ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

7 de setembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 49.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Restrição — Justificação — Organização do sistema educativo — Estabelecimentos de ensino superior — Obrigação de ministrar os programas de estudos na língua oficial do Estado‑Membro em causa — Artigo 4.o, n.o 2, TUE — Identidade nacional de um Estado‑Membro — Defesa e promoção da língua oficial de um Estado‑Membro — Princípio da proporcionalidade»

No processo C‑391/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional, Letónia), por Decisão de 14 de julho de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de julho de 2020, no processo instaurado por

Boriss Cilevičs,

Valērijs Agešins,

Vjačeslavs Dombrovskis,

Vladimirs Nikonovs,

Artūrs Rubiks,

Ivans Ribakovs,

Nikolajs Kabanovs,

Igors Pimenovs,

Vitālijs Orlovs,

Edgars Kucins,

Ivans Klementjevs,

Inga Goldberga,

Evija Papule,

Jānis Krišāns,

Jānis Urbanovičs,

Ļubova Švecova,

Sergejs Dolgopolovs,

Andrejs Klementjevs,

Regīna Ločmele‑Luņova,

Ivars Zariņš

sendo interveniente:

Latvijas Republikas Saeima,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos, E. Regan, S. Rodin e J. Passer, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, F. Biltgen, P. G. Xuereb, N. Piçarra, L. S. Rossi e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: N. Emiliou,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de B. Cilevičs, V. Agešins, V. Dombrovskis, V. Nikonovs, A. Rubiks, I. Ribakovs, N. Kabanovs, I. Pimenovs, V. Orlovs, E. Kucins, I. Klementjevs, I. Goldberga, E. Papule, J. Krišāns, J. Urbanovičs, L. Švecova, S. Dolgopolovs, A. Klementjevs, R. Ločmele‑Luņova e I. Zariņš, por B. Cilevičs,

em representação do Governo letão, por K. Pommere e V. Soņeca, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por E. de Moustier e N. Vincent, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e M. H. S. Gijzen, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, E. Samoilova e J. Schmoll, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por L. Armati, I. Rubene e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de março de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.o e 56.o TFUE, bem como do artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo de fiscalização da constitucionalidade da Augstskolu likums (Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior), instaurado com o recurso de Boriss Cilevičs, Valērijs Agešins, Vjačeslavs Dombrovskis, Vladimirs Nikonovs, Artūrs Rubiks, Ivans Ribakovs, Nikolajs Kabanovs, Igors Pimenovs, Vitālijs Orlovs, Edgars Kucins, Ivans Klementjevs, Inga Goldberga, Evija Papule, Jānis Krišāns, Jānis Urbanovičs, Ļubova Švecova, Sergejs Dolgopolovs, Andrejs Klementjevs, Regīna Ločmele‑Luņova e Ivars Zariņš, membros do Latvijas Republikas Saeima (Parlamento da República da Letónia; a seguir «Parlamento letão»).

Quadro jurídico

Constituição letã

3

Nos termos do artigo 1.o da Latvijas Republikas Satversme (Constituição da República da Letónia; a seguir «Constituição letã»), a República da Letónia é uma república democrática independente.

4

O artigo 4.o da Constituição letã tem a seguinte redação:

«O letão é a língua oficial da República da Letónia. […]»

5

O artigo 105.o desta Constituição dispõe:

«É reconhecido a todas as pessoas o direito de propriedade. O direito de propriedade não pode ser exercido de modo contrário ao interesse público. O direito de propriedade só pode ser limitado por lei. Uma expropriação forçada por razões de utilidade pública só é permitida em casos excecionais, com base numa lei específica e mediante o pagamento de uma indemnização justa.»

6

O artigo 112.o da referida Constituição prevê:

«Todas as pessoas têm direito à educação. O Estado garante o acesso gratuito ao ensino básico e aos restantes níveis do ensino secundário. O ensino básico é obrigatório.»

7

O artigo 113.o da mesma Constituição tem a seguinte redação:

«O Estado reconhece a liberdade de criação científica, artística ou outra e assegura a proteção dos direitos de autor e do direito das patentes.»

Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior

8

O artigo 5.o da Augstskolu likums (Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior), de 2 de novembro de 1995 (Latvijas Vēstnesis, 1995, n.o 179), previa que os estabelecimentos de ensino superior tinham por missão cultivar e desenvolver as ciências e as artes. A Likums «Grozījumi Augstskolu likumā» (Lei Que Altera a Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior), de 21 de junho de 2018 (Latvijas Vēstnesis, 2018, n.o 132), alterou o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior do seguinte modo:

«No âmbito das suas atividades, [os estabelecimentos de ensino superior] cultivam e desenvolvem as ciências, as artes e a língua oficial.»

