaco (a seguir «reformas controvertidas») ( 6 ), que levaram o Tribunal de Justiça a declarar, no essencial, que diversas disposições aprovadas pelo legislador polaco eram incompatíveis com o direito da União ( 7 ) e que a República da Polónia não cumpriu, em vários aspetos, as obrigações que lhe incumbem por força do direito da União ( 8 ) (a seguir, conjuntamente, «jurisprudência sobre a independência do sistema judiciário polaco») ( 9 ). Neste contexto, o recente Acórdão do Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional, Polónia) de 7 de outubro de 2021 (K 3/21) (a seguir «Acórdão do Tribunal Constitucional»), proferido posteriormente às decisões de reenvio, coloca novos desafios ao órgão jurisdicional de reenvio ( 10 ).

4.

À luz de uma análise da jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça, irei precisar as condições segundo as quais as falhas sistémicas ou generalizadas relativas à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão, e, designadamente, ao risco de ingerência do poder executivo no exercício do poder judicial, no que diz respeito à nomeação dos juízes, podem afetar a situação individual de pessoas procuradas uma vez estas entregues e, por conseguinte, podem levar a autoridade judiciária de execução a recusar a entrega das mesmas.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Tratado da União Europeia

5.

Nos termos do artigo 2.o TUE:

«A União funda‑se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados‑Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.»

6.

O artigo 7.o TUE estabelece:

«1.   Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados‑Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o por parte de um Estado‑Membro. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado‑Membro em questão e pode dirigir‑lhe recomendações, deliberando segundo o mesmo processo.

O Conselho verificará regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação.

2.   O Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, sob proposta de um terço dos Estados‑Membros ou da Comissão Europeia, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos valores referidos no artigo 2.o, após ter convidado esse Estado‑Membro a apresentar as suas observações sobre a questão.

3.   Se tiver sido verificada a existência da violação a que se refere o n.o 2, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado‑Membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado‑Membro no Conselho. Ao fazê‑lo, o Conselho terá em conta as eventuais consequências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas singulares e coletivas.

O Estado‑Membro em questão continuará, de qualquer modo, vinculado às obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados.

4.   O Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode posteriormente decidir alterar ou revogar as medidas tomadas ao abrigo do n.o 3, se se alterar a situação que motivou a imposição dessas medidas.

5.   As regras de votação aplicáveis, para efeitos do presente artigo, ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho são estabelecidas no artigo 354.o [TFUE].»

7.

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE dispõe:

«Os Estados‑Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União.»

2. Carta

8.

O artigo 47.o da Carta, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial», determina:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.

Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.

[...]»

3. Decisão‑Quadro 2002/584

9.

Os considerandos 5, 6, 10 e 12 da Decisão‑Quadro 2002/584 têm a seguinte redação:

«(5)

O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

(6)

O [MDE] previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária.

[...]

(10)

O mecanismo do [MDE] é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o [TUE], verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.

[...]

(12)

A presente decisão‑quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o [TUE] e consignados na [Carta], nomeadamente o seu capítulo VI. Nenhuma disposição da presente decisão‑quadro poderá ser interpretada como proibição de recusar a entrega de uma pessoa relativamente à qual foi emitido um [MDE] quando existam elementos objetivos que confortem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos.»

10.

Nos termos do artigo 1.o dessa Decisão‑Quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar»:

«1.   O [MDE] é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.   Os Estados‑Membros executam todo e qualquer [MDE] com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.   A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [TUE].»

11.

Os artigos 3.o, 4.o, e 4.o‑A da referida decisão‑quadro enumeram os motivos de não execução obrigatória e facultativa do MDE.

12.

O artigo 15.o da mesma decisão‑quadro, sob a epígrafe «Decisão sobre a entrega», prevê:

«1.   A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2.   Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.o a 5.o e o artigo 8.o, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.o

3.   A autoridade judiciária de emissão pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

B.   Direito neerlandês

13.

A Overleveringswet (Lei Relativa à Entrega), de 29 de abril de 2004 ( 11 ), com a última redação que lhe foi dada pela Lei de 17 de março de 2021 ( 12 ), transpõe para o ordenamento jurídico neerlandês a Decisão‑Quadro 2002/584.

14.

O artigo 1.o da Lei Relativa à Entrega tem o seguinte teor:

«Para efeitos da presente lei, entende‑se por:

[...]

g)

tribunal: o Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão;

[...]»

15.

O artigo 11.o dessa lei prevê, no seu n.o 1:

«Um [MDE] não é executado nos casos em que, segundo o tribunal, existam motivos sérios e comprovados para acreditar que, após a entrega, a pessoa requerida corre um risco real de violação dos seus direitos fundamentais garantidos pela [Carta].»

16.

O artigo 26.o da referida lei dispõe, no seu n.o 1:

«O tribunal examina [...] a possibilidade de entrega. [...]»

17.

O artigo 28.o da mesma lei estabelece:

«1.   O tribunal decide sobre a entrega o mais tardar catorze dias após o termo da audiência. A sentença deve ser fundamentada.

2.   Se o tribunal considerar [...] que a entrega não pode ser autorizada [...], cabe‑lhe recusar essa entrega na sua decisão.

3.   Nos casos diferentes dos previstos no n.o 2, o tribunal autoriza a entrega na sua sentença, salvo se considerar que não deve ser dado seguimento ao [MDE] por força do artigo 11.o, n.o 1 [...].»

III. Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

A.   Processo C‑562/21 PPU

18.

Em 6 de abril de 2021, uma autoridade judiciária polaca emitiu um MDE com vista à detenção de X, um nacional polaco, e à sua entrega a essas autoridades para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade, que lhe foi aplicada por sentença transitada em julgado, proferida em 30 de junho de 2020, por extorsão e ameaça de violência.

19.

O interessado foi detido preventivamente enquanto aguarda a decisão do rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), o órgão jurisdicional de reenvio, sobre a sua entrega, entrega essa a que não deu consentimento.

20.

Esse órgão jurisdicional, chamado a pronunciar‑se a respeito do pedido de execução do MDE, verificou a existência de falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão, que implicam um risco real de violação do direito a um tribunal independente, consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, enquanto conteúdo essencial do direito fundamental a um processo equitativo.

21.

Além disso, o referido órgão jurisdicional sublinhou que, embora fosse possível, a uma pessoa cuja entrega tenha sido pedida para efeitos da execução de uma pena ou de uma medida privativa de liberdade, especificar, no procedimento de entrega, quais os juízes do Estado‑Membro de emissão que participaram no seu julgamento, essa pessoa não pode impugnar de maneira efetiva, após a sua entrega, a validade da nomeação de um juiz ou a legalidade do exercício das funções judiciais deste, ao abrigo de uma legislação entrada em vigor em 14 de fevereiro de 2020 ( 13 ).

22.

Nestas circunstâncias, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Que critério deve um órgão jurisdicional que se deve pronunciar sobre a aplicação de um MDE para efeitos de execução de uma pena ou medida privativa de liberdade definitiva aplicar ao apreciar se, no Estado‑Membro de emissão, o direito a um tribunal previamente estabelecido por lei foi violado no processo que conduziu à condenação quando, nesse Estado‑Membro, uma eventual violação desse direito não era suscetível de recurso jurisdicional efetivo?»

B.   Processo C‑563/21 PPU

23.

As autoridades judiciárias polacas emitiram seis MDE contra Y, um nacional polaco, com vista à sua detenção e entrega a essas autoridades. Foram emitidos dois MDE para efeitos da execução de penas privativas de liberdade e os outros quatro foram emitidos para efeitos de procedimentos penais pela prática de diversos crimes, designadamente fraude. O processo remetido pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito ao MDE emitido, em 7 de abril de 2020, relativamente a este último crime.

24.

O interessado foi detido preventivamente enquanto aguarda a decisão do rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão), o órgão jurisdicional de reenvio, sobre a sua entrega, entrega essa a que não deu consentimento.

25.

Este órgão jurisdicional, demandado no contexto do pedido de execução do MDE, verificou, à semelhança do que fez no processo C‑562/21 PPU, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão, que implicam um risco real de violação do direito a um tribunal independente, consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta ( 14 ).

26.

