ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

1 de agosto de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política comum em matéria de asilo — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento (UE) n.o 604/2013 (Dublim III) — Pedido de proteção internacional apresentado por um menor no Estado‑Membro do seu nascimento — Pais desse menor que obtiveram anteriormente o estatuto de refugiados num outro Estado‑Membro — Artigo 3.o, n.o 2 — Artigo 9.o — Artigo 20.o, n.o 3 — Diretiva 2013/32/UE — Artigo 33.o, n.o 2, alínea a) — Admissibilidade do pedido de proteção internacional e responsabilidade pela sua análise»

No processo C‑720/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgericht Cottbus (Tribunal Administrativo de Cottbus, Alemanha), por Decisão de 14 de dezembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de dezembro de 2020, no processo

RO, legalmente representada,

contra

Bundesrepublik Deutschland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, K. Jürimäe, S. Rodin, I. Ziemele e J. Passer (relator), presidentes de secção, M. Ilešič, M. Safjan, D. Gratsias, M. L. Arastey Sahún, M. Gavalec, Z. Csehi e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 14 de dezembro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação de RO, legalmente representada, por V. Gerloff, Rechtsanwalt,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

em representação do Governo belga, por M. Jacobs e M. Van Regemorter, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman, A. Hanje, J. Langer e M.A.M. de Ree, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga, L. Grønfeldt e C. Ladenburger, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de março de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»), em particular do seu artigo 20.o, n.o 3, bem como da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60, a seguir «Diretiva procedimentos»), em particular do seu artigo 33.o, n.o 2, alínea a).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe RO, um menor, legalmente representado, à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha), a respeito do indeferimento, por ser inadmissível, do pedido de proteção internacional desse menor, que nasceu nesse Estado‑Membro e cujos pais, bem como os cinco irmãos e irmãs, obtiveram, antes do seu nascimento, proteção internacional noutro Estado‑Membro.

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento (CE) n.o 343/2003

3

O artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1), dispunha:

«O Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo por força do presente regulamento é obrigado a […] [r]etomar a cargo, nas condições previstas no artigo 20.o, o requerente de asilo cujo pedido esteja a ser analisado e que se encontre, sem para tal ter recebido autorização, no território de outro Estado‑Membro.»

4

O Regulamento n.o 343/2003 foi revogado e substituído pelo Regulamento Dublim III.

Regulamento Dublim III

5

Os considerandos 4, 5 e 14 do Regulamento Dublim III enunciam:

«(4)

As conclusões do Conselho de Tampere precisaram […] que o [sistema europeu comum de asilo (SECA)] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)

Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

[…]

(14)

De acordo com a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950], reconhecida pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o respeito pela vida familiar deve constituir uma preocupação fundamental dos Estados‑Membros ao aplicarem o presente regulamento.»

6

O Regulamento Dublim III estabelece, nos termos do seu artigo 1.o, «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida».

7

O artigo 2.o deste regulamento, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

c)

“Requerente”: um nacional de um país terceiro ou um apátrida que apresentou um pedido de proteção internacional pendente de decisão definitiva;

[…]

f)

“Beneficiário de proteção internacional”: um nacional de um país terceiro ou um apátrida ao qual foi concedida proteção internacional na aceção do artigo 2.o, alínea a), da Diretiva [2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9)];

g)

“Membros da família”: desde que a família tenha sido constituída previamente no país de origem, os seguintes membros do grupo familiar do requerente, presentes no território dos Estados‑Membros:

[…]

se o requerente for menor e solteiro, o pai, a mãe ou outro adulto responsável pelo requerente, por força da lei ou da prática do Estado‑Membro onde se encontra o adulto;

[…]»

8

O capítulo II do referido regulamento, intitulado «Princípios gerais e garantias», contém nomeadamente o artigo 3.o, intitulado, por sua vez, «Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional», cujos n.os 1 e 2, primeiro parágrafo, dispõem:

«1.   Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro […]. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.

2.   Caso o Estado‑Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado‑Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

[…]»

9

O capítulo III do Regulamento Dublim III, intitulado «Critérios de determinação do Estado‑Membro responsável», contém, nomeadamente, os artigos 7.o, 9.o e 10.o deste regulamento.