9

Em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, o Estado e outras pessoas singulares ou coletivas, incluindo pessoas singulares ou coletivas estrangeiras, podem criar estabelecimentos de ensino superior na Letónia.

10

A Lei Que Altera a Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior alterou também o artigo 56.o desta última. Assim, o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior tinha a seguinte redação:

«Nos estabelecimentos de ensino superior e nos estabelecimentos de grau médio e de formação técnica, os programas de estudos serão ministrados na língua oficial. Só é possível realizar esses programas de estudos numa língua estrangeira nos seguintes casos:

1) Programas de estudos realizados na Letónia por estudantes estrangeiros e programas de estudos organizados no âmbito da cooperação prevista nos programas da União Europeia e nos acordos internacionais podem ser ministrados nas línguas oficiais da União. Quando os estudos que se prevê serem realizados na Letónia tiverem uma duração superior a seis meses ou representarem mais de 20 créditos, a aprendizagem da língua oficial deve figurar no número de horas de ensino obrigatório a seguir pelos estudantes estrangeiros;

2) Não podem ser ministrados nas línguas oficiais da União mais de um quinto do número de créditos do programa de estudos, entendendo‑se que os exames finais e estatais e a redação dos trabalhos de qualificação, de fim de grau ou de fim de mestrado não são, além disso, tomados em consideração para esse efeito;

3) Programas de estudos que devam ser realizados numa língua estrangeira, a fim de alcançarem os seus objetivos […] para as seguintes categorias de programas educativos: estudos linguísticos e culturais ou programas relativos ao estudo de línguas. […]

4) Os programas de estudos conjuntos podem ser ministrados nas línguas oficiais da União.»

11

A Lei Que Altera a Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior aditou às disposições transitórias desta última um ponto 49, o qual tem a seguinte redação:

«As alterações introduzidas no artigo 56.o, n.o 3, da presente lei relativamente à língua em que os programas de estudos são ministrados entram em vigor em 1 de janeiro de 2019. Os estabelecimentos de ensino superior e os estabelecimentos de grau médio e de formação técnica em que os programas de estudos são ministrados numa língua que não esteja em conformidade com o artigo 56.o, n.o 3, da presente lei podem continuar a ministrar esses programas na língua em questão até 31 de dezembro de 2022. A partir de 1 de janeiro de 2019, não é autorizada a admissão de estudantes nos programas de estudos ministrados numa língua que não esteja em conformidade com o artigo 56.o, n.o 3, da presente lei.»

Lei Relativa à Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga

12

O artigo 19.o, n.o 1, da Likums «Par Rīgas Ekonomikas augstskolu» (Lei Relativa à Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga), de 5 de outubro de 1995 (Latvijas Vēstnesis, 1995, n.o 164), dispõe:

«[Na Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga], os cursos são ministrados em língua inglesa. A redação e a defesa dos trabalhos necessários à obtenção de uma licenciatura, de um mestrado ou de um doutoramento e os exames de qualificação profissional são efetuados em língua inglesa.»

Lei Relativa à Escola Superior de Direito de Riga

13

O artigo 21.o da Rīgas Juridiskās augstskolas likums (Lei Relativa à Escola Superior de Direito de Riga), de 1 de novembro de 2018 (Latvijas Vēstnesis, 2018, n.o 220), prevê:

«[A Escola Superior de Direito de Riga] disponibiliza programas de estudos que tenham obtido a autorização correspondente, em conformidade com o legalmente previsto. Os cursos são ministrados em língua inglesa ou noutra língua oficial da União.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

O Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional, Letónia) é chamado a pronunciar‑se sobre um recurso interposto por 20 deputados do Parlamento letão. Este recurso visa obter a fiscalização da compatibilidade do artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, e do artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, assim como do ponto 49 das disposições transitórias desta lei com a Constituição letã, e designadamente com os artigos 1.o, 105.o e 112.o desta última.

15

Os requerentes no processo principal alegam, a este respeito, que estas disposições da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior violam o direito à educação. Com efeito, uma vez que as referidas disposições impõem aos estabelecimentos de ensino superior privados que cultivem e desenvolvam a língua oficial da República da Letónia, limitando assim as possibilidades de estes últimos proporem programas de estudos em línguas estrangeiras, restringem a autonomia desses estabelecimentos bem como a liberdade académica do seu pessoal docente e dos seus estudantes.

16

Além disso, restringem igualmente o direito dos estabelecimentos de ensino superior privados ao exercício de uma atividade comercial e à prestação, a título oneroso, de serviços de ensino superior em conformidade com a autorização obtida.

