ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

13 de janeiro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2011/7/UE — Luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais — Âmbito de aplicação — Conceito de “transação comercial” — Entidade pública que atua como credora de uma empresa — Exclusão — Entrega, por uma entidade pública, de um bem imóvel para usufruto perpétuo a uma empresa contra o pagamento de uma taxa anual»

No processo C‑327/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole, Polónia), por Decisão de 10 de março de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de julho de 2020, no processo

Skarb Państwa — Starosta Nyski

contra

New Media Development & Hotel Services sp. z o.o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: K. Jürimäe, presidente da Terceira Secção, exercendo funções de presidente da Nona Secção, S. Rodin e N. Piçarra (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por M. Brauhoff e G. Gattinara, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 3, alínea b), da Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 2000, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais (JO 2000, L 200, p. 35), bem como do artigo 2.o, ponto 1, e do artigo 12.o, n.o 4, da Diretiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais (JO 2011, L 48, p. 1; retificação no JO 2012, L 233, p. 3).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Skarb Państwa — Starosta Nyski (Tesouro Público — Distrito de Nysa, Polónia) (a seguir «Tesouro Público») à New Media Development & Hotel Services sp. z o.o. (a seguir «New Media») a propósito dos juros a aplicar por atraso no pagamento de uma taxa anual devida ao Tesouro Público como remuneração do usufruto perpétuo de um terreno cedido à New Media.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2011/7

3

Os considerandos 3, 8, 9, 14 e 23 da Diretiva 2011/7 enunciam:

«(3)

Nas transações comerciais entre operadores económicos ou entre operadores económicos e entidades públicas, acontece com frequência que os pagamentos são feitos mais tarde do que o que foi acordado no contrato ou do que consta das condições comerciais gerais. Ainda que os bens sejam entregues ou os serviços prestados, as correspondentes faturas são pagas muito depois do termo do prazo. Atrasos de pagamento desta natureza afetam a liquidez e complicam a gestão financeira das empresas. Também põem em causa a competitividade e a viabilidade das empresas, quando o credor é forçado a recorrer a financiamento externo devido a atrasos de pagamento. O risco destes efeitos perversos aumenta grandemente em períodos de recessão económica, quando o acesso ao crédito é mais difícil.

[…]

(8)

O âmbito de aplicação da presente diretiva deverá limitar‑se aos pagamentos efetuados para remunerar transações comerciais. A presente diretiva não deverá regulamentar as transações com os consumidores, os juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efetuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou os pagamentos efetuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efetuados por companhias de seguros. […]

(9)

A presente diretiva deverá regulamentar todas as transações comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre empresas privadas ou públicas, ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que as entidades públicas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas. […]

[…]

(14)

Por uma questão de coerência da legislação da União, a definição de “entidades adjudicantes” constante da Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais [(JO 2004, L 134, p. 1),] e da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços [(JO 2004, L 134, p. 114)], deverá ser aplicável para efeitos da presente diretiva.

[…]

(23)

Regra geral, as entidades públicas beneficiam de fontes de receita mais seguras, previsíveis e contínuas do que as empresas. Acresce que muitas entidades públicas podem obter financiamento em condições mais atrativas do que as empresas. Ao mesmo tempo, as entidades públicas dependem menos do que as empresas do estabelecimento de relações comerciais estáveis para a consecução dos seus objetivos. Os prazos dilatados de pagamento e os atrasos de pagamento por parte de entidades públicas para bens e serviços acarretam custos injustificados para as empresas. Em consequência, é conveniente introduzir disposições específicas em matéria de transações comerciais para o fornecimento de bens ou para a prestação de serviços pelas empresas às entidades públicas, prevendo, em particular, prazos de pagamento que normalmente não excedam 30 dias de calendário, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato e desde que tal seja objetivamente justificado pela natureza particular ou pelas características do contrato, não excedendo, em caso algum, 60 dias de calendário.»

4

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», prevê:

«1.   O propósito da presente diretiva consiste em combater os atrasos de pagamento nas transações comerciais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, promovendo assim a competitividade das empresas e, em particular, das [pequenas e médias empresas (PME)].