10

O artigo 7.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Hierarquia dos critérios», prevê no seu n.o 1:

«Os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável aplicam‑se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.»

11

O artigo 9.o do Regulamento Dublim III, sob a epígrafe «Membros da família beneficiários de proteção internacional», dispõe:

«Se um membro da família do requerente, independentemente de a família ter sido constituída previamente no país de origem, tiver sido autorizado a residir como beneficiário de proteção internacional num Estado‑Membro, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, desde que os interessados manifestem o seu desejo por escrito.»

12

O artigo 10.o deste regulamento, sob a epígrafe «Membros da família requerentes de proteção internacional», enuncia:

«Se um membro da família do requerente tiver apresentado num Estado‑Membro um pedido de proteção internacional que não tenha ainda sido objeto de uma primeira decisão quanto ao mérito, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, desde que os interessados manifestem o seu desejo por escrito.»

13

O capítulo IV do referido regulamento, intitulado «Dependentes e cláusulas discricionárias», contém, nomeadamente, o artigo 17.o, intitulado, por sua vez, «Cláusulas discricionárias», cujo n.o 2 prevê:

«O Estado‑Membro em que é apresentado um pedido de proteção internacional e que está encarregado do processo de determinação do Estado‑Membro responsável, ou o Estado‑Membro responsável, podem solicitar a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, que outro Estado‑Membro tome a seu cargo um requerente a fim de reunir outros parentes, por razões humanitárias, baseadas nomeadamente em motivos familiares ou culturais, mesmo nos casos em que esse outro Estado‑Membro não seja responsável por força dos critérios definidos nos artigos 8.o a 11.o e 16.o As pessoas interessadas devem dar o seu consentimento por escrito.

[…]»

14

O capítulo VI do mesmo regulamento, intitulado «Procedimentos de tomada e retomada a cargo», contém, na sua secção I, sob a epígrafe «Início do procedimento», o artigo 20.o, cuja epígrafe é idêntica à desta secção e que dispõe:

«1.   O processo de determinação do Estado‑Membro responsável tem início a partir do momento em que um pedido de proteção internacional é apresentado pela primeira vez a um Estado‑Membro.

2.   Considera‑se que um pedido de proteção internacional foi apresentado a partir do momento em que as autoridades competentes do Estado‑Membro em causa recebam um formulário apresentado pelo requerente ou um auto lavrado pela autoridade. No caso de um pedido não escrito, o período que medeia entre a declaração de intenção e a elaboração de um auto deve ser tão breve quanto possível.

3.   Para efeitos da aplicação do presente regulamento, a situação do menor que acompanhe o requerente e corresponda à definição de membro da família é indissociável da situação de seu membro da família e é da competência do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional desse membro da família, mesmo que o menor não seja requerente, desde que seja no interesse superior do menor. O mesmo se aplica aos filhos nascidos após a chegada dos requerentes ao território dos Estados‑Membros, não havendo necessidade de iniciar para estes um novo procedimento de tomada a cargo.

[…]»

15

A secção II deste mesmo capítulo VI, intitulada «Procedimentos aplicáveis aos pedidos de tomada a cargo», contém, nomeadamente, o artigo 21.o, intitulado, por sua vez, «Apresentação de um pedido de tomada a cargo», que prevê, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

«O Estado‑Membro ao qual tenha sido apresentado um pedido de proteção internacional e que considere que a responsabilidade pela análise desse pedido cabe a outro Estado‑Membro pode requerer a este último, o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de três meses a contar da apresentação do pedido na aceção do artigo 20.o, n.o 2, que proceda à tomada a cargo do requerente.»

