Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 20 de outubro de 2022 (1)

Processo C423/21

Grand Production d.o.o.

contra

GO4YU GmbH,

DH,

GO4YU d.o.o,

MTEL Austria GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria)]

«Reenvio prejudicial – Propriedade intelectual – Diretiva 2001/29/CE – Direitos de autor na sociedade da informação – Artigo 3.°, n.° 1 – Comunicação ao público – Plataforma de streaming – Acesso a conteúdo protegido através da rede privada virtual (VPN) – Regulamento (UE) n.° 1215/2012 – Artigo 7.°, ponto 2 – Competência judiciária em matéria extracontratual»






 Introdução

1.        De um ponto de vista técnico, a Internet é um meio de comunicação de alcance mundial: é possível aceder a qualquer página na Internet a partir de qualquer lugar na Terra ou enviar uma mensagem a uma pessoa que esteja noutro sítio qualquer. No entanto, de um ponto de vista jurídico, a situação é diferente. A Internet, como qualquer manifestação de atividade humana, está sujeita a regulamentação jurídica que é, por natureza, territorial: o seu alcance depende do âmbito territorial de competência da autoridade que institui essa regulamentação. Além disso, as diferentes formas de atividade na Internet podem ser objeto de direitos de propriedade ou pessoais dos indivíduos, direitos que também podem, ou o seu exercício, ser limitados territorialmente.

2.        Por conseguinte, há uma contradição fundamental entre, por um lado, o caráter transfronteiriço e mundial da Internet e, por outro, os direitos e obrigações territorialmente limitados que estão relacionados com os diferentes tipos de atividade realizada com recurso a ela. Pode‑se tentar resolver esta contradição de duas formas: ou «territorializando» a Internet através de um «bloqueio geográfico de acesso» (em inglês geoblocking), ou alargando a competência territorial das autoridades a um número maior de Estados, permitindo‑lhes assim regulamentar a atividade exercida na Internet de maneira global.

3.        No presente processo, o Tribunal de Justiça terá de resolver questões relacionadas com ambos os métodos referidos de resolução desta contradição.

 Quadro jurídico

4.        O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° ° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2) dispõe que:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

5.        Nos termos do artigo 6.°, n.° 1, desse regulamento:

«Se o requerido não tiver domicílio num Estado‑Membro, a competência dos tribunais de cada Estado‑Membro é [...] regida pela lei desse Estado‑Membro.»

6.        Por ultimo, o artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 estipula que:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

[...]

2)      Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;

[...].»

7.        O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (3) dispõe que:

«Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.»

 Factos, tramitação processual e questões prejudiciais

8.        A Grand Production d.o.o., uma sociedade de direito sérvio, é uma produtora de programas audiovisuais de entretenimento difundidos no território da Sérvia pelo organismo de radiodifusão televisiva sérvio Prva Srpska Televizija.

9.        A GO4YU d.o.o Beograd, também uma sociedade de direito sérvio, é a operadora de uma plataforma de streaming na qual, com base em contratos com a Prva Srpska Televizija, a programação desse organismo de radiodifusão televisiva é transmitida. Esta plataforma está disponível tanto dentro como fora do território da Sérvia.

10.      A GO4YU GmbH [a seguir «sociedade GO4YU (Áustria)»] e a MTEL Austria GmbH, sociedades de direito austríaco, prestam serviços no território da Áustria no âmbito da promoção da plataforma de streaming detida pela sociedade GO4YU Beograd, bem como das relações com clientes, incluindo a assinatura de contratos e a cobrança de pagamentos. A MTEL Austria é uma filial da sociedade GO4YU Beograd. DH é o presidente do conselho de administração e o único acionista da sociedade GO4YU (Áustria).

11.      A sociedade GO4YU Beograd não tem direito a retransmitir na Internet, fora do território da Sérvia e do Montenegro, os programas de entretenimento produzidos pela sociedade Grand Production. Por conseguinte, está obrigada a bloquear o acesso a esses programas a utilizadores da Internet fora do território destes dois Estados. No entanto, estes utilizadores podem contornar este bloqueio através de um serviço denominado de rede privada virtual (VPN). Este serviço permite que o utilizador se ligue à Internet através de um servidor especial (o «servidor VPN») que oculta o endereço IP e, portanto, também a localização física do utilizador (4). Através da utilização deste serviço, os internautas fora do território da Sérvia e do Montenegro podem «fingir» assim estar nesses países, contornando deste modo o bloqueio do acesso aplicado pela sociedade GO4YU Beograd.

12.      Na opinião da sociedade Grand Production, a sociedade GO4YU Beograd está ciente de que é possível contornar os bloqueios geográficos de acesso que aplica através dos serviços VPN. Além disso, entre 30 de abril de 2020 e 15 de junho de 2020, era possível assistir aos programas de entretenimento da recorrente na Áustria através de uma plataforma de streaming da sociedade GO4YU Beograd sem bloqueio de acesso.

13.      A pedido da sociedade Grand Production, o Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena, Áustria) proferiu, em 28 de setembro de 2020, um despacho de medidas provisórias contra as sociedade GO4YU Beograd e a MTEL Austria, que consistia em proibir a comunicação ao público, no território da Áustria, de programas de entretenimento produzidos por aquela primeira sociedade. Contudo, esse órgão jurisdicional indeferiu o pedido de aplicação a estas duas sociedades de medidas provisórias semelhantes num âmbito que se estendesse além do território da Áustria e, em relação às duas outras recorridas [ou seja a DH e GO4YU (Áustria)], indeferiu‑o na íntegra.

14.      Este despacho foi parcialmente alterado por Despacho do Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria), de 28 de janeiro de 2021, que julgou improcedente na íntegra o pedido da sociedade Grand Production na parte em que visava a sociedade MTEL Austria. Portanto, só permaneceu em vigor a medida provisória aplicada à sociedade GO4YU Beograd, limitada ao território austríaco.