17

As mesmas disposições violam, além disso, o princípio da legalidade consagrado no artigo 1.o da Constituição letã, uma vez que os fundadores de estabelecimentos de ensino superior privados podiam ter uma confiança legítima no facto de poderem obter lucro da exploração dos estabelecimentos de que são proprietários.

18

Assim, ao criar uma barreira à entrada no mercado do ensino superior, bem como ao impedir nacionais e empresas de outros Estados‑Membros de prestarem serviços de ensino superior em línguas estrangeiras, o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, e o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior e o ponto 49 das disposições transitórias desta lei violam a liberdade de estabelecimento e a livre circulação de serviços garantidas, respetivamente, no artigo 49.o TFUE e no artigo 56.o TFUE, bem como a liberdade de empresa, consagrada no artigo 16.o da Carta.

19

O Parlamento letão sustenta que estas disposições estão em conformidade com os artigos 1.o, 105.o e 112.o da Constituição letã, visto que não constituem uma limitação a esses direitos fundamentais. As referidas disposições não limitam os direitos dos estabelecimentos de ensino superior privados, uma vez que o direito à educação abrange apenas a proteção dos direitos dos estudantes. Também não violam o direito de propriedade, dado que este não garante aos particulares o direito de obterem lucro.

20

Mesmo que se considerasse que esses direitos estão a ser objeto de limitação, esta última é prevista por lei e prossegue um objetivo legítimo em relação ao qual é proporcionada.

21

O Parlamento letão considera, além disso, que o direito da União não limita o poder de os Estados‑Membros adotarem, no domínio da educação, regras necessárias à proteção dos valores constitucionais desses Estados. Assim, a República da Letónia não é obrigada a garantir que o ensino superior possa ser ministrado numa língua diferente da língua oficial desse Estado‑Membro.

22

Por último, o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior prevê disposições específicas para a implementação de programas de estudos nas línguas da União e não se afasta do objetivo de criar um espaço europeu da educação.

23

Em 11 de junho de 2020, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) proferiu um acórdão no qual decidiu cindir o processo principal que lhe foi submetido em dois processos.

24

Por um lado, considerando que o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, e o ponto 49 das disposições transitórias desta lei regulam um domínio que, por força do artigo 165.o TFUE, é da competência dos Estados‑Membros e que, além disso, não era desejável que um eventual reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça deixasse pendente de decisão a questão da conformidade dessas disposições do direito letão com a Constituição letã, o órgão jurisdicional de reenvio pronunciou‑se sobre a compatibilidade das referidas disposições com os artigos 112.o e 113.o desta Constituição.

25

O órgão jurisdicional de reenvio declarou, assim, que o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior estava em conformidade com a Constituição letã. Em contrapartida, declarou que o artigo 56.o, n.o 3, desta lei e o ponto 49 das disposições transitórias da mesma, uma vez que estas últimas disposições são aplicáveis aos estabelecimentos superiores privados, ao seu pessoal docente e aos estudantes, não estavam em conformidade com os artigos 112.o e 113.o da referida Constituição.

26

Por outro lado, no que respeita à compatibilidade do artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, e do artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, bem como do ponto 49 das disposições transitórias desta lei, com os artigos 1.o e 105.o da Constituição letã, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu prosseguir com o exame do processo principal. A este respeito, considera que o direito de propriedade consagrado neste artigo 105.o deve ser interpretado à luz da liberdade de estabelecimento, consagrada no artigo 49.o TFUE, e que é necessário precisar o conteúdo desta liberdade fundamental.

27

Esse órgão jurisdicional considera que, embora resulte, por um lado, do artigo 4.o, n.o 2, TUE que a União respeita a identidade nacional dos Estados‑Membros, cuja língua oficial é uma das expressões, e, por outro, do artigo 165.o TFUE que o conteúdo e a organização do ensino superior são da competência dos Estados‑Membros, o Tribunal de Justiça reconheceu que a liberdade de estabelecimento é igualmente aplicável nos domínios em que esses Estados‑Membros continuam a ser competentes.

28

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se uma legislação de um Estado‑Membro que impõe, no domínio do ensino superior, incluindo nos estabelecimentos de ensino superior privados, a utilização da língua oficial desse Estado‑Membro, ao mesmo tempo que prevê determinados limites a essa obrigação, constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento, consagrada no artigo 49.o TFUE.

29

Este órgão jurisdicional recorda, além disso, que as disposições em causa no processo principal não são aplicáveis a dois estabelecimentos superiores, a saber, a Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga e a Escola Superior de Direito de Riga, os quais continuam regidos por leis especiais.