Diretiva Procedimentos

16

Nos termos do considerando 43 da Diretiva Procedimentos:

«Os Estados‑Membros deverão apreciar todos os pedidos quanto ao fundo, ou seja, avaliar se o requerente em causa preenche as condições necessárias para beneficiar de proteção internacional nos termos da [Diretiva 2011/95], salvo disposição em contrário da presente diretiva, em especial quando se possa razoavelmente presumir que outro país procederia à apreciação ou proporcionaria proteção suficiente. Concretamente, os Estados‑Membros não deverão ser obrigados a apreciar um pedido de proteção internacional quanto ao fundo caso um primeiro país de asilo tenha concedido ao requerente o estatuto de refugiado ou outra forma de proteção suficiente e o requerente vá ser readmitido nesse país.»

17

O artigo 33.o desta diretiva, sob a epígrafe «Inadmissibilidade dos pedidos», enuncia:

«1.   Além dos casos em que um pedido não é apreciado em conformidade com o Regulamento [Dublim III], os Estados‑Membros não são obrigados a analisar se o requerente preenche as condições para beneficiar de proteção internacional, em conformidade com a [Diretiva 2011/95], quando o pedido for considerado não admissível nos termos do presente artigo.

2.   Os Estados‑Membros podem considerar não admissível um pedido de proteção internacional apenas quando:

a)

Outro Estado‑Membro tiver concedido proteção internacional;

[…]»

Direito alemão

18

O § 29, n.o 1, ponto 1, alínea a), da Asylgesetz (Lei Relativa ao Direito de Asilo), de 26 de junho de 1992 (BGBl. 1992 I, p. 1126), na sua versão publicada em 2 de setembro de 2008 (BGBl. 2008 I, p. 1798), intitulado «Pedidos inadmissíveis», dispõe:

«(1)   Um pedido de asilo é inadmissível quando:

1)

Um outro Estado

a)

em conformidade com [o Regulamento Dublim III], […]

é responsável pelo processo de asilo,

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

Em 19 de março de 2012, os pais e os cinco irmãos e irmãs da recorrente no processo principal, nacionais da Federação da Rússia, obtiveram o estatuto de refugiado na Polónia.

20

No mês de dezembro de 2012, deixaram o território desse Estado‑Membro e foram para a Alemanha, onde apresentaram pedidos de proteção internacional.

21

Em 25 de abril de 2013, a República Federal da Alemanha pediu à República da Polónia que retomasse a cargo essas pessoas com fundamento no artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 343/2003.

22

Em 3 de maio de 2013, a República da Polónia recusou dar seguimento a este pedido, com o fundamento de que as referidas pessoas já beneficiavam de proteção internacional no seu território.

23

Por Decisão de 2 de outubro de 2013, a República Federal da Alemanha indeferiu os pedidos de proteção internacional das mesmas pessoas por serem inadmissíveis, em razão do estatuto de refugiado que estas já tinham obtido na Polónia, e ordenou‑lhes que abandonassem o território alemão, sob pena de afastamento.

24

Em 7 de novembro de 2014, esta decisão foi anulada unicamente no que respeita à ordem para abandonar o território alemão sob pena de afastamento.

25

Em 7 de março de 2018, a recorrente no processo principal, que nasceu na Alemanha em 21 de dezembro de 2015 e que é, à semelhança dos seus pais e dos seus cinco irmãos e irmãs, nacional da Federação da Rússia, apresentou um pedido de proteção internacional às autoridades alemãs.

26

Através de duas Decisões do Bundesamt für Migration und Flüchtlinge (Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados, Alemanha) adotadas, respetivamente, em 14 de fevereiro de 2019 e 19 de março de 2019, os pais e os irmãos e irmãs da recorrente no processo principal receberam uma nova ordem para abandonarem o território sob pena de afastamento, em razão da proteção internacional de que já beneficiavam na Polónia. O recurso interposto dessas decisões ainda está pendente.

27

Por Decisão de 20 de março de 2019, o Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados indeferiu o pedido de proteção internacional apresentado pela recorrente no processo principal por ser inadmissível, com fundamento no § 29, n.o 1, ponto 1, alínea a), da Lei Relativa ao Direito de Asilo, lido em conjugação com o artigo 20.o, n.o 3, segundo período, do Regulamento Dublim III.