15.      A sociedade Grand Production interpôs recurso de «Revision» desta última decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, no qual pede a aplicação a todas as recorridas de uma medida provisória que proíba a comunicação ao público, a nível mundial, dos programas produzidos por esta sociedade.

16.      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Deve o conceito de “comunicação ao público” referido no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva [2001/29], ser interpretado no sentido de que a mesma é realizada pelo operador direto de uma plataforma de streaming (no caso em apreço, não estabelecido na União) que:

–        decide por si próprio o conteúdo e o escurecimento das emissões televisivas que difunde, implementando‑o no plano técnico,

–        detém os direitos de administrador exclusivos sobre a plataforma de streaming,

–        pode influenciar os programas de televisão suscetíveis de serem captados pelo utilizador final através do serviço, sem poder, no entanto, exercer influência sobre o conteúdo dos programas,

–        é o único elemento que controla que programas e conteúdos devem ser vistos em que territórios,

quando, neste âmbito,

–        é conferido ao utilizador acesso não apenas a conteúdos de programas televisivos cuja utilização em linha tenha sido autorizada pelos respetivos titulares dos direitos, mas também a conteúdos protegidos que não tenham sido objeto de uma correspondente declaração relativa aos direitos; e

–        o operador direto da plataforma de streaming sabe que o seu serviço também permite a receção de conteúdos televisivos protegidos sem o consentimento dos titulares dos direitos através da utilização de serviços de rede virtual privada de Internet que sugerem que o endereço IP e o dispositivo dos clientes finais se situam em regiões em que existe um consentimento do titular dos direitos, mas no entanto

–        durante várias semanas a receção de conteúdos televisivos protegidos através da plataforma de streaming foi efetivamente possível sem o consentimento dos titulares dos direitos, mesmo sem o recurso a um túnel VPN?

2.      Em caso de resposta afirmativa à questão I.:

Deve o conceito de “comunicação ao público” referido no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva [2001/29]/CE ser interpretado no sentido de que a mesma é igualmente realizada por terceiros (neste caso estabelecidos na União) ligados contratualmente e/ou por determinados vínculos societários ao operador de uma plataforma de streaming descrito na questão I. que, apesar de não influenciarem por si próprios o escurecimento e os programas e conteúdos das emissões difundidas na plataforma de streaming,

–        publicitam a plataforma de streaming do operador e os seus serviços; e/ou

–        celebram com os clientes assinaturas durante um período experimental que termina após 15 dias, e/ou

–        prestam assistência aos clientes da plataforma de streaming enquanto serviço de apoio a clientes; e/ou

–        oferecem no seu sítio Web assinaturas pagas da plataforma de streaming do operador direto, agindo depois como parceiro contratual dos clientes e enquanto beneficiários de pagamentos, sendo as assinaturas pagas concebidas de tal forma que apenas existe uma referência expressa de que determinados programas não estão disponíveis se um cliente indicar explicitamente, no momento da celebração do contrato, que pretende ver esses programas, mas no entanto, se este não indicar essa vontade nem suscitar essa questão concreta, os clientes não são previamente informados nesse sentido?

3.      Devem o artigo 2.°, alíneas a) e e), e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva [2001/29], em conjugação com o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento [n.° 1215/2012], ser interpretados no sentido de que, no caso de ser invocada uma violação dos direitos de autor e direitos conexos garantidos pelo Estado‑Membro do órgão jurisdicional em que é deduzida a pretensão – devido ao facto de o princípio da territorialidade se opor aos poderes de cognição dos órgãos jurisdicionais nacionais a respeito de infrações cometidas no estrangeiro –, aquele órgão jurisdicional só é competente para decidir sobre os danos causados no território do Estado‑Membro respetivo, ou esse órgão jurisdicional pode e deve pronunciar‑se também sobre factos cometidos fora do referido território (a nível mundial) de acordo com as declarações do titular dos direitos de autor violados?»

17.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de julho de 2021. Em resposta ao pedido de esclarecimentos feito pelo Tribunal de Justiça, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de julho de 2022, o órgão jurisdicional de reenvio alterou a primeira questão prejudicial, substituindo, no penúltimo travessão desta questão, os termos «mas no entanto» por «ou». Por conseguinte, a primeira questão prejudicial passou a ter a seguinte redação:

«Deve o conceito de “comunicação ao público” referido no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva [2001/29], ser interpretado no sentido de que a mesma é realizada pelo operador direto de uma plataforma de streaming (no caso em apreço, não estabelecido na União) que:

–        decide por si próprio o conteúdo e o escurecimento das emissões televisivas que difunde, implementando‑o no plano técnico,

–        detém os direitos de administrador exclusivos sobre a plataforma de streaming,

–        pode influenciar os programas de televisão suscetíveis de serem captados pelo utilizador final através do serviço, sem poder, no entanto, exercer influência sobre o conteúdo dos programas,

–        é o único elemento que controla que programas e conteúdos devem ser vistos em que territórios,

quando, neste âmbito,

–        é conferido ao utilizador acesso não apenas a conteúdos de programas televisivos cuja utilização em linha tenha sido autorizada pelos respetivos titulares dos direitos, mas também a conteúdos protegidos que não tenham sido objeto de uma correspondente declaração relativa aos direitos; e

–        o operador direto da plataforma de streaming sabe que o seu serviço também permite a receção de conteúdos televisivos protegidos sem o consentimento dos titulares dos direitos através da utilização de serviços de rede virtual privada de Internet que sugerem que o endereço IP e o dispositivo dos clientes finais se situam em regiões em que existe um consentimento do titular dos direitos, ou [(5)]

–        durante várias semanas a receção de conteúdos televisivos protegidos através da plataforma de streaming foi efetivamente possível sem o consentimento dos titulares dos direitos, mesmo sem o recurso a um túnel VPN?»