30

Nestas circunstâncias, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Uma [legislação] como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o [TFUE] ou, a título subsidiário, à livre prestação de serviços garantida no artigo 56.o [TFUE], bem como à liberdade de empresa reconhecida no artigo 16.o da [Carta]?

2)

Que considerações devem ser tidas em conta na apreciação do caráter justificado, adequado e proporcionado dessa [legislação] relativamente ao seu objetivo legítimo de proteger a língua oficial como manifestação da identidade nacional?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade e à persistência do objeto do litígio no processo principal

31

Em primeiro lugar, no que respeita à admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial, há que recordar que as disposições do Tratado FUE em matéria de liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços não são aplicáveis a uma situação em que todos os elementos se circunscrevem ao território de um único Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 47).

32

No entanto, o Tribunal de Justiça declarou que, quando o órgão jurisdicional de reenvio recorre ao Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de anulação de disposições aplicáveis não apenas aos cidadãos nacionais mas também aos nacionais dos outros Estados‑Membros, a decisão que esse órgão jurisdicional adotar na sequência do seu acórdão proferido a título prejudicial irá produzir efeitos também relativamente a estes últimos nacionais, o que justifica que responda às questões que lhe foram submetidas sobre as disposições do Tratado FUE relativas às liberdades fundamentais, ainda que todos os elementos do litígio no processo principal estejam confinados a um só Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de maio de 2013, Libert e o., C‑197/11 e C‑203/11, EU:C:2013:288, n.o 35, e de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 51).

33

Ora, é esse o caso do processo de fiscalização da constitucionalidade da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, que está em causa no presente processo. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que, por um lado, este processo dá lugar a uma fiscalização abstrata de determinadas disposições desta lei, que visa examinar a conformidade dessas disposições com as normas jurídicas hierarquicamente superiores, tendo em conta todas as pessoas às quais essas disposições se aplicam. Por outro lado, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da referida lei, o Estado e outras pessoas singulares ou coletivas, incluindo pessoas singulares ou coletivas estrangeiras, podem criar estabelecimentos de ensino superior na Letónia.

34

Daqui resulta que o órgão jurisdicional de reenvio indicou os elementos concretos, mencionados no número anterior, que permitem estabelecer um nexo entre o objeto do litígio no processo principal, em que todas as circunstâncias se circunscrevem ao Estado‑Membro em causa, e os artigos 49.o e 56.o TFUE, pelo que a interpretação destas liberdades fundamentais é necessária para a resolução desse litígio (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 54).

35

No que respeita, em segundo lugar, à persistência do litígio no processo principal, a Comissão Europeia manifestou dúvidas quanto à utilidade de uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio considerou que o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior e o ponto 49 das disposições transitórias desta lei não estavam em conformidade com a Constituição letã.

36

A este respeito, há que recordar que, como resulta do pedido de decisão prejudicial, e como resulta do n.o 23 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu, por Acórdão de 11 de junho de 2020, cindir o processo principal que lhe foi submetido em dois processos.

37

Por um lado, como resulta do n.o 25 do presente acórdão, declarou que o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior estava em conformidade com os artigos 112.o e 113.o da Constituição letã. Em contrapartida, o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior e o ponto 49 das disposições transitórias desta lei, na medida em que se aplicam aos estabelecimentos de ensino superior privados, ao seu pessoal docente e aos seus estudantes, não estavam em conformidade com os referidos artigos 112.o e 113.o.

38

Por outro lado, esse órgão jurisdicional decidiu prosseguir o exame do processo principal no que respeita à conformidade do artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, e do artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, bem como do ponto 49 das disposições transitórias desta lei com os artigos 1.o e 105.o da Constituição letã, considerando que o direito de propriedade consagrado neste último artigo devia ser interpretado à luz da liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o TFUE, cujo conteúdo era necessário precisar.

39

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu, a fim de conceder um prazo razoável ao legislador nacional para adotar uma nova legislação, manter em vigor as disposições que tinham sido declaradas inconstitucionais e diferir a produção de efeitos da invalidade dessas disposições para 1 de maio de 2021.