Além disso, por um lado, o referido órgão jurisdicional salientou que não era possível, a uma pessoa cuja entrega tenha sido pedida para efeitos de processo penal, especificar, no processo de entrega, quais os juízes do Estado‑Membro de emissão que examinarão o seu processo após a sua entrega, uma vez que os processos são atribuídos de forma aleatória aos juízes de um órgão jurisdicional e que essa pessoa está, portanto, impossibilitada de invocar, de forma individualizada, as irregularidades cometidas na nomeação de um ou de vários juízes. Por outro lado, o mesmo órgão jurisdicional verificou que uma pessoa procurada não pode, por força da legislação entrada em vigor em 14 de fevereiro de 2020 ( 15 ), impugnar de maneira efetiva, após a sua entrega, a validade da nomeação de um juiz ou a legalidade do exercício das suas funções jurisdicionais.

27.

Nestas circunstâncias, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o critério estabelecido no Acórdão [Minister for Justice and Equality] e confirmado pelo Acórdão [Openbaar Ministerie] ser aplicado quando existe um risco real de a pessoa em causa ser julgada por um tribunal que não foi previamente estabelecido por lei?

2)

Deve o critério estabelecido no Acórdão [Minister for Justice and Equality] e confirmado pelo Acórdão [Openbaar Ministerie] ser aplicado quando uma pessoa requerida que pretende contestar a sua entrega não pode preencher esse critério com o fundamento de que não é possível determinar, nesse momento, a composição dos órgãos jurisdicionais perante os quais será julgada, em razão das modalidades de atribuição aleatória desses processos?

3)

A inexistência de um recurso efetivo para impugnar a validade da nomeação dos juízes na Polónia, em circunstâncias em que se afigura que a pessoa requerida não pode provar, nesse momento, que os órgãos jurisdicionais perante os quais será julgada serão compostos por juízes não validamente nomeados, constitui uma violação do conteúdo essencial do direito a um processo equitativo que implica a obrigação de o Estado‑Membro de execução recusar a entrega da pessoa requerida?»

IV. Tramitação prejudicial urgente

28.

A Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 30 de setembro de 2021, deferir o requerimento que o órgão jurisdicional de reenvio apresentou para que os dois presentes processos fossem submetidos a tramitação prejudicial urgente. A este propósito, o Tribunal de Justiça sublinhou, por um lado, que as questões prejudiciais submetidas tinham por objeto a interpretação de uma decisão‑quadro do âmbito do título V da terceira parte do Tratado FUE e, por outro, que esse órgão jurisdicional indicara que X e Y estavam detidos nos Países Baixos, enquanto aguardam as decisões sobre a sua entrega.

29.

Dada a conexão existente entre esses processos, o Tribunal de Justiça também decidiu apensá‑los para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

30.

X, o Openbaar Ministerie (Ministério Público, Países Baixos), os governos neerlandês e polaco, bem como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. O Openbaar Ministerie (Ministério Público), os governos irlandês, neerlandês e polaco, bem como a Comissão apresentaram alegações na audiência que teve lugar em 16 de novembro de 2021.

V. Análise

31.

Com as questões prejudiciais que submete nos dois processos, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se, por força dos princípios resultantes dos Acórdãos Minister for Justice and Equality e Openbaar Ministerie, é obrigado a recusar a entrega da pessoa procurada nas seguintes situações:

por um lado, quando, ao apreciar um MDE emitido para efeitos de execução de uma pena ou medida privativa de liberdade definitiva, no Estado‑Membro de emissão (i) o direito a um tribunal previamente estabelecido por lei tenha sido violado no processo que conduziu à condenação e (ii) uma eventual violação desse direito não seja suscetível de recurso jurisdicional efetivo ( 16 );

por outro lado, quando, ao apreciar um MDE emitido para efeitos de procedimentos penais (i) exista um risco real de, no Estado‑Membro de emissão, a pessoa procurada ser julgada por um tribunal que não foi previamente estabelecido por lei ( 17 ) (ii) essa pessoa não possa determinar a composição dos órgãos jurisdicionais perante os quais será julgada, em razão das modalidades de atribuição aleatória dos processos ( 18 ) e (iii) não exista um recurso efetivo para impugnar a validade da nomeação dos juízes ( 19 ).

32.

Recordarei, antes de mais, os princípios definidos na jurisprudência pertinente (A), para, em seguida, responder às questões prejudiciais (B).

A.   Quanto aos princípios que decorrem da Decisão‑Quadro 2002/584 e à jurisprudência pertinente

33.

Recordarei em seguida os princípios constantes da Decisão‑Quadro 2002/584 e consagrados pela jurisprudência no que respeita aos motivos de não execução de um MDE ligados ao risco de violação dos direitos fundamentais da pessoa procurada (1), bem como as condições em que uma irregularidade na nomeação de um juiz pode pôr em causa o direito de qualquer pessoa a um processo equitativo (2).

1. Motivos de não execução de um MDE associados ao risco de violação dos direitos fundamentais da pessoa procurada

34.

Conforme resulta dos considerandos 5, 6, e 10 da Decisão‑Quadro 2002/584, a instituição do mecanismo do MDE, que permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição, constitui a concretização, no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária, e baseia‑se num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros ( 20 ). A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa em caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o TUE, verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo. O considerando 12 dessa decisão‑quadro precisa, no entanto, que esta respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.o TUE e consignados na Carta ( 21 ).

35.

Estas duas «pedras angulares» da Decisão‑Quadro 2002/584 encontram expressão no seu artigo 1.o, que, no n.o 2, determina que os Estados‑Membros executam todo e qualquer MDE com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto nessa decisão‑quadro e esclarece, no n.o 3, que a referida decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o TUE.

36.

Daqui decorre que, em princípio, as autoridades judiciárias de execução só podem recusar executar um MDE pelos motivos taxativamente previstos nos artigos 3.o a 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584 ( 22 ) ou, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, em «circunstâncias excecionais» que, em virtude da sua gravidade, obrigam a limitar os princípios do reconhecimento e da confiança mútuos entre Estados‑Membros, nos quais se funda a cooperação judiciária em matéria penal ( 23 ).

37.

Para verificar a existência dessas circunstâncias excecionais, entre as quais figura a violação de determinados direitos fundamentais consagrados na Carta, o Tribunal de Justiça instituiu, no Acórdão Aranyosi e Căldăraru, um exame em duas fases (a seguir «exame em duas fases» ou «exame» ( 24 )):

na primeira, a autoridade judiciária de execução deve avaliar o risco real de violação dos direitos fundamentais atendendo à situação geral do Estado‑Membro de emissão;

na segunda, essa autoridade deve verificar, de maneira concreta e precisa, se existe um risco real de, dadas as circunstâncias do caso, ser posto em causa um direito fundamental da pessoa procurada ( 25 ).

38.

Em seguida, esses princípios, e designadamente o exame em duas fases, foram aplicados em relação à situação em que, na sequência da execução de um MDE, existe um risco de violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.o da Carta, devido a falhas sistémicas ou generalizadas do sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, no presente caso a República da Polónia, suscetíveis de afetar a independência dos juízes e, portanto, de dar lugar a uma violação desse direito.

39.

No Acórdão Minister for Justice and Equality, relativo a um MDE emitido pelas autoridades judiciárias polacas para efeitos de procedimento penal, o Tribunal de Justiça declarou que, mesmo quando, após a primeira fase do exame, a autoridade judiciária de execução dispõe de elementos, como os que figuram numa proposta fundamentada da Comissão adotada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, devido a falhas sistémicas ou generalizadas no que toca à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão, para demonstrar a existência de um risco real de violação do conteúdo essencial do direito fundamental a um processo equitativo ( 26 ), essa autoridade é ainda obrigada, no contexto da segunda fase, a verificar, de maneira concreta e precisa, se existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a pessoa em causa corre esse risco em caso de entrega ao Estado‑Membro de emissão ( 27 ). A este respeito, a referida autoridade deve ter em conta critérios como a situação pessoal dessa pessoa, a natureza da infração que lhe é imputada e o contexto factual que estão na base do MAE (a seguir «critérios pertinentes»), bem como as informações prestadas pelo Estado‑Membro de emissão em aplicação do artigo 15.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 ( 28 ).

40.

No Acórdão Openbaar Ministerie, relativo a um MDE emitido pelas autoridades judiciárias polacas para efeitos de processo penal e do cumprimento de uma pena privativa de liberdade, por um lado, o Tribunal de Justiça entendeu que, mesmo quando a autoridade judiciária de execução dispõe de elementos que revelam falhas sistémicas ou generalizadas no que respeita à independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão, que existiam no momento da emissão ou que ocorreram após tal emissão, essa autoridade não pode negar a qualidade de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, ao órgão jurisdicional que emitiu o MDE ( 29 ). Por outro lado, o Tribunal de Justiça recordou que, mesmo quando verifica a referida existência de falhas sistémicas ou generalizadas, a autoridade judiciária de execução não pode deixar de realizar a segunda fase do exame. No contexto dessa segunda fase, cabe a essa autoridade verificar se existem motivos sérios e comprovados para acreditar que, em caso de entrega, a pessoa que é objeto do MDE corre um risco real de o seu direito fundamental a um processo equitativo ser violado ( 30 ). A este propósito, o Tribunal de Justiça remeteu para os critérios pertinentes, expostos no Acórdão Minister for Justice and Equality ( 31 ), esclarecendo simultaneamente que a referida autoridade pode, no quadro do contexto factual em que a emissão do MDE se insere, tomar em consideração declarações de autoridades públicas que possam interferir no tratamento a dar a um caso específico ( 32 ).

