ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

2 de junho de 2022 ( *1 ) ( i )

«Reenvio prejudicial — Transporte aéreo — Regulamento (CE) n.o 549/2004 — Regulamento (CE) n.o 550/2004 — Prestador de serviços de tráfego aéreo — Decisão de encerrar o espaço aéreo — Exercício de prerrogativas de poder público — Utilizador do espaço aéreo — Companhias aéreas — Direito de recurso de uma decisão de encerramento do espaço aéreo — Artigo 58.o TFUE — Livre circulação de serviços em matéria de transportes — Artigos 16.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade de empresa — Direito a um recurso efetivo»

No processo C‑353/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal de l’entreprise du Hainaut, division de Charleroi (Tribunal das Empresas de Hainaut, Divisão de Charleroi, Bélgica), por Decisão de 23 de julho de 2020 que deu entrada no Tribunal de Justiça em 31 de julho de 2020, no processo

Skeyes

contra

Ryanair DAC,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de Secção, N. Jääskinen, M. Safjan, N. Piçarra e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 20 de outubro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Skeyes, por N. Becker, R. Thüngen e K. De Vulder, avocats,

em representação da Ryanair DAC, por A. Cassart, A.‑V. Rensonnet e E. Vahida, avocats, S. Rating, abogado e Rechtsanwalt, bem como por I.‑G. Metaxas‑Maranghidis, dikigoros,

em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, C. Pochet, S. Baeyens e P. Cottin, na qualidade de agentes, assistidos por L. Delmotte e B. Van Hyfte, advocaten,

em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez de la Rúa Puig, na qualidade de agente,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, T. Lisiewski e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. Berghe, T. Franchoo, W. Mölls e B. Sasinowska, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de janeiro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.o 550/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2004, relativo à prestação de serviços de navegação aérea no céu único europeu (JO 2004, L 96, p. 10), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1070/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009 (JO 2009, L 300, p. 34) (a seguir «Regulamento n.o 550/2004»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a empresa pública autónoma Skeyes à companhia aérea Ryanair DAC a propósito de uma decisão adotada com extrema urgência pelo Tribunal de l’entreprise du Hainaut, division de Charleroi (Tribunal das Empresas de Hainaut, Divisão de Charleroi, Bélgica), que instava a Skeyes, na sequência de uma ação coletiva do seu pessoal, a garantir o serviço que presta em regime de exclusividade de modo a garantir a normal operação do tráfego aéreo.

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento n.o 549/2004

3

Nos termos do considerando 3 do Regulamento (CE) n.o 549/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2004, que estabelece o quadro para a realização do céu único europeu («regulamento‑quadro») (JO 2004, L 96, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento n.o 1070/2009 (a seguir «Regulamento n.o 549/2004»):

«O bom funcionamento do sistema de transporte aéreo requer um nível elevado e consistente de segurança dos serviços de navegação aérea que permita uma utilização ótima do espaço aéreo europeu, bem como um nível elevado e consistente de segurança do tráfego aéreo, em conformidade com a missão de interesse geral dos serviços de navegação aérea, designadamente as obrigações de serviço público. Por conseguinte, deve satisfazer os mais elevados padrões de responsabilidade e competência.»

4

O artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«A iniciativa do céu único europeu tem por objetivo reforçar as atuais normas de segurança do tráfego aéreo, contribuir para o desenvolvimento sustentável do sistema de transporte aéreo e melhorar o desempenho global do sistema de gestão do tráfego aéreo (ATM) e dos serviços de navegação aérea para o tráfego aéreo geral na Europa, a fim de satisfazer as exigências de todos os utilizadores do espaço aéreo. O céu único europeu abrange uma rede pan‑europeia coerente de rotas e de sistemas de gestão de redes e de gestão do tráfego aéreo, unicamente baseada em requisitos de segurança, eficiência e técnicos, em benefício de todos os utilizadores do espaço aéreo. Para alcançar o referido objetivo, o presente regulamento estabelece um quadro regulamentar harmonizado para a criação do céu único europeu.»

5

Nos termos do artigo 2.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Definições», entende‑se por:

«4.

“Serviços de navegação aérea”, os serviços de tráfego aéreo; os serviços de comunicação, navegação e vigilância; os serviços meteorológicos para navegação aérea; e os serviços de informação aeronáutica.

[…]

8.

“Utilizadores do espaço aéreo”, os operadores das aeronaves exploradas em sede de tráfego aéreo geral.

[…]»

Regulamento n.o 550/2004

6

Nos termos dos considerandos 3 a 5, 10, 13 e 22 do Regulamento n.o 550/2004:

«(3)

O Regulamento n.o 549/2004 […] estabelece o quadro para a realização do céu único europeu.