18.      As partes no processo principal e a Comissão Europeia apresentaram observações por escrito. Estas partes responderam igualmente por escrito às questões do Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça decidiu pronunciar‑se sem realização de audiência.

 Análise

19.      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu três questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. A primeira diz respeito ao alcance da responsabilidade do operador da plataforma de streaming (6) pela comunicação ao público, nessa plataforma, de conteúdos protegidos por direitos de autor sem a autorização dos respetivos titulares. A segunda questão diz respeito à eventual responsabilidade das entidades que cooperam com esse operador. Por último, a terceira questão tem por objeto o âmbito da competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros em matéria de violação de direitos de autor. Abordarei estas questões pela ordem em que foram colocadas.

 Quanto à primeira questão prejudicial

20.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, estabelecer se o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que um operador de uma plataforma de streaming que procede à retransmissão, na Internet, de um programa televisivo viola o direito exclusivo de comunicação ao público de obras, previsto nessa disposição, numa situação em que:

a)      os utilizadores contornam o bloqueio geográfico do acesso através de um serviço VPN, de modo que as obras protegidas estão disponíveis no território da União Europeia, algo a que o operador da referida plataforma não está autorizado pelo titular dos direitos de autor, ou

b)      as obras protegidas estavam disponíveis na plataforma acima referida sem restrições no território da União Europeia, sem autorização do titular dos direitos de autor.

21.      Esta questão suscita duas questões fundamentais, nomeadamente, em primeiro lugar, se o operador de uma plataforma de streaming na qual é transmitido um programa televisivo efetua uma comunicação ao público, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 e, em segundo, se o operador dessa plataforma é responsável pelo facto de os utilizadores obterem o acesso a conteúdos protegidos, contornando a aplicação, por esse operador, de restrições do acesso. Começarei por esta primeira questão.

 Retransmissão de uma emissão televisiva na Internet como comunicação ao público

22.      O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de declarar que «[o] conceito de “comunicação ao público”, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva [2001/29], deve ser interpretado no sentido de que abrange uma retransmissão das obras incluídas numa radiodifusão televisiva terrestre:

–        que é efetuada por uma entidade que não seja o radiodifusor de origem;

–        através de um fluxo Internet colocado à disposição dos subscritores dessa entidade que podem receber essa transmissão acedendo ao seu servidor;

–        ainda que esses subscritores se encontrem na zona de receção da referida radiodifusão televisiva terrestre e a possam receber legalmente num recetor de televisão» (7).

23.      Neste contexto, importa precisar que a reserva que figura no último travessão deste número do Acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147), referente a uma situação em que os subscritores de um operador de um serviço de retransmissão na Internet se encontram na zona de receção de uma radiodifusão televisiva terrestre, não significa que essa solução só se aplique a tais situações. Esta reserva era necessária para refutar o argumento baseado na falta do chamado público «novo», isto é, uma audiência diferente daquela a que se dirigia a radiodifusão televisiva inicial. O Tribunal de Justiça considerou irrelevante esta circunstância, uma vez que a retransmissão na Internet se efetua através de meios técnicos diferentes da radiodifusão televisiva inicial (8). Em contrapartida, numa situação em que a retransmissão na Internet também está acessível fora da zona de receção da emissão televisiva de inicial (9), é dirigida necessariamente a um público mais amplo do que a radiodifusão televisiva referida. A fortiori, portanto, essa retransmissão constitui uma comunicação ao público na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.

24.      Também pouco importa que a retransmissão na Internet seja simultânea e inalterada em relação à radiodifusão televisiva inicial («live streaming») como era o caso no processo que deu origem ao Acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147), ou se é, por exemplo, diferida. Isto porque o critério para considerar essa retransmissão uma comunicação ao público na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 é o meio técnico através do qual é efetuada e o facto de ser efetuada por um organismo diferente do organismo de radiodifusão televisiva inicial.

25.      Por último, há que referir que, embora a retransmissão de uma radiodifusão televisiva inicial na Internet apresente, de um ponto de vista técnico, um caráter secundário e dependente dessa radiodifusão, do ponto de vista jurídico, o ato de comunicação ao público que essa retransmissão constitui reveste um caráter distinto e autónomo em relação a essa transmissão. Por conseguinte, a circunstância de a radiodifusão televisiva original se destinar a uma região fora do território da União Europeia e, portanto, fora do âmbito de aplicação territorial da Diretiva 2001/29, não se opõe a que a retransmissão desta emissão na Internet seja qualificada de comunicação ao público, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, dessa diretiva, na medida em que essa retransmissão está acessível num território em que essa diretiva é aplicável.

26.      As considerações precedentes levam a concluir que, na situação descrita no n.° 20 das presentes conclusões, alínea b), ou seja, quando uma obra protegida, que é objeto de uma radiodifusão televisiva inicial fora do território da União Europeia, está acessível sem restrições no território da União Europeia na plataforma de streaming em que ocorre a retransmissão dessa comunicação, o operador dessa plataforma realiza uma comunicação ao público dessas obras, a qual está abrangida pelo direito exclusivo previsto no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. Essa comunicação de obras ao público, quando é efetuada sem a autorização do titular dos direitos de autor, constitui, assim, uma violação desse direito exclusivo.

