CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

LAILA MEDINA

apresentadas em 15 de setembro de 2022 ( 1 )

Processo C‑396/21

KT,

NS

contra

FTI Touristik GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Artigo 267.o TFUE — Diretiva 2015/2302 — Execução de contrato de viagem organizada — Falta de conformidade na execução de um serviço de viagem incluído no contrato de viagem organizada — Redução do preço durante todo o período em que se verificou a falta de conformidade — Circunstâncias inevitáveis e excecionais — Restrições impostas no local de destino da viagem devido à propagação mundial de uma doença infeciosa — COVID‑19»

Introdução

1.

A pandemia de COVID‑19 constitui uma das emergências sanitárias mais graves de que há memória, tendo desencadeado uma série de crises. Para combater a propagação da pandemia, os governos de todo o mundo impuseram restrições com duração e alcance sem precedentes em tempos de paz. Os desafios suscitados pela pandemia de COVID‑19 são múltiplos e pluridimensionais. Em certos casos, a pandemia pôs à prova o quadro jurídico existente e a sua eficácia em regular as consequências dessas crises.

2.

O setor do turismo foi um dos mais atingidos pela pandemia ( 2 ). Os efeitos da pandemia neste setor mantêm‑se até hoje e a maioria dos especialistas não espera uma retoma total antes de 2024 ( 3 ). O presente processo diz respeito a um aspeto muito específico do impacto da pandemia, relativo à execução dos contratos de viagem organizada regulados pela Diretiva 2015/2302 ( 4 ) e ao exercício de direitos em caso de falta de conformidade na execução desses contratos. Apesar da sua especificidade, o presente processo e o processo conexo C‑407/21, UFC — Que choisir e CLCV, em que apresento hoje as minhas conclusões, têm implicações mais vastas, uma vez que convidam o Tribunal de Justiça, pela primeira vez, a apreciar as consequências da pandemia na execução contratual em matéria de viagens organizadas.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2015/2302

3.

O artigo 3.o da Diretiva 2015/2302 contém, nos seus pontos 12 e 13, as seguintes definições:

«12)

“Circunstâncias inevitáveis e excecionais”, qualquer situação fora do controlo da parte que a invoca e cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis;

13)

“Falta de conformidade”, o incumprimento ou a execução deficiente dos serviços de viagem incluídos numa viagem organizada;»

4.

O artigo 14.o da Diretiva 2015/2302, sob a epígrafe «Redução do preço e indemnização por danos», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o viajante tenha direito a uma redução adequada do preço durante todo o período em que se verifique a falta de conformidade, salvo se o organizador provar que essa falta de conformidade é imputável ao viajante.

2.   O viajante tem direito a receber uma indemnização adequada do organizador por quaisquer danos sofridos em resultado de uma eventual falta de conformidade. Essa indemnização deve ser paga sem demora injustificada.

3.   O viajante não tem direito a uma indemnização por danos se o organizador provar que a falta de conformidade é:

a)

Imputável ao viajante;

b)

Imputável a um terceiro alheio à prestação dos serviços de viagem incluídos no contrato de viagem organizada e é imprevisível ou inevitável; ou

c)

Devida a circunstâncias inevitáveis e excecionais.

[…]»

Direito nacional

5.

O § 651i do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil, a seguir «BGB») dispõe:

«(1)   O organizador da viagem deve fornecer ao viajante a viagem organizada sem deficiências que afetem a sua execução.

(2)   A viagem organizada está isenta de deficiências se tiver as características acordadas. Quando não tenha as características acordadas, a viagem organizada está isenta de deficiências:

1.

se for adequada para a finalidade prevista no contrato, ou, pelo menos,

2.

se for adequada para a finalidade habitual e tiver a qualidade habitual das viagens organizadas do mesmo tipo e que o viajante possa esperar atendendo à natureza da viagem organizada.

Também se verifica uma deficiência na execução do serviço de viagem se o organizador não assegurar os serviços de viagem ou os assegurar com um atraso injustificado.

(3)   No caso de a execução da viagem organizada ser defeituosa, o viajante pode, quando estejam preenchidos os requisitos das disposições seguintes e salvo disposição legal em contrário,

[…]

6.   exercer o direito a uma redução do preço da viagem (§ 651m) […]

[…]»

6.