2.   A presente diretiva aplica‑se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais.

[…]»

5

O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», tem a seguinte redação:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)

“Transação comercial”, qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra remuneração;

2)

“Entidade pública”, qualquer entidade adjudicante definida na alínea a) do n.o 1 do artigo 2.o da Diretiva [2004/17] e no n.o 9 do artigo 1.o da Diretiva [2004/18], independentemente do objeto ou do valor do contrato;

3)

“Empresa”, qualquer organização, que não seja uma entidade pública, que desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, mesmo que essa atividade seja exercida por uma pessoa singular;

[…]

6)

“Juro de mora legal”, o juro de mora simples a uma taxa correspondente à soma da taxa de referência e de pelo menos oito pontos percentuais;

[…]»

6

O artigo 3.o da Diretiva 2011/7, relativo às transações comerciais entre empresas, prevê, no n.o 1, que os Estados‑Membros asseguram que, nas transações comerciais entre empresas, o credor tem direito a receber juros de mora sem necessidade de interpelação caso estejam preenchidas as condições aí estabelecidas.

7

O artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Transações entre empresas e entidades públicas», prevê, no n.o 1:

«Os Estados‑Membros asseguram que, nas transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública, o credor tem direito, após o termo do prazo fixado nos n.os 3, 4 ou 6, a receber juros de mora legais, sem necessidade de interpelação, caso estejam preenchidas as seguintes condições:

a)

O credor ter cumprido as suas obrigações contratuais e legais; e

b)

O credor não ter recebido dentro do prazo o montante devido, salvo se o atraso não for imputável ao devedor.

[…]»

8

De acordo com o seu artigo 13.o, primeiro parágrafo, a referida diretiva revogou a Diretiva 2000/35 com efeitos a partir de 16 de março de 2013.

Diretiva 2004/17

9

O artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/17 definia o conceito de «entidades adjudicantes» como «o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou por um ou mais organismos de direito público».

10

Esta definição corresponde, em substância, à definição que figura no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2014/25/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17 (JO 2014, L 94, p. 243), com efeitos a partir de 18 de abril de 2016.

Diretiva 2004/18

11

O artigo 1.o, n.o 9, da Diretiva 2004/18 definia o conceito de «entidades adjudicantes» nos mesmos termos que o artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/17.

12

A Diretiva 2004/18 foi revogada e substituída pela Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65), com efeitos a partir de 18 de abril de 2016. O artigo 2.o, n.o 1, ponto 1, e o artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2014/24 correspondem, respetivamente, ao artigo 1.o, n.o 9, e ao artigo 16.o, alínea a), da Diretiva 2004/18.

Direito polaco

Lei de 8 de março de 2013

13

A ustawa o przeciwdziałaniu nadmiernym opóźnieniom w transakcjach handlowych (Lei Relativa à Prevenção dos Atrasos Excessivos nas Transações Comerciais, texto consolidado), de 8 de março de 2013 (Dz. U. de 2019, posição 118; a seguir «Lei de 8 de março de 2013»), transpôs a Diretiva 2011/7 para o direito polaco e entrou em vigor em 28 de abril de 2013.

14

O artigo 2.o da Lei de 8 de março de 2013 prevê:

«As disposições [desta] lei aplicam‑se às transações comerciais em que sejam partes exclusivas:

1)

os empresários no sentido da ustawa […] — Prawo przedsiębiorców [(Lei sobre o Direito dos Empresários), de 6 de março de 2018];

[…]

3)

as entidades referidas no artigo 3.o, n.o 1, da ustawa […] — Prawo zamówień publicznych [(Lei sobre os Contratos Públicos), de 29 de janeiro de 2004] […]»

15

O artigo 4.o, n.os 1, 2 e 3, da Lei de 8 de março de 2013 contém as seguintes definições:

«Para efeitos da presente lei, entende‑se por:

1)

Transação comercial: um contrato que tenha por objeto o fornecimento de mercadorias ou uma prestação de serviços contra remuneração, se as partes referidas no artigo 2.o celebrarem esse contrato no âmbito da atividade que exercem;

[…]

2)

Autoridade pública: as entidades referidas no artigo 3.o, n.o 1, pontos l a 3a, da Lei sobre os Contratos Públicos, de 29 de janeiro de 2004;

3)

Juros de mora legais nas transações comerciais:

a)

no caso de transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública do setor médico: juros no montante da taxa de referência do Banco Nacional da Polónia mais oito pontos percentuais,

b)

no caso de transações comerciais em que o devedor não é uma entidade pública do setor médico: juros no montante da taxa de referência do Banco Nacional da Polónia mais dez pontos percentuais […]»

16

Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, da Lei de 8 de março de 2013,

«Com exceção das transações em que o devedor é uma autoridade pública, os credores que sejam partes em transações comerciais têm direito, sem que seja necessário uma interpelação para pagamento, e salvo se as partes tiverem acordado uma taxa de juro mais elevada, aos juros de mora legais, relativamente ao período compreendido entre a data em que o pagamento é devido e a data em que é efetuado, se estiverem preenchidas as seguintes condições cumulativas:

1)

o credor tiver cumprido as suas obrigações;

2)

não tiver recebido o pagamento no prazo especificado no contrato.»

Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis

17

O artigo 71.o da ustawa o gospodarce nieruchomościami (Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis), de 21 de agosto de 1997 (Dz. U. de 2018, posição 2204), prevê, nos n.os 1 e 4:

«1.   A entrega de um terreno para usufruto perpétuo está sujeita a uma primeira taxa e a taxas anuais.

[…]

4.   As taxas anuais são pagas antecipadamente, até 31 de março de cada ano, durante todo o período do usufruto perpétuo. […]»

Código Civil

18

Nos termos do artigo 232.o, n.os 1 e 2, do Kodeks cywilny (Código Civil), de 23 de abril de 1964 (Dz. U. de 1964, n.o 16, posição 93), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código Civil»):

«Os terrenos que constituem propriedade do Estado situados dentro dos limites administrativos das cidades, os terrenos do Estado situados fora desses limites, mas incorporados no plano de ordenamento do território da cidade e afetos à realização dos seus objetivos económicos, e os terrenos que constituem propriedade de autarquias locais ou das suas associações podem ser dados para usufruto perpétuo a pessoas singulares e a pessoas coletivas.

Nos casos previstos em disposições específicas, o usufruto perpétuo pode também incidir sobre outros terrenos do Estado, das autarquias locais ou das suas associações.»

19

Nos termos do artigo 238.o deste código, «[o] usufrutuário perpétuo paga uma taxa anual durante o período de vigência do seu direito».

20

De acordo com o artigo 481.o, n.o 1, do referido código, se o devedor pagar fora de prazo uma prestação pecuniária, o credor pode reclamar juros de mora mesmo que não tenha sofrido nenhum prejuízo e se o atraso resultar de circunstâncias não imputáveis ao devedor.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21

No âmbito de um contrato celebrado em 15 de maio de 2014, a New Media adquiriu o usufruto perpétuo de um terreno à pessoa a quem o Tesouro Público tinha inicialmente cedido esse usufruto. Em conformidade com o artigo 71.o da Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis, a New Media, na qualidade de usufrutuário perpétuo, está obrigada a pagar ao Tesouro Público uma taxa anual.

22

Não tendo recebido o montante dessa taxa na data de vencimento de 31 de março de 2018, o Tesouro Público intentou no Sąd Rejonowy w Nysie (Tribunal de Primeira Instância de Nysa, Polónia) uma ação destinada a obter a condenação da New Media no pagamento da quantia de 3365,55 zlótis polacos (PLN) (cerca de 755 euros) devida a título principal, acrescida de juros de mora legais, em conformidade com as disposições da Lei de 8 de março de 2013.

23

Por Sentença proferida em 24 de maio de 2019, esse órgão jurisdicional condenou a New Media no pagamento da quantia devida a título principal, acrescida de juros de mora legais, calculados a partir de 1 de abril de 2018, com fundamento no artigo 481.o do Código Civil e não nas disposições da Lei de 8 de março de 2013, pelo facto de a obrigação de pagamento da taxa anual não resultar de uma «transação comercial», na aceção desta lei, mas ter como base jurídica o artigo 71.o da Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis e o artigo 238.o do Código Civil. Verificou, além disso, que o Tesouro Público não era parte no contrato de 15 de maio de 2014, pelo qual a New Media adquiriu o usufruto perpétuo do terreno em causa.

24

O Tesouro Público interpôs recurso dessa sentença para o Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole, Polónia), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Contesta o indeferimento do seu pedido de pagamento de juros ao abrigo da Lei de 8 de março de 2013, alegando que o litígio no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação desta lei. O usufruto perpétuo, embora estabelecido pela Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis, dá lugar, de pleno direito, a uma relação contratual entre o Tesouro Público, proprietário do imóvel, e o usufrutuário.

25

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, coloca‑se assim a questão de saber se o atraso no pagamento da taxa do usufruto perpétuo permite ao Tesouro Público reclamar juros relativos a esse atraso ao abrigo da Lei de 8 de março de 2013, que implementa a Diretiva 2011/7 no direito polaco, ou segundo as regras previstas no Código Civil.