 Responsabilidade dos utilizadores que contornam as restrições de acesso a obras protegidas por direitos de autor na Internet

27.      Passarei agora a examinar uma questão mais complexa, a saber, a da responsabilidade do operador de uma plataforma de streaming na situação descrita no n.° 20 das presentes conclusões, alínea a). Nessa situação, o operador da plataforma de streaming, em observância dos direitos do titular dos direitos de autor, aplica um bloqueio geográfico de acesso num território em que não tem autorização para fazer a comunicação ao público das obras protegidas, neste caso em todo o território da União Europeia, mas os utilizadores contornam esse bloqueio através de um serviço VPN que lhes permite aceder às obras como se estivessem no território abrangido pela autorização de comunicação ao público, a saber, o território da Sérvia ou do Montenegro.

28.      Os bloqueios geográficos de acesso fazem parte dos chamados instrumentos de gestão dos direitos digitais («digital rights management») (10). Trata‑se de vários tipos de garantias destinadas a impedir a utilização do conteúdo em formato digital (eletrónico) de forma contrária à vontade do fornecedor desses conteúdos. Essas garantias visam «corrigir» as características do formato digital dos dados que são indesejáveis do ponto de vista dos fornecedores de conteúdos, nomeadamente, a possibilidade de produzir praticamente sem custos um qualquer número de cópias perfeitas e de as transmitir (em particular pela Internet) para qualquer sítio. No que diz respeito aos conteúdos difundidos na Internet, os instrumentos de gestão dos direitos digitais, por exemplo sob a forma do bloqueio geográfico de acesso, também podem servir para reduzir o caráter global deste meio de comunicação e para permitir a sua divisão virtual por zonas geográficas, como referi na introdução das presentes conclusões.

29.      Os instrumentos de gestão dos direitos digitais são geralmente utilizados para proteger os direitos de autor, impedindo a utilização ilegal – ou simplesmente não desejada pelos titulares desses direitos – das obras protegidas distribuídas em formato digital. São também utilizados como instrumentos de gestão dos direitos de autor dessas obras, uma vez que permite a cobrança de uma taxa distinta para as diferentes formas de distribuição da mesma obra, a partilha do mercado e a chamada discriminação de preços pelas diferentes partes deste ou, por último, a cobrança de taxas pelo conteúdo disponibilizados nas páginas WWW.

30.      Os instrumentos de gestão dos direitos digitais que servem para proteger e gerir os direitos de autor estão, por sua vez, eles próprios protegidos pelo direito da União. O artigo 6.° da Diretiva 2001/29 impõe aos Estados‑Membros que incluam na proteção jurídica as «medidas de caráter tecnológico eficazes», o que, segundo a definição deste conceito contida no n.° 3 do mesmo artigo inclui os instrumentos de gestão dos direitos digitais.

31.      O Tribunal de Justiça também salientou várias vezes que os instrumentos de gestão dos direitos digitais são suscetíveis de produzir efeitos jurídicos no direito da União, incluindo, o que é especialmente interessante do ponto de vista do presente processo, no que respeita à definição do conceito de «comunicação ao público» na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.

32.      No Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76), o Tribunal de Justiça declarou que «não constitui um ato de comunicação ao público, na aceção desta disposição, o fornecimento, num sítio Internet, de hiperligações para obras livremente disponíveis noutro sítio Internet» (11). O Tribunal de Justiça esclareceu que um sítio Internet acessível ao público se destina a todos os utilizadores da Internet, pelo que uma referência a uma obra que figura nesse sítio não a torna acessível a um público novo (12).

33.      Ora, um sítio Internet protegido por uma restrição de acesso (13) dirige‑se unicamente aos seus clientes, ou seja, às pessoas que obtiveram acesso a ele de forma legal. Contornar esta restrição e disponibilizar obras protegidas a outras pessoas, ainda que apenas através de uma ligação de outro sítio Internet, implica permitir o acesso a um público novo e constitui um ato de comunicação ao público na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 (14). Assim, na opinião do Tribunal de Justiça, a utilização na Internet de instrumentos de gestão dos direitos digitais pode designar um círculo de pessoas (público) a que se dirige um ato de comunicação ao público na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 (15).

34.      No processo que deu origem ao Acórdão de 10 de novembro de 2016, Vereniging Openbare Bibliotheken (C‑174/15, EU:C:2016:856), o Tribunal de Justiça admitiu que o comodato eletrónico de livros fosse abrangido pela exceção prevista no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2006/115/CE (16) para as bibliotecas públicas. A condição para tal era a aplicação de instrumentos de gestão dos direitos digitais que assemelhassem o comodato de livros em formato digital ao comodato de exemplares em formato papel (17).

35.      Por último, no Acórdão de 9 de março de 2021, VG Bild‑Kunst (C‑392/19, EU:C:2021:181), o Tribunal de Justiça declarou que «constitui uma comunicação ao público, na aceção [do artigo 3.°, n.° 1, Diretiva 2001/29], o facto de inserir, através da técnica da transclusão, numa página Internet de um terceiro obras protegidas pelo direito de autor e colocadas à disposição do público em livre acesso com a autorização do titular do direito de autor noutro sítio Internet, quando essa inserção é feita neutralizando as medidas de proteção contra a transclusão adotadas ou impostas por esse titular (18)». Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que, ao adotar uma medida técnica contra a transclusão de uma obra protegida disponibilizada na Internet, o titular do direito de autor restringe o círculo de pessoas às quais essa obra é disponibilizada aos utilizadores da página da Internet em que ocorreu a sua comunicação inicial (19).

36.      Na minha opinião, pode ser aplicado um raciocínio semelhante aos bloqueios geográficos de acesso que são objeto do presente processo. Se o titular dos direitos de autor (ou o titular da licença) tiver aplicado um bloqueio deste tipo, a sua comunicação é dirigida unicamente ao círculo de pessoas que têm acesso ao conteúdo protegido a partir de um território designado por esse titular (ou seja, de um território onde o acesso não está bloqueado). O titular do direito não faz, portanto, uma comunicação ao público no resto do território.