28

A recorrente no processo principal interpôs recurso dessa decisão de indeferimento para o órgão jurisdicional de reenvio. Segundo esse órgão jurisdicional, nenhum processo de determinação do Estado‑Membro responsável, em conformidade com o Regulamento Dublim III, foi iniciado no que respeita ao pedido de proteção internacional apresentado pela recorrente no processo principal. Nestas circunstâncias, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se a República Federal da Alemanha é, por força do Regulamento Dublim III, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional da recorrente no processo principal e se, em caso afirmativo, este Estado‑Membro pode, todavia, indeferir esse pedido por ser inadmissível.

29

Foi neste contexto que o Verwaltungsgericht Cottbus (Tribunal Administrativo de Cottbus, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Atendendo ao objetivo do direito da União de evitar migrações secundárias e ao princípio geral da unidade da família, consagrado no Regulamento [Dublim III], deve aplicar‑se por analogia o artigo 20.o, n.o 3, deste regulamento quando um menor e os seus pais apresentam pedidos de proteção internacional no mesmo Estado‑Membro mas os pais já beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro, enquanto o filho nasceu no Estado‑Membro em que apresentou o pedido de proteção internacional?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve omitir‑se o exame do pedido de proteção internacional do filho menor, em conformidade com o Regulamento [Dublim III], e adotar uma decisão de transferência nos termos do artigo 26.o deste regulamento, tendo em conta a possibilidade de o Estado‑Membro no qual os seus pais beneficiam de proteção internacional ser responsável pelo exame do pedido de proteção internacional apresentado pelo menor?

3)

Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, o artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento [Dublim III] é igualmente aplicável por analogia na medida em que, no seu segundo período, prevê que não é necessário iniciar um novo procedimento de tomada a cargo para filhos nascidos posteriormente, embora exista nesse caso o risco de o Estado‑Membro de acolhimento não ter conhecimento de uma eventual situação de acolhimento do menor ou recusar, segundo a sua prática administrativa, a aplicação por analogia do artigo 20.o, n.o 3, [deste regulamento], correndo assim o filho menor o risco de se tornar um “refugiado em órbita”?

4)

Em caso de resposta negativa às questões 2 e 3, pode, em aplicação por analogia do artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva [Procedimentos], um pedido de proteção internacional apresentado por um menor num Estado‑Membro ser objeto de uma decisão de inadmissibilidade, mesmo que não seja o próprio menor mas os seus pais que beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

30

Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, tendo em conta o objetivo do Regulamento Dublim III de prevenir os movimentos secundários e de preservar o direito fundamental ao respeito pela vida familiar dos requerentes de proteção internacional, em particular, a unidade da família, o artigo 20.o, n.o 3, deste regulamento deve ser interpretado no sentido de que é aplicável por analogia à situação em que um menor e os seus pais apresentam pedidos de proteção internacional no Estado‑Membro em que esse menor nasceu, quando os seus pais já beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro.

31

A este respeito, há que recordar que o artigo 20.o do Regulamento Dublim III, que tem por epígrafe «Início do procedimento» e que faz parte do capítulo VI deste regulamento, intitulado, por sua vez, «Procedimentos de tomada e retomada a cargo», dispõe, no seu n.o 3, primeiro período, que, para efeitos do referido regulamento, a situação do menor que acompanhe o requerente e corresponda à definição de membro da família é indissociável da do membro da sua família e é da responsabilidade do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional do referido membro da família, mesmo que o menor não seja, a título individual, um requerente, desde que seja no interesse superior do menor. Este artigo 20.o, n.o 3, segundo período, precisa que o mesmo tratamento é aplicado aos filhos nascidos após a chegada dos requerentes ao território dos Estados‑Membros, sem que seja necessário iniciar em relação a estes um novo procedimento de tomada a cargo.

32

Resulta dos termos claros do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III que este pressupõe que os membros da família do menor tenham ainda a qualidade de «requerente», na aceção do artigo 2.o, alínea c), deste regulamento, e que, portanto, não rege a situação de um menor que tenha nascido depois de esses membros da sua família terem obtido a proteção internacional num Estado‑Membro diferente daquele onde o menor nasceu e reside com a sua família.