O § 651m do BGB prevê, no seu n.o 1:

«O preço da viagem é reduzido enquanto durar a execução deficiente da viagem. Havendo lugar a redução, o preço da viagem deve ser reduzido na proporção entre o que teria sido o valor da viagem organizada no momento da celebração do contrato, se a execução não tivesse sido deficiente, e o seu valor real. A redução deve, se necessário, ser determinada por estimativa.»

Matéria de facto, tramitação processual e questão prejudicial

7.

Em 30 de dezembro de 2019, os recorrentes no processo principal reservaram um período de 14 dias de férias, com partida da Alemanha e destino às ilhas Canárias, em Espanha, nas datas compreendidas entre 13 de março de 2020 e 27 de março de 2020. Os recorrentes partiram de férias conforme planeado.

8.

Todavia, em 15 de março de 2020, as praias foram encerradas e entrou em vigor um recolher obrigatório com vista a conter a pandemia de COVID‑19. No complexo hoteleiro onde os recorrentes estavam hospedados foi vedado o acesso às piscinas e espreguiçadeiras e o programa de entretenimento foi interrompido. Os recorrentes só estavam autorizados a sair do seu quarto para comer ou tomar uma bebida. Em 18 de março de 2020, os recorrentes foram informados pelas autoridades de que deviam estar preparados para partir para o aeroporto a qualquer momento mediante um pré‑aviso de uma hora. Após sete dias, a viagem terminou e regressaram à Alemanha.

9.

Os recorrentes intentaram uma ação no Amtsgericht München (Tribunal de Primeira Instância de Munique, Alemanha) contra a recorrida, FTI Touristik GmbH, exigindo uma redução de 70 % do preço da viagem proporcional a sete dias. Na sua sentença de 26 de novembro de 2020, este órgão jurisdicional julgou a ação improcedente com o fundamento de que as medidas adotadas para proteger a saúde dos viajantes em razão de um vírus mortal não constituem uma execução deficiente da viagem organizada na aceção do § 651i do BGB.

10.

Os recorrentes interpuseram recurso para o órgão jurisdicional de reenvio. O órgão jurisdicional de reenvio observa que o § 651i do BGB prevê a responsabilidade objetiva do organizador. Por conseguinte, seria possível alegar que o organizador é responsável pelas restrições impostas no âmbito de medidas de proteção da saúde. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no período em que a viagem se realizou, foram também impostas restrições semelhantes na Alemanha. Assim, é possível considerar as medidas adotadas pelas autoridades espanholas não como circunstâncias excecionais no local de destino da viagem, mas como medidas normais decretadas em toda a Europa em resposta à pandemia.

11.

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se as restrições impostas podem ser consideradas um «risco geral da vida» para que sejam excluídas do âmbito de aplicação do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302. Como este órgão jurisdicional explica, esta doutrina tem a sua génese na jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha). Segundo esta doutrina, a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização com base nos contratos de viagem pode ser limitada tendo em conta circunstâncias que digam unicamente respeito à esfera pessoal do viajante ou nas quais se materializem os riscos que o viajante tem igualmente de suportar na vida quotidiana. Por conseguinte, o viajante deve suportar os riscos de uma atividade que esteja exposta aos riscos gerais da vida nos casos em que não exista violação dos deveres por parte do organizador ou o dano não resulte de nenhuma situação que desencadeie a responsabilidade do organizador. É o caso, por exemplo, do viajante que, fora da utilização dos serviços de viagem, sofra um acidente, adoeça ou seja vítima de um crime no destino de férias, ou que, por razões pessoais, não reúna condições para continuar a utilizar os serviços de viagem.

12.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é concebível que o eventual surto de uma pandemia não tenha sido ponderado na altura em que a Diretiva 2015/2302 foi adotada.

13.

Foi nestas circunstâncias que o Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As restrições impostas por uma doença infeciosa no local de destino da viagem constituem uma falta de conformidade, na aceção do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2015/2302, ainda que, devido à propagação mundial dessa doença infeciosa, tais restrições tenham sido impostas tanto no local de residência do viajante como noutros países?»

Análise

14.

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 deve ser interpretado no sentido de que reconhece ao viajante o direito a uma redução do preço por falta de conformidade na execução do contrato de viagem organizada em circunstâncias em que a falta de conformidade resulta de restrições impostas para prevenir a propagação de uma doença infeciosa no local de destino da viagem, quando tais restrições são igualmente impostas tanto no local de residência do viajante como em todo o mundo.