(4)

Para criar o céu único europeu, deverão ser adotadas medidas destinadas a garantir a prestação segura e eficiente de serviços de navegação aérea de forma coerente com a organização e utilização do espaço aéreo, tal como previsto no [Regulamento (CE) n.o 551/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2004, relativo à organização e utilização do espaço aéreo no céu único europeu (“regulamento relativo ao espaço aéreo”) (JO 2004, L 96, p. 20)]. É importante organizar de forma harmonizada a prestação de tais serviços para responder adequadamente às necessidades dos utilizadores do espaço aéreo e regular a segurança e eficiência do tráfego aéreo.

(5)

A prestação de serviços de tráfego aéreo, tal como prevista no presente regulamento, está relacionada com o exercício de prerrogativas de poder público que não têm um caráter económico que justifique a aplicação das regras de concorrência do Tratado.

[…]

(10)

Deve ser estabelecido um sistema comum de certificação dos prestadores de serviços de navegação aérea que constituirá uma forma de definir os direitos e obrigações desses prestadores de serviços, garantindo, simultaneamente, a continuidade da prestação de serviços e o controlo regular do cumprimento desses requisitos.

[…]

(13)

A prestação de serviços de comunicação, navegação e vigilância, bem como de serviços de informação aeronáutica, deve ser organizada em condições de mercado, tendo simultaneamente em conta as especificidades de tais serviços e a manutenção de um nível elevado de segurança.

[…]

(22)

Os prestadores de serviços de navegação aérea oferecem um determinado número de estruturas e serviços diretamente relacionados com a exploração de aeronaves, cujos custos devem poder cobrir de acordo com o princípio do “utilizador‑pagador”, ou seja, o utilizador do espaço aéreo deve suportar os custos que ocasiona no local de utilização ou o mais perto possível deste.»

7

O artigo 1.o deste regulamento, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 1:

«No âmbito do [Regulamento n.o 549/2004], o presente regulamento diz respeito à prestação de serviços de navegação aérea no céu único europeu. Tem por objetivo estabelecer requisitos comuns para uma prestação segura e eficiente de serviços de navegação aérea na Comunidade.»

8

O artigo 7.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Certificação dos prestadores de serviços de navegação aérea», enuncia:

«1.   A prestação de todos os serviços de navegação aérea na [União] deve ser objeto de certificação pelos Estados‑Membros.

[…]

3.   As autoridades supervisoras nacionais emitem certificados aos prestadores de serviços de navegação aérea que cumpram os requisitos comuns referidos no artigo 6.o Os certificados podem ser emitidos separadamente para cada tipo de serviço de navegação aérea definido no artigo 2.o do regulamento‑quadro ou para um pacote desses serviços, designadamente nos casos em que um prestador de serviços de tráfego aéreo, qualquer que seja o seu estatuto jurídico, explore e assegure a manutenção dos seus próprios sistemas de comunicação, navegação e vigilância. O controlo dos certificados deve ser feito regularmente.

4.   Os certificados devem especificar os direitos e as obrigações dos prestadores de serviços de navegação aérea, incluindo o acesso não discriminatório aos serviços por parte dos utilizadores do espaço aéreo, dando particular atenção à segurança. A certificação pode ser apenas objeto das condições estabelecidas no anexo II. Tais condições devem ser objetivamente justificadas, não discriminatórias, proporcionadas e transparentes.

[…]

7.   As autoridades supervisoras nacionais controlam o cumprimento dos requisitos comuns e das condições associadas aos certificados. Os pormenores relativos a esse controlo devem constar dos relatórios anuais a apresentar pelos Estados‑Membros nos termos do n.o 1 do artigo 12.o do [Regulamento 549/2004]. Se uma autoridade supervisora nacional considerar que o titular do certificado deixou de satisfazer esses requisitos ou condições, deve tomar as medidas adequadas, assegurando simultaneamente a continuidade dos serviços, desde que a segurança não fique comprometida. Essas medidas podem incluir a revogação do certificado.

[…]»

9

O artigo 8.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Designação de prestadores de serviços de tráfego aéreo», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram a prestação de serviços de tráfego aéreo em regime de exclusividade dentro de blocos específicos de espaço aéreo pertencentes ao espaço aéreo sob a sua responsabilidade. Para esse efeito, os Estados‑Membros designam um prestador de serviços de tráfego aéreo titular de um certificado válido na Comunidade.