33

Por outro lado, contrariamente ao que o Governo alemão alega, não é relevante a este respeito a questão de saber se os referidos membros da família apresentaram um novo pedido de proteção internacional neste último Estado‑Membro e se este considerou esses pedidos inadmissíveis antes ou depois do nascimento do menor em questão. Com efeito, importa recordar que um Estado‑Membro não pode validamente pretender que outro Estado‑Membro, no quadro dos procedimentos definidos por este regulamento, tome ou retome a cargo um nacional de um país terceiro que tenha apresentado um pedido de proteção internacional no primeiro destes Estados‑Membros depois de lhe ter sido concedida a proteção subsidiária pelo segundo Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 2019, Ibrahim e o., C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, EU:C:2019:219, n.o 78).

34

No que respeita à questão de saber se o artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III pode, todavia, ser aplicável por analogia a uma situação como a que está em causa no processo principal, importa sublinhar que, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 28 das suas conclusões, a situação de um menor cujos membros da família são requerentes de proteção internacional e a de um menor cujos membros da família já são beneficiários dessa proteção não são comparáveis no contexto do regime instituído pelo Regulamento Dublim III, uma vez que os conceitos de «requerente» e de «beneficiário de proteção internacional», definidos, respetivamente, na alínea c) e na alínea f) do artigo 2.o deste regulamento, abrangem, com efeito, estatutos jurídicos distintos regulados por disposições diferentes deste regulamento.

35

A este respeito, como o advogado‑geral salientou no mesmo número das suas conclusões, o legislador da União operou assim, nomeadamente, uma distinção entre a situação do menor cujos membros da família sejam já beneficiários de proteção internacional num Estado‑Membro, prevista no artigo 9.o do Regulamento Dublim III, e a do menor cujos membros da família sejam requerentes de proteção internacional, prevista, por sua vez, no artigo 10.o e no artigo 20.o, n.o 3, deste regulamento.

36

Na primeira destas situações, que corresponde à que está em causa no processo principal, uma aplicação por analogia do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III ao menor em questão privaria tanto o menor em questão como o Estado‑Membro que tenha concedido proteção internacional aos membros da família desse menor da aplicação dos mecanismos previstos por este regulamento.

37

Em especial, a aplicação por analogia do segundo período do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III a esse menor teria como consequência que este poderia ser alvo de uma decisão de transferência sem que um procedimento de tomada a cargo fosse iniciado em relação a esse menor. Ora, a dispensa de abertura de um procedimento de tomada a cargo em relação ao menor nascido depois da chegada do requerente ao território dos Estados‑Membros, prevista no artigo 20.o, n.o 3, segundo período, do Regulamento Dublim III, pressupõe que o menor será incluído no procedimento iniciado em relação aos membros da sua família e, portanto, que esse procedimento esteja a decorrer, o que não é precisamente o caso quando esses membros da família já obtiveram proteção internacional noutro Estado‑Membro.

38

Além disso, o facto de permitir, através de uma aplicação por analogia do artigo 20.o, n.o 3, segundo período, do Regulamento Dublim III, ao Estado‑Membro de nascimento do menor adotar uma decisão de transferência à margem de qualquer procedimento de tomada a cargo levaria, nomeadamente, a que fosse contornado o prazo previsto a este respeito no artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, deste regulamento e a que o Estado‑Membro que concedeu proteção internacional aos membros da família antes do nascimento desse menor se visse confrontado com essa decisão de transferência, quando dela não foi sequer informado e nem teve possibilidade de reconhecer a sua responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional do referido menor.

39

Por outro lado, há que constatar que o legislador da União previu regras específicas no caso de o procedimento iniciado em relação aos membros da família do menor estar concluído e de esses membros da família já não serem requerentes, na aceção do artigo 2.o, alínea c), do Regulamento Dublim III, mas autorizados a residirem enquanto beneficiários de proteção internacional num Estado‑Membro. Esta situação é regida, nomeadamente, pelo artigo 9.o do mesmo regulamento.

40

Com efeito, o artigo 9.o do Regulamento Dublim III prevê que, se um membro da família do requerente, independentemente de essa família ter ou não sido constituída previamente no país de origem, tiver sido autorizado a residir como beneficiário de proteção internacional num Estado‑Membro, esse Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, desde que os interessados manifestem o seu desejo nesse sentido por escrito.