(a)   Quanto ao direito a uma redução do preço no contexto da pandemia de COVID‑19

15.

Segundo jurisprudência constante, os métodos de interpretação que o Tribunal de Justiça utiliza exigem que se tenha em conta não só os termos da disposição em causa mas também o contexto em que se insere e os objetivos prosseguidos pelo ato de que faz parte ( 5 ). A génese de uma disposição do direito da União pode igualmente revestir elementos pertinentes para a sua interpretação ( 6 ).

16.

Em primeiro lugar, segundo a redação do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, o viajante tem direito «a uma redução adequada do preço durante todo o período em que se verifique a falta de conformidade, salvo se o organizador provar que essa falta de conformidade é imputável ao viajante». Decorre desta disposição que o direito a uma redução do preço está sujeito a uma condição, a saber, a «falta de conformidade» e a uma exceção, ou seja, quando essa falta de conformidade é imputável ao viajante.

17.

O conceito de «falta de conformidade» é definido no artigo 3.o, ponto 13, da Diretiva 2015/2302 como «o incumprimento ou a execução deficiente dos serviços de viagem incluídos numa viagem organizada». Esta definição não implica qualquer elemento de culpa ou a consideração das circunstâncias em que a falta de conformidade ocorre. Assim, a constatação da falta de conformidade implica unicamente a comparação entre os serviços incluídos na viagem organizada e aqueles que são efetivamente prestados. Trata‑se de uma conclusão objetiva. Por conseguinte, o direito do viajante a uma redução do preço por falta de conformidade não pode depender da causa dessa falta de conformidade, ou, segundo as palavras da Comissão Europeia, da sua génese.

18.

A exceção ao direito a uma redução do preço prevista no artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 é clara: quando a falta de conformidade é imputável ao viajante. Enquanto exceção à regra, deve ser interpretada de forma restritiva. Não pode, pois, ser alargada a situações que não estejam expressamente previstas.

19.

Daqui resulta que a falta de conformidade imputável a qualquer outra pessoa (o organizador, o prestador de serviços ou um terceiro alheio ao contrato de viagem organizada) ou devida a circunstâncias inevitáveis e excecionais, na aceção do artigo 3.o, ponto 12, da Diretiva 2015/2302, não se opõe ao direito do viajante a uma redução do preço. Como corretamente salienta o Governo finlandês nas suas observações escritas, para a apreciação da falta de conformidade é irrelevante saber o que um consumidor razoável teria esperado tendo em conta circunstâncias ocorridas após a celebração do contrato de viagem organizada. Esta apreciação só pode depender dos serviços efetivamente prestados no contrato de viagem.

20.

Além disso, esta interpretação é corroborada pelo contexto em que o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, se insere, fazendo parte do seu capítulo IV relativo à execução da viagem organizada. A fim de alcançar o objetivo de harmonização em matéria de contratos de viagem organizada, esta diretiva institui um regime de responsabilidade contratual dos operadores turísticos perante os consumidores que com eles celebraram um contrato relativo a essas viagens ( 7 ). Este regime de responsabilidade contratual é caracterizado por dois elementos importantes. Em primeiro lugar, a responsabilidade é objetiva e as suas causas de exclusão estão taxativamente previstas. Em segundo lugar, concentra‑se na responsabilidade do organizador por qualquer falta de conformidade.

21.

Em especial, o artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 prevê que os Estados‑Membros assegurem que o organizador seja responsável pela execução dos serviços de viagem incluídos no contrato de viagem organizada, independentemente de esses serviços serem executados pelo próprio organizador ou por outros prestadores de serviços de viagem. Segundo o artigo 13.o, n.o 3, desta diretiva, se algum dos serviços de viagem não for executado nos termos do contrato de viagem organizada, o organizador deve suprir a falta de conformidade, salvo se isso for impossível ou implicar custos desproporcionados, tendo em conta a importância da falta de conformidade e o valor dos serviços de viagem afetados. Nas situações em que o organizador não suprir a falta de conformidade, é aplicável o artigo 14.o da Diretiva 2015/2302.

22.