2.   Para a prestação de serviços transfronteiriços, os Estados‑Membros asseguram que o cumprimento do presente artigo e do n.o 3 do artigo 10.o não seja impedido pelo facto de os respetivos sistemas jurídicos nacionais exigirem que os prestadores de serviços de tráfego aéreo que prestam serviços no espaço aéreo sob a responsabilidade desse Estado‑Membro:

a)

Sejam propriedade, diretamente ou através de participação maioritária, desse Estado‑Membro ou dos seus nacionais;

b)

Tenham o seu principal centro de atividades ou a sua sede no território desse Estado‑Membro; ou

c)

Utilizem exclusivamente estruturas nesse Estado‑Membro.

3.   Os Estados‑Membros definem os direitos e as obrigações a cumprir pelos prestadores de serviços de tráfego aéreo designados. Tais obrigações podem incluir condições com vista à prestação atempada de informações que permitam identificar todos os movimentos de aeronaves no espaço aéreo sob a sua responsabilidade.

4.   Os Estados‑Membros têm o poder discricionário de escolher um prestador de serviços de tráfego aéreo, desde que este cumpra os requisitos e as condições a que se referem os artigos 6.o e 7.o

5.   No que respeita aos blocos funcionais de espaço aéreo criados nos termos do artigo 9.o‑A que se estendam pelo espaço aéreo sob a responsabilidade de mais de um Estado‑Membro, os Estados‑Membros em causa designam conjuntamente, nos termos do n.o 1 do presente artigo, um ou mais prestadores de serviços de tráfego aéreo, pelo menos um mês antes da implementação do bloco de espaço aéreo em questão.

6.   Os Estados‑Membros informam de imediato a Comissão e os outros Estados‑Membros de qualquer decisão tomada ao abrigo do presente artigo relativamente à designação de prestadores de serviços de tráfego aéreo nos blocos específicos de espaço aéreo pertencentes ao espaço aéreo sob a sua responsabilidade.»

10

Nos termos do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 550/2004:

«O regime de tarifação deve basear‑se nos custos dos serviços de navegação aérea suportados pelos prestadores de serviços em benefício dos utilizadores do espaço aéreo. O regime deve repartir esses custos por categorias de utilizadores.»

Regulamento (CE) n.o 1008/2008

11

O artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 1008/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de setembro de 2008, relativo a regras comuns de exploração dos serviços aéreos na Comunidade (JO 2008, L 293, p. 3), tem por epígrafe «Definições». Dispõe o seguinte:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

14.

“Direito de tráfego”: o direito de explorar um serviço aéreo entre dois aeroportos [da União];

[…]»

12

O artigo 15.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«As transportadoras aéreas [da União] estão autorizadas a explorar serviços aéreos [dentro da União].»

13

O artigo 19.o, n.o 1, do referido regulamento enuncia:

«O exercício de direitos de tráfego está sujeito às normas operacionais comunitárias, nacionais, regionais ou locais publicadas em matéria de segurança intrínseca e extrínseca, proteção do ambiente e atribuição de faixas horárias.»

Direito belga

14

O artigo 1.o, n.os 1 e 4, da loi portant réforme de certaines entreprises publiques économiques (Lei que Reforma Certas Empresas Públicas Económicas), de 21 de março de 1991 (Moniteur belge de 27 de março de 1991, p. 6155), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei das Empresas Públicas»), prevê:

«1.   Os organismos de interesse público que devam dispor de autonomia de gestão num determinado setor industrial ou comercial podem, após adaptação por lei do seu estatuto orgânico às disposições do presente título, obter essa autonomia mediante a celebração de um contrato de gestão com o Estado nos termos da presente lei.

[…]

4.   Os organismos classificados de empresas públicas autónomas são:

[…]

4o A Skeyes.»

15

O artigo 170.o da Lei das Empresas Públicas dispõe:

«A Skeyes tem por objeto:

1o

Garantir a segurança da navegação aérea nos espaços aéreos pelos quais o Estado belga é responsável por força da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional, de 7 de dezembro de 1944, nomeadamente, do seu anexo 2, aprovado pela Lei de 30 de abril de 1947 ou por força de qualquer outro acordo internacional.

2o

Garantir, no aeroporto de Bruxelas‑Nacional, o controlo dos movimentos das aeronaves na aproximação, aterragem, descolagem e nas pistas e caminhos de circulação, bem como a prestação de serviços de orientação por sinaleiro das aeronaves nas áreas de tráfego, e continuar a garantir a segurança do tráfego aéreo dos aeroportos e aeródromos públicos regionais, em conformidade com o acordo de cooperação celebrado em 30 de novembro de 1989 com as regiões.

3o

Prestar aos serviços de polícia e de inspeção aeronáutica e aeroportuária informações sobre as aeronaves, a sua pilotagem, os seus movimentos e os seus efeitos observáveis.

4o

Prestar informações meteorológicas para a navegação aérea, bem como serviços de telecomunicações ou outros serviços relacionados com as atividades referidas nos n.os 1 ou 2.»