37.      Assim, se numa plataforma de streaming detida pela sociedade GO4YU Beograd, os programas de entretenimento produzidos pela sociedade Grand Production são objeto de um bloqueio geográfico, pelo que o acesso a esses programas é, em princípio, possível apenas a partir do território da Sérvia e do Montenegro, a sociedade GO4YU Beograd não realiza, no território da União Europeia, uma comunicação pública desses programas.

38.      No entanto, como é sabido, nem no mundo virtual nem no mundo real existem salvaguardas que não possam ser contornadas ou quebradas. Pode é ser mais ou menos difícil fazê‑lo. Isto também é verdade para os bloqueios geográficos de acesso. Há meios técnicos de vários tipos, incluindo os serviços VPN, que permitem contornar esses bloqueios, em particular alterando virtualmente a localização do utilizador. Embora existam meios técnicos para lutar contra tais práticas, não são, e provavelmente nunca serão, plenamente eficazes, uma vez que os progressos realizados nas técnicas de infração estão sempre um passo à frente dos progressos das técnicas de salvaguarda.

39.      Isso não significa, porém, que a entidade cujo bloqueio geográfico de acesso a uma obra protegida é contornado pelos utilizadores realiza uma comunicação pública dessa obra no território em que o acesso a ela está bloqueado. Tal conclusão impossibilitaria a gestão no plano territorial dos direitos de autor na Internet, visto que qualquer comunicação ao público de uma obra na Internet teria, em princípio, caráter global.

40.      Na minha opinião, aqui há que adotar uma abordagem análoga àquela que o Tribunal de Justiça seguiu nos processos relativos às hiperligações. Quando uma hiperligação tem por efeito contornar a limitação do acesso a conteúdos protegidos por direitos de autor, a pessoa que fornece a hiperligação é a responsável pela disponibilização desses conteúdos a um público novo, e não o operador da página Internet no qual a comunicação inicial foi efetuada e cujas restrições de acesso foram violadas.

41.      Um elemento específico do presente processo é a ausência de terceiros que disponibilizem aos utilizadores os programas produzidos pela sociedade Grand Production em violação do bloqueio geográfico de acesso aplicado pela sociedade GO4YU Beograd. São os próprios utilizadores que contornam esse bloqueio, obtendo o acesso aos referidos programas sem qualquer intermediação (20).

42.      Contudo, isso não me parece motivo suficiente para imputar a responsabilidade desse estado de coisas à sociedade GO4YU Beograd. Provavelmente, a sociedade Grand Production tem razão quando afirma que a sociedade GO4YU Beograd está ciente de que era possível contornar os seus bloqueios geográficos de acesso através de serviços VPN. No entanto, a sociedade Grand Production também está ciente disso mesmo. O facto de os utilizadores poderem contornar diferentes tipos de salvaguarda é um risco inerente à difusão de obras protegidas por direitos de autor em formato digital e, especialmente, na Internet. Ao permitir que a sociedade GO4YU Beograd faça a comunicação ao público dos seus programas numa plataforma de streaming em determinado território, a sociedade Grand Production tinha que ter em conta o facto de um determinado número de utilizadores poderem conseguir acesso a elas fora desse território.

43.      No entanto, isto não significa que a sociedade GO4YU Beograd seja responsável pela comunicação ao público dos referidos programas a esses utilizadores. Segundo a lógica da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima exposta, é a vontade da entidade que faz a comunicação ao público tal como resulta das garantias técnicas utilizadas que determina o círculo de pessoas a quem se dirige essa comunicação.

44.      Tal só seria diferente se a sociedade GO4YU Beograd aplicasse deliberadamente um bloqueio geográfico do acesso ineficaz para, na realidade, permitir, a pessoas fora do território em que tem o direito de disponibilizar ao público os programas produzidos pela sociedade Grand Production, o acesso a esses programas de uma forma facilitada relativamente às possibilidades objetivamente existentes na Internet, em particular em relação aos serviços VPN amplamente disponíveis. Nessa situação, seria necessário considerar que a sociedade GO4YU Beograd pratica atos, com pleno conhecimento das suas consequências, que visam conceder aos seus clientes o acesso a obras protegidas, numa situação em que, na ausência desses atos, os seus clientes não poderiam, em princípio, desfrutar dessa obra (21). Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio estabelecer essa circunstância. Em contrapartida, as partes no contrato de licença podem acordar, nesse contrato, obrigações mais abrangentes para as restrições de acesso aos conteúdos que são objeto desse contrato.

 Resposta à primeira questão prejudicial

45.      Tendo em conta o que precede, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que não viola o direito exclusivo de comunicação de obras ao público previsto nesta disposição um operador de uma plataforma de streaming que procede à retransmissão, na Internet, de um programa de televisão numa situação em que os utilizadores contornam, com a ajuda de um serviço VPN, o bloqueio geográfico de acesso, de forma que estão disponíveis obras protegidas no território da União Europeia, sem que o operador dessa plataforma tenha autorização do titular dos direitos de autor. Contudo, tal operador viola esse direito, caso as obras protegidas estejam disponíveis na plataforma acima referida, sem restrições, no território da União Europeia, sem a autorização do titular dos direitos de autor.

 Quanto à segunda questão prejudicial

46.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que uma entidade ligada ao operador da plataforma de streaming na qual são disponibilizadas obras protegidas por direitos de autor, que publicita essa plataforma, celebra com os clientes contratos para os serviços que o seu operador presta, e presta assistência a esses clientes, mas não influencia nem os conteúdos colocados à disposição na plataforma nem as restrições de acesso que lhe são aplicadas para a proteção dos direitos de autor de terceiros, também realiza uma comunicação ao público na aceção desta disposição.