41.

No essencial, nos Acórdãos referidos, o Tribunal de Justiça, embora mantendo o princípio da entrega da pessoa procurada, entendeu que a existência de um risco real de essa pessoa, em caso de entrega à autoridade judiciária de emissão, sofrer uma violação do seu direito fundamental a um tribunal independente e, portanto, do conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo, garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, é suscetível de, a título excecional, permitir à autoridade judiciária de execução não dar seguimento a esse mandado de detenção europeu, com fundamento no artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 ( 33 ).

42.

Esta verificação, que se traduz no exame em duas fases, implica, fundamentalmente, uma apreciação geral da situação no Estado‑Membro de emissão, seguida de uma apreciação em concreto da situação da pessoa em causa, da qual resulta que, de facto, essa pessoa se encontra exposta ao risco real de violação dos direitos fundamentais em causa.

2. As condições em que uma irregularidade na nomeação de um juiz pode pôr em causa o direito de qualquer pessoa a um processo equitativo

43.

Tendo o órgão jurisdicional de reenvio sublinhado que as falhas sistémicas ou generalizadas que afetam o direito fundamental a um tribunal previamente estabelecido por lei no Estado‑Membro de emissão resultam principalmente de uma irregularidade na nomeação dos membros do poder judicial ( 34 ), parece‑me oportuno, em seguida, evocar brevemente os princípios definidos pelo Tribunal de Justiça no que respeita às condições em que uma irregularidade na nomeação de um juiz pode pôr em causa o direito a um processo equitativo.

44.

No Acórdão de 26 de março de 2020, Réexamen Simpson/Conselho e HG/Comissão ( 35 ), o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre as consequências de uma irregularidade no procedimento de nomeação de um juiz para o Tribunal da Função Pública da União Europeia no que respeita ao direito das partes a um tribunal previamente estabelecido por lei.

45.

Nesse acórdão, ao mesmo tempo que sublinhou que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o direito de ser julgado por um tribunal «estabelecido por lei», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, ao qual corresponde o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta ( 36 ), engloba, pela sua própria natureza, o processo de nomeação dos juízes ( 37 ), o Tribunal de Justiça esclareceu que uma irregularidade cometida na nomeação dos juízes no interior do sistema judicial em causa implica uma violação do artigo 47.o, segundo parágrafo, primeiro período, da Carta, nomeadamente quando essa irregularidade seja de uma natureza e de uma gravidade tais que cria um risco real de que outros ramos do poder, particularmente o executivo, possam exercer um poder discricionário indevido que ponha em perigo a integridade do resultado a que conduz o processo de nomeação e semeie, assim, uma dúvida legítima no espírito dos sujeitos de direito quanto à independência e à imparcialidade do ou dos juízes em causa, o que é o caso quando estão em questão regras fundamentais que fazem parte integrante do estabelecimento e do funcionamento desse sistema judicial ( 38 ).

46.

No referido acórdão, o Tribunal de Justiça distinguiu entre, por um lado, o processo de nomeação do juiz em causa para o Tribunal da Função Pública (ou seja, o convite à apresentação de candidaturas), que o Tribunal Geral da União Europeia tinha concluído que era irregular, e, por outro, as regras fundamentais para a nomeação dos juízes para esse órgão jurisdicional (ou seja, o artigo 257.o, quarto parágrafo, TFUE e o artigo 3.o do anexo I do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia) e concluiu que a simples violação do processo de nomeação não basta para provar a existência de uma violação de uma regra fundamental do processo de nomeação dos juízes do Tribunal da Função Pública de uma natureza e de uma gravidade tais que tivesse criado um risco real de que o Conselho fizesse um uso injustificado dos seus poderes, pondo em perigo a integridade do resultado a que conduziu o processo de nomeação e semeando, assim, no espírito dos sujeitos de direito, uma dúvida legítima quanto à independência e à imparcialidade do juiz nomeado para o terceiro lugar ou mesmo da secção a que esse juiz foi afeto ( 39 ). Estes mesmos princípios foram aplicados pelo Tribunal de Justiça em relação à situação do sistema judiciário polaco no Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação) ( 40 ).

47.

No essencial, esta jurisprudência mostra‑nos que irregularidades na nomeação de determinados juízes podem ter repercussões na situação concreta dos particulares quando criam o risco de ingerência do poder executivo na administração da justiça e lançam, assim, uma dúvida no espírito dos particulares quanto à independência desses juízes e dos órgãos jurisdicionais a que os mesmos estão afetos. Estes ensinamentos levam‑me a concluir que, no contexto da segunda fase do exame nos processos principais, há que verificar se a situação das pessoas procuradas, atentos os critérios pertinentes, tem, para o poder executivo, um interesse superior aos elementos concretos das infrações presumidas e que os expõe ao risco de que a sua causa não seja tratada de forma imparcial, conforme adiante explicarei.

B.   Quanto às questões prejudiciais

48.

Os presentes processos inserem‑se num contexto quase idêntico àquele que deu origem aos Acórdãos Minister for Justice and Equality e Openbaar Ministerie, bem como ao do processo C‑480/21 ainda pendente, Minister for Justice and Equality ( 41 ). Dizem respeito à execução de um MDE emitido pelas autoridades judiciárias polacas para efeitos de procedimento penal ou do cumprimento de uma pena privativa de liberdade. Conforme já se indicou, com as suas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se e como deve aplicar a segunda fase do exame ( 42 ) no contexto particular do presente processo.

3. Quanto à primeira fase do exame

49.

A título preliminar, no que toca à primeira fase do exame, o órgão jurisdicional de reenvio, sem submeter nenhuma questão prejudicial a esse respeito, verificou a existência de falhas sistémicas ou generalizadas relativamente à independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão, que existiam quando da emissão do MDE e ainda subsistem, tendo mesmo sofrido um agravamento crescente ao longo dos últimos anos. Esse órgão jurisdicional chegou a essa conclusão com base, principalmente, na nomeação dos juízes sob proposta do KRS ao abrigo da Lei que Altera a Lei Relativa ao KRS e Determinadas Outras Leis, de 8 de dezembro de 2017 ( 43 ), bem como na impossibilidade de uma pessoa entregue impugnar efetivamente a validade da nomeação de um juiz ou a legalidade do exercício das suas funções judiciárias ao abrigo da legislação que entrou em vigor em 14 de fevereiro de 2020 ( 44 ).

50.

Sem pretender invadir a esfera das competências do órgão jurisdicional de reenvio e sem prejuízo das verificações que lhe competem quanto à atualidade dessa análise e à eventual evolução da situação a nível nacional ( 45 ), posso, em princípio e à luz da jurisprudência sobre a independência do sistema judiciário polaco, subscrever as conclusões formuladas por esse órgão jurisdicional ( 46 ).

4. Quanto à segunda fase do exame

51.

Quanto à segunda fase do exame, o Tribunal de Justiça é chamado a clarificar os critérios pertinentes no caso, por um lado, da execução de MDE emitidos para efeitos do cumprimento de uma pena ou medida privativa de liberdade e, por outro, da execução de MDE emitidos para efeitos de procedimentos penais ( 47 ).

52.

Importa, portanto, examinar se as falhas sistémicas ou generalizadas no que toca à independência do poder judicial no Estado‑Membro de emissão, quando comportam ou podem comportar falhas específicas na nomeação dos juízes que condenaram a pessoa procurada ou que a devem julgar após a sua entrega, podem acarretar, no presente caso, uma violação do direito dessa pessoa a um tribunal independente, garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, primeiro período, da Carta. Em caso de resposta afirmativa, a autoridade judiciária de execução deve abster‑se, ao abrigo do artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, de dar seguimento ao MDE, enquanto, no caso contrário, deve proceder à sua execução ( 48 ).

53.