16

O artigo 171.o da Lei das Empresas Públicas prevê:

«As atividades referidas no artigo 170.o, n.os 1 a 3, constituem missões de serviço público.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17

Em conformidade com o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, a Skeyes foi designada pelo Reino da Bélgica como prestadora de serviços de tráfego aéreo para o espaço aéreo pelo qual este Estado‑Membro é responsável (a seguir «espaço aéreo belga»). A sua missão consiste, nomeadamente, em garantir a segurança da navegação aérea no espaço aéreo belga. Neste contexto, a Skeyes está autorizada a adotar medidas ditas de «Zero rate» (taxa zero), que implicam que nenhuma aeronave possa descolar, aterrar ou circular no espaço aéreo belga ou em determinados setores deste espaço.

18

Na sequência de ações coletivas de controladores aéreos, a Skeyes viu‑se, por diversas vezes no período compreendido entre fevereiro e maio de 2019, obrigada a encerrar o espaço aéreo belga devido ao número insuficiente de pessoal.

19

Em 16 de maio de 2019, tendo a Skeyes decidido encerrar o espaço aéreo belga devido a uma greve dos controladores aéreos, a Ryanair, que opera a partir de aeroportos situados na Bélgica, apresentou ao Tribunal de l’Entreprise du Hainaut, division de Charleroi (Tribunal das Empresas de Hainaut, Divisão de Charleroi), órgão jurisdicional de reenvio, um pedido de extrema urgência destinado a instar a Skeyes a garantir uma normal operação do tráfego aéreo.

20

Por despacho do mesmo dia, este órgão jurisdicional deferiu o pedido da Ryanair, fixando uma sanção pecuniária compulsória no valor de 250000 euros por cada hora durante a qual o espaço aéreo belga permanecesse encerrado devido à greve dos controladores aéreos. Os efeitos deste despacho foram limitados ao período compreendido entre 16 e 24 de maio de 2019.

21

A Ryanair foi notificada do referido despacho em 16 de maio de 2019, após a reabertura do espaço aéreo belga. Uma vez que, até 24 de maio de 2019, não se verificou um novo encerramento do espaço aéreo belga, este despacho deixou de produzir efeitos jurídicos sem que a sanção pecuniária compulsória tivesse sido aplicada.

22

Em 21 de junho de 2019, a Skeyes deduziu oposição de terceiro contra o Despacho de 16 de maio de 2019 perante o órgão jurisdicional de reenvio. Alega, a título principal, que o órgão jurisdicional de reenvio não era competente para conhecer do pedido relativo à sua função de controlador do espaço aéreo belga. Com efeito, dado que a regulação do espaço aéreo belga é da exclusiva responsabilidade da Skeyes, a Ryanair não é titular de um direito subjetivo que lhe permita apresentar um tal pedido. A título subsidiário, a Skeyes considera que, na sua qualidade de sociedade de direito público, não pode estar abrangida pela competência do órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que este último é um tribunal cível.

23

O órgão jurisdicional de reenvio considera que o pedido da Ryanair se baseia na existência de direitos subjetivos, como o seu direito a não ser prejudicada de forma desproporcionada no exercício da sua atividade económica enquanto companhia aérea, o seu direito a intentar uma ação de indemnização contra a Skeyes, bem como o seu direito a pedir que esta última seja proibida, sob pena de sanção pecuniária compulsória, de encerrar novamente o espaço aéreo.

24

Este órgão jurisdicional interroga‑se a respeito da questão de saber se, não obstante o poder discricionário da Skeyes para decidir da possibilidade de encerramento do espaço aéreo belga, as companhias aéreas, como a Ryanair, devem dispor, por força do Regulamento n.o 550/2004, de um recurso efetivo que lhes permita garantir a proteção dos seus direitos em caso de incumprimento por parte da Skeyes.

25

Nestas condições, o Tribunal de l’entreprise du Hainaut, division de Charleroi (Tribunal das Empresas de Hainaut, Divisão de Charleroi), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o Regulamento n.o 550/2004 e, em particular, o seu artigo 8.o, ser interpretado no sentido de que autoriza os Estados‑Membros a subtrair à fiscalização jurisdicional desse Estado‑Membro os incumprimentos alegados da obrigação de prestação de serviços pelo prestador de serviços de tráfego aéreo, ou devem as disposições do referido regulamento ser interpretadas no sentido de que obrigam os Estados‑Membros a prever uma solução eficaz contra os incumprimentos alegados, tendo em conta a natureza dos serviços a prestar?