41

É certo que, como algumas partes interessadas observaram na audiência, a circunstância de a aplicação do critério de determinação do Estado‑Membro responsável contido no artigo 9.o do Regulamento Dublim III estar sujeita à condição expressa de os interessados terem manifestado por escrito o seu desejo nesse sentido exclui a aplicação deste critério na falta de manifestação de tal desejo. Esta situação é designadamente suscetível de se verificar quando o pedido de proteção internacional do menor em questão é apresentado na sequência de um movimento secundário irregular da sua família de um primeiro Estado‑Membro para o Estado‑Membro onde esse pedido é apresentado. Todavia, esta circunstância em nada altera o facto de o legislador da União ter previsto, com este artigo 9.o, uma disposição que abrange precisamente uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que os membros da família de um requerente deixaram de ser eles próprios requerentes, mas beneficiam já de proteção internacional concedida por um Estado‑Membro.

42

Além disso, atendendo à redação clara do artigo 9.o deste regulamento, não se pode derrogar a exigência de manifestação do desejo por escrito das pessoas em questão, imposta por este artigo. Assim, a prevenção dos movimentos secundários, que constitui, como o Tribunal de Justiça salientou (Acórdão de 2 de abril de 2019, H. e R., C‑582/17 e C‑583/17, EU:C:2019:280, n.o 77), um dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento Dublim III, não pode justificar uma interpretação diferente deste artigo.

43

O mesmo se diga quanto ao procedimento previsto no artigo 17.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, segundo o qual o Estado‑Membro no qual um pedido de proteção internacional é apresentado pode, a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, solicitar a outro Estado‑Membro que tome a seu cargo um requerente de proteção internacional a fim de reagrupar quaisquer parentes por razões humanitárias, desde que as pessoas interessadas manifestem o seu consentimento por escrito.

44

Nestas condições, numa situação em que os interessados não emitiram, por escrito, o desejo de que o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional de um menor seja aquele em que os membros da sua família tenham sido autorizados a residir enquanto beneficiários de proteção internacional, a determinação do Estado‑Membro responsável será efetuada ao abrigo do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III. Assim, em conformidade com esta disposição, aplicável a título subsidiário, caso o Estado‑Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enumerados nesse regulamento, o primeiro Estado‑Membro em que o pedido tenha sido apresentado é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

45

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável por analogia à situação na qual um menor e os seus pais apresentam pedidos de proteção internacional no Estado‑Membro em que esse menor nasceu, quando os seus pais já beneficiem de proteção internacional noutro Estado‑Membro.

Quanto à segunda e terceira questões

46

Tendo em conta a resposta à primeira questão, não há que examinar a segunda e terceira questões.

Quanto à quarta questão

47

Com a quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva Procedimentos deve ser interpretado no sentido de que permite, através de uma aplicação por analogia, indeferir por ser inadmissível o pedido de proteção internacional de um menor quando não é o menor, ele próprio, mas os seus pais, que beneficiam de proteção internacional num outro Estado‑Membro.

48

Importa recordar que, nos termos do artigo 33.o, n.o 1, da Diretiva Procedimentos, os Estados‑Membros não são obrigados a analisar se o requerente preenche as condições exigidas para beneficiar de proteção internacional em aplicação da Diretiva 2011/95, quando o pedido é considerado inadmissível por força desse artigo. A este respeito, o n.o 2 deste artigo enumera de modo exaustivo as situações em que os Estados‑Membros podem considerar inadmissível um pedido de proteção internacional [Acórdãos de 19 de março de 2019, Ibrahim e o., C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, EU:C:2019:219, n.o 76, bem como de 22 de fevereiro de 2022, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Unidade familiar — Proteção já concedida), C‑483/20, EU:C:2022:103, n.o 23].