40

Como salientou o advogado‑geral no n.o 24 das suas conclusões, os requisitos de admissibilidade de um reenvio prejudicial devem estar preenchidos não apenas à data em que o processo é instaurado, mas também ao longo de todo o processo. Com efeito, quando a não conformidade das disposições pertinentes do direito nacional com a Constituição nacional, declarada pelo Tribunal Constitucional do Estado‑Membro em causa, tem como efeito eliminá‑las da ordem jurídica nacional, o Tribunal de Justiça já não está, em princípio, em condições de se pronunciar sobre as questões que lhe são submetidas. Tendo em conta a evolução do direito nacional aplicável ao litígio no processo principal e sem um esclarecimento por parte do órgão jurisdicional de reenvio quanto à pertinência para a resolução desse litígio das questões submetidas, estas últimas seriam consideradas hipotéticas (v., neste sentido, Acórdão de 27 de junho de 2013, Di Donna, C‑492/11, EU:C:2013:428, n.os 27 a 32).

41

Dito isto, há que recordar que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo principal, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça [Acórdão de 2 de setembro de 2021, INPS (Subsídios de nascimento e de maternidade para os titulares de autorização única), C‑350/20, EU:C:2021:659, n.o 38].

42

Consequentemente, quando a questão submetida for relativa à interpretação ou à validade de uma norma de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir. Daqui se conclui que uma questão prejudicial relativa ao direito da União goza de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre essa questão se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra de direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 30 e 31).

43

No caso em apreço, ainda que o órgão jurisdicional de reenvio tenha declarado que o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior estava em conformidade com os artigos 112.o e 113.o da Constituição letã, não é menos verdade que esse órgão jurisdicional pode, à luz das respostas dadas pelo Tribunal de Justiça às questões que lhe foram submetidas, chegar à conclusão inversa no que respeita à conformidade desta disposição com os artigos 1.o e 105.o desta Constituição, interpretados à luz das disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de serviços, bem como do artigo 16.o da Carta.

44

Além disso, em resposta a um pedido de esclarecimentos do Tribunal de Justiça sobre a necessidade de manter o pedido de decisão prejudicial, tendo em conta a declaração de invalidade à luz da Constituição letã das disposições nacionais sobre as quais incidem as questões submetidas, cujos efeitos se começam a produzir a partir de 1 de maio de 2021, e tendo em conta, nomeadamente, a adoção da Lei Que Altera a Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, que entrou em vigor nessa data, o órgão jurisdicional de reenvio precisou que continuava a ser competente para apreciar a constitucionalidade dessas disposições.

45

Este órgão jurisdicional sublinha, a este respeito, que as referidas disposições, embora declaradas inconstitucionais, estiveram em vigor durante um determinado período e, portanto, eram suscetíveis de produzir efeitos jurídicos desfavoráveis para as pessoas coletivas a quem foram aplicadas, bem como dar origem a litígios.

46

Tendo o referido órgão jurisdicional sido chamado a determinar, nomeadamente, se as disposições em causa no processo principal deviam ser afastadas da ordem jurídica letã mesmo relativamente ao período anterior à produção de efeitos da sua invalidade, há que considerar que uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas continua a ser útil para a resolução do litígio no processo principal.

47

Por conseguinte, há que responder ao pedido de decisão prejudicial.

Quanto ao mérito

48

Com as suas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 49.o e 56.o TFUE e o artigo 16.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro que impõe, em princípio, aos estabelecimentos de ensino superior a obrigação de ministrar os estudos exclusivamente na língua oficial desse Estado‑Membro.

Observações preliminares

49

Para responder a estas questões, há que, antes de mais, constatar que o órgão jurisdicional de reenvio se refere às disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de serviços, tal como às disposições da Carta.

50

No que diz respeito, em primeiro lugar, às liberdades fundamentais, o Tribunal de Justiça declarou que, quando uma medida nacional diz simultaneamente respeito a várias dessas liberdades, o Tribunal de Justiça aprecia‑a, em princípio, à luz de apenas uma das referidas liberdades, se se revelar que, nas circunstâncias do caso em apreço, as outras liberdades são totalmente secundárias relativamente à primeira e lhe podem estar subordinadas (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, EU:C:2009:519, n.o 47).

51

Resulta igualmente de jurisprudência assente que, para determinar a liberdade fundamental preponderante, há que ter em conta o objeto da legislação em causa (Acórdão de 3 de março de 2020, Tesco‑Global Áruházak, C‑323/18, EU:C:2020:140, n.o 51).

52

Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que a organização, mediante remuneração, de cursos de ensino superior é uma atividade económica abrangida pelo capítulo 2 do título IV da parte III do Tratado FUE relativo ao direito de estabelecimento, quando é exercida pelo nacional de um Estado‑Membro num Estado‑Membro diferente, de modo estável e contínuo, a partir de um estabelecimento principal ou secundário neste último Estado‑Membro [Acórdãos de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior), C‑66/18, EU:C:2020:792, n.o 160, e de 13 de novembro de 2003, Neri, C‑153/02, EU:C:2003:614, n.o 39].