O artigo 14.o da Diretiva 2015/2302 prevê, por sua vez, dois direitos distintos em caso de falta de conformidade: o direito a uma redução do preço, no seu n.o 1, e o direito a receber uma indemnização adequada, nos n.os 2 e 3. Estes direitos estão sujeitos a condições diferentes. Por um lado, como referido no n.o 16, supra, o direito a uma redução do preço surge quando se verifica uma falta de conformidade e só é excluído se o organizador provar que essa falta de conformidade é imputável ao viajante. Por outro lado, o direito a indemnização surge por danos sofridos na sequência de uma eventual falta de conformidade, e as únicas exceções são as taxativamente previstas no artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2015/2302. Mais especificamente, o organizador deve provar que a falta de conformidade é imputável ao viajante ou a um terceiro alheio à prestação dos serviços de viagem incluídos no contrato de viagem organizada ou devida a circunstâncias inevitáveis e excecionais.

23.

Resulta da estrutura do artigo 14.o da Diretiva 2015/2302 que as exceções ao direito a indemnização por danos são específicas desse direito e não podem ser transpostas para o direito a uma redução do preço.

24.

Por último, esta interpretação é corroborada pelo objetivo prosseguido pela Diretiva 2015/2302, que consiste, nomeadamente, nos termos do seu artigo 1.o, em alcançar um elevado nível de defesa do consumidor. Tendo em conta este objetivo, as obrigações resultantes de um contrato de viagem organizada cuja não execução ou incorreta execução implica a responsabilidade do organizador não podem ser interpretadas de forma restritiva ( 8 ). Como salienta, em substância, a Comissão nas suas observações escritas ( 9 ), esta interpretação é compatível com o objetivo do regime da responsabilidade contratual instituído pela referida diretiva que concentra no operador a responsabilidade por todos os casos de incumprimento ou a execução deficiente do contrato. Nesses casos, o consumidor pode procurar obter uma reparação pelo organizador sem ter de efetuar investigações mais aprofundadas para identificar a pessoa que provocou a falta de conformidade ou a respetiva causa, o que permite, assim, garantir um elevado nível de proteção dos consumidores.

25.

A dissociação do direito a uma redução do preço relativamente à causa da falta de conformidade é corroborada pela génese da disposição em causa. A proposta legislativa da Comissão previa, no seu artigo 12.o, as mesmas exceções ao direito a uma redução do preço e ao direito à indemnização por danos ( 10 ). Mais especificamente, o viajante não teria direito a uma redução do preço se o organizador provasse, nomeadamente, que a falta de conformidade se ficava a dever a circunstâncias inevitáveis e excecionais. Contudo, no decurso do processo legislativo, o direito a uma redução do preço foi dissociado do direito a indemnização. Como salienta, em substância, a Comissão nas suas observações escritas, isto corrobora a conclusão de que o legislador pretendeu reconhecer ao viajante o direito a uma redução do preço independentemente de considerações relacionadas com a culpa ou a causa da falta de conformidade, incluindo em caso de circunstâncias inevitáveis e excecionais.

26.

Resulta da redação, do contexto e do objetivo do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, bem como da sua génese, que o viajante tem direito a uma redução do preço quando não existir culpa do organizador e quando a falta de conformidade for devida a circunstâncias inevitáveis e excecionais.

27.

É ponto assente no presente processo que a falta de conformidade se deveu às restrições impostas pelas autoridades administrativas para prevenir a propagação da pandemia de COVID‑19 em março de 2020. Estas medidas constituem efeitos jurídicos da pandemia, distinguindo‑se dos seus efeitos materiais (que incluem, por exemplo, a doença, o isolamento ou a morte de pessoal essencial) ( 11 ). A doutrina refere‑se ao conceito de fait du prince para designar medidas regulamentares ou proibições que tornam impossível a execução contratual e isentar o devedor da responsabilidade civil ( 12 ). A intervenção das autoridades públicas na relação contratual constitui geralmente um caso de força maior ( 13 ). Como explico nas minhas Conclusões no processo conexo C‑407/21, UFC — Que choisir e CLCV, o conceito de força maior é, no âmbito da Diretiva 2015/2302, abrangido pelo conceito de «circunstâncias inevitáveis e excecionais», na aceção do artigo 3.o, ponto 12, desta diretiva. No presente processo, as restrições regulamentares impostas em março de 2020 em resposta à pandemia devem considerar‑se abrangidas por esse conceito. Com efeito, tais restrições conduziram a uma situação fora do controlo do organizador, cujas consequências não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido adotadas todas as medidas razoáveis ( 14 ).