47.      A resposta a esta questão pode, na minha opinião, ser deduzida da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça relativa à comunicação ao público de obras protegidas por direitos de autor na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.

48.      Nas minhas conclusões no processo Stim e SAMI (C‑753/18, EU:C:2020:4), já tive oportunidade de salientar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado, na sua jurisprudência, a existência de uma comunicação ao público em numerosos casos que vão além de uma simples transmissão direta de uma obra, não é menos verdade que a característica comum de todas estas situações é o nexo direto entre a ação do utilizador e a comunicação ao público de obras protegidas por direitos de autor. Este nexo direto é um elemento central sem o qual não se pode falar de um ato de comunicação ao público dessas obras (22). Concordando com a minha proposta de resposta à questão prejudicial nesse caso, o Tribunal de Justiça decidiu que a locação de veículos automóveis equipados com postos de rádio não constitui uma comunicação ao público, na aceção, em especial, do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 (23).

49.      As conclusões supra não são postas em causa pela jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça relativa à comunicação ao público de obras protegidas por direitos de autor na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. Em especial, no Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503), o Tribunal de Justiça declarou que o operador de uma plataforma de partilha de vídeos ou de uma plataforma de armazenagem e de partilha de ficheiros, realiza (em violação dos direitos de autor) uma «comunicação ao público» de obras protegidas apenas quando esse operador tem conhecimento concreto da colocação à disposição ilícita de um conteúdo protegido na sua plataforma e se abstém de o apagar ou de bloquear o acesso a esse conteúdo com diligência, ou quando o referido operador, embora sabendo ou devendo saber que, de um modo geral, conteúdos protegidos são ilegalmente colocados à disposição do público por intermédio da sua plataforma por utilizadores desta, se abstém de implementar as medidas técnicas adequadas que se podem esperar de um operador normalmente diligente que se encontre na sua situação para combater de forma credível e eficaz violações dos direitos de autor nessa plataforma, ou ainda quando contribui para a seleção de conteúdos protegidos comunicados ilegalmente ao público, fornece na sua plataforma ferramentas destinadas especificamente a partilhar ilicitamente esses conteúdos ou promove conscientemente tais partilhas (24). Em contrapartida, a simples prestação de um serviço de comunicação na Internet de uma plataforma que permite a difusão de obras protegidas por direitos de autor não é suficiente para constatar que o operador dessa plataforma efetua uma comunicação ao público dessas obras, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, mesmo que, sem essa plataforma, os utilizadores não possam distribuir essas obras (25).

50.      No caso em apreço não existe tal nexo direto entre a atividade das entidades visadas pela segunda questão prejudicial e as obras disponibilizadas ao público na plataforma de streaming da sociedade GO4YU Beograd, incluindo os programas de entretenimento produzidos pela sociedade Grand Production. Esses operadores contribuem sem dúvida para o funcionamento dessa plataforma, assegurando a intermediação entre a plataforma e os seus clientes. Pode mesmo considerar‑se que a sua atividade é indispensável para que esses clientes possam aceder aos conteúdos difundidos na plataforma, uma vez que é necessário para tal a celebração de um contrato de subscrição para esse efeito. Em contrapartida, essas entidades não têm qualquer influência no conteúdo distribuído nessa plataforma nem qualquer possibilidade de evitar eventuais violações dos direitos de autor.

51.      A circunstância, mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio na segunda questão, de os clientes não serem previamente informados de que determinados conteúdos não estão disponíveis na plataforma, incluindo os programas de entretenimento produzidos pela sociedade Grand Production, em nada altera esta conclusão. O facto de não informar os clientes de que determinado conteúdo não está disponível na plataforma não altera em nada esta indisponibilidade. Na minha opinião, também não existe um nexo de causalidade evidente entre a falta de informação dos clientes de que esses conteúdos não estão disponíveis e a propensão desses clientes para contornarem o bloqueio geográfico do acesso que é o motivo pelo qual não estão disponíveis. Além disso, como indiquei acima, sou de opinião que o operador da plataforma de streaming e, portanto, também outras entidades a ele associadas, não são responsáveis pelo facto de os utilizadores contornarem as restrições técnicas do acesso às obras protegidas por direitos de autor.

52.      As entidades associadas ao operador dessa plataforma podem eventualmente incorrer em responsabilidade acessória por facilitar ou cooperar na violação dos direitos de autor se a violação desses direitos se comprovar. No entanto, esta responsabilidade não está harmonizada no direito da União e está exclusivamente sujeita ao direito nacional dos Estados‑Membros.

53.      Tendo em conta o que precede, proponho que se responda à segunda questão prejudicial que o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que uma entidade ligada ao operador da plataforma de streaming na qual são disponibilizadas obras protegidas por direitos de autor, que publicita essa plataforma, celebra contratos com os clientes relativos ao serviço que o seu operador presta, e presta assistência a esses clientes, mas não tem influência nem nos conteúdos disponibilizados na plataforma nem nas restrições de acesso que lhe são aplicadas para proteger os direitos de autor de terceiros, não efetua uma comunicação ao público na aceção desta disposição.

 Quanto à terceira questão prejudicial

54.      A terceira questão prejudicial diz respeito ao alcance da competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros em matéria extracontratual relativa à violação de direitos de autor. Segundo a redação dessa questão formulada pelo órgão jurisdicional de reenvio trata‑se de interpretar o artigo 2.°, alíneas a) e e), e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, em conjugação com o artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012.