2)

Deve o Regulamento n.o 550/2004, na medida em que precisa que “[a] prestação de serviços de tráfego aéreo, tal como prevista no presente regulamento, está relacionada com o exercício de prorrogativas de poder público que não têm caráter económico que justifique a aplicação das regras de concorrência do Tratado”, ser interpretado no sentido de que exclui não apenas as regras de concorrência propriamente dita, mas também todas as outras regras aplicáveis às empresas públicas ativas num mercado de bens e serviços, que têm um efeito direto sobre a concorrência, como as que proíbem os entraves à liberdade de empresa e de prestação de serviços?»

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

26

O Governo belga considera que as duas questões prejudiciais são inadmissíveis.

27

Segundo o Governo belga, na primeira questão o órgão jurisdicional de reenvio limitou‑se a reproduzir a posição da Skeyes. Não precisou qual o quadro jurídico nacional relevante nem explicou qual a utilidade desta questão para a solução do litígio. Segundo aquele Governo, a segunda questão está redigida de uma forma demasiado genérica para permitir às partes e aos interessados apresentar observações escritas e não respeita, nomeadamente, as exigências do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

28

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional, na aceção do artigo 267.o TFUE, quando, designadamente, as exigências respeitantes ao conteúdo do pedido de decisão prejudicial que figuram no artigo 94.o do Regulamento de Processo não forem respeitadas ou quando for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União, solicitadas pelo órgão jurisdicional nacional, não têm nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou quando o problema for hipotético (Acórdão de 25 de março de 2021, Obala i lučice, C‑307/19, EU:C:2021:236, n.o 48 e jurisprudência referida).

29

No caso em apreço, resulta inequivocamente das explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial e, nomeadamente, das considerações relativas à exposição da jurisprudência nacional em matéria de competência dos tribunais cíveis, que este considera que a resposta às questões submetidas é necessária para lhe permitir decidir do litígio que lhe foi submetido. Em particular, estas questões devem permitir‑lhe, por um lado, decidir sobre a sua própria competência à luz das atribuições da Skeyes ao abrigo do Regulamento n.o 550/2004 e, por outro, determinar se uma companhia aérea pode invocar a liberdade de empresa ou a livre prestação de serviços como fundamento contra uma decisão tomada pela Skeyes no âmbito das suas prerrogativas de serviço público.

30

Decorre do que precede que as questões prejudiciais são admissíveis.

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

31

Importa salientar que o Regulamento n.o 550/2004, ao qual se referem as questões prejudiciais, se insere, conforme os considerandos 3 e 4, bem como o artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, no contexto das disposições do Regulamento n.o 549/2004 que estabelece o quadro para a realização do céu único europeu.

32

Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento 549/2004, o céu único europeu tem por objetivo reforçar as atuais normas de segurança do tráfego aéreo, contribuir para o desenvolvimento sustentável do sistema de transporte aéreo e melhorar o desempenho global do sistema de gestão do tráfego aéreo e dos serviços de navegação aérea para o tráfego aéreo geral na Europa, a fim de satisfazer as exigências de todos os utilizadores do espaço aéreo. Estes utilizadores são definidos no artigo 2.o, n.o 8, deste regulamento como os operadores de aeronaves exploradas em sede de tráfego aéreo geral.

33

Decorre, por conseguinte, das disposições referidas no número anterior que as companhias aéreas, enquanto operadores de aeronaves, são utilizadores do espaço aéreo.

34

É à luz destas considerações que importa responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Quanto à primeira questão

35

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004 deve ser interpretado no sentido de que confere aos utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, um direito de recurso perante os órgãos jurisdicionais nacionais contra o prestador de serviços de tráfego aéreo, com vista a submeter a fiscalização jurisdicional os incumprimentos alegados da obrigação de prestação de serviços que incumbe a este último no exercício das suas prerrogativas de serviço público.

36

A fim de responder a esta questão, há que salientar que, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 550/2004, os Estados‑Membros asseguram a prestação de serviços de tráfego aéreo em regime de exclusividade dentro de blocos específicos de espaço aéreo pertencentes ao espaço aéreo sob a sua responsabilidade e que designam um prestador de serviços de tráfego aéreo titular de um certificado válido na União. O artigo 8.o, n.o 3, deste regulamento precisa expressamente que são os Estados‑Membros que definem os direitos, assim como as obrigações a cumprir pelos prestadores de serviços de tráfego aéreo designados.

37

Por outro lado, este regulamento não contém nenhuma disposição específica que tenha por objeto conceder aos utilizadores do espaço aéreo um direito a recorrer judicialmente das decisões do referido prestador.

38

Nestas condições, de forma a determinar se, apesar do silêncio do artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004 a este respeito, esses utilizadores dispõem, não obstante, de tal direito a um recurso efetivo, há que ter em conta não só os termos desta disposição, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pelo ato legislativo em que se insere.

