CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTHONY MICHAEL COLLINS

apresentadas em 13 de outubro de 2022 ( 1 )

Processo C‑349/21

HYA,

IP,

DD,

ZI,

SS

sendo interveniente:

Spetsializirana prokuratura

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade — Diretiva 2002/58/CE — Artigo 5.o, n.o 1, e artigo 15.o, n.o 1 — Confidencialidade das comunicações eletrónicas — Decisão judicial que autoriza escutas telefónicas relativamente a pessoas suspeitas de terem cometido uma infração penal grave — Modelo ou formulário‑tipo — Fundamentação — Vigilância ilegal — Admissibilidade de prova obtida ilegalmente — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 7.o e artigo 47.o»

I. Introdução

1.

Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) pretende saber se uma prática nos termos da qual as autorizações de utilização de medidas de vigilância secreta para intercetar, gravar e armazenar conversas telefónicas entre suspeitos (a seguir «escutas telefónicas») sob a forma de um formulário de conteúdo genérico que não contém fundamentação individualizada é compatível com o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE ( 2 ), lido em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 da mesma. Pretende igualmente saber se a falta de fundamentação individualizada de autorizações pode ser sanada por uma avaliação retrospetiva, de novo, pelo juiz que conhece do mérito e, em caso de resposta negativa, se os elementos de prova que se verificou terem sido obtidos em violação dessas disposições acima referidas podem ser admitidos como provas.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

2.

O considerando 2 da Diretiva 2002/58 enuncia:

«A presente diretiva visa assegurar o respeito dos direitos fundamentais e a observância dos princípios reconhecidos, em especial, pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir «Carta»]. Visa, em especial, assegurar o pleno respeito pelos direitos consignados nos artigos 7.o e 8.o da citada carta.»

3.

O considerando 11 da Diretiva 2002/58 enuncia:

«Tal como a Diretiva 95/46/CE ( 3 ), a presente diretiva não trata questões relativas à proteção dos direitos e liberdades fundamentais relacionadas com atividades não reguladas pelo direito comunitário. Portanto, não altera o equilíbrio existente entre o direito dos indivíduos à privacidade e a possibilidade de os Estados‑Membros tomarem medidas como as referidas no n.o 1 do artigo 15.o da presente diretiva, necessários para a proteção da segurança pública, da defesa, da segurança do Estado (incluindo o bem‑estar económico dos Estados quando as atividades digam respeito a questões de segurança do Estado) e a aplicação da legislação penal. Assim sendo, a presente diretiva não afeta a capacidade de os Estados‑Membros intercetarem legalmente comunicações eletrónicas ou tomarem outras medidas, se necessário, para quaisquer desses objetivos e em conformidade com a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais [a seguir “CEDH”], segundo a interpretação da mesma na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [a seguir “TEDH”]. Essas medidas devem ser adequadas, rigorosamente proporcionais ao objetivo a alcançar e necessárias numa sociedade democrática e devem estar sujeitas, além disso, a salvaguardas adequadas, em conformidade com a [CEDH].»

4.

Sob a epígrafe «Confidencialidade das comunicações», o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 dispõe:

«Os Estados‑Membros garantirão, através da sua legislação nacional, a confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis. Proibirão, nomeadamente, a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto quando legalmente autorizados a fazê‑lo, de acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 15.o O presente número não impede o armazenamento técnico que é necessário para o envio de uma comunicação, sem prejuízo do princípio da confidencialidade.»

5.

O artigo 15.o, n.o 1, sob a epígrafe «Aplicação de determinadas disposições da Diretiva 95/46/CE», enuncia:

«Os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.o e 6.o, nos n.os 1 a 4 do artigo 8.o e no artigo 9.o da presente diretiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas, tal como referido no n.o 1 do artigo 13.o da Diretiva 95/46/CE. Para o efeito, os Estados‑Membros podem designadamente adotar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.o do Tratado da União Europeia.»

B.   Direito búlgaro

6.

O artigo 121.o, n.o 4, da Constituição búlgara dispõe que «os atos judiciais devem ser fundamentados».

7.

O artigo 34.o do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal; a seguir «NPK») ( 4 ) dispõe que «qualquer ato do tribunal deve conter […] uma fundamentação […]».

8.

O artigo 172.o do NPK tem a seguinte redação:

«1.   As autoridades responsáveis pela fase pré‑contenciosa do processo podem utilizar métodos especiais de investigação — equipamento eletrónico e técnico […], destinados a documentar as atividades das pessoas vigiadas […].

2.   São utilizados métodos especiais de investigação quando tal seja necessário para a investigação de infrações penais dolosas graves […], quando o apuramento das circunstâncias em causa seja impossível de qualquer outro modo ou envolva dificuldades excecionais.»

9.

Nos termos do artigo 173.o, n.o 1, do NPK:

«Para utilizar métodos especiais de investigação na fase pré‑contenciosa do processo, o procurador de supervisão apresenta ao tribunal um pedido escrito fundamentado. […]»

10.

O artigo 174.o do NPK dispõe:

«[…]

3.   A autorização para a utilização de métodos especiais de investigação em processos da competência do Spetsializiran nakazatelen sad [Tribunal Criminal Especial] é concedida previamente pelo seu presidente […].

4.   A autoridade referida nos n.os 2 a 3 decide por despacho fundamentado».

11.