55.      O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que esta questão resulta das dúvidas que tem sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, por um lado o Tribunal de Justiça declarou que no caso de uma violação alegada dos direitos de autor garantidos pelo Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a decidir, este é competente – a título do lugar da materialização do dano (em alemão «Erfolgsort») – para conhecer de uma ação fundada em responsabilidade por violação desses direitos em virtude da colocação em linha de obras protegidas num sítio Internet acessível na sua jurisdição, mas só para conhecer do dano causado no território desse Estado‑Membro (26).

56.      Por outro lado, o Tribunal de Justiça também declarou que uma pessoa que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado‑Membro no qual se situa o seu centro de interesses. Em contrapartida, essa pessoa não pode intentar uma ação destinada a obter a retificação dos dados incorretos e a supressão desses comentários nos tribunais de cada um dos Estados‑Membros em cujo território a informação publicada na Internet esteja ou tenha estado acessível (27).

57.      No processo em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal, que não é um pedido de indemnização, mas um pedido de aplicação de medidas provisórias sob a forma de uma proibição da comunicação ao público na Internet de obras pertencentes ao recorrente, a determinação do âmbito da competência do órgão jurisdicional no qual a ação foi intentada deve ser efetuada em conformidade com esse primeiro acórdão, ou seja, essa competência está limitada ao território da Áustria, ou segundo este último acórdão, de modo a que os órgãos jurisdicionais austríacos sejam competentes para aplicar medidas cautelares com alcance mundial.

58.      No entanto, tenho dúvidas quanto à admissibilidade desta questão prejudicial, dado que, na minha opinião, o Tribunal de Justiça não está em condições de dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta que seja útil para resolver o litígio que tem pendente. Esta dúvida parece, aliás, ser partilhada pelas partes no processo principal.

59.      Em primeiro lugar, a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima citada foi, com efeito, desenvolvida no âmbito do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 (28), disposição que o órgão jurisdicional de reenvio menciona igualmente na sua questão. Esta disposição estabelece, em matéria extracontratual, a competência do órgão jurisdicional do lugar onde ocorreu o facto danoso. Foi neste contexto que o Tribunal de Justiça precisou, na jurisprudência referida, o alcance da competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. Contudo, no processo principal, esta disposição não é aplicável.

60.      Quanto à sociedade GO4YU Beograd, tem sede na Sérvia, ou seja, fora do território da União, ao passo que a aplicação do artigo 7.° do Regulamento n.° 1215/2012 está limitada aos demandados domiciliados (ou estabelecidos) nos Estados‑Membros. Em contrapartida, a competência dos órgãos jurisdicionais de cada Estado‑Membro em matéria de ações intentadas contra pessoas não domiciliadas num Estado‑Membro é determinada, em conformidade com o artigo 6.°, n.° 1, do referido regulamento, pelo direito desse Estado‑Membro.

61.      Quanto aos restantes recorridos no processo principal, têm a sua sede ou domicílio na Áustria, ou seja, o Estado‑Membro do órgão jurisdicional de reenvio. A competência dos órgãos jurisdicionais austríacos nos processos instaurados contra esses recorridos é determinada não pelo artigo 7.°, ponto 2, uma vez que esta disposição se aplica às pessoas demandadas nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro diferente do do seu domicílio, mas sim do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, nos termos do qual as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado‑Membro. A competência dos tribunais desse Estado‑Membro tem caráter geral e não é, em princípio, limitada, em todo o caso, por regras de competência (29). A jurisprudência do Tribunal de Justiça referida nos n.os 55 e 56 das presentes conclusões não pode, portanto, aplicar‑se neste caso.

62.      Do mesmo modo, esta jurisprudência não é aplicável se os órgãos jurisdicionais austríacos tiverem competência para apreciar uma ação intentada contra a sociedade GO4YU Beograd, em aplicação das disposições austríacas, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, devido à articulação desta ação com a ação intentada contra os outros demandados (30). Com efeito, o âmbito da competência a este título deve ser análogo ao que decorre do referido artigo 4.°, n.° 1, desse regulamento. De qualquer das formas, trata‑se de uma questão de interpretação do direito nacional (31).

63.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio não explica de que forma é que a aplicação do raciocínio do Tribunal de Justiça no Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan (C‑194/16, EU:C:2017:766), conduziria à competência ilimitada dos órgãos jurisdicionais austríacos.

64.      Com efeito, por um lado, nada indica que o centro dos interesses da sociedade Grand Production se situava na Áustria e não na Sérvia, onde a sociedade tem a sua sede. As próprias partes no processo principal constatam, aliás, em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça, que a doutrina do centro de interesses não é aplicável no caso em apreço.

65.      Por outro lado, se se pretender aplicar, por analogia, a declaração do Tribunal de Justiça segundo a qual, tendo em conta a natureza ubiquitária dos dados e dos conteúdos colocados em linha num sítio Internet e o facto de o alcance da sua difusão ser em princípio universal, um pedido de retificação dos primeiros e de supressão dos segundos é uno e indivisível e, por conseguinte, só pode ser apresentado num tribunal competente para conhecer da totalidade do pedido de reparação do dano (32), a terceira questão prejudicial no presente processo deixa de ter objeto. Com efeito, segundo esta afirmação, qualquer pedido de retificação ou supressão de conteúdo colocado em linha (33) deve ser apresentado ao órgão jurisdicional com competência territorial ilimitada, que deve, em primeiro lugar, ser designado com base nas disposições pertinentes, neste caso nas regras de competência austríacas, conjugadas com o artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012. Por conseguinte, já não é necessário ponderar a questão do âmbito da competência desse órgão jurisdicional.