No que respeita, por um lado, à execução de um MDE emitido para efeitos do cumprimento de uma pena ou de uma medida privativa de liberdade, o órgão jurisdicional de reenvio refere que existe um risco real de um ou diversos juízes nomeados após as reformas controversas ( 49 ) terem participado no processo da pessoa que foi objeto desse MDE. Esse órgão jurisdicional acrescenta que embora seja materialmente possível a essa pessoa indicar quais os juízes do Estado‑Membro de emissão que participaram no seu processo, todavia não lhe seria possível impugnar efetivamente a validade da nomeação de um juiz ou a legalidade do exercício das suas funções judiciais devido a uma alteração legislativa introduzida em 2020 no âmbito das reformas controvertidas ( 50 ).

54.

No que respeita, por outro lado, à execução de um MDE emitido para efeitos de procedimento penal, o órgão jurisdicional de reenvio observa que uma pessoa procurada não está em condições de saber que juízes examinarão o seu processo após a sua entrega, dado o mecanismo aleatório de atribuição dos processos aos juízes de um órgão jurisdicional, também introduzido no contexto das reformas controversas.

55.

Saliento que, nestes dois casos, são possíveis duas situações, a saber, antes de mais, aquela em que é possível excluir a existência de irregularidades na nomeação de um ou de vários juízes que apreciaram ou deverão apreciar a causa das pessoas procuradas (a) e, aquela em que existem irregularidades ou um risco real de existirem irregularidades nessa nomeação (b). Nesta segunda situação, que é objeto das questões prejudiciais, cabe esclarecer se e em que medida a existência ou o risco de existência dessas irregularidades pode levar a autoridade judiciária de execução a recusar a execução do MDE. Por último, parece‑me oportuno fornecer algumas indicações quanto às possíveis consequências, no que toca ao referido exame, do Acórdão do Tribunal Constitucional, que, embora tenha sido proferido posteriormente aos presentes pedidos de decisão prejudicial, constitui um elemento que o órgão jurisdicional de reenvio deverá ter em conta na sua apreciação. (c).

a) Quanto à inexistência de irregularidades na nomeação dos juízes nacionais competentes

56.

A autoridade judiciária de execução, com base nas suas verificações e eventualmente numa troca de informações com as autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, podia chegar à conclusão de que a autoridade judiciária que aplicou a pena ou a medida privativa de liberdade à pessoa procurada não era constituída por juízes nomeados de acordo com as regras resultantes das reformas controversas ( 51 ), ou que não havia o risco concreto de a pessoa cuja entrega é pedida para efeitos de procedimento penal poder ser julgada por uma autoridade judiciária composta por juízes nomeados com base nessas regras.

57.

Nessas situações, as falhas sistémicas ou generalizadas que afetam o sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, na falta de outros motivos passíveis de justificar a recusa de entrega da pessoa em causa, não devem obstar à entrega dessa pessoa a esse Estado‑Membro ( 52 ).

b) Quanto à existência ou ao risco real da existência de irregularidades na nomeação dos juízes nacionais competentes

58.

A autoridade judiciária de execução, sempre com base nas suas verificações e eventualmente numa troca de informações com as autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, podia chegar à conclusão de que a autoridade judiciária que aplicou a pena ou a medida privativa de liberdade era efetivamente constituída por um ou diversos juízes nomeados de acordo com as regras resultantes das reformas controvertidas, ou que havia o risco real de os juízes que proferiram a condenação da pessoa procurada ou que examinarão o processo dessa pessoa após a sua entrega pertencerem à categoria dos juízes nomeados de acordo com essas regras. Estas situações, que são objeto da primeira e segunda questões prejudiciais no processo C‑563/21 PPU, caracterizam‑se pela dúvida, na esfera da autoridade judiciária de execução, quanto à incidência efetiva da participação (efetiva ou provável) dos juízes nomeados irregularmente no que toca ao respeito do direito fundamental da referida pessoa a um tribunal independente.

59.

Ora, parece‑me que, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça examinada nos n.os 37 a 41 das presentes conclusões, essa dúvida não basta, por si só, para demonstrar a existência de um risco real de violação do direito fundamental da pessoa procurada a um tribunal independente no âmbito da segunda fase do exame e, portanto, para justificar uma eventual recusa dessa autoridade de executar o MDE. Com efeito, à semelhança das falhas sistémicas ou generalizadas do sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, a única repercussão dessas falhas nos próprios processos nacionais, terminados ou futuros, em relação à pessoa procurada, ao mesmo tempo que incentiva a referida autoridade a fazer prova de uma atenção acrescida na apreciação das circunstâncias que envolveram a emissão do MDE ( 53 ), não dispensa a mesma autoridade de proceder ao exame dos critérios pertinentes.

60.

A este propósito, recordo que, na sua jurisprudência sobre a independência do sistema judiciário polaco, o Tribunal de Justiça considerou, no essencial, que, através das reformas controvertidas, a República da Polónia permitiu ao poder executivo intervir decisivamente na nomeação dos juízes e no seu regime disciplinar. Além disso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça examinada no n.o 45 das presentes conclusões esclarece que uma irregularidade cometida na nomeação dos juízes implica uma violação do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, nomeadamente quando essa irregularidade cria um risco real de ingerência do poder executivo no judicial, permitindo assim ao poder executivo exercer uma influência sobre este e pondo em perigo a separação de poderes e, portanto, a independência do poder judicial ( 54 ).

61.

Considero, portanto, que a apreciação dos efeitos das falhas sistémicas ou generalizadas na situação particular das pessoas procuradas deve ser efetuada em função da natureza das falhas apontadas. No caso em apreço, tendo em conta as falhas verificadas relativamente à ingerência do poder executivo no exercício do poder judicial, a questão que se coloca é a de saber se essa ingerência pode afetar a apreciação dos processos relativos às pessoas procuradas.

62.

Compete, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio, com base nos elementos fornecidos pela pessoa procurada e nas informações eventualmente recebidas pelas autoridades do Estado‑Membro de emissão do MDE ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 verificar se a falta de independência dos órgãos jurisdicionais polacos, devido a uma ingerência do poder executivo no poder judicial, é suscetível de violar o direito das pessoas procuradas a um tribunal independente, tendo em conta os critérios pertinentes e as eventuais evoluções do quadro legislativo e judiciário do Estado‑Membro de emissão ( 55 ).

63.

Os critérios pertinentes devem, portanto, ser aplicados, nos presentes casos, à luz do eventual risco de ingerência do poder executivo nos processos relativos às pessoas procuradas. Mais especialmente, ao abrigo desses critérios, antes de mais, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio avaliar se a situação pessoal das pessoas procuradas pode implicar o risco de serem julgadas com base em elementos diferentes daqueles que são pertinentes para efeitos do exame da sua conduta alegadamente ilícita, como a eventual participação dessas pessoas na vida política ou a sua pertença a uma categoria, minoria ou estrato social particularmente expostos às ingerências do poder executivo, dadas as políticas levadas a cabo por este. Em seguida, esse órgão jurisdicional terá de verificar se a natureza das infrações pelas quais essas pessoas são penalmente perseguidas pode acarretar o risco de essas pessoas não serem julgadas de forma independente ( 56 ). Por último, o referido órgão jurisdicional deverá apreciar se esse risco pode decorrer do contexto factual que está na base do MDE, atentas as eventuais declarações das autoridades públicas suscetíveis de interferir no tratamento a dar a um caso concreto.

64.

Além disso, no âmbito da análise que precede, o órgão jurisdicional de reenvio poderá também ser induzido a examinar se a legislação do Estado‑Membro de emissão garante às pessoas procuradas um acesso efetivo à justiça que lhes permita invocar a eventual irregularidade da nomeação do ou dos juízes em causa (v. n.o 53 das presentes conclusões), aspeto que é objeto da questão prejudicial única no processo C‑562/21 PPU e da terceira questão prejudicial no processo C‑563/21 PPU ( 57 ).

65.

No que se refere à extensão da análise a que a autoridade judiciária de execução deve proceder, considero que compete à pessoa procurada fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos dos quais resulta, prima facie, um risco real de, dados os critérios evocados no n.o 63 das presentes conclusões, a sua causa poder ser julgada de forma não independente. Embora não se possa exigir que essa prova seja completa, essa demonstração não pode ficar limitada à evocação do risco genérico de as falhas sistémicas ou generalizadas do sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão poderem repercutir‑se no seu processo, enquadrando‑se essa apreciação ainda na primeira fase do exame. Em meu entender, compete à pessoa procurada, por um lado, apresentar os elementos dos quais resulta que os juízes envolvidos ou provavelmente envolvidos no seu processo fazem parte dos juízes nomeados de acordo com as reformas controvertidas ou que a própria autoridade judiciária de emissão não é independente face ao poder executivo, e, por outro, apresentar as razões que a levam a considerar que essa situação pode ter repercussões negativas na sua própria causa, à luz das condições pertinentes correspondentes à sua situação pessoal, à natureza das infrações em questão e ao contexto factual que está na base do MDE ( 58 ). Em meu entender, esses elementos serão normalmente suficientes para levar a autoridade judiciária de execução a recusar a entrega dessa pessoa, a não ser que a própria autoridade judiciária de emissão dê garantias ou concretamente se comprometa no que respeita ao tratamento reservado à referida pessoa após a sua entrega, por forma a dissipar quaisquer dúvidas quanto aos riscos evocados pela mesma pessoa.

c) Quanto às consequências do Acórdão do Tribunal Constitucional

66.