O artigo 3.o, n.o 1, da Zakon za spetsialnite razuznavatelni sredstva (Lei sobre os Métodos Especiais de Investigação; a seguir «ZSRS») ( 5 ) dispõe:

«São utilizados métodos especiais de investigação quando tal seja necessário para prevenir e detetar infrações penais dolosas graves […], quando a recolha das informações necessárias seja impossível de qualquer outro modo ou envolva dificuldades excecionais.»

12.

O artigo 12.o, n.o 1, 1), da ZSRS dispõe:

«São utilizados métodos especiais de investigação quanto a pessoas relativamente às quais existam informações e motivos razoáveis para crer que estão a preparar, a cometer ou que cometeram uma das infrações penais dolosas graves referidas no artigo 3.o, n.o 1.»

13.

O artigo 13.o, n.o 1, da ZSRS especifica as autoridades e entidades que podem requerer a utilização de métodos especiais de investigação e a utilização das informações e provas materiais obtidas através desses métodos.

14.

O artigo 14.o, n.o 1, 7), da ZSRS enuncia:

«A utilização de métodos especiais de investigação exige um pedido escrito fundamentado do chefe administrativo competente das autoridades referidas no artigo 13.o, n.o 1, ou do procurador de supervisão ou, consoante o caso, da autoridade referida no artigo 13.o, n.o 3, e, no caso da direção referida no artigo 13.o, n.o 1, 7), do seu diretor, que contenha […] as razões pelas quais a recolha das informações necessárias é impossível de qualquer outro modo, ou uma descrição das dificuldades excecionais que envolvem a sua recolha.»

15.

O artigo 15.o, n.o 1, da ZSRS dispõe:

«Os chefes das autoridades referidas no artigo 13.o, n.o 1, ou o procurador de supervisão e, no caso da direção referida no artigo 13.o, n.o 1, 7), o presidente da Comissão para o combate à corrupção e para o confisco de bens obtidos ilegalmente, apresentam o pedido aos presidentes do Sofiyski gradski sad [Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária], dos tribunais regionais ou militares pertinentes, do Spetsializiran nakazatelen sad [Tribunal Criminal Especial], ou a um vice‑presidente por eles autorizado, que deverá, no prazo de 48 horas, autorizar por escrito a utilização de métodos especiais de investigação ou recusar a sua utilização, fundamentando as suas decisões.»

III. Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16.

A Spetsializirana prokuratura (Procuradoria especializada, Bulgária) instaurou um processo penal contra cinco pessoas pela sua alegada participação num grupo criminoso organizado que auxiliou nacionais de países terceiros a entrarem ilegalmente no território da Bulgária; foi também alegado que as mesmas pessoas pagaram ou receberam subornos nesse âmbito. Estes atos constituem «infrações graves» no direito búlgaro.

17.

Em 10 de abril de 2017, durante a fase pré‑contenciosa do processo, o procurador apresentou um pedido de utilização de métodos especiais de investigação, incluindo escutas telefónicas, relativo a um dos arguidos, IP.

18.

O pedido tem mais de oito páginas. A primeira página e o rodapé das páginas 2 a 8 ostentam um número de referência. O pedido começa por uma descrição das medidas operacionais pretendidas. Identifica a pessoa visada pelas medidas através do nome, do número de identificação, da morada, da função e do local de trabalho. Indica o número de telemóvel e outros detalhes do cartão pré‑pago utilizado pela pessoa a vigiar.

19.

O pedido contém fundamentos para justificar o recurso às medidas de vigilância. O primeiro parágrafo sob essa epígrafe identifica o processo pré‑contencioso e a infração penal objeto da investigação, tanto por referência aos artigos relevantes do NPK como à natureza da infração. O segundo parágrafo remete para depoimentos de testemunhas obtidos pelo Spetsializirana prokuratura (Procuradoria especializada) sobre a atividade criminosa, a sua estrutura e o papel dos participantes na mesma. O terceiro parágrafo contém mais depoimentos de testemunhas que especificam como o grupo criminoso operava e o envolvimento da pessoa visada. Esse parágrafo também inclui a descrição da forma pela qual a pessoa visada comunicava com outras pessoas do grupo criminoso, bem como uma referência ao número de telemóvel utilizado que corresponde ao que consta do primeiro parágrafo no início do pedido. Esta secção termina com a observação de que o depoimento da testemunha justifica a conclusão de que um grupo criminoso está a operar na Bulgária.

20.

O pedido explica as razões pelas quais as medidas solicitadas são consideradas necessárias e expõe as providências já tomadas para identificar as pessoas envolvidos no grupo criminoso. Há uma explicação mais detalhada das razões pelas quais as atividades da pessoa visada violam várias disposições do direito nacional e do direito da União.

21.

O parágrafo seguinte do pedido expõe as razões pelas quais as provas conducentes a uma condenação não podem ser obtidas de outro modo. Afirma, em especial, que as pessoas envolvidas formam um grupo fechado e que é difícil obter provas sobre as suas reuniões. O último parágrafo do pedido fornece pormenores sobre o funcionário autorizado a ser notificado dos resultados da vigilância proposta.

22.

No mesmo dia, o presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (a seguir «Tribunal Criminal Especial») autorizou a interceção de conversas telefónicas, a sua gravação e o armazenamento das gravações para efeitos de processo penal. O despacho regista o nome e a função da pessoa que autorizou as medidas. Indica que a autoridade que apresentou o pedido agiu no âmbito da sua competência e que existem indícios suficientes de que foi cometida uma infração enumerada no artigo 172.o, n.o 2, do NPK ou no artigo 3.o, n.o 1, da ZSRS, abrangida pela competência do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial). Refere que estão preenchidos os requisitos dos artigos 4.o, 12.o e 21.o da ZSRS, ou do artigo 175.o, n.o 2, do NPK. Autoriza os métodos de vigilância enumerados relativamente à pessoa identificada no pedido com um número de referência que corresponde ao que consta da primeira página e do das páginas 2 a 8 do pedido. A autorização é assinada, selada e datada de 10 de abril de 2017. A primeira página do pedido de autorização ostenta a mesma assinatura, o mesmo selo e a mesma data.