26

Esse órgão jurisdicional tem dúvidas, antes de mais, sobre a questão de saber se a entrega de um terreno para usufruto perpétuo integra os conceitos de «fornecimento de mercadorias» ou de «prestação de serviços», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, e, por conseguinte, se a taxa anual devida como remuneração desse usufruto é suscetível de integrar o conceito de «transação comercial», na aceção desta disposição.

27

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em seguida, sobre a questão de saber se essa taxa anual está abrangida por uma transação entre uma «empresa» e uma «entidade pública» e, por conseguinte, por uma «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7. Na medida em que a New Media adquiriu o usufruto perpétuo, não do Tesouro Público, mas de um terceiro a quem este último tinha inicialmente cedido esse usufruto, esse órgão jurisdicional interroga‑se, em especial, sobre se apenas essa cessão inicial, na qual o Tesouro Público era parte, está abrangida pelo conceito de «transação comercial», ou se se deve considerar que a New Media sucedeu ao seu cocontratante, com a consequência de os efeitos da cessão inicial entre este último e o Tesouro Público lhe serem, assim, estendidos.

28

Por último, na hipótese de a situação em causa estar abrangida pelo conceito de «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se essa transação comercial entra no âmbito de aplicação temporal desta diretiva, conforme transposta para o direito polaco pela Lei de 8 de março de 2013. Esse órgão jurisdicional esclarece que o legislador polaco, conforme lhe permite a Diretiva 2011/7, excluiu do âmbito de aplicação da Lei de 8 de março de 2013 os contratos celebrados antes de 16 de março de 2013. Ora, no litígio no processo principal, uma vez que o usufruto perpétuo foi inicialmente cedido em 5 de dezembro de 1990, apenas a transferência desse usufruto para a New Media, em 15 de maio de 2014, está abrangida pela Diretiva 2011/7.

29

Foi nestas condições que o Sąd Okręgowy w Opolu (Tribunal Regional de Opole) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem as disposições do artigo 2.o, ponto 1, da [Diretiva 2011/7] ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma leitura dos artigos 2.o e 4.o, ponto 1, da [Lei de 8 de março de 2013] segundo a qual a definição de mercadorias não abrange os imóveis, e a definição de fornecimento de mercadorias não abrange a entrega de um imóvel para usufruto perpétuo, na aceção do artigo 232.o e seguintes do [Código Civil], ou eventualmente que essa atividade não pode ser considerada uma prestação de serviços?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, devem as disposições do artigo 2.o, ponto 1, da [Diretiva 2011/7] ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma leitura dos artigos 71.o e seguintes da [Lei Relativa à Gestão de Bens Imóveis] e do artigo 238.o do [Código Civil] segundo a qual a cobrança de taxas anuais pelo usufruto perpétuo, por parte do [Tesouro Público], a entidades que exercem uma atividade económica mas não eram as entidades originais a quem o Tesouro Público concedeu o direito de usufruto perpétuo, tendo estas adquirido esse direito a outros usufrutuários perpétuos, não se enquadram nos conceitos de transação comercial e de entidade pública na aceção do artigo 2.o, pontos 1 e 2, da referida diretiva e dos artigos 2.o e 4.o, ponto 1, da [Lei de 8 de março de 2013], ou eventualmente que essa atividade não se enquadra no âmbito de aplicação das disposições da referida diretiva e da lei?

3)

Em caso de respostas afirmativas [à] primeira e segunda questões, devem as disposições do artigo 12.o, n.o 4, da [Diretiva 2011/7] e do artigo 6.o, n.o 3, alínea b), da [Diretiva 2000/35] ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma leitura do artigo 15.o da [Lei de 8 de março de 2013] e do artigo 12.o da ustawa z dnia 12 czerwca 2003 r. o terminie zapłaty w transakcjach handlowych (Lei de 12 de junho de 2003, Relativa aos Prazos de Pagamento nas Transações Comerciais) [(Dz. U. de 2003, n.o 139, posição 1323)] que exclui a possibilidade de aplicar as disposições da referida diretiva, e da lei que a transpõe, aos contratos de venda do direito de usufruto perpétuo ao usufrutuário perpétuo atual, que tem a obrigação de efetuar o pagamento da taxa anual, celebrados após 28 de abril de 2013 e 1 de janeiro de 2004, caso a cedência de propriedade para usufruto perpétuo pelo Tesouro Público a outra entidade tenha ocorrido antes de 28 de abril de 2013 e 1 de janeiro de 2004?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à segunda questão

30

Com a segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, uma vez que tem por objeto a primeira condição exigida pelo artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7 para que uma transação possa ser qualificada de «transação comercial», na aceção desta disposição, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se este conceito deve ser interpretado no sentido de que abrange a cobrança, por uma entidade pública, de uma taxa devida como remuneração do usufruto perpétuo de um terreno, a uma empresa de que essa entidade pública é credora.