O Acórdão do Tribunal Constitucional, embora proferido posteriormente ao envio dos presentes pedidos de decisão prejudicial, constitui, enquanto facto notório, um elemento a que o órgão jurisdicional de reenvio tem de atender no momento da sua decisão.

67.

Embora a sua fundamentação ainda não esteja disponível, resulta da parte decisória desse acórdão que o Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional) põe em causa a própria aplicabilidade de algumas disposições fundamentais do Tratado UE nesse Estado‑Membro, bem como o papel essencial do Tribunal de Justiça de garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados, em conformidade com o disposto no artigo 19.o, n.o 1, TUE, incluindo no que respeita à questão controversa da independência das instâncias judiciárias, que é um dos traços fundamentais do Estado de direito garantido no artigo 2.o TUE ( 59 ). Contrariamente às garantias dadas pelo representante do Governo polaco na audiência, parece que a aplicação do direito da União pelos órgãos jurisdicionais nacionais não pode ser objeto de fiscalização nas situações jurídicas em que o Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional) considera que a Constituição polaca impõe uma determinada interpretação.

68.

Numa primeira leitura, o referido acórdão é a expressão de uma política judiciária, ao mais alto nível constitucional, destinada a pôr em causa a partilha dos princípios e valores fundamentais da União por esse Estado‑Membro ( 60 ), embora, porém, a participação desse mesmo Estado‑Membro na União não pareça estar posta em causa ( 61 ).

69.

Decerto, antes de retirar qualquer conclusão do Acórdão do Tribunal Constitucional para o caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio deverá fazer prova de extrema prudência, dado que as implicações desse acórdão deverão ser avaliadas com recurso a um exame cuidadoso da sua fundamentação e das modalidades concretas da sua aplicação ( 62 ), e tendo igualmente em atenção o facto de se tratar de uma situação em plena evolução ( 63 ). Em especial, afirmar que, de facto, o referido acórdão implica a impossibilidade de, a partir de agora, se executarem todos os MDE emitidos pelo Estado‑Membro em causa, conduziria à impunidade de bastantes infrações penais, violando os direitos das vítimas das referidas infrações, e constituiria uma desautorização do labor profissional dos juízes da República da Polónia que se esforçam por recorrer aos mecanismos de cooperação judiciária estabelecidos no direito da União ( 64 ). Tal poderia consubstanciar em si mesmo uma denegação de justiça e ter consequências graves, excedendo até o âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584 e da cooperação judiciária em matéria penal ( 65 ).

70.

Posto isto, parece‑me que uma tal abordagem corre o risco de pôr em causa o princípio do reconhecimento mútuo e a cooperação judiciária entre os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros bem como entre estes e o Tribunal de Justiça, que são os fundamentos do sistema do MDE. Com efeito, nessa situação, não vejo como seria possível garantir o elevado grau de confiança e de reconhecimento mútuos em que assenta o regime do MDE.

71.

A interpretação que parece resultar da parte decisória desse acórdão é passível de criar a dúvida de que uma pessoa, objeto de uma decisão de uma autoridade judiciária polaca, possa atualmente basear‑se nos princípios fundamentais do direito da União para sanar eventuais incompatibilidades da legislação nacional com o direito da União, incluindo as suas normas constitucionais. No que respeita aos processos principais, o referido acórdão poderia implicar, designadamente, a impossibilidade de sanar, por meio da aplicação dos princípios do primado e da aplicação direta do direito da União, a inexistência de uma solução jurisdicional efetiva na legislação nacional que permita proteger as pessoas, mesmo as pessoas entregues, contra eventuais violações do respetivo direito a um processo equitativo ( 66 ).

72.

Por conseguinte, as consequências do Acórdão do Tribunal Constitucional podiam desempenhar um papel, não em absoluto, mas na análise dos riscos concretos, para as pessoas procuradas, uma vez entregues, de violação do seu direito a um processo equitativo e, designadamente, na medida em que o referido acórdão obsta a que se corrija a falta de um meio (recusa, recurso, etc.) que permita pôr em causa a nomeação irregular dos juízes envolvidos nos processos de que serão objeto, o que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar ( 67 ), quando essas pessoas forneçam elementos a esse respeito.

73.

Nestas circunstâncias, não excluo que, enquanto esta situação persistir e a pessoa procurada demonstrar, por um lado, a existência de um risco real de tratamento não imparcial atenta a sua situação particular, com base nos critérios pertinentes, e, por outro, a impossibilidade de invocar a composição irregular dos órgãos jurisdicionais competentes para conhecer dos processos a que estará sujeita, o órgão jurisdicional de reenvio possa ser obrigado a recusar a execução dos MDE em causa, apesar das lamentáveis consequências dessa suspensão a nível do objetivo, próprio do MDE, de lutar contra a impunidade das pessoas procuradas que se encontram num Estado‑Membro diferente daquele onde alegadamente cometeram infrações. Cabe a esse órgão jurisdicional apreciar da necessidade dessa recusa, à luz dos critérios pertinentes detalhados nos n.os 61 a 64 das presentes conclusões e das eventuais consequências do Acórdão do Tribunal Constitucional, e tendo também em atenção que se trata de uma situação em constante evolução.

74.

Nestas circunstâncias, proponho que se responda às questões prejudiciais que o artigo 1.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que, quando a autoridade judiciária de execução chamada a decidir da entrega de uma pessoa objeto de um MDE, emitido para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade ou de procedimento penal, dispõe de elementos que tendencialmente demonstram a existência de um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, devido a falhas sistémicas ou generalizadas no que toca à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão, essa autoridade deve verificar, de maneira concreta e precisa, se, atenta a situação pessoal dessa pessoa, bem como a natureza da infração que lhe é imputada e o contexto factual que estão na base do MDE e tendo em atenção as informações que lhe foram facultadas por esse Estado‑Membro ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, dessa decisão‑quadro, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a referida pessoa corre esse risco caso seja entregue ao referido Estado‑Membro.

75.

A este propósito, a circunstância de haver um risco real de, após a sua entrega, a pessoa em causa ser julgada por um tribunal que não foi previamente estabelecido por lei ou de não ser possível determinar a composição dos órgãos jurisdicionais onde será julgada, bem como a inexistência de uma solução jurisdicional efetiva que permita a impugnação da validade da nomeação dos juízes em causa, não dispensa o órgão jurisdicional de reenvio de apreciar o risco real de violação do direito dessa pessoa a um processo equitativo por referência aos critérios mencionados.

76.

Incumbe, em especial, ao órgão jurisdicional de reenvio, à luz desses critérios e atenta a evolução da situação relativa ao sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, verificar se a pessoa procurada, uma vez entregue, corre o risco de o seu direito a um processo equitativo ser afetado por uma ingerência do poder executivo nos órgãos jurisdicionais competentes, dada a eventual inexistência de uma solução jurisdicional efetiva que permita impugnar a nomeação irregular do juiz ou juízes que apreciaram ou que são competentes para apreciar a causa dessa pessoa, e uma prática jurisprudencial constitucional que, ao pôr em causa o primado do direito da União, não permite sanar essa inexistência.

VI. Conclusão

77.