53

Em contrapartida, constituem «prestações de serviços», na aceção do artigo 56.o TFUE, todas as prestações que não sejam propostas de modo estável e continuado, a partir de um estabelecimento no Estado‑Membro de destino, precisando‑se que nenhuma disposição do Tratado FUE permite determinar, de maneira abstrata, a duração ou a frequência a partir da qual a prestação de um serviço ou de um certo tipo de serviço noutro Estado‑Membro deixa de poder ser considerada prestação de serviços (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Duomo Gpa e o., C‑357/10 a C‑359/10, EU:C:2012:283, n.os 31 e 32).

54

No caso em apreço, há que salientar que, como resulta do pedido de decisão prejudicial, o artigo 8.o, n.o 1, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior regula a possibilidade de o Estado e outras pessoas singulares ou coletivas, incluindo pessoas singulares ou coletivas estrangeiras, criarem estabelecimentos de ensino superior na Letónia. Além disso, a natureza particular dos serviços em causa, a saber, as atividades de ensino superior, implica que essas atividades sejam, de maneira geral, exercidas de modo estável e continuado.

55

Por conseguinte, há que considerar que a legislação em causa no processo principal está abrangida, de modo preponderante, pela liberdade de estabelecimento.

56

No que respeita a uma eventual análise dessa legislação à luz do artigo 16.o da Carta, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou, uma análise, nos termos do artigo 49.o TFUE, da restrição instituída por uma legislação nacional abrange igualmente as eventuais restrições ao exercício dos direitos e das liberdades previstos nos artigos 15.o a 17.o da Carta, pelo que não é necessária uma análise separada da liberdade de empresa consagrada no artigo 16.o da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet, C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 50).

57

Nestas circunstâncias, há que responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio apenas à luz do artigo 49.o TFUE.

Quanto à restrição à liberdade garantida no artigo 49.o TFUE

58

Em conformidade com o artigo 6.o TFUE, a União dispõe de competência para desenvolver ações destinadas a apoiar, coordenar ou completar a ação dos Estados‑Membros, nomeadamente no domínio da educação.

59

Embora o direito da União não prejudique esta competência dos Estados‑Membros no que se refere, por um lado, ao conteúdo do ensino e à organização do sistema educativo, bem como à sua diversidade cultural e linguística, e, por outro, ao conteúdo e à organização da formação profissional, como decorre do artigo 165.o, n.o 1, e do artigo 166.o, n.o 1, TFUE, não deixa de ser verdade que, no exercício dessa competência, os Estados‑Membros devem respeitar o direito da União, nomeadamente as disposições relativas à liberdade de estabelecimento (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2007, Schwarz e Gootjes‑Schwarz, C‑76/05, EU:C:2007:492, n.o 70).

60

O artigo 49.o, primeiro parágrafo, TFUE dispõe que, no âmbito das disposições que figuram no capítulo 2 do título IV da parte III do Tratado FUE, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro.

61

Devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício da liberdade garantida pelo artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 45).

62

No caso em apreço, ainda que os nacionais de outros Estados‑Membros se possam estabelecer na Letónia e ministrar programas de ensino superior, tal possibilidade está, em princípio, condicionada pela obrigação de ministrar esses programas apenas na língua oficial desse Estado‑Membro.

63

Ora, essa obrigação é suscetível de tornar menos atrativo, para esses nacionais, o seu estabelecimento no Estado‑Membro que impõe essa obrigação, a qual constitui, assim, uma restrição à liberdade garantida no artigo 49.o TFUE. Especialmente, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 75 das conclusões, esses nacionais não estarão em condições, quando tiverem um estabelecimento noutro Estado‑Membro, de recorrer a uma grande parte do pessoal administrativo e do corpo docente empregado nesse estabelecimento, o que implica, assim, custos significativos.

64

Do mesmo modo, tal restrição existe igualmente em relação aos nacionais de outros Estados‑Membros que, antes da adoção da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, exerceram essa liberdade ao abrirem na Letónia estabelecimentos que oferecem um programa de estudos numa língua diferente do letão. Com efeito, após o termo do período transitório, esses nacionais deverão adaptar o seu programa de estudos às exigências desta lei, o que pode acarretar custos significativos, nomeadamente no que respeita a uma grande parte do seu pessoal administrativo e do seu corpo docente.