39

Com efeito, resulta tanto do contexto do artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, assim como do objetivo prosseguido por este último, que os utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, são titulares de certos direitos que podem ser afetados com o encerramento desse espaço.

40

Em primeiro lugar, relativamente ao contexto em que se insere o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, importa primeiro observar que o artigo 7.o, n.o 3, deste regulamento refere que os certificados necessários à prestação dos serviços de navegação aérea podem ser emitidos, pelas autoridades supervisoras nacionais, aos prestadores de serviços de navegação aérea para cada tipo de serviço definido no artigo 2.o do Regulamento n.o 549/2004 ou para um conjunto de serviços.

41

Em conformidade com o n.o 4 deste último artigo, estes serviços incluem, além dos serviços de tráfego aéreo, os serviços de comunicação, navegação e vigilância, os serviços meteorológicos para a navegação aérea e os serviços de informação aeronáutica. Por outro lado, decorre do considerando 3 do Regulamento n.o 549/2004 que esses serviços se inserem no âmbito de uma missão de interesse geral que inclui obrigações de serviço público.

42

Segundo, o artigo 7.o, n.o 4, do Regulamento n.o 550/2004 exige que os utilizadores do espaço aéreo possam aceder aos serviços mencionados numa base não discriminatória. Além disso, em conformidade com o artigo 15.o deste regulamento, lido à luz do seu considerando 22, são estes utilizadores que devem suportar os custos dos serviços de navegação aérea prestados em seu benefício ou diretamente relacionados com a exploração de aeronaves.

43

Assim, resulta do contexto em que se insere o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004 que as obrigações do prestador de serviços de tráfego aéreo, designado com base neste artigo, correspondem a todos os serviços que podem ser necessários à realização da atividade económica dos utilizadores do espaço aéreo.

44

Em segundo lugar, relativamente aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 550/2004, resulta do considerando 10, bem como do artigo 1.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.os 1 e 7, deste regulamento que este visa garantir a continuidade da prestação de todos os serviços de navegação aérea no céu único europeu.

45

Daqui decorre que, tendo em conta o contexto em que se insere o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004 e o objetivo prosseguido por este regulamento, as obrigações previstas no artigo 8.o do referido regulamento, lido em conjugação com o artigo 2.o, ponto 4, do Regulamento n.o 549/2004, constituem serviços prestados no interesse dos utilizadores do espaço aéreo e são, assim, suscetíveis de lhes conferir direitos possivelmente afetados pelo encerramento do espaço aéreo.

46

Todavia, embora os utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, disponham dos direitos conferidos pelo direito derivado da União aplicável, estes estão igualmente sujeitos às normas do direito da União relativas à segurança, como evidencia, por um lado, o considerando 3 do Regulamento n.o 549/2004 e, por outro, o artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1008/2008. Como sublinha o advogado‑geral no n.o 43 das suas conclusões, o objetivo da segurança aérea está no cerne dos Regulamentos n.os 549/2004 e 550/2004. O mesmo insere‑se num contexto no qual uma decisão de encerramento do espaço aéreo é tomada por um prestador de serviços de tráfego aéreo.

47

Por outro lado, como salientou igualmente o advogado‑geral no n.o 38 das suas conclusões, estes utilizadores também beneficiam dos direitos e liberdades conferidos pelo direito primário da União, entre os quais figura a liberdade de empresa reconhecida no artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

48

Com efeito, nos termos do artigo 16.o da Carta é reconhecida a liberdade de empresa, de acordo com o direito da União e as legislações e práticas nacionais. A proteção conferida por este artigo abrange a liberdade de exercer uma atividade económica ou comercial, a liberdade contratual e a livre concorrência [v., neste sentido, Acórdãos de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich, C‑283/11, EU:C:2013:28, n.os 41 e 42, e de 15 de abril de 2021, Federazione nazionale delle imprese Elettrotecniche ed elettroniche (ANIE) e. o., C‑798/18 e C‑799/18, EU:C:2021:280, n.os 55 e 56].

49

Daqui resulta que um utilizador do espaço aéreo, como a Ryanair, é, por força do artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, lido em conjugação com o artigo 2.o, ponto 4, do Regulamento n.o 549/2004, titular de certos direitos, e deve ser considerado como potencialmente lesado nesses direitos por uma decisão de encerramento do espaço aéreo tomada por um prestador de serviços de tráfego aéreo.

50

Ora, relativamente aos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União, o artigo 47.o da Carta enuncia, no seu primeiro parágrafo, que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a intentar uma ação perante um tribunal, nas condições previstas neste artigo.

51

A este direito corresponde a obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, de estabelecer as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União [Acórdãos de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 44, e de 6 de outubro de 2020, Estado luxemburguês (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 47].