Vistas as considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) do seguinte modo:

O artigo 1.o, n.os 2 e 3, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretada no sentido de que, quando a autoridade judiciária de execução chamada a decidir da entrega de uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu (MDE), emitido para efeitos do cumprimento de uma pena privativa de liberdade ou de procedimentos penais, dispõe de elementos que tendencialmente demonstram a existência de um risco real de violação do direito fundamental a um processo equitativo garantido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devido a falhas sistémicas ou generalizadas no que toca à independência do poder judicial do Estado‑Membro de emissão, essa autoridade deve verificar, de maneira concreta e precisa, se, atenta a situação pessoal dessa pessoa, bem como a natureza da infração que lhe é imputada e o contexto factual que estão na base do MDE e tendo em atenção as informações que lhe foram facultadas por esse Estado‑Membro ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, dessa decisão‑quadro, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que a referida pessoa corre esse risco caso seja entregue ao referido Estado‑Membro;

A este propósito, a circunstância de haver um risco real de, após a sua entrega, a pessoa em causa ser julgada por um tribunal que não foi previamente estabelecido por lei ou de não ser possível determinar a composição dos órgãos jurisdicionais onde será julgada, bem como a inexistência de uma solução jurisdicional efetiva que permita a impugnação da validade da nomeação dos juízes em causa, não dispensa o órgão jurisdicional de reenvio de apreciar o risco real de violação do direito dessa pessoa a um processo equitativo por referência aos critérios mencionados;

Incumbe, em especial, ao órgão jurisdicional de reenvio, à luz desses critérios e atenta a evolução da situação relativa ao sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, verificar se a pessoa procurada, uma vez entregue, corre o risco de o seu direito a um processo equitativo ser afetado por uma ingerência do poder executivo nos órgãos jurisdicionais competentes, dada a eventual inexistência de uma solução jurisdicional efetiva que permita impugnar a nomeação irregular do juiz ou juízes que apreciaram ou que são competentes para apreciar a causa dessa pessoa, e uma prática jurisprudencial constitucional que, ao pôr em causa o primado do direito da União, não permite sanar essa inexistência.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

( 3 ) As questões prejudiciais submetidas no presente processo são, no essencial, idênticas, às submetidas pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) no processo pendente Minister for Justice and Equality (C‑480/21), que não está sujeito a tramitação urgente.

( 4 ) C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586 (a seguir «Acórdão Minister for Justice and Equality»).

( 5 ) C‑354/20 PPU e C‑412/20 PPU, EU:C:2020:1033 (a seguir «Acórdão Openbaar Ministerie»).

( 6 ) Essas reformas, relativas aos órgãos jurisdicionais constitucional e ordinários, aos órgãos jurisdicionais de direito comum, ao Krajowej Radzie Sądownictwa (Conselho Nacional da Magistratura, Polónia, a seguir «KRS») e ao Ministério Público, reforçaram a influência dos poderes executivo e legislativo no sistema de justiça, e, assim, limitaram a independência do poder judicial. Refiro‑me, designadamente, às alterações introduzidas em 2018 na ustawa o Sądzie Najwyższym (Lei Relativa ao Supremo Tribunal, Polónia), que foram objeto do Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal) (C‑619/18, EU:C:2019:531), bem como às alterações de 2019 na ustawa — Prawo o ustroju sądów powszechnych (Lei de Organização dos Tribunais Comuns), na ustawa o Sądzie Najwyższym (Lei relativa ao Supremo Tribunal), e às alterações de 2017 na ustawa o Krajowej Radzie Sądownictwa (Lei Relativa ao KRS), que foram objeto do Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596). Além disso, as disposições que alteram a Lei de Organização dos Tribunais Comuns, a Lei sobre o Supremo Tribunal e determinadas outras leis foram objeto, no contexto da ação por incumprimento em curso no processo C‑204/21, Comissão/Polónia, do Despacho do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 14 de julho de 2021, Comissão/Polónia (C‑204/21 R, EU:C:2021:593, a seguir «Despacho de 14 de julho de 2021»), que ordenou a suspensão da aplicação das disposições nacionais em causa, do Despacho da vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 2021, Polónia/Comissão (C‑204/21 R‑RAP, EU:C:2021:834), que indeferiu o pedido de revogação do Despacho de 14 de julho de 2021, bem como do Despacho do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2021, Comissão/Polónia (C‑204/21 R, não publicado, EU:C:2021:877), que impôs uma sanção pecuniária compulsória à República da Polónia até ao dia em que esse Estado‑Membro dê cumprimento às obrigações decorrentes do Despacho de 14 de julho de 2021 ou, caso não o faça, até à data da prolação do acórdão que porá termo à instância no processo C‑204/21. A questão da independência dos órgãos jurisdicionais polacos também é objeto dos processos prejudiciais pendentes nos processos C‑181/21 e C‑269/21. Por seu lado, o órgão jurisdicional de reenvio evoca, em particular, a ustawa o zmianie ustawy o Krajowej Radzie Sądownictwa oraz niektórych innych ustaw (Lei que Altera a Lei Relativa ao KRS e Determinadas Outras Leis), de 8 de dezembro de 2017 (Dz. U. de 2018, posição 3), que entrou em vigor em 2018, relativa ao papel do KRS na nomeação dos membros do poder judicial polaco, tendo o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia) concluído, na sua decisão de 23 de janeiro de 2020 (BSA I‑4110‑1/20), que, por força da legislação que entrou em vigor em 2018, o KRS não era um órgão independente, antes estando na dependência direta das autoridades políticas.

( 7 ) V. Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982); de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234); de 2 de março de 2021, A.B. e o. (Nomeação dos juízes para o Supremo Tribunal — Recurso) (C‑824/18, EU:C:2021:153); de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação) (C‑487/19, EU:C:2021:798); e de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o.(C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931).

( 8 ) Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal) (C‑619/18, EU:C:2019:531); de 5 de novembro de 2019, Comissão/Polónia (Independência dos tribunais comuns) (C‑192/18, EU:C:2019:924); e de 15 de julho de 2021, Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596). Está atualmente pendente contra a República da Polónia uma quarta ação por incumprimento relativa ao novo regime disciplinar (processo C‑204/21, Comissão/Polónia, v. despachos referidos na nota 6 das presentes conclusões).

( 9 ) Esta situação também levou a Comissão Europeia a adotar, em 20 de dezembro de 2017, uma proposta fundamentada ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, TUE, relativa ao Estado de direito na Polónia [proposta de decisão do Conselho relativa à verificação da existência de um risco manifesto de violação grave, pela República da Polónia, do Estado de direito, COM(2017) 835 final], sobre a qual o Conselho ainda não se pronunciou. Mais recentemente, a Comissão manifestou graves preocupações no seu relatório de 2021 sobre o Estado de direito na União Europeia [COM(2021) 700 final] — Capítulo consagrado à situação do Estado de direito na Polónia, [SWD(2021) 722 final]. Além disso, no âmbito do Conselho da Europa, a referida situação foi objeto da resolução 2316 (2020) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, sobre o funcionamento das instituições democráticas na Polónia, de 28 de janeiro de 2020, bem como do Parecer n.o 977/2020 da Comissão Europeia para a democracia através do direito (a seguir «Comissão de Veneza»), de 22 de junho de 2020, sobre as alterações à Lei Relativa aos Tribunais Ordinários, à Lei sobre o Supremo Tribunal e a determinadas outras leis na Polónia [CDL‑AD (2020)017]. Sublinho igualmente que a Assembleia Geral da Rede Europeia dos Conselhos de Justiça (RECJ), que teve lugar em Vilnius (Lituânia) em 28 de outubro de 2021 decidiu excluir o KRS do RECJ.

( 10 ) Nesse acórdão, de que só o dispositivo se encontra atualmente disponível, o Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional) considerou, no essencial, que determinadas disposições fundamentais de direito da União (a saber, o artigo 1.o, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 2.o TUE, o artigo 4.o, n.o 3, TUE e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE), designadamente quando afirmam o princípio do primado do direito da União, violam certas disposições fundamentais da Constituição polaca e, por conseguinte, anunciou que não exclui recorrer à sua competência e controlar diretamente a constitucionalidade dos acórdãos do Tribunal de Justiça, bem como verificar a sua não aplicação na ordem jurídica polaca.

( 11 ) Stb. 2004, n.o 195.

( 12 ) Stb. 2021, n.o 155.

( 13 ) Trata‑se das alterações da legislação relativa ao poder judicial, designadamente a ustawa o zmianie ustawy — Prawo o ustroju sądów powszechnych, ustawy o Sądzie Najwyższym oraz niektórych innych ustaw (Lei que Altera a Lei Relativa à Organização dos Tribunais Comuns, a Lei Relativa ao Supremo Tribunal e Determinadas Outras Leis), de 20 de dezembro de 2019 (Dz. U. de 2020, posição 190). Por força dessa legislação, os órgãos jurisdicionais polacos não podem apreciar um fundamento de impugnação assente na nomeação de um juiz ou na legalidade do exercício das suas funções jurisdicionais. V., neste sentido, Parecer n.o 977/2020 da Comissão de Veneza.

( 14 ) V. n.o 20 das presentes conclusões.

( 15 ) V. nota n.o 13 das presentes conclusões.

( 16 ) Questão única no processo C‑562/21 PPU.

( 17 ) Primeira questão no processo C‑563/21 PPU.

( 18 ) Segunda questão no processo C‑563/21 PPU.