28.

Como referido, a ocorrência de circunstâncias inevitáveis e excecionais não isenta o organizador da sua obrigação de conceder uma redução do preço. Para que o viajante tenha direito a uma redução do preço, o juiz nacional deve limitar‑se a declarar que os serviços de viagem incluídos na viagem organizada não foram executados ou foram executados com deficiências. Por conseguinte, o facto de a falta de conformidade ser devida a restrições impostas em resposta à pandemia, que constituem circunstâncias inevitáveis e excecionais, e o facto de terem sido igualmente impostas medidas semelhantes no local de residência do viajante não afetam o direito a uma redução do preço.

29.

Contudo, foram apresentados argumentos diferentes contra tal interpretação no contexto da pandemia de COVID‑19. Em primeiro lugar, o Governo checo alegou, nas suas observações escritas, que a Diretiva 2015/2302 não é aplicável em tais circunstâncias. O órgão jurisdicional de reenvio tem igualmente dúvidas quanto à questão de saber se a pandemia está abrangida pelo objetivo de proteção desta diretiva. Pelas razões que exponho nas conclusões que apresento hoje no processo conexo C‑407/21, UFC — Que choisir e CLCV, não subscrevo esta posição na análise da segunda questão. Com efeito, na versão atual da lei, a aplicação da Diretiva 2015/2302 não se limita aos casos de perturbações a uma determinada escala ou a nível local verificadas durante a viagem.

30.

Quanto à pertinência da doutrina do «risco geral da vida», tal como foi explicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio ( 15 ), saliento que a mesma não diz respeito ao direito a uma redução do preço, mas à responsabilidade do organizador pelo pagamento de uma indemnização por danos. Contudo, como esclareci no n.o 22 das presentes conclusões, por força da Diretiva 2015/2302, o direito a uma redução do preço e o direito a indemnização estão sujeitos a condições diferentes. Por conseguinte, esta doutrina é, na minha opinião, irrelevante para efeitos da determinação do direito a uma redução do preço. Além disso, no presente processo não se trata de o viajante não poder utilizar os serviços do contrato de viagem organizada devido a um risco geral da vida que se materializou para o viajante (por exemplo, porque foi infetado com o vírus). Trata‑se da não prestação dos serviços, que se tornou juridicamente impossível devido à adoção de medidas governamentais.

31.

O Governo checo alegou que o cumprimento da regulamentação em vigor constitui uma cláusula tácita de qualquer contrato. As restrições impostas enquanto o viajante se encontrava no local de destino da viagem eram aplicáveis erga omnes e tinham de ser respeitadas indistintamente pelo organizador, pelo prestador de serviços e pelo viajante. Por conseguinte, segundo o Governo checo, o organizador não deve ser responsável por uma deficiência resultante de restrições impostas pelo Estado.

32.

As partes são efetivamente obrigadas a respeitar a legislação em vigor no país de destino. Nas circunstâncias do presente processo, isto significa que o organizador e o prestador de serviços estavam obrigados a respeitar as restrições impostas pelo Governo espanhol. A obrigação de respeitar as medidas legais em vigor tornou juridicamente impossível a execução de certos serviços que implicavam contactos sociais. As restrições governamentais deveriam, assim, isentar o organizador do cumprimento das obrigações contratuais afetadas por essas restrições governamentais. Além disso, o organizador não deveria, em princípio, ser considerado responsável por danos ao abrigo do artigo 14.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 2015/2302. Contudo, tendo em conta a estrutura do artigo 14.o desta diretiva explicada nos n.os 20 e seguintes das presentes conclusões, o organizador não está isento da sua obrigação de proceder a uma redução adequada do preço da viagem organizada. Por conseguinte, considero que o argumento do Governo checo relativo à cláusula tácita do contrato não afeta o direito do viajante a uma redução do preço.

33.

O órgão jurisdicional de reenvio salientou o facto de as restrições terem sido impostas não só no local de destino mas também no local de residência do viajante. Isso implicaria uma apreciação do incumprimento à luz das circunstâncias existentes no momento em que este ocorreu. Todavia, como foi acima sublinhado, o incumprimento não é apreciado à luz de circunstâncias posteriores à celebração do contrato. É apreciado tendo em conta os serviços de viagem incluídos no contrato que deixam de poder ser prestados após o início da viagem organizada. Uma questão diferente, não suscitada no presente processo, é se há falta de conformidade quando as partes celebram o contrato depois de as restrições terem sido impostas.