31

Cabe recordar que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2011/7, esta se aplica a todos os pagamentos efetuados como remuneração de «transações comerciais» e que este conceito está definido no artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7 como «qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra remuneração». Esta última disposição deve ser lida à luz dos considerandos 8 e 9 desta diretiva, donde resulta que a mesma respeita a todos os pagamentos efetuados para remunerar transações comerciais, incluindo as realizadas entre empresas privadas, e com exclusão das transações efetuadas com os consumidores e de outros pagamentos [Acórdão de 9 de julho de 2020, RL (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑199/19, EU:C:2020:548, n.o 22 e jurisprudência referida].

32

O artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7 enuncia, assim, duas condições para que uma transação possa ser qualificada de «transação comercial», na aceção desta disposição, e, assim, entrar no âmbito de aplicação desta diretiva, conforme definido no seu artigo 1.o, n.o 2. Esta transação deve, por um lado, ser efetuada entre empresas ou entre empresas e entidades públicas. Por outro lado, deve conduzir ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra remuneração [Acórdão de 9 de julho de 2020, RL (Diretiva Luta contra os Atrasos de Pagamento), C‑199/19, EU:C:2020:548, n.o 24].

33

No que respeita à primeira destas condições, a que se refere a presente questão prejudicial, o artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2011/7 define o conceito de «entidade pública» como «qualquer entidade adjudicante definida na alínea a) do n.o 1 do artigo 2.o da [Diretiva 2004/17] e no n.o 9 do artigo 1.o da Diretiva [2004/18], independentemente do objeto ou do valor do contrato». Como resulta do considerando 14 da Diretiva 2011/7, esta definição foi adotada por razões de coerência da legislação da União.

34

Em conformidade com estas disposições das Diretivas 2004/17 e 2004/18, o conceito de entidade adjudicante designa «o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou por um ou mais organismos de direito público».

35

O conceito de Estado cobre todos os órgãos que exercem os poderes legislativo, executivo e judicial e deve, tal como o conceito de entidade adjudicante, ser objeto de uma interpretação funcional e ampla (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de setembro de 1998, Comissão/Bélgica, C‑323/96, EU:C:1998:411, n.os 27 e 28, e de 5 de outubro de 2017, LitSpecMet, C‑567/15, EU:C:2017:736, n.o 31 e jurisprudência referida).

36

O conceito de «empresa», referido no artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, é, por sua vez, definido no artigo 2.o, ponto 3, desta diretiva e designa «qualquer organização, que não seja uma entidade pública, que desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, mesmo que essa atividade seja exercida por uma pessoa singular». Em conformidade com esta definição, uma entidade abrangida pelo conceito de «entidade pública», na aceção do artigo 2.o, ponto 2, desta diretiva, não pode, por esse facto, ser qualificada de «empresa», na aceção do artigo 2.o, ponto 3, da referida diretiva.

37

No entanto, a redação do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7 não permite, por si só, determinar se uma transação em que uma entidade pública é credora de uma empresa integra o conceito de «transação comercial», na aceção desta disposição, e, por conseguinte, o âmbito de aplicação desta diretiva. Nestas condições, em conformidade com jurisprudência constante, há que atender ao contexto em que essa disposição se insere e aos objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte [v., neste sentido, Acórdãos de 18 de novembro de 2020, Techbau, C‑299/19, EU:C:2020:937, n.o 38, e de 9 de julho de 2020, RL (Diretiva luta contra os atrasos de pagamento), C‑199/19, EU:C:2020:548, n.o 27].

38

Quanto ao contexto do artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2011/7, o artigo 4.o desta diretiva enuncia, no n.o 1, que «[os] Estados‑Membros asseguram que, nas transações comerciais em que o devedor é uma entidade pública, o credor tem direito, após o termo do prazo fixado nos n.os 3, 4 ou 6, a receber juros de mora legais, sem necessidade de interpelação, caso estejam preenchidas as [condições enunciadas nas alíneas a) e b)]». Daqui resulta que este artigo 4.o só se aplica à situação em que a entidade pública é devedora de uma empresa.