23.

Foram apresentados pedidos semelhantes relativamente a outras pessoas sob investigação, relacionados com o seu envolvimento no mesmo grupo criminoso. As fundamentações que o presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) apresentou parecem ser idênticas, com exceção de que, em cada caso, a autorização parece remeter para um pedido diferente.

24.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o formulário de conteúdo genérico das autorizações abrange os vários cenários em que a vigilância secreta pode ser legalmente autorizada. É prática corrente que a autorização não inclua uma fundamentação individualizada da sua emissão. O órgão jurisdicional de reenvio tinha, portanto, dúvidas quanto à correta fundamentação das autorizações.

25.

Em resultado das medidas de vigilância autorizadas, certas conversas telefónicas dos suspeitos foram gravadas e armazenadas. O órgão jurisdicional de reenvio admite que essas conversas são relevantes para provar as acusações contra o arguido, mas questiona se são admissíveis no caso de as autorizações serem consideradas ilegais. Assim, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

É compatível com o artigo 15.o, n.o 1, em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 da Diretiva 2002/58, uma prática dos órgãos jurisdicionais nacionais no âmbito dos processos penais, nos termos da qual o órgão jurisdicional autoriza a interceção, a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de suspeitos através de um formulário genérico pré‑elaborado, que se limita a afirmar, sem individualização, que as disposições legais foram respeitadas?

2)

Em caso de resposta negativa: o direito da União opõe‑se a que a lei nacional seja interpretada no sentido de que as informações obtidas na sequência dessa autorização sejam utilizadas como elemento de prova da acusação?»

26.

Foram apresentadas observações escritas por IP, DD, pela República Checa, pela Irlanda e pela Comissão Europeia. Na audiência realizada em 6 de julho de 2022, a Irlanda e a Comissão apresentaram alegações orais e responderam às perguntas do Tribunal de Justiça.

27.

No que respeita à primeira questão, IP e DD consideram que as autorizações são ilegais porque não contêm fundamentos individualizados. Consequentemente, o seu direito à privacidade não estava adequadamente protegido contra ingerências arbitrárias. Alegam igualmente que não podem impugnar eficazmente as autorizações, o que viola os direitos que lhes são conferidos pelo artigo 47.o da Carta. A República Checa, a Irlanda e a Comissão são de opinião que a leitura lado a lado do pedido e da autorização pode ser suficiente para permitir aos arguidos interpor um recurso jurisdicional efetivo das autorizações, com vista a excluir elementos de prova obtidos com base nas mesmas.

28.

Quanto à segunda questão, IP e DD consideram que os elementos de prova obtidos ilegalmente são inadmissíveis. DD considera também que o juiz que conhece do mérito não pode apreciar retrospetivamente a legalidade das autorizações. A Irlanda considera que a admissibilidade da prova é uma questão processual não regulada pelo direito da União que é da competência exclusiva dos Estados‑Membros. A Comissão concorda com a Irlanda, com a ressalva de que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, os elementos de prova relativos a um domínio técnico que escape ao conhecimento dos juízes e sejam suscetíveis de influenciar de modo preponderante a apreciação dos factos devem ser excluídos em todas as circunstâncias.

IV. Exame das questões prejudiciais

A.   Quanto à primeira questão

29.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma autorização judicial de escutas telefónicas sob a forma de um formulário genérico que indica que foram cumpridas as disposições legais relativas à vigilância, mas não contém fundamentos individualizados, é compatível com o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 da mesma.

1. Aplicação da Diretiva 2002/58

30.

Segundo o artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 2002/58, conforme interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, todos os tratamentos de dados pessoais efetuados por prestadores de serviços de comunicações eletrónicas se integram no âmbito de aplicação desta diretiva, incluindo os tratamentos que decorrem de obrigações que as autoridades públicas impõem a esses fornecedores. É apenas quando os Estados‑Membros aplicam diretamente medidas que derrogam a confidencialidade das comunicações eletrónicas, sem imporem obrigações aos prestadores de serviços de tais comunicações, que a proteção dos dados não está abrangida pela Diretiva 2002/58, mas pelo direito nacional, sem prejuízo da aplicação da Diretiva (UE) 2016/680 ( 6 ) de tal modo que essas medidas nacionais devem respeitar, nomeadamente, o direito constitucional nacional e a CEDH ( 7 ).

31.

A decisão de reenvio não revela se as medidas de vigilância ora em questão foram executadas por fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, e as partes presentes na audiência não o puderam confirmar. A identidade do organismo que executou as medidas de vigilância é uma questão a determinar pelo órgão jurisdicional nacional.

32.

Para efeitos da resposta às questões, partirei do princípio de que foram executadas por prestadores de serviços de comunicações eletrónicas e que as medidas são, portanto, abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2002/58 ( 8 ).

33.