52

Dito isto, na falta de regulamentação da União na matéria, e ao abrigo do princípio da autonomia processual, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das vias judiciais, desde que, no entanto, estas modalidades não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União, menos favoráveis do que aquelas que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 58).

53

Além disso, uma vez que o processo principal se insere no âmbito de um pedido formulado com extrema urgência, há que recordar que o juiz nacional que conhece de um litígio regulado pelo direito da União deve poder conceder medidas provisórias no sentido de garantir a plena eficácia da decisão jurisdicional a tomar quanto à existência dos direitos invocados com fundamento no direito da União (Acórdãos de 13 de março de 2007, Unibet, C‑432/05, EU:C:2007:163, n.o 67, e de 14 de maio de 2020, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság Dél‑alföldi Regionális Igazgatóság, C‑924/19 PPU e C‑925/19 PPU, EU:C:2020:367, n.o 297).

54

Uma vez que apenas o princípio da efetividade está em causa no presente processo, importa referir que o direito da União não tem por efeito obrigar os Estados‑Membros a instituírem vias processuais diferentes das previstas no direito interno, a menos, no entanto, que resulte da sistemática da ordem jurídica nacional em causa que não existe nenhuma via processual que permita, ainda que a título incidental, assegurar o respeito pelos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, ou que a única via de acesso aos tribunais signifique que os litigantes estão obrigados a violar a lei (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 62).

55

No que se refere ao litígio no processo principal, resulta da decisão de reenvio que existe uma dualidade a propósito da competência dos tribunais cíveis e do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica). A este respeito, ao abrigo do direito da União, o Estado‑Membro em causa pode optar por conferir competência para decidir um litígio a um tribunal administrativo ou atribuir essa competência aos tribunais cíveis, ou mesmo a ambos, segundo as regras de repartição de competências que ele próprio determina, desde que essas regras não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União.

56

Em contrapartida, embora o poder discricionário de que eventualmente dispõe uma autoridade administrativa ou uma empresa pública autónoma, como a Skeyes, no exercício das suas prerrogativas de poder público, possa ser tido em conta para determinar o alcance da fiscalização jurisdicional (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Association of Independent Meat Suppliers e Cleveland Meat Company, C‑579/19, EU:C:2021:665, n.os 78 e 79), tal não pode implicar a incompetência do órgão jurisdicional suscetível de assegurar o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União e a efetividade do recurso.

57

Atendendo ao que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, lido em conjugação com o artigo 2.o, ponto 4, do Regulamento 549/2004 e à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que confere aos utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, um direito de recurso efetivo perante os órgãos jurisdicionais nacionais contra o prestador de serviços de tráfego aéreo, com vista a submeter a fiscalização jurisdicional os incumprimentos alegados da obrigação de prestação de serviços que incumbe a este último.

Quanto à segunda questão

58

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 550/2004, lido à luz do seu considerando 5, bem como do artigo 58.o, n.o 1, TFUE, e do artigo 16.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que exclui a aplicação das regras de concorrência, previstas no TFUE, às prestações de serviços de navegação aérea relacionadas com o exercício de prerrogativas de poder público, tal como previstas nesse regulamento, e também a aplicação das regras relativas aos direitos e liberdades dos utilizadores do espaço aéreo, como a livre prestação de serviços e a liberdade de empresa.

59

Nos termos do considerando 5 do Regulamento n.o 550/2004, a prestação de serviços de navegação aérea, tal como prevista neste regulamento, está relacionada com o exercício de prerrogativas de poder público que não têm um caráter económico que justifique a aplicação das regras de concorrência do Tratado.

60

A este respeito, importa começar por recordar que, embora o preâmbulo de um ato da União possa precisar o conteúdo das disposições deste, o mesmo não tem valor jurídico vinculativo. O referido preâmbulo não poderá portanto ser invocado para derrogar as próprias disposições do ato em causa, nem para interpretar essas disposições em sentido manifestamente contrário à sua redação (Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Puppinck e o./Comissão, C‑418/18 P, EU:C:2019:1113, n.os 75 e 76).

61

Ora, o conteúdo do considerando 5 do Regulamento n.o 550/2004 não é concretizado em nenhuma disposição deste regulamento.

62

Em seguida, embora este considerando reflita, em substância, uma jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a prestação de serviços de navegação aérea, na medida em que está ligada ao exercício de prerrogativas de poder público, não tem um caráter económico que justifique a aplicação das regras de concorrência do TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de janeiro de 1994, SAT Fluggesellschaft, C‑364/92, EU:C:1994:7, n.o 30, e de 26 de março de 2009, SELEX Sistemi Integrati/Comissão, C‑113/07 P, EU:C:2009:191, n.o 71), o considerando 13 deste regulamento indica, em contrapartida, que a prestação dos serviços de comunicação, navegação e vigilância, bem como dos serviços de informação aeronáutica, deve ser organizada segundo as condições do mercado.