( 19 ) Terceira questão no processo C‑563/21 PPU.

( 20 ) A jurisprudência do Tribunal de Justiça esclareceu que o mecanismo do MDE visa, nomeadamente, combater a impunidade de uma pessoa procurada que se encontre num Estado‑Membro diferente daquele em que alegadamente cometeu uma infração (Acórdão Openbaar Ministerie, n.o 62 e jurisprudência referida).

( 21 ) O Tribunal de Justiça esclareceu, no entanto, que, enquanto a execução do MDE constitui o princípio, a recusa de execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita [v. Acórdãos Minister for Justice and Equality (n.o 41 e jurisprudência referida), bem como Openbaar Ministerie (n.o 37)].

( 22 ) Além disso, a execução do MDE só pode estar subordinada a uma das condições taxativamente previstas no artigo 5.o dessa decisão‑quadro.

( 23 ) V., neste sentido, Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.o 191), bem como Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, a seguir «Acórdão Aranyosi e Căldăraru», EU:C:2016:198, n.o 82). V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona nos processos apensos L e P (Independência da autoridade judiciária de emissão) (C‑354/20 PPU e C‑412/20 PPU, EU:C:2020:925, n.o 39).

( 24 ) V. Acórdão Aranyosi e Căldăraru (n.os 88, 89, 92 e 94).

( 25 ) No caso em apreço, tratava‑se de um risco real de tratamento desumano ou degradante das pessoas detidas no Estado‑Membro de emissão, comparativamente com o padrão de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União e, em especial, pelo artigo 4.o da Carta.

( 26 ) Mais exatamente, a falta de independência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão devido a falhas sistémicas ou generalizadas nesse Estado‑Membro [Acórdão Minister for Justice and Equality (n.os 61 a 67)] acarretava a violação do direito fundamental a um tribunal independente e, portanto, do conteúdo essencial do direito fundamental a um processo equitativo [Acórdão Minister for Justice and Equality (n.o 75)].

( 27 ) O Tribunal de Justiça esclareceu, a este respeito, que só se houver uma decisão do Conselho Europeu que declare, nas condições previstas no artigo 7.o, n.o 2, TUE, uma violação grave e persistente, no Estado‑Membro de emissão, dos princípios enunciados no artigo 2.o TUE, como os inerentes ao Estado de direito, seguida da suspensão, pelo Conselho, da aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584 no que respeita a esse Estado‑Membro, é que a autoridade judiciária de execução seria obrigada a recusar automaticamente a execução de qualquer MAE emitido pelo referido Estado‑Membro, sem ter de proceder a uma qualquer apreciação concreta do risco real que a pessoa em causa corre de o conteúdo essencial do seu direito fundamental a um processo equitativo ser afetado [v. Acórdão Minister for Justice and Equality (n.o 72), bem como o considerando 10 da Decisão‑Quadro 2002/584].

( 28 ) V. Acórdão Minister for Justice and Equality (n.o 79).

( 29 ) O Tribunal de Justiça especificou que, nas circunstâncias do caso em apreço, a autoridade de emissão não podia negar a qualidade de autoridade judiciária de emissão, na aceção da referida disposição, a qualquer juiz e a qualquer órgão jurisdicional do Estado‑Membro de emissão, que agem, por natureza, com total independência do poder executivo, e que a existência das falhas apontadas não afetava necessariamente qualquer decisão que os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro pudessem ter de tomar em cada caso específico (Acórdão Openbaar Ministerie, n.os 41 e 42).

( 30 ) V. Acórdão Openbaar Ministerie (n.o 60).

( 31 ) Acórdão Minister for Justice and Equality (n.o 79). V. n.o 39 das presentes conclusões.

( 32 ) V. Acórdão Openbaar Ministerie (n.o 61).

( 33 ) V. Acórdãos Minister for Justice and Equality (n.o 59) e Openbaar Ministerie (n.o 61). Sublinho que embora, no primeiro acórdão, o Tribunal de Justiça tenha considerado que a situação em questão pode permitir à autoridade judiciária de execução não dar, a título excecional, seguimento ao MDE, no segundo acórdão, o Tribunal de Justiça esclareceu que, nessa situação, a autoridade judiciária de execução deve abster‑se de dar execução ao MDE.

( 34 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se à nomeação dos juízes sob proposta do KRS, ao abrigo da Lei que Altera a Lei Relativa ao KRS e determinadas outras leis, de 8 de dezembro de 2017.

( 35 ) C‑542/18 RX‑II e C‑543/18 RX‑II, EU:C:2020:232.

( 36 ) V. explicações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17).

( 37 ) Acórdão Réexamen Simpson (n.o 74). V. TEDH, 1 de dezembro de 2020, Guðmundur Andri Ástráðsson c. Islande (CE:ECHR:2020:1201JUD002637418, § 226 a 228), e 22 de julho de 2021, Reczkowicz c. Polónia (CE:ECHR:2021:0722JUD004344719, § 218).

( 38 ) Acórdão Réexamen Simpson (n.o 75).

( 39 ) Acórdão Réexamen Simpson (n.o 79).

( 40 ) C‑487/19, EU:C:2021:798 (n.o 130).

( 41 ) Este processo também diz respeito a MDE emitidos pelas autoridades judiciárias polacas para efeitos de procedimento penal e cumprimento de uma pena privativa de liberdade. No seu reenvio prejudicial, a Supreme Court (Supremo Tribunal) referiu, por um lado, que não lhe era possível indicar a composição do órgão jurisdicional em que os interessados terão de comparecer, devido a um sistema aleatório de distribuição dos processos e, por outro, que esses interessados não poderão impugnar judicialmente a composição do órgão jurisdicional em que terão de comparecer, mesmo que considerem que foi composto de forma irregular. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se as falhas sistémicas ou generalizadas no sistema judiciário polaco são de tal monta que implicam, por si só, uma violação do conteúdo essencial do direito a um processo equitativo, o que, no essencial, o libertaria da segunda fase do exame em duas fases.

( 42 ) V. n.os 37 a 40 das presentes conclusões.

( 43 ) V. nota 6 das presentes conclusões.

( 44 ) V. nota 13 das presentes conclusões.

( 45 ) A este propósito, lamento verificar que, após a apresentação dos presentes reenvios prejudiciais e à luz do Acórdão do Tribunal Constitucional, a situação evoluiu de forma particularmente inquietante.

( 46 ) Com efeito, por meio dessa jurisprudência, o Tribunal de Justiça declarou que diversos aspetos das reformas do sistema judiciário polaco colidiam com o direito fundamental a um processo equitativo devido à falta de independência de determinados órgãos jurisdicionais desses Estado‑Membro. V., designadamente, o recente Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação) (C‑487/19, EU:C:2021:798).

( 47 ) V. n.o 31 das presentes conclusões.

( 48 ) Observo que a eventual recusa de execução de um MDE deve ter lugar sem prejuízo, designadamente, da possibilidade de, quando o ordenamento jurídico do Estado‑Membro de execução o permita, a pessoa que foi objeto desse MDE ser alvo de um processo no Estado‑Membro de execução com base nos mesmos factos que estão na origem do MDE ou de o Estado‑Membro se comprometer a executar a pena ou a medida de segurança em virtude da qual o MDE foi entregue. Além disso, essa possibilidade encontra‑se prevista no artigo 4.o, pontos 2) e 6), da Decisão‑Quadro 2002/584 entre os motivos de não execução facultativa do MDE.

( 49 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, em especial, à nomeação dos juízes sob proposta do KRS ao abrigo da Lei que Altera a Lei Relativa ao KRS e Determinadas Outras Leis, de 8 de dezembro de 2017.

( 50 ) V. n.o 21 das presentes conclusões.

( 51 ) A este respeito, não compartilho dos argumentos de X, segundo os quais, mesmo nesse caso, por um lado, não é de excluir que num dado momento após a entrega possam ser submetidos a um tribunal litígios ou questões relacionados com a execução das penas privativas de liberdade, como pedidos de revisão da pena, de liberdade condicional, de suspensão da execução da pena ou de amnistia e, por outro, é erróneo partir do princípio de que existe uma decisão definitiva, o que pretendia alegar em tribunal. Com efeito, não me parece que a autoridade judiciária de execução seja obrigada a examinar, de uma forma geral e hipotética, o sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão a fim de evitar que, em toda a eventual fase seguinte do processo, a pessoa entregue possa correr o risco de a sua causa não ser julgada de forma independente.