Um segundo problema decorre do facto de o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 permitir aos Estados‑Membros «adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos [no artigo] 5.o […]». As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio não respeitam tanto às medidas legislativas nacionais que transpõem o artigo 15.o, n.o 1, mas antes à forma pela qual o poder judicial as aplica. Estas dúvidas colocam a primeira questão fora do âmbito do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58? Não o creio. A legislação nacional prevê que as autorizações devem revestir a forma de um despacho fundamentado. Resulta dos elementos de que o Tribunal de Justiça dispõe que as autorizações incluem uma menção de que estão preenchidos os requisitos da lei. A questão é a de saber se esta fundamentação é suficiente, dado que os despachos revestem a forma de um formulário que não contém fundamentos individualizados. As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio respeitam, assim, à interpretação do direito da União à luz da regulamentação e da prática jurisprudencial nacionais aplicáveis.

2. Apreciação

34.

Os artigos 5.o, n.o 1, e 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lidos em conjugação, exigem, essencialmente, que os Estados‑Membros proíbam a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações em que os utilizadores em causa não consintam, salvo quando tal seja necessário, adequado e proporcionado para prevenir, investigar, detetar e reprimir infrações penais. Tais medidas devem ser conformes com os princípios gerais do direito da União, incluindo o princípio da proporcionalidade e com os mencionados no artigo 6.o, n.os 1 e 2, TUE.

35.

Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, TUE, a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta. De acordo com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, as disposições da mesma têm por destinatários os Estados‑Membros quando apliquem o direito da União.

36.

As autorizações de escutas telefónicas constituem uma ingerência nos direitos dos arguidos garantidos pelo artigo 7.o da Carta ( 9 ). Tal ingerência só pode ser admitida, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, se for prevista por lei e se, respeitando o conteúdo essencial desses direitos e o princípio da proporcionalidade, for necessária e corresponder efetivamente a objetivos de interesse geral que a União reconhece.

37.

O princípio da efetividade é um princípio geral do direito da União segundo o qual a aplicação do direito da União não deve ser tornada impossível ou excessivamente difícil ( 10 ). Inclui o direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva ( 11 ). Além disso, o primeiro parágrafo do artigo 47.o da Carta prevê que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos nesse artigo. Quando a concessão da autorização não tenha implicado a audição da pessoa visada pelas medidas de vigilância, como no caso em apreço, é o primeiro parágrafo do artigo 47.o da Carta, relativo a uma fiscalização jurisdicional efetiva, que é relevante, e não o segundo parágrafo, relativo ao direito a um processo equitativo.

38.

É jurisprudência constante que a efetividade da fiscalização jurisdicional garantida pelo artigo 47.o da Carta exige que o interessado possa conhecer os motivos da decisão tomada a seu respeito, quer através da leitura da decisão, quer através de uma comunicação destes motivos feita a seu pedido, para lhe permitir defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir, com pleno conhecimento de causa, se deve requerer a fiscalização jurisdicional a um órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dessa decisão ( 12 ).

39.

O alcance do dever de fundamentação pode variar em função da natureza da decisão impugnada. Este dever deve ser analisado tendo em conta o processo globalmente considerado e à luz de todas as circunstâncias relevantes, para verificar se os interessados podem interpor um recurso de forma útil e efetiva dessa decisão ( 13 ).

40.

No caso em apreço, as autorizações consistem num formulário genérico em que apenas são individualizados determinados elementos, como os números de referência, as datas e o objeto, o âmbito e a duração das medidas de vigilância. Por conseguinte, não é possível aos arguidos verificarem, com base nesse documento, as razões pelas quais o juiz responsável pela autorização considerou que estavam preenchidos os requisitos legais para autorizar as escutas telefónicas. Essas pessoas não podem, portanto, defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir, com pleno conhecimento de causa, se vale a pena recorrer a um órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dessas autorizações com o objetivo último de obterem a declaração de inadmissibilidade desses elementos de prova.

41.

O direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva não exige necessariamente, contudo, que o juiz responsável pela autorização exponha, pelas suas próprias palavras nesse documento, as razões pelas quais considerou que estavam preenchidas as condições para conceder a autorização. Basta que as razões para a conceder essa autorização possam ser apuradas de forma fiável. Se o pedido de autorização contiver uma explicação clara das razões pelas quais a autoridade ou o funcionário requerente considerou que as medidas de vigilância deveriam ser autorizadas, pode presumir‑se que as razões apresentadas no pedido são as que convenceram o juiz a conceder a autorização ( 14 ). Tanto mais que, neste tipo de procedimento, o pedido e a eventual documentação de suporte constituem os únicos elementos em que a concessão ou recusa da autorização se pode basear.

42.

Resulta dos n.os 18 a 22 das presentes conclusões que os números de referência e os números de identificação na folha de rosto das autorizações indicam que cada autorização diz respeito a um pedido individual relativo a uma pessoa e a um número de telefone específicos. Os pedidos são estruturados e pormenorizados. Os critérios jurídicos que o juiz deve aplicar para conceder uma autorização são relativamente simples. Desde que um arguido possa obter atempadamente uma cópia do pedido que conduziu à autorização ( 15 ), é suscetível de poder apurar as razões pelas quais a autorização foi concedida e decidir, do modo informado, se a deve impugnar. Cabe então ao órgão jurisdicional nacional determinar, casuisticamente e tomando em conta todas as circunstâncias relevantes, se foi salvaguardado o direito à ação de que os arguidos gozam ao abrigo do primeiro parágrafo do artigo 47.o da Carta.

43.