34.

Importa igualmente sublinhar que o cumprimento pelo organizador da sua obrigação de conceder uma redução do preço, mesmo quando a falta de conformidade se deve a circunstâncias inevitáveis e excecionais, não prejudica o seu direito de obter reparação ao abrigo do artigo 22.o da Diretiva 2015/2302. Este artigo prevê que os Estados‑Membros garantam que, quando um organizador concede uma redução do preço, tenha o direito de obter reparação junto de eventuais terceiros que tenham contribuído para o facto gerador da redução do preço. Esta disposição «contrabalança» o regime de responsabilidade objetiva previsto no artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302. A obrigação de o organizador conceder uma redução do preço pode igualmente constituir um elemento tido em conta pelos Estados‑Membros ao decidirem sobre o nível de apoio a prestar aos organizadores tendo em conta a pandemia, em conformidade com o Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal ( 16 ).

35.

A minha conclusão preliminar é, assim, que o viajante tem direito a uma redução do preço por falta de conformidade na execução do contrato de viagem organizada nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, em circunstâncias em que a falta de conformidade é devida a restrições impostas para conter uma doença infeciosa e quando tais restrições são igualmente impostas tanto no local de residência do viajante como em todo o mundo.

36.

Dito isto, mesmo que a causa do incumprimento não afete o direito do consumidor a uma redução do preço enquanto tal, deverá refletir‑se no montante da redução do preço a que o viajante tem direito, como explicarei na subsecção seguinte.

(b)   Quanto à limitação do direito a uma redução do preço no contexto da pandemia de COVID‑19

37.

O âmbito da obrigação do organizador de conceder uma redução do preço nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 não é ilimitado. Em primeiro lugar, esta obrigação só pode ser apreciada à luz do âmbito dos serviços incluídos na viagem organizada, cujo incumprimento ou execução deficiente constitui uma falta de conformidade. Por sua vez, como o Governo francês assinala nas suas observações escritas, a falta de conformidade tem um «limite intrínseco», na medida em que só pode ser apreciada à luz do contrato de viagem. Por conseguinte, o organizador não pode ser considerado responsável pela perda do gozo de serviços não incluídos no âmbito de aplicação do contrato de viagem. No presente caso, é evidente que o acesso às praias públicas ou lojas, restaurantes e locais de entretenimento fora do complexo hoteleiro não estava abrangido pelo contrato de viagem. No entanto, trata‑se de uma matéria que cabe ao juiz nacional determinar.

38.

Em segundo lugar, o viajante tem direito, nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302, a uma redução «adequada» do preço. O legislador não especificou uma determinada taxa, um montante fixo ou um método de cálculo especial. O montante da redução «adequada» é determinado pelo juiz tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto. Assim, na sua apreciação, o órgão jurisdicional nacional pode ter em conta a génese da falta de conformidade, a existência de culpa por parte do organizador e a possibilidade deste de recuperar eventuais montantes pagos ao viajante a montante da cadeia comercial ou através do Estado. Nas circunstâncias do presente processo, os elementos pertinentes para esta apreciação incluem o facto de a falta de conformidade se dever exclusivamente às medidas adotadas face à emergência de saúde pública e destinadas a proteger o público, incluindo os viajantes.

39.

Por último, importa sublinhar que a Diretiva 2015/2302 não prevê um prazo limite específico para o pagamento da redução do preço a que o viajante tem direito em caso de falta de conformidade. Quanto à indemnização, o artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva 2015/2302 exige que esta deve ser paga «sem demora injustificada». Apesar da falta de uma referência semelhante no que respeita à redução do preço, é conforme com o objetivo de proteção da diretiva considerar que a mesma deve igualmente ser paga «sem demora injustificada». Tal interpretação permitirá ao órgão jurisdicional nacional, no presente processo, ter em conta as dificuldades de tesouraria dos organizadores de viagens que foram profundamente afetados pela pandemia de COVID‑19.

40.

À luz do exposto, considero que o montante da redução do preço a que um viajante tem direito por força do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2015/2302 deve ser adequado tendo em conta todas as circunstâncias do processo, matéria que cabe ao juiz nacional determinar.