49

Esse caráter exaustivo assenta tanto na redação desta última disposição, nomeadamente no termo «apenas», que antecede a enumeração dos fundamentos de inadmissibilidade, como na sua finalidade, que consiste, como o Tribunal de Justiça já salientou, em flexibilizar a obrigação do Estado‑Membro responsável por analisar um pedido de proteção internacional definindo os casos em que tal pedido é considerado inadmissível [Acórdão de 19 de março de 2020, Bevándorlási és Menekültügyi Hivatal (Tompa), C‑564/18, EU:C:2020:218, n.o 30 bem como jurisprudência referida]. Além disso, tendo em conta essa finalidade, o artigo 33.o, n.o 2, da Diretiva Procedimentos reveste, no seu conjunto, caráter derrogatório relativamente à obrigação dos Estados‑Membros de apreciarem quanto ao mérito todos os pedidos de proteção internacional.

50

Nos termos do artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva Procedimentos, os Estados‑Membros podem considerar não admissível um pedido de proteção internacional quando um outro Estado‑Membro tiver concedido proteção internacional. Esta possibilidade explica‑se, nomeadamente, pela importância do princípio da confiança mútua no direito da União, em especial no espaço de liberdade, de segurança e de justiça que a União constitui, e de que esta disposição é expressão no quadro do procedimento de asilo comum estabelecido por esta diretiva [v., neste sentido, Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Commissaire général aux réfugiés et aux apatrides (Unidade familiar — Proteção já concedida), C‑483/20, EU:C:2022:103, n.os 28 e 29].

51

No entanto, decorre tanto do caráter exaustivo da enumeração constante do artigo 33.o, n.o 2, da Diretiva Procedimentos como do caráter derrogatório dos fundamentos de inadmissibilidade que esta enumeração comporta que o artigo 33.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva deve ser objeto de interpretação estrita e não pode, por conseguinte, ser aplicado a uma situação que não corresponda à sua redação.

52

O âmbito de aplicação ratione personae desta disposição não pode, por conseguinte, ser alargado a um requerente de proteção internacional que não beneficie, ele próprio, dessa proteção prevista na referida disposição. Esta interpretação é confirmada pelo considerando 43 da Diretiva Procedimentos que precisa, como o advogado‑geral salientou no n.o 40 das suas conclusões, o alcance deste fundamento de inadmissibilidade ao enunciar que os Estados‑Membros não deveriam ser obrigados a examinar um pedido de proteção internacional quanto ao fundo quando um primeiro país de asilo tiver concedido «ao requerente» o estatuto de refugiado ou lhe tiver concedido, com outro fundamento, proteção suficiente.

53

Por conseguinte, numa situação, como a do litígio no processo principal, em que o requerente é um menor cujos membros da família beneficiam de proteção internacional num outro Estado‑Membro, mas que não beneficia ele próprio dessa proteção, esse requerente não é abrangido pelo âmbito de aplicação da exceção prevista no artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva Procedimentos. O seu pedido não pode, por conseguinte, ser declarado inadmissível com esse fundamento.

54

Além disso, esta disposição não pode ser aplicada por analogia para fundamentar uma decisão de inadmissibilidade em tal situação. Com efeito, tal aplicação desrespeitaria não só o caráter exaustivo da enumeração constante do artigo 33.o, n.o 2, da Diretiva Procedimentos, mas igualmente o facto de a situação desse menor não ser comparável à de um requerente de proteção internacional que já beneficie de tal proteção concedida por um outro Estado‑Membro, o que exclui qualquer analogia.

55

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva Procedimentos deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável por analogia ao pedido de proteção internacional apresentado por um menor num Estado‑Membro quando não é o próprio menor mas os seus pais que beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro.

Quanto às despesas

56

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida,

deve ser interpretado no sentido de que:

não é aplicável por analogia à situação na qual um menor e os seus pais apresentam pedidos de proteção internacional no Estado‑Membro em que esse menor nasceu, quando os seus pais já beneficiem de proteção internacional noutro Estado‑Membro.

 

2)

O artigo 33.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional,

deve ser interpretado no sentido de que:

não é aplicável por analogia ao pedido de proteção internacional apresentado por um menor num Estado‑Membro quando não é o próprio menor mas os seus pais que beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.