O artigo 52.o, n.o 3, da Carta procura assegurar a coerência entre os direitos contidos nesse documento e os direitos correspondentes garantidos pela CEDH, sem afetar negativamente a autonomia do direito da União. Foi nesse contexto que se discutiu na audiência se a abordagem descrita no número anterior das presentes conclusões está em contradição com o recente acórdão do TEDH no processo Ekimdzhiev ( 16 ), no qual esse tribunal apreciou as garantias jurídicas contra a arbitrariedade e os abusos no que respeita à vigilância secreta, à conservação dos e ao acesso aos dados relativos às comunicações no contexto da prática do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) durante os anos de 2015 a 2019.

44.

O TEDH concluiu que a grande maioria das autorizações de vigilância emitidas não continham fundamentação adequada. Observou, todavia, que a mera falta de fundamentação não permitia automaticamente concluir que os juízes não tinham examinado adequadamente os pedidos de autorização de vigilância, embora vários fatores o tenham levado a ter sérias dúvidas a esse respeito ( 17 ).

45.

Para o caso em apreço, basta observar que o acórdão do TEDH no processo Ekimdzhiev, embora suscite preocupações importantes quanto a aspetos da autorização judicial da vigilância secreta na Bulgária, deixou em aberto a possibilidade de tal vigilância ter sido autorizada em circunstâncias em que o juiz que a autorizou considerou corretamente que era genuinamente necessária, adequada e proporcionada. Em qualquer caso, um arguido que seja objeto de vigilância com base numa autorização deve poder apurar as razões pelas quais a autorização foi concedida e decidir, com conhecimento de causa, se a deve impugnar. Cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar, em cada caso concreto, se tal impugnação é fundada.

46.

Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão do seguinte modo:

O artigo 47.o da Carta e o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e o considerando 11 desta, não se opõem a uma prática nos termos da qual o órgão jurisdicional autoriza a interceção, a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de suspeitos através de um formulário genérico em que se afirma que as disposições legais foram respeitadas, mas que não contêm fundamentos individualizados a esse respeito, desde que os fundamentos da autorização possam ser apurados de forma fiável e impugnados eficazmente pelo arguido visado pela vigilância através da leitura lado a lado da autorização e do pedido de autorização.

B.   Quanto à segunda questão

47.

Uma vez que a avaliação da legalidade da autorização incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, a segunda questão exige uma resposta.

48.

A segunda questão assenta em dois pressupostos. O primeiro é o de que os elementos de prova incriminatórios foram obtidos através de uma vigilância secreta efetuada com base numa autorização que era ilegal por ser incorretamente fundamentada. O segundo é o de que o arguido visado pela vigilância não pode impugnar eficazmente a base jurídica subjacente à sua autorização.

49.

A decisão de reenvio pergunta se o juiz que conhece do mérito pode sanar uma ilegalidade da autorização por falta de fundamentos adequados. Embora o mecanismo e as consequências de uma tal avaliação retrospetiva não sejam inteiramente claros, e existam dúvidas sobre a questão de saber se o juiz que conhece do mérito tem competência para retificar tal ilegalidade, afigura‑se adequado examinar esta questão a fim de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

50.

A Comissão observou que a segunda questão exige que se examine de que modo qualquer elemento de prova obtido ilegalmente pode ter impacto na equidade global do processo penal. A decisão de reenvio não aborda essa questão. O órgão jurisdicional de reenvio também não fornece informações sobre as regras processuais nacionais aplicáveis, em especial sobre o tratamento reservado a tais provas no processo lhe foi submetido. A questão suscitada pela Comissão parece, portanto, ser completamente hipotética, pelo que o Tribunal de Justiça não a deve abordar no contexto do presente reenvio.

1. Pode uma irregularidade na fundamentação de uma autorização ser sanada por uma avaliação retrospetiva, de novo?

51.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à conservação generalizada dos dados e ao acesso aos mesmos permite responder a esta questão. O direito nacional deve determinar as condições em que os prestadores de serviços de comunicações eletrónicas devem conceder às autoridades nacionais competentes o acesso aos dados. Deve prever regras claras e precisas que regulem o âmbito e a aplicação das medidas adotadas para esse efeito e impor requisitos mínimos, de modo a que as pessoas cujos dados foram afetados disponham de garantias suficientes que permitam proteger eficazmente os seus dados pessoais contra os riscos de abuso. A ingerência deve ser limitada ao estritamente necessário. Para efeitos do combate ao crime, o acesso só pode ser concedido aos dados das pessoas suspeitas de estarem a planear, a cometer ou de terem cometido uma infração grave ou de estarem envolvidas de uma maneira ou de outra numa infração desse tipo. A fim de garantir o pleno respeito destes requisitos, é essencial que esse acesso esteja sujeito a uma fiscalização prévia, efetuada por um órgão jurisdicional ou por uma entidade administrativa independente, de um pedido fundamentado apresentado pelas autoridades competentes no âmbito de processos nacionais de prevenção, deteção ou repressão de infrações penais. Essa avaliação deve ser sempre prospetiva, exceto em casos de urgência devidamente justificada, devendo, nesse caso, ser efetuada em prazos curtos ( 18 ). Se assim não fosse, quando a avaliação retrospetiva da legalidade das medidas de vigilância viesse a ser efetuada, teria havido uma grave ingerência nos direitos dos arguidos e das pessoas colateralmente afetadas. A falta de uma avaliação por uma autoridade independente não pode, portanto, ser sanada efetuando retrospetivamente uma avaliação de novo.

52.