66.      Tendo em conta o que precede, proponho que a terceira questão prejudicial seja declarada inadmissível.

 Conclusões

67.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) do seguinte modo:

1)      O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação

deve ser interpretado no sentido de que

não viola o direito exclusivo de comunicação de obras ao público previsto nesta disposição um operador de uma plataforma de streaming que procede à retransmissão, na Internet, de um programa de televisão numa situação em que os utilizadores contornam, com a ajuda de um serviço de rede privada virtual (VPN), o bloqueio geográfico de acesso, de forma que estão disponíveis obras protegidas no território da União Europeia sem que o operador dessa plataforma tenha autorização do titular dos direitos de autor; contudo, tal operador viola esse direito caso as obras protegidas estejam disponíveis na sua plataforma, sem restrições, no território da União Europeia, sem a autorização do titular dos direitos de autor.

2)      O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29

também deve ser interpretado no sentido de que

uma entidade ligada ao operador da plataforma de streaming na qual são disponibilizadas obras protegidas por direitos de autor, que publicita essa plataforma, celebra contratos com os clientes relativos ao serviço que esse operador presta, e presta assistência a esses clientes, mas não tem influência nem nos conteúdos disponibilizados na plataforma nem nas restrições de acesso que lhe são aplicadas para proteger os direitos de autor de terceiros, não efetua uma comunicação ao público na aceção desta disposição.


1      Língua original: polaco.


2      JO 2012, L 351, p. 1.


3      JO 2001, L 167, p. 10.


4      O utilizador navega na Internet com o endereço IP e a localização do servidor VPN.


5      O sublinhado é meu. Original: «oder».


6      Aqui importa esclarecer que, como a Comissão também salienta, com razão, não se trata de uma plataforma para os utilizadores publicarem conteúdo, mas de uma página da Internet em que o operador decide inteiramente sobre os conteúdos aí disponibilizados.


7      V. Acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147, n.° 1 do dispositivo).


8      Acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147, n.° 39).


9      Como sucede no caso em apreço, em que uma radiodifusão televisiva destinada ao território da Sérvia está disponível, através da Internet, também fora desse território, nomeadamente no território da União Europeia.


10      Para informação mais ampla sobre os bloqueios geográficos de acesso e as consequências legais de os contornar, v.: Kra‑Oz, T., «Geoblocking and the Legality of Circumvention», IDEA – The Journal of the Franklin Pierce Center for Intellectual Property, vol. 57 (2017), pp. 385 a 430; Trimble, M., «Copyright and Geoblocking: The Consequences of Eliminating Geoblocking», Boston University Journal of Science & Technology Law, vol. 25 (2019), pp. 476 a 502.


11      N.° 1 do dispositivo. O sublinhado é meu.


12      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.os 27 e 28).


13      Uma espécie de instrumento de gestão de direitos digitais.


14      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.os 27 e 31).


15      V., neste sentido, Acórdão de 16 de novembro de 2016, Soulier e Doke (C‑301/15, EU:C:2016:878, n.° 36).


16      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor em matéria de propriedade intelectual (JO 2006, L 376, p. 28).


17      Acórdão de 10 de novembro de 2016, Vereniging Openbare Bibliotheken (C‑174/15, EU:C:2016:856, n.os 51 a 53 e n.° 1 do dispositivo).


18      Dispositivo. O sublinhado é meu.


19      Acórdão de 9 de março de 2021, VG Bild‑Kunst (C‑392/19, EU:C:2021:181, n.os 42 e 43).


20      Evidentemente, intervêm aqui como intermediários os operadores de serviços VPN. Contudo, são intermediários no acesso à Internet e não especificamente na disponibilização de obras protegidas por direitos de autor. Parecem ser os intermediários referidos no artigo 12.° da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000 relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre comércio eletrónico») (JO 2000, L 178, p. 1).


21      V., no mesmo sentido, Acórdão de 26 de abril de 2017, Stichting Brein (C‑527/15, EU:C:2017:300, n.° 31).


22      V. as minhas conclusões no processo Stim e SAMI (C‑753/18, EU:C:2020:4, n.os 24 a 35).


23      Acórdão de 2 de abril de 2020, Stim e SAMI (C‑753/18, EU:C:2020:268, dispositivo).


24      Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.° 1 do dispositivo).


25      Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.os 77 a 79).


26      Acórdão de 22 de janeiro de 2015, Hejduk (C‑441/13, EU:C:2015:28, dispositivo).


27      Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan (C‑194/16, EU:C:2017:766, dispositivo).


28      Ou com base no correspondente artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), que foi revogado e substituído pelo Regulamento n.° 1215/2012.


29      V., neste sentido, as minhas conclusões no processo Glawischnig‑Piesczek (C‑18/18, EU:C:2019:458, n.os 85 e 86, a nota de rodapé da página 42 e literatura aí referida).


30      No seu pedido, o órgão jurisdicional de reenvio não explica com que base os órgãos jurisdicionais austríacos se declararam competentes para apreciar a ação intentada contra a sociedade GO4YU Beograd. A possibilidade de processar uma pessoa com sede num país terceiro parece, no entanto, existir no direito austríaco (v. Petz, T., in: Toshiyuki, K., «Intellectual Property and Private International Law: Comparative Perspectives», Bloomsbury Publishing (UK), 2012, p. 310 e segs.).


31      No caso em apreço, o artigo 8.°, ponto 1, do Regulamento n.° 1215/2012 não é aplicável, uma vez que este artigo, à semelhança do artigo 7.° deste regulamento, só é aplicável aos demandados domiciliados (estabelecidos) no território de um Estado‑Membro (v., mutatis mutandis, Acórdão de 11 de abril de 2013, Sapir e o., C‑645/11, EU:C:2013:228, n.° 3 do dispositivo).


32      Acórdão de 17 de outubro de 2017, Bolagsupplysningen e Ilsjan (C‑194/16, EU:C:2017:766, n.° 48).


33      Assim, por analogia, também um pedido de proibição da disponibilização na Internet de obras protegidas por direitos de autor.