Quanto à justificação da restrição à liberdade garantida pelo artigo 49.o TFUE

65

Segundo jurisprudência assente, uma restrição à liberdade de estabelecimento só pode ser admitida se, em primeiro lugar, for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral e, em segundo lugar, respeitar o princípio da proporcionalidade, o que implica que seja adequada para garantir, de modo coerente e sistemático, a realização do objetivo prosseguido e não for além do necessário para o alcançar [Acórdão de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior), C‑66/18, EU:C:2020:792, n.o 178].

– Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral

66

Como resulta do pedido de decisão prejudicial, a obrigação de ministrar cursos de ensino superior na língua letã, que decorre nomeadamente do artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, visa defender e promover a utilização da língua oficial da República da Letónia.

67

O Tribunal de Justiça recordou a este respeito que as disposições do direito da União não se opõem à adoção de uma política que vise a defesa e a promoção de uma ou das línguas oficiais de um Estado‑Membro (Acórdão de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 25).

68

Assim, declarou que, nos termos do artigo 3.o, n.o 3, quarto parágrafo, TUE e do artigo 22.o da Carta, a União respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística. Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita igualmente a identidade nacional dos seus Estados‑Membros, da qual também faz parte a proteção da língua oficial do Estado‑Membro em causa (Acórdãos de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 86, e de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 26).

69

Deve reconhecer‑se a importância que o ensino assume na realização de uma tal política de defesa e promoção da utilização da língua oficial de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 28 de novembro de 1989, Groener, C‑379/87, EU:C:1989:599, n.o 20).

70

Assim, deve considerar‑se que o objetivo de promover e incentivar a utilização de uma das línguas oficiais de um Estado‑Membro é um objetivo legítimo suscetível de justificar, em princípio, uma restrição às obrigações impostas pela liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 27, e de 21 de junho de 2016, New Valmar, C‑15/15, EU:C:2016:464, n.o 50).

– Quanto à adequação da restrição em causa para garantir a realização do objetivo prosseguido

71

Como resulta do n.o 65 do presente acórdão, há ainda que apreciar se a legislação em causa no processo principal é adequada para garantir a realização desse objetivo legítimo e se não vai além do necessário para o alcançar.

72

A este propósito, cabe em última instância ao órgão jurisdicional de reenvio, que é o único competente para apreciar a matéria de facto e interpretar a legislação nacional, determinar se e em que medida tal legislação respeita esses requisitos (v., neste sentido, Acórdão de 13 de abril de 2010, Bressol e o., C‑73/08, EU:C:2010:181, n.o 64).

73

No entanto, o Tribunal de Justiça, chamado a dar respostas úteis a este órgão jurisdicional, tem competência para lhe fornecer indicações baseadas nos autos do processo principal e nas observações escritas que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir que o referido órgão jurisdicional se pronuncie (v., neste sentido, Acórdão de 13 de abril de 2010, Bressol e o., C‑73/08, EU:C:2010:181, n.o 65).

74

No caso em apreço, uma legislação de um Estado‑Membro que prevê a obrigação de os estabelecimentos de ensino superior utilizarem, em princípio, a língua oficial desse Estado‑Membro afigura‑se adequada para garantir a realização do objetivo de defesa e de promoção dessa língua. Com efeito, esta legislação favorece a utilização da referida língua por toda a população em causa e garante que a mesma língua seja igualmente utilizada no contexto das formações de nível universitário.

75

Dito isto, há que recordar que a referida legislação só pode ser considerada suscetível de garantir esse objetivo se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar e se for aplicada de maneira coerente e sistemática (Acórdão de 4 de julho de 2019, Comissão/Alemanha, C‑377/17, EU:C:2019:562, n.o 89).

76

Tendo em conta o seu alcance limitado, as exceções previstas pela mesma legislação não são suscetíveis de obstar à realização do objetivo de defesa e de promoção da língua oficial do referido Estado‑Membro.

77

Além disso, há que salientar que, no caso em apreço, como precisa o órgão jurisdicional de reenvio, a legislação letã prevê que a utilização obrigatória da língua letã não abranja dois estabelecimentos privados de ensino superior cujo funcionamento é regido por leis especiais, o que permite que estes dois estabelecimentos continuem a propor programas de estudos em língua inglesa ou, se for caso disso, noutra língua oficial da União.

78

Como resulta da resposta escrita do Governo letão às questões submetidas pelo Tribunal de Justiça, os dois referidos estabelecimentos foram estabelecidos por acordos internacionais celebrados entre a República da Letónia e o Reino da Suécia. Ora, resulta do pedido de decisão prejudicial que o artigo 56.o, n.o 3, ponto 1, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior prevê precisamente que um programa de estudos que decorra na Letónia possa ser ministrado numa língua oficial da União diferente da língua letã quando esse programa for organizado no âmbito de acordos internacionais.