Por conseguinte, só uma avaliação prévia pode assegurar que não sejam impostas obrigações desnecessárias aos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas, que a ingerência nos direitos fundamentais consagrados na Carta não seja arbitrária e que os requisitos do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 sejam cumpridos. Esta posição está em consonância com a abordagem que o TEDH adotou no seu Acórdão Dragojević ( 19 ), em que não aceitou uma prática segundo a qual os tribunais croatas avaliavam retrospetivamente se os despachos de vigilância eram legais no momento da sua emissão.

2. Admissibilidade de elementos de prova obtidos ilegalmente

53.

O artigo 6.o da CEDH garante o direito a um processo equitativo, mas não prevê quaisquer regras quanto à admissibilidade da prova enquanto tal, que é, essencialmente, uma questão de direito nacional. O TEDH também não considera que lhe incumba determinar a admissibilidade de elementos de prova obtidos ilegalmente ( 20 ).

54.

É jurisprudência constante que, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das ações para a salvaguarda dos direitos dos particulares decorrentes diretamente do direito da União, desde que não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações internas semelhantes (princípio da equivalência) e não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício desses direitos (princípio da efetividade) ( 21 ). Tais regras devem igualmente respeitar os direitos fundamentais, o princípio da legalidade e o Estado de direito, que figura entre os valores em que se funda a União Europeia ( 22 ).

55.

Segundo o princípio da equivalência, cabe ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se num processo penal baseado em informações ou em elementos de prova obtidos em violação dos requisitos decorrentes da Diretiva 2002/58 verificar se o direito ou a prática nacional prevê regras menos favoráveis no que diz respeito à admissibilidade e à exploração de tais informações ou elementos de prova do que as que regulam as informações e os elementos de prova obtidos em violação do direito interno.

56.

Quanto ao princípio da efetividade, as regras nacionais relativas à admissibilidade e à exploração de informações e de elementos de prova têm por objetivo, em virtude das opções efetuadas por essas regras, evitar que informações e elementos de prova que tenham sido obtidos de forma ilegal prejudiquem indevidamente o julgamento de uma pessoa suspeita de ter cometido infrações penais. Este objetivo, segundo o direito nacional, pode ser atingido não só por uma proibição de exploração de tais informações e de tais elementos de prova num julgamento, mas igualmente por regras e práticas nacionais que regulem a apreciação e a ponderação de tais informações e elementos de prova, ou através de uma consideração do seu caráter ilegal no âmbito da determinação da pena ( 23 ). O princípio da efetividade levou, no entanto, o Tribunal de Justiça a formular uma regra que impõe a exclusão obrigatória de elementos de prova em determinadas circunstâncias. Quando uma parte não está em condições de comentar eficazmente um elemento de prova que diz respeito a um domínio técnico que escape ao conhecimento dos juízes e seja suscetível de influenciar de modo preponderante a apreciação dos factos, esse elemento de prova deve ser excluído ( 24 ).

57.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio parece questionar esta abordagem. É útil, por conseguinte, examinar a jurisprudência relevante.

58.

No Acórdão Mantovanelli, os elementos de prova impugnados consistiam num relatório de peritagem médica, baseado em análises laboratoriais, em entrevistas do perito com testemunhas e em certos documentos. M. e A. Mantovanelli não tinham sido autorizados a assistir às entrevistas, nem a ver os documentos, mas foi‑lhes permitido impugnar o relatório depois de este ter sido apresentado ao tribunal. O TEDH não estava convencido de que esse procedimento proporcionasse a M. e A. Mantovanelli uma oportunidade real de comentarem eficazmente o relatório de peritagem. A questão que se pediu que o perito abordasse era precisamente a que o tribunal tinha de decidir, a saber, se os factos revelavam negligência por parte do pessoal médico de um hospital através da administração de um determinado produto farmacêutico a um doente. Os elementos de prova diziam, assim, respeito a um domínio técnico que escapava ao conhecimento do juiz. Embora o tribunal não estivesse juridicamente vinculado pelas conclusões do perito, estas eram suscetíveis de influenciar de modo preponderante a sua apreciação dos factos. Tendo em conta o indeferimento pelos órgãos jurisdicionais do pedido de M. e A. Mantovanelli de apresentarem um novo relatório de peritagem, tanto em primeira instância como em sede de recurso, só teriam podido expressar eficazmente os seus pontos de vista antes da apresentação do relatório de peritagem participando nas entrevistas com o pessoal médico e comentando os documentos pertinentes. O TEDH constatou, assim, que, no seu conjunto, o processo judicial não era equitativo ( 25 ).

59.

No Acórdão Steffensen, tinham sido recolhidas amostras de um produto alimentar para análise em laboratório. O resultado dessa análise serviu de base à decisão das autoridades administrativas segundo a qual o produto não era conforme com a regulamentação legal. Ao abrigo da diretiva pertinente, o fabricante devia ter tido a oportunidade de obter uma contraperitagem, a fim de impugnar essa primeira análise. O fabricante não tinha sido notificado de que tinham sido recolhidas amostras e, por conseguinte, não tinha podido recolher amostras do mesmo produto. O Tribunal de Justiça, citando o Acórdão Mantovanelli, observou que a fiscalização, pelo TEDH, da natureza equitativa do processo nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, diz respeito ao processo considerado no seu conjunto, incluindo o modo como a prova foi produzida. Declarou que incumbia ao órgão jurisdicional nacional verificar se os elementos de prova em causa nesse processo diziam respeito a um domínio técnico que escapasse ao conhecimento dos juízes e fosse suscetível de influenciar de modo preponderante a sua apreciação dos factos. Se esses dois elementos estivessem demonstrados, o órgão jurisdicional nacional tinha de verificar se J. Steffensen gozava de uma verdadeira possibilidade de comentar eficazmente este meio de prova. Se assim não fosse, o órgão jurisdicional nacional era obrigado a excluir o meio de prova para não violar o princípio do contraditório e o direito a um processo equitativo ( 26 ).