39

Por outro lado, importa sublinhar que o artigo 3.o da Diretiva 2011/7 visa apenas as transações entre empresas. Ora, como resulta do n.o 36 do presente acórdão, o conceito de empresa adotado por esta diretiva exclui expressamente que uma entidade pública, na aceção do seu artigo 2.o, ponto 2, possa estar abrangida pela mesma na qualidade de credora de uma empresa.

40

Resulta, assim, da leitura conjugada das disposições do artigo 2.o, pontos 2 e 3, do artigo 3.o, n.o 1, e do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2011/7 que, quando, como no caso em apreço, uma entidade pública é credora de uma empresa, esta situação não está abrangida pelo conceito de «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, desta diretiva.

41

Quanto às finalidades prosseguidas pela Diretiva 2011/7, há que salientar que, enquanto medida de aproximação das legislações dos Estados‑Membros, esta diretiva tem por objetivo, segundo o seu artigo 1.o, n.o 1, «combater os atrasos de pagamento nas transações comerciais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, promovendo assim a competitividade das empresas e, em particular, das PME». A este respeito, o considerando 3 da referida diretiva refere que os atrasos de pagamento afetam a liquidez dessas empresas, bem como a sua competitividade e viabilidade.

42

Em contrapartida, como decorre do considerando 23 da Diretiva 2011/7, regra geral, as entidades públicas beneficiam de fontes de receita mais seguras, previsíveis e contínuas do que as empresas e podem obter financiamento em condições mais atrativas do que estas. Além disso, dependem menos do que as empresas do estabelecimento de relações comerciais estáveis para a consecução dos seus objetivos. Por sua vez, as empresas estão mais expostas a custos injustificados no caso de prazos dilatados de pagamento por parte de entidades públicas para bens e serviços.

43

Atendendo a estas diferenças entre as entidades públicas e as empresas, em especial as PME, e a que, como refere o considerando 9 da Diretiva 2011/7, as primeiras procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas, o legislador da União considerou adequado prever, no artigo 4.o da Diretiva 2011/7, disposições exclusivamente aplicáveis às empresas credoras de quantias em dinheiro relativamente às entidades públicas às quais forneceram mercadorias ou prestaram serviços, sem visar essas entidades públicas na qualidade de credoras das empresas.

44

Assim, resulta do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, lido à luz do contexto em que se insere e dos objetivos prosseguidos por esta diretiva, que, quando uma entidade pública, na aceção do ponto 2 deste artigo, é credora de uma quantia em dinheiro relativamente a uma empresa, as relações entre estas duas entidades não integram o conceito de «transação comercial», na aceção desta disposição, e, por conseguinte, estão excluídas do âmbito de aplicação da referida diretiva.

45

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o litígio no processo principal tem origem no atraso de pagamento ao Tesouro Público de uma taxa anual devida, como remuneração do usufruto perpétuo de um terreno, pela New Media, que é uma «empresa», na aceção do artigo 2.o, ponto 3, da Diretiva 2011/7, à semelhança da pessoa que lhe cedeu esse usufruto.

46

No entanto, na medida em que o Tesouro Público, abrangido pelo conceito de «entidade pública», na aceção do artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2011/7, é credor de quantias em dinheiro devidas pela empresa New Media como remuneração do referido usufruto, a primeira condição para que uma transação possa ser qualificada de «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, conforme interpretado no n.o 44 do presente acórdão, não se verifica. Nestas condições, o Tesouro Público não tem direito aos juros de mora legais previstos no artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva.

47

Atendendo às considerações anteriores, há que responder à segunda questão que o conceito de «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7, deve ser interpretado no sentido de que não abrange a cobrança, por uma entidade pública, de uma taxa devida como remuneração do usufruto perpétuo de um terreno, a uma empresa de que essa entidade pública é credora.

Quanto à primeira e terceira questões

48

Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira e à terceira questão.

Quanto às despesas

49

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

O conceito de «transação comercial», na aceção do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais, deve ser interpretado no sentido de que não abrange a cobrança, por uma entidade pública, de uma taxa devida como remuneração do usufruto perpétuo de um terreno, a uma empresa de que essa entidade pública é credora.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.