Conclusão

41.

Com base na análise que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha) do seguinte modo:

O artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho,

deve ser interpretado do seguinte modo:

o viajante tem direito a uma redução do preço por falta de conformidade na execução do contrato de viagem organizada em circunstâncias em que a falta de conformidade é devida a restrições impostas para prevenir a propagação de uma doença infeciosa no local de destino da viagem, quando tais restrições são igualmente impostas tanto no local de residência do viajante como em todo o mundo. Todavia, o montante da redução do preço deve ser adequado tendo em conta todas as circunstâncias do processo, matéria que cabe ao juiz nacional determinar.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) V. dados recolhidos pela Organização Mundial do Turismo (https://www.unwto.org/tourism-data/international-tourism-and-covid-19).

( 3 ) V. Fórum Económico Mundial «This is the impact of COVID‑19 on the travel sector» (https://www.weforum.org/agenda/2022/01/global-travel-tourism-pandemic-covid-19/).

( 4 ) Diretiva (UE) 2015/2302 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, que altera o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 e a Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho (JO 2015, L 326, p. 1).

( 5 ) Acórdão de 30 de setembro de 2021, Commerzbank (C‑296/20, EU:C:2021:784, n.o 40 e jurisprudência referida).

( 6 ) Acórdão de 1 de outubro de 2019, Planet49 (C‑673/17, EU:C:2019:801, n.o 48).

( 7 ) V., por analogia, Acórdão de 18 de março de 2021, Kuoni Travel (C‑578/19, EU:C:2021:213, n.o 34).

( 8 ) V., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2021, Kuoni Travel (C‑578/19, EU:C:2021:213, n.o 45).

( 9 ) A Comissão cita neste sentido as Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Kuoni Travel (C‑578/19, EU:C:2020:894, n.o 40).

( 10 ) Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa às viagens organizadas e aos serviços combinados de viagem que altera o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2011/83/UE e revoga a Diretiva 90/314/CEE do Conselho [COM/2013/0512 final — 2013/0246 (COD)].

( 11 ) Berger, K., P. e Behn, D., «Force Majeure and Hardship in the Age of Corona: A Historical and Comparative Study», McGill Journal of Dispute Resolution, Vol. 6 (2019-2020), n.o 4, pp. 79‑130, p. 91.

( 12 ) V. Heinich, J., «L’incidence de l’épidemie de coronavirus sur les contrats d’affaires: de la force majeure à l’imprévision», Recueil Dalloz, 2020, p. 611, e Philippe D., «The Impact of the Coronavirus Crisis on the Analysis and Drafting of Contract Clauses», in Hondius, E., Santos Silva, M., Nicolussi, A. Salvador Coderch, P., Wenderhorst, C. e Zoll, F. (eds.), Coronavirus and the Law in Europe, Intersentia, Cambridge, Antwerp, Chicago, 2021, pp. 527‑552, p. 537. Em geral, v. Aune, A. C., »«Le “fait du prince ”en droit privé», RLDC, Lamy, 2008, p. 2930.

( 13 ) V. Philippe, D., «The Impact of the Coronavirus Crisis on the Analysis and Drafting of Contract Clauses»in Hondius, E., Santos Silva, M., Nicolussi, A. Salvador Coderch, P., Wenderhorst, C. e Zoll, F. (eds.), Coronavirus and the Law in Europe, Intersentia, Cambridge, Antwerp, Chicago, 2021, pp. 527 e 537.

( 14 ) V. Borghetti, J‑S., «Non‑Performance and the Change of Circumstances under French Law», in Hondius, E., Santos Silva, M., Nicolussi, A. Salvador Coderch, P., Wenderhorst, C. e Zoll, F. (eds.), Coronavirus and the Law in Europe, Intersentia, Cambridge, Antwerp, Chicago, 2021, pp. 509‑526, p. 515, em que salienta que, «salvo no caso excecional em que as medidas de confinamento são razoavelmente previsíveis no momento da celebração do contrato, estas medidas devem […] ser consideradas um caso de força maior […]».

( 15 ) V. n.o 11, supra.

( 16 ) Comunicação da Comissão — Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto de COVID‑19 2020/C 91 I/01, C/2020/1863 (JO 2020, C 91I, p. 1; a seguir «Quadro Temporário»). Desde a sua adoção, o Quadro Temporário foi alterado seis vezes.