60.

A possibilidade de a defesa comentar eficazmente a prova faz parte do princípio do contraditório, que constitui um aspeto essencial do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta ( 27 ) e pelo artigo 6.o, n.o 1, da CEDH ( 28 ). Nos Acórdãos Mantovanelli e Steffensen, os tribunais pretendiam evitar situações em que os processos fossem decididos com base em elementos de prova relativos a um domínio técnico que escapasse ao conhecimento do juiz que a defesa não estivesse em condições de impugnar. Tal procedimento conferiria uma vantagem injusta à parte que invocasse essas provas, violando assim o direito da parte contrária a um julgamento equitativo.

61.

Os elementos de prova em questão no processo submetido ao órgão jurisdicional de reenvio são diferentes dos examinados nos Acórdãos Mantovanelli e Steffensen. Consistem em gravações de conversas telefónicas dos arguidos sobre as atividades objeto da investigação. Mesmo que esses elementos de prova sejam suscetíveis de ter uma influência preponderante na avaliação dos factos por parte dos juízes, dificilmente se compreende que possam respeitar a um domínio técnico que escape ao conhecimento dos juízes. Em qualquer caso, os factos nos processos Mantovanelli e Steffensen são apenas exemplos úteis da aplicação de princípios que os órgãos jurisdicionais nacionais podem ter em conta quando decidem no âmbito de processos penais.

62.

Há igualmente que observar que, no interesse da administração da justiça, a abordagem adequada no processo Mantovanelli teria sido dar a M. e A. Mantovanelli a oportunidade de participarem no processo que levou à compilação do relatório do perito ou conceder‑lhes autorização para apresentarem um relatório de peritagem que eles próprios tivessem encomendado. Do mesmo modo, a solução apropriada para as pessoas na situação de J. Steffensen teria sido dar‑lhes a oportunidade de apresentarem uma contraperitagem. A exclusão dos elementos de prova só se tornou relevante porque outros mecanismos processuais, mais adequados, estavam — incorretamente — indisponíveis. Cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar se os arguidos dispõem de tais oportunidades no seu julgamento.

63.

Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão do seguinte modo:

O artigo 47.o da Carta e o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1 e com o considerando 11 desta, devem ser interpretados no sentido de que um órgão jurisdicional nacional:

que conclui que foram ilegalmente obtidos elementos de prova, com base numa autorização que carecia de fundamentação adequada, não pode sanar essa irregularidade permitindo a apresentação retrospetiva da fundamentação dessa autorização, salvo em casos de urgência devidamente justificada;

deve decidir da admissibilidade dos elementos de prova obtidos em violação destas disposições em conformidade com o seu direito nacional de modo a respeitar: i) os princípios gerais do direito da União, em especial os princípios da proporcionalidade, da equivalência e da efetividade; e ii) o direito a um processo equitativo, incluindo o respeito do princípio do contraditório, consagrado no artigo 47.o da Carta e no artigo 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais;

deve excluir os elementos de prova obtidos em violação destas disposições quando uma parte no processo não esteja em condições de comentar eficazmente esses elementos de prova, os elementos de prova respeitem a um domínio técnico que escape ao conhecimento dos juízes e esses elementos sejam suscetíveis de ter uma influência preponderante no apuramento dos factos no âmbito do processo penal em causa.

V. Conclusão

64.

Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) do seguinte modo.

1)

O artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas), lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 desta, devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma prática nos termos da qual o órgão jurisdicional autoriza a interceção, a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de suspeitos através de um formulário genérico em que se afirma que as disposições legais foram respeitadas, mas que não contêm fundamentos individualizados a esse respeito, desde que os fundamentos da autorização possam ser apurados de forma fiável e impugnados eficazmente pelo arguido visado pela vigilância através da leitura lado a lado da autorização e do pedido de autorização.

2)

O artigo 47.o da Carta e o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 desta, devem ser interpretados no sentido de que:

os órgãos jurisdicionais nacionais que concluam que foram ilegalmente obtidos elementos de prova, com base numa autorização que carecia de fundamentação adequada, não podem sanar essa irregularidade permitindo a apresentação retrospetiva da fundamentação dessa autorização, salvo em casos de urgência devidamente justificada;

os órgãos jurisdicionais nacionais devem decidir da admissibilidade dos elementos de prova obtidos em violação destas disposições em conformidade com o seu direito nacional de modo a respeitar: i) os princípios gerais do direito da União, em especial os princípios da proporcionalidade, da equivalência e da efetividade; e ii) o direito a um processo equitativo, incluindo o respeito do princípio do contraditório, consagrado no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais e no artigo 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais;

os órgãos jurisdicionais nacionais devem excluir os elementos de prova obtidos em violação destas disposições quando uma parte no processo não esteja em condições de comentar eficazmente esses elementos de prova, os elementos de prova respeitem a um domínio técnico que escape ao conhecimento dos juízes e esses elementos sejam suscetíveis de ter uma influência preponderante no apuramento dos factos no âmbito do processo penal em causa.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas) (JO 2002, L 201, p. 37).