( 52 ) Devo especificar que esta conclusão está ligada à dos efeitos, em situações concretas, das falhas sistémicas e generalizadas do Estado‑Membro de emissão evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou seja, as relativas à falta de independência dos órgãos jurisdicionais devido a irregularidades nas nomeações de diversos juízes. Não diz respeito às eventuais consequências, nas mesmas situações, de outras falhas sistémicas ou generalizadas do sistema judiciário do Estado‑Membro de emissão, como as relativas ao regime disciplinar dos juízes [v. Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596)]. Num tal caso, numa situação em que a pessoa procurada fornecesse elementos que originassem dúvidas concretas quanto aos efeitos das falhas sistémicas ou generalizadas do regime disciplinar dos juízes na sua situação, caberia à autoridade judiciária de execução verificar, eventualmente com base nas informações fornecidas pelo Estado‑Membro de emissão ao abrigo do artigo 15.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, se, atentos os critérios pertinentes, há razões suficientes para considerar que a existência ou o risco de procedimentos disciplinares possa ter influenciado a decisão (de condenação ou para efeitos de procedimento penal) em que se baseia o MDE. Porém, dos pedidos de decisão prejudicial não resulta que esta questão tenha sido suscitada nos processos principais.

( 53 ) V., no que respeita ao agravamento das falhas sistémicas e generalizadas, Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona nos processos apensos L e P (Independência da autoridade judiciária de emissão) (C‑354/20 PPU e C‑412/20 PPU, EU:C:2020:925, n.o 76), bem como o Acórdão Openbaar Ministerie (n.o 60).

( 54 ) Em contrapartida, a apreciação seria diferente se essas falhas fossem relativas a um aspeto diferente, como as regras que garantem a competência dos juízes nomeados ou a duração do respetivo mandato [v., neste sentido, Acórdão Réexamen Simpson (n.os 77 a 81)].

( 55 ) Refiro‑me, designadamente, ao Despacho de 14 de julho de 2021, Comissão/Polónia, pelo qual foi ordenado à República da Polónia que suspendesse a aplicação de diversas disposições de direito nacional relativas à independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal, até à prolação do Acórdão que porá termo à instância no processo C‑204/21, bem como ao Despacho do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2021, Comissão/Polónia (C‑204/21 R, não publicado, EU:C:2021:877)), pelo qual este aplicou à República da Polónia uma sanção pecuniária compulsória com o objetivo de dissuadir esse Estado‑Membro de atrasar o cumprimento das obrigações decorrentes deste despacho. Na audiência, o representante da República da Polónia esclareceu que a aplicação da lei em questão foi suspensa na sequência do Despacho da vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 14 de julho de 2021, circunstância que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

( 56 ) Como as infrações mencionadas pelo órgão jurisdicional de reenvio correspondem a crimes de direito comum — e não, por exemplo, a infrações pelas quais as pessoas em causa poderiam temer uma ingerência do poder executivo — parece‑me prima facie improvável que, no presente caso, a natureza dessas infrações possa implicar, por si só e sem prejuízo de uma apreciação concreta por esse órgão jurisdicional, um risco real de as pessoas em causa não serem julgadas de forma independente.

( 57 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, a este propósito, à legislação que entrou em vigor em 14 de fevereiro de 2020 (v. n.o 21 das presentes conclusões). Cabe a esse órgão jurisdicional, à luz dos esclarecimentos que o representante da República da Polónia forneceu na audiência, verificar se as disposições controversas dessa lei estarão em vigor quando da eventual entrega das pessoas procuradas (v. nota 56 das presentes conclusões).

( 58 ) Neste contexto, em meu entender, pode ser útil para a pessoa procurada demonstrar que, dentro do possível, suscitou a questão perante as instâncias do Estado‑Membro de emissão, designadamente esgotando as vias de recurso autorizadas pelo ordenamento jurídico desse Estado‑Membro, e que fez prova de diligência, nomeadamente no que se refere à sua presença no processo perante o órgão jurisdicional competente do referido Estado‑Membro.

( 59 ) V. nota 10 das presentes conclusões.

( 60 ) Com efeito, contrariamente a certas decisões dos órgãos jurisdicionais constitucionais de outros Estados‑Membros, o Acórdão do Tribunal Constitucional não visa um controlo puro e simples da eventual natureza ultra vires dos acórdãos do Tribunal de Justiça, mas põe em causa as características específicas relativas à própria natureza do direito da União, entre as quais figura o princípio do primado [v., designadamente, Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 166].

( 61 ) Com efeito, parece‑me que esse acórdão não pode substituir uma notificação na aceção do artigo 50.o TUE, à luz do Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999) (v. designadamente, neste sentido, Repasi, R., «Poland’s withdrawal from the ‘Community of Law’ is no withdrawal from the EU», 15 de outubro de 2021 (https://eulawlive.com/), bem como Curti Gialdino, C., «In cammino verso la Polexit? Prime considerazioni sulla sentenza del Tribunale costituzionale polacco del 7 ottobre 2021», https://www.federalismi.it/; em sentido contrário, v. designadamente Hofmann, H., «Sealed, Stamped and Delivered. The Publication of the Polish Constitutional Court’s Judgement on EU Law Primacy as Notification of Intent to Withdraw under Art. 50 TEU?», in Verfassungsblog, 13 de outubro de 2021. De resto, o Governo polaco, até à data, parece negar qualquer intenção de retirada (v., designadamente, «Letter from Prime Minister Mateusz Morawiecki to the Heads of Governments and the Presidents of the European Council, the European Commission and the European Parliament on relations between national law and European law», de 18 de outubro de 2021, disponível no site Internet do Governo polaco, https://www.gov.pl/web/primeminister/letter‑from‑prime‑minister‑mateusz‑morawiecki‑to‑the‑heads‑of‑governments‑and‑the‑presidents‑of‑the‑european‑council‑the‑european‑Commission‑and‑the‑european‑parliament‑on‑relations‑between‑national‑law‑and‑european‑law.).

( 62 ) Recordo, além disso, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pôs em causa a própria qualificação do Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional) como «tribunal estabelecido por lei», após a nomeação irregular de alguns dos seus membros (v. Tribunal EDH, 7 de agosto de 2021, Xero Flor w Polsce sp. z.o.o. c. Polónia, CE:ECHR:2021:0507JUD000490718) e que a legalidade do Acórdão do Tribunal Constitucional é contestada por antigos juízes desse mesmo órgão jurisdicional [v. «Statement of retired judges of the Constitutional Tribunal» de 10 de outubro de 2021 (http://themis‑sedziowie.eu/)].

( 63 ) Por exemplo, a Comissão não exclui a possibilidade de intentar uma ação por incumprimento no Tribunal de Justiça (v. declaração da presidente a Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, 21/5163, Estrasburgo, 8 de outubro de 2021). Além disso, a própria natureza declaratória do Acórdão do Tribunal Constitucional, através do qual o Trybunał Konstytucyjny (Tribunal Constitucional) respondeu a questões submetidas pelo governo, suscitou comentários muito críticos no que toca à possibilidade de esse acórdão ser o produto de uma iniciativa instrumental do governo. Alguns autores falam de uma «resposta estereotipada» a questões suscitadas pelo Governo polaco com o objetivo de provocar uma crise jurídica (Atik, J., e Groussot, X., «Constitutional attack or political feint? — Poland’s resort to lawfare in Case K 3/21», https://eulawlive.com/, 18 de outubro de 2021).

( 64 ) V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral M. Campos Sánchez‑Bordona nos processos apensos L e P (Independência da autoridade judiciária de emissão) [C‑354/20 PPU e C‑412/20 PPU, EU:C:2020:925 (n.os 50 a 52)].

( 65 ) Refiro‑me em especial ao domínio da cooperação em matéria civil e comercial, por exemplo ao reconhecimento e à execução de decisões judiciais por meio das medidas de execução do princípio do reconhecimento mútuo das decisões em matéria civil e comercial.

( 66 ) Por outras palavras, nessa situação, o juiz nacional está normalmente em condições de afastar a aplicação de qualquer disposição contrária de direito nacional e de garantir à pessoa entregue a possibilidade de invocar os direitos garantidos pela União, designadamente pela Carta. Nesse caso, é evidente que a aplicação uniforme e efetiva do mecanismo do MDE no território da União é seriamente afetada, o que faz com que as autoridades jurisdicionais de execução dos outros Estados‑Membros desconfiem da independência dos órgãos jurisdicionais polacos e se oponham cada vez mais à execução dos MDE emitidos por esse Estado‑Membro.

( 67 ) Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, parecia ser esse o caso após a entrada em vigor da legislação em 14 de fevereiro de 2020, que, todavia, parece ter sido suspensa, segundo o alegado pelo representante da República da Polónia na audiência (v. nota 56 das presentes conclusões), o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.