79

Nestas circunstâncias, embora seja certo que os dois estabelecimentos de ensino superior cujo funcionamento é regido por leis especiais beneficiam de um estatuto especial, sendo os estudos aí ministrados em língua inglesa ou, se for caso disso, noutra língua oficial da União, nada se opõe, no entanto, a que outros estabelecimentos possam ministrar a sua formação numa língua oficial da União diferente da língua letã, desde que o seu funcionamento seja abrangido por um acordo internacional celebrado entre a República da Letónia e outros Estados.

80

Daqui resulta que o regime derrogatório aplicável a estes dois estabelecimentos se poderia aplicar a qualquer estabelecimento que se encontre numa situação semelhante. Além disso, esta categoria de estabelecimentos distingue‑se de maneira pertinente dos estabelecimentos sujeitos à obrigação de princípio de ministrar cursos, no caso em apreço, na língua letã, uma vez que os primeiros se inscrevem numa lógica específica de cooperação universitária internacional. Por conseguinte, tendo em conta o objetivo específico que prosseguem e o seu alcance limitado, a existência de disposições que permitem a determinados estabelecimentos de ensino superior beneficiar de um regime derrogatório no âmbito de uma cooperação prevista nos programas da União e nos acordos internacionais não é suscetível de privar de coerência a legislação em causa no processo principal.

– Quanto à necessidade e à proporcionalidade da restrição em causa

81

Há que recordar que as medidas restritivas de uma liberdade fundamental só podem ser justificadas se o objetivo visado não puder ser alcançado através de medidas menos restritivas (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.o 90).

82

Além disso, não é indispensável que a medida restritiva adotada pelas autoridades de um Estado‑Membro corresponda a uma conceção partilhada pela totalidade dos Estados‑Membros no que respeita às modalidades de proteção do direito fundamental ou do interesse legítimo em causa. Pelo contrário, a necessidade e a proporcionalidade das disposições adotadas na matéria não são excluídas pelo simples facto de um Estado‑Membro ter escolhido um sistema de proteção diferente do adotado noutro Estado (Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.o 91).

83

É certo que os Estados‑Membros dispõem de uma ampla margem de apreciação na escolha das medidas suscetíveis de realizar os objetivos da sua política que visam proteger a língua oficial, uma vez que essa política constitui a expressão da identidade nacional, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 16 de abril de 2013, Las, C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 26). No entanto, é verdade que esta margem de apreciação não pode justificar que sejam seriamente afetados os direitos que os particulares retiram das disposições dos Tratados que consagram as suas liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn et Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 78).

84

Há que salientar que uma legislação de um Estado‑Membro que exija, sem nenhuma exceção, que os programas de ensino superior sejam ministrados na língua oficial desse Estado‑Membro excederia o que é necessário e proporcionado para alcançar o objetivo visado por essa legislação, a saber, a defesa e a promoção dessa língua. Com efeito, tal legislação conduziria, na realidade, a impor, de maneira absoluta, a utilização dessa língua em todos os programas de ensino superior, com exclusão de qualquer outra língua e sem ter em conta motivos suscetíveis de justificar que diferentes programas de ensino superior sejam ministrados noutras línguas.

85

Em contrapartida, os Estados‑Membros podem instituir, em princípio, uma obrigação de utilizar a sua língua oficial no âmbito desses programas, desde que essa obrigação seja acompanhada de exceções que assegurem que uma língua diferente da língua oficial possa ser utilizada no âmbito das formações universitárias.

86

No caso em apreço, essas exceções devem, para não ultrapassar o que é necessário para esse efeito, permitir a utilização de uma língua diferente da língua letã, pelo menos no que respeita às formações ministradas no âmbito de uma cooperação europeia ou internacional e das formações relacionadas com a cultura e com outras línguas diferentes do letão.

87

Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que responder às questões submetidas que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que impõe, em princípio, aos estabelecimentos de ensino superior a obrigação de ministrar os estudos exclusivamente na língua oficial desse Estado‑Membro, desde que essa legislação seja justificada por motivos relacionados com a proteção da identidade nacional do mesmo, isto é, que seja necessária e proporcionada à proteção do objetivo legitimamente prosseguido.

Quanto às despesas

88

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que impõe, em princípio, aos estabelecimentos de ensino superior a obrigação de ministrar os estudos exclusivamente na língua oficial desse Estado‑Membro, desde que essa legislação seja justificada por motivos relacionados com a proteção da identidade nacional do mesmo, isto é, que seja necessária e proporcionada à proteção do objetivo legitimamente prosseguido.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: letão.