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31), revogada e substituída pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1), conforme alterado.

( 4 ) DV n.o 86, de 28 de outubro de 2005 (versão mais recente DV n.o 16, de 23 de fevereiro de 2021).

( 5 ) DV n.o 95, de 21 de outubro de 1997 (versão mais recente DV n.o 69, de 4 de agosto de 2020).

( 6 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Quadro 2008/977/JAI do Conselho (JO 2016, L 119, p. 89).

( 7 ) Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 103).

( 8 ) V., por exemplo, Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson e o. (C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:970); de 2 de outubro de 2018, Ministerio Fiscal (C‑207/16, EU:C:2018:788); de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791); e de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152).

( 9 ) Acórdão de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o. (C‑310/16, EU:C:2019:30, n.o 36 e jurisprudência referida).

( 10 ) Acórdão de 14 de dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:441, n.o 19).

( 11 ) Para uma discussão da articulação entre o princípio da efetividade e o artigo 47.o da Carta, v., por exemplo, Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Banger (C‑89/17, EU:C:2018:225, n.os 99 a 101 e jurisprudência referida).

( 12 ) V., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2012, Trade Agency (C‑619/10, EU:C:2012:531, n.o 53 e jurisprudência referida); de 4 de junho de 2013, ZZ (C‑300/11, EU:C:2013:363, n.o 53 e jurisprudência referida); de 23 de outubro de 2014, flyLAL‑Lithuanian Airlines (C‑302/13, EU:C:2014:2319, n.o 51 e jurisprudência referida); e de 24 de novembro de 2020, Minister van Buitenlandse Zaken (C‑225/19 e C‑226/19, EU:C:2020:951, n.o 43 e jurisprudência referida).

( 13 ) V., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2012, Trade Agency (C‑619/10, EU:C:2012:531, n.o 60 e jurisprudência referida), e de 23 de outubro de 2014, flyLAL‑Lithuanian Airlines (C‑302/13, EU:C:2014:2319, n.os 51 a 53 e jurisprudência referida).

( 14 ) V., neste sentido, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Trade Agency (C‑619/10, EU:C:2012:247, n.o 89).

( 15 ) Sob reserva da omissão, por exemplo, de segredos comerciais e de informações pessoais ou sensíveis.

( 16 ) TEDH, 11 de janeiro de 2022, Ekimdzhiev e o. c. Bulgária (CE:ECHR:2022:0111JUD007007812).

( 17 ) TEDH, 11 de janeiro de 2022, Ekimdzhiev e o. c. Bulgária (CE:ECHR:2022:0111JUD007007812, §§ 313 a 321).

( 18 ) Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson e o. (C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:970, n.o 120 e jurisprudência referida); de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 189 e jurisprudência referida), de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 51 e jurisprudência referida) e de 5 de abril de 2022, Commissioner of An Garda Síochána e o. (C‑140/20, EU:C:2022:258, n.os 110 e 112 e jurisprudência referida).

( 19 ) TEDH, 15 de janeiro de 2015, Dragojević c. Croácia (CE:ECHR:2015:0115JUD006895511, §§ 127 e 128 e jurisprudência referida).

( 20 ) TEDH, 12 de maio de 2000, Khan c. Reino Unido (CE:ECHR:2000:0512JUD003539497, § 34 e jurisprudência referida) e TEDH, 10 de março de 2009, Bykov c. Rússia (CE:ECHR:2009:0310JUD000437802, §§ 88 e 89 e jurisprudência referida).

( 21 ) Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan (C‑453/99, EU:C:2001:465, n.o 29 e jurisprudência referida); de 24 de setembro de 2002, Grundig Italiana (C‑255/00, EU:C:2002:525, n.o 33 e jurisprudência referida); e de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 223 e jurisprudência referida).

( 22 ) Acórdãos de 10 de abril de 2003, Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.o 69 e jurisprudência referida), e de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o. (C‑310/16, EU:C:2019:30, n.o 34).

( 23 ) Acórdãos de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 225), e de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 43 e jurisprudência referida).

( 24 ) A regra tem origem na jurisprudência do TEDH relativa ao direito a um processo equitativo ao abrigo do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, em particular a proteção do princípio do contraditório; v.: TEDH, 18 de março de 1997, Mantovanelli c. França (ECLI:CE:ECHR:1997:0318JUD002149793) (a seguir «Acórdão Mantovanelli»), para o qual remete o Acórdão de 10 de abril de 2003, Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.o 78), à semelhança da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à conservação generalizada dos dados de tráfego e de localização [Acórdãos de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o. (C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.os 226 e 227); e de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 44)].

( 25 ) TEDH, 18 de março de 1997, Mantovanelli c. França (CE:ECHR:1997:0318JUD002149793, § 36).

( 26 ) C‑276/01, EU:C:2003:228, n.os 76, 78 e 79). Para evitar dúvidas, esta regra comporta três condições cumulativas. Se as três condições estiverem preenchidas, as provas devem ser excluídas. Daqui não resulta, todavia, que um órgão jurisdicional deva admitir provas quando não estejam preenchidas todas as condições. Por último, esta regra aplica‑se independentemente da questão de saber se as provas em causa foram obtidas de forma legal ou ilegal.

( 27 ) Acórdãos de 14 de fevereiro de 2008, Varec (C‑450/06, EU:C:2008:91, n.o 47); de 4 de junho de 2013, ZZ (C‑300/11, EU:C:2013:363, n.o 55); e de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas) (C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 44 e jurisprudência referida).

( 28 ) Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17).