63

Por último, embora a prestação de serviços de navegação aérea esteja relacionada com o exercício de prerrogativas de poder público, o que autoriza os Estados‑Membros a designar, com base no artigo 8.o do Regulamento n.o 550/2004, um prestador de serviços de tráfego aéreo fora das regras da concorrência, tal não significa que os utilizadores do espaço aéreo sejam, ao mesmo tempo, privados dos direitos e liberdades reconhecidos pelo direito da União, como a livre circulação de serviços em matéria de transportes prevista no artigo 58.o, n.o 1, TFUE.

64

Além disso, tal como indicado nos n.os 47 e 48 do presente acórdão, as companhias aéreas beneficiam igualmente da liberdade de empresa consagrada no artigo 16.o da Carta e reconhecida em conformidade com o direito da União e com as legislações e práticas nacionais.

65

Todavia, há que recordar que a liberdade de empresa não constitui uma prerrogativa absoluta. Esta pode ser sujeita a um amplo leque de intervenções do poder público, suscetíveis de estabelecer, no interesse geral, limitações ao exercício da atividade económica [v., neste sentido, Acórdãos de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich, C‑283/11, EU:C:2013:28, n.os 45 e 46, de 16 julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 83, e de 24 de setembro de 2020, YS (Pensões de empresa de pessoal de direção), C‑223/19, EU:C:2020:753, n.o 88].

66

Por outro lado, o artigo 52.o, n.o 1, da Carta autoriza que sejam introduzidas restrições ao exercício dos direitos e liberdades aí reconhecidos, como a liberdade de empresa, desde que essas restrições sejam previstas por lei, respeitem o conteúdo essencial desses direitos e liberdades e que, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros [Acórdãos de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 86, YS (Pensões de empresa de pessoal de direção), C‑223/19, EU:C:2020:753, n.o 88].

67

É ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe, sendo caso disso, verificar o respeito destas condições. No entanto, é possível recordar, a este respeito, como resulta do n.o 46 do presente acórdão, que o exercício do direito dos utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, de explorarem serviços aéreos na União está subordinado a imperativos de segurança. Além disso, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de confirmar que o objetivo que visa o estabelecimento e a manutenção de um nível elevado e consistente de segurança da aviação civil na Europa constitui um objetivo de interesse geral (v., neste sentido, Acórdão de 5 de julho de 2017, Fries, C‑190/16, EU:C:2017:513, n.o 43).

68

Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que o Regulamento n.o 550/2004, lido à luz do seu considerando 5, bem como do artigo 58.o, n.o 1, TFUE, e do artigo 16.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que exclui a aplicação das regras de concorrência previstas no Tratado FUE às prestações de serviços de navegação aérea relacionadas com o exercício de prerrogativas de poder público, como as previstas naquele regulamento, mas que não exclui a aplicação das regras do Tratado FUE e da Carta relativas aos direitos e liberdades dos utilizadores do espaço aéreo, como as relacionadas com a livre prestação de serviços em matéria de transportes e com a liberdade de empresa.

Quanto às despesas

69

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 8.o do Regulamento (CE) n.o 550/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2004, relativo à prestação de serviços de navegação aérea no céu único europeu, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1070/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, ponto 4, do Regulamento (CE) n.o 549/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2004, que estabelece o quadro para a realização do céu único europeu («regulamento‑quadro»), conforme alterado pelo Regulamento n.o 1070/2009, e à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que confere aos utilizadores do espaço aéreo, como as companhias aéreas, um direito de recurso efetivo perante os órgãos jurisdicionais nacionais contra o prestador de serviços de tráfego aéreo, com vista a submeter a fiscalização jurisdicional os incumprimentos alegados da obrigação de prestação de serviços que incumbe a este último.

 

2)

O Regulamento n.o 550/2004, conforme alterado pelo Regulamento n.o 1070/2009, lido à luz do seu considerando 5, bem como do artigo 58.o, n.o 1, TFUE e do artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais, deve ser interpretado no sentido de que exclui a aplicação das regras de concorrência previstas no Tratado FUE às prestações de serviços de navegação aérea relacionadas com o exercício de prerrogativas de poder público, como as previstas naquele regulamento, mas não exclui a aplicação das regras do Tratado FUE e da Carta relativas aos direitos e liberdades dos utilizadores do espaço aéreo, como as relacionadas com a livre prestação de serviços em matéria de transportes e com a liberdade de empresa.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

( i ) A parte introdutória, os n.os 2, 14, 15, 16, 19, 25, 57 e os n.os 1 e 2 do dispositivo do presente texto foram objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha.