ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

16 de dezembro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Âmbito de aplicação — Artigo 51.o — Aplicação do direito da União — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Competência do Tribunal de Justiça — Reenvio efetuado antes da emissão de um mandado de detenção europeu — Admissibilidade — Princípio ne bis in idem — Artigo 50.o — Conceitos de “absolvição” e de “condenação” — Amnistia no Estado‑Membro de emissão — Decisão transitada em julgado de interrupção da ação penal — Revogação da amnistia — Anulação da decisão de interrupção da ação penal — Retoma da ação penal — Necessidade de uma decisão proferida na sequência da apreciação da responsabilidade penal da pessoa em causa — Diretiva 2012/13/UE — Direito à informação em processo penal — Âmbito de aplicação — Conceito de “processo penal” — Processo legislativo para adoção de uma resolução relativa à revogação de uma amnistia — Processo judicial de fiscalização da conformidade dessa resolução com a Constituição nacional»

No processo C‑203/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III, Eslováquia), por Decisão de 11 de maio de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de maio de 2020, no processo penal contra

AB,

CD,

EF,

NO,

JL,

GH,

IJ,

LM,

PR,

ST,

UV,

WZ,

BC,

DE,

FG,

sendo intervenientes:

HI,

Krajská prokuratúra v Bratislave,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal, presidente da Segunda Secção, exercendo funções de presidente da Terceira Secção, J. Passer, F. Biltgen, L. S. Rossi (relatora) e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretária: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 6 de maio de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação de AB, por M. Mandzák, M. Para, Ľ. Hlbočan e Ľ. Kaščák, advokáti,

em representação de CD, EF, NO e JL, por M. Krajčí e M. Para, advokáti,

em representação de IJ, por M. Totkovič e M. Pohovej, advokáti,

em representação da Krajská prokuratúra v Bratislave, por R. Remeta e V. Pravda, na qualidade de agentes,

em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e A. Tokár, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 17 de junho de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 3, TUE, do artigo 82.o TFUE, dos artigos 47.o, 48.o e 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), e da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra AB, CD, EF, NO, JL, GH, IJ, LM, PR, ST, UV, WZ, BC, DE e FG (a seguir «arguidos»), no qual o órgão jurisdicional de reenvio pretende emitir um mandado de detenção europeu contra uma dessas pessoas.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2002/584

3

O artigo 17.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Prazos e regras relativos à decisão de execução do mandado de detenção europeu», prevê, no seu n.o 1:

«Um mandado de detenção europeu deve ser tratado e executado com urgência.»

Diretiva 2012/13

4

O artigo 1.o da Diretiva 2012/13, sob a epígrafe «Objeto», prevê:

«A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada. Estabelece igualmente regras relativas ao direito à informação das pessoas submetidas a um mandado de detenção europeu sobre os seus direitos.»

5

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 1:

«A presente diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro de que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.»

Direito eslovaco

Constituição alterada

6

Nos termos do artigo 86.o do Ústava Slovenskej republiky (Constituição da República Eslovaca), conforme alterada pela ústavný zákon č. 71/2017 Z. z. (Lei Constitucional n.o 71/2017), de 30 de março de 2017 (a seguir «Constituição alterada»):

«A Národná rada Slovenskej republiky (Conselho Nacional da República Eslovaca) é competente, designadamente, para:

[…]

i)

se pronunciar sobre a anulação de uma decisão do presidente [da República Eslovaca] adotada em aplicação do artigo 102.o, n.o 1, alínea j), caso a mesma seja contrária aos princípios de um Estado democrático e de direito; a resolução adotada tem alcance geral e é publicada do mesmo modo que uma lei,

[…]»

7

O artigo 129.o‑a desta Constituição prevê:

«O Ústavný súd Slovenskej republiky [(Tribunal Constitucional da República Eslovaca)] pronuncia‑se sobre a constitucionalidade de uma resolução do Conselho Nacional da República Eslovaca que revogue uma amnistia ou um perdão individual, decidida em aplicação do artigo 86.o, alínea i). O Tribunal Constitucional abre oficiosamente um procedimento para efeitos do previsto no primeiro período […]»

8

O artigo 154.o‑f da referida Constituição enuncia:

«(1)   O disposto no artigo 86.o, alínea i), no artigo 88.o‑a e no artigo 129.o‑a aplica‑se igualmente ao artigo V e ao artigo VI da Decisão do presidente do Governo da República Eslovaca de 3 de março de 1998 que decreta uma amnistia, publicada com o n.o 55/1998, à Decisão do presidente do Governo da República Eslovaca de 7 de julho de 1998 que decreta uma amnistia, publicada sob o n.o 214/1998, e à Decisão do presidente da República Eslovaca de 12 de dezembro de 1997, que concede um perdão a um arguido […]

(2)   A revogação das amnistias e perdões em aplicação do n.o 1

a)

implica a anulação das decisões das autoridades públicas na medida em que tenham sido adotadas e fundamentadas com base nas amnistias e perdões mencionados no n.o 1, e

b)

faz cessar os obstáculos legais à ação penal fundados em amnistias e perdões mencionados no n.o 1; a duração destes obstáculos legais não é integrada no cálculo dos prazos de prescrição relativos aos factos objeto das amnistias e perdões referidos no n.o 1.»

Lei do Tribunal Constitucional alterada

9

O artigo 48.o‑b na sexta secção do segundo título da terceira parte da zákon č. 38/1993 Z. z. o organizácii Ústavného súdu Slovenskej republiky, o konaní pred ním a o postavení jeho sudcov (Lei n.o 38/1993 Relativa à Organização, às Regras Processuais e ao Estatuto dos Juízes do Tribunal Constitucional da República Eslovaca), conforme alterada pela zákon č. 72/2017 Z. z. (Lei 72/2017), de 30 de março de 2017 (a seguir «Lei do Tribunal Constitucional alterada»), previa, nos seus n.os 1 a 3:

«(1)   O Tribunal Constitucional inicia oficiosamente o processo de análise do mérito, por força do artigo 129.oa da Constituição, na data da publicação no Zbierka zákonov [(Jornal oficial)] da Resolução adotada pelo Conselho Nacional da República Eslovaca em aplicação do artigo 86.o, alínea i), da Constituição.

(2)   Só o Conselho Nacional da República Eslovaca é parte no processo.

(3)   A outra parte no processo é o Governo da República Eslovaca, representado pelo ministro da justiça da República Eslovaca, se o processo tiver por objeto uma resolução que tenha revogado uma amnistia, ou o presidente da República Eslovaca se o processo tiver por objeto uma resolução que tenha revogado um perdão individual.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10

Os arguidos foram objeto de uma ação penal na Eslováquia por diversas infrações pretensamente cometidas em 1995.

11

Em 3 de março de 1998, o presidente do Governo da República Eslovaca, que, devido ao termo do mandato do presidente da República Eslovaca, exercia, à época, os poderes deste, decretou uma amnistia que abrangia essas infrações (a seguir «amnistia de 1998»).

12

Por Decisão de 29 de junho de 2001, o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III, Eslováquia) arquivou o referido processo com fundamento, designadamente, nessa amnistia. Esta decisão, que transitou em julgado, produziu, no direito eslovaco, os mesmos efeitos que teria produzido uma sentença absolutória.

13

Em 4 de abril de 2017, entraram em vigor a Lei constitucional n.o 71/2017 e a Lei n.o 72/2017.

14

Por Resolução de 5 de abril de 2017, o Conselho Nacional da República Eslovaca, com fundamento no artigo 86.o, alínea i), da Constituição alterada, revogou a amnistia de 1998.

15

Por Acórdão de 31 de maio de 2017, o Ústavný súd Slovenskej republiky (Tribunal Constitucional da República Eslovaca) declarou, em aplicação do artigo 129.o‑a da Constituição alterada, que a referida resolução era conforme à Constituição.

16

Em conformidade com o artigo 154.o‑f, n.o 2, da Constituição alterada, a Resolução de 5 de abril de 2017 implica a anulação da Decisão de 29 de junho de 2001 do Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III), pelo que foi retomada a ação penal contra os arguidos.

17

O órgão jurisdicional de reenvio indica que, a pedido da Krajská prokuratúra v Bratislave (procuradoria regional de Bratislava, Eslováquia), emitiu um mandado de detenção internacional contra ST, com o fundamento de que este se podia encontrar no Mali. Acrescenta que, não podendo excluir que essa pessoa se encontre no território de um dos Estados‑Membros, tem a intenção de emitir igualmente um mandado de detenção europeu relativamente a ela.

18

Todavia, esse órgão jurisdicional questiona‑se se o princípio ne bis in idem se opõe à emissão de tal mandado de detenção europeu no processo principal.

19

A este respeito, após ter indicado que, do seu ponto de vista, a Decisão‑Quadro 2002/584 e, consequentemente, a Carta são aplicáveis no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio explica que se deve assegurar, nomeadamente, antes de emitir um mandado de detenção europeu, que a proteção dos direitos fundamentais da pessoa em causa seja garantida. Para este efeito, pretende saber, antes de mais, se uma decisão definitiva que põe termo à ação penal é abrangida pelo princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta, em especial num contexto em que tal decisão foi tomada com base numa amnistia e posteriormente anulada por efeito de uma medida legislativa que revoga essa amnistia, sem decisão judicial específica nem processo judicial.

20

Em seguida, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se se um processo legislativo, como o que está em causa no processo principal, cujo objeto é a revogação de uma amnistia, com o efeito de anular uma decisão definitiva individual que interrompeu a ação penal, é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13, que consagra o direito de qualquer arguido obter, em cada fase do processo penal, as informações relativas a esse processo, na medida em que sejam necessárias para garantir um processo equitativo, bem como o direito de acesso ao processo. Em caso de resposta afirmativa, esse órgão jurisdicional observa que tanto o processo no Conselho Nacional da República Eslovaca como o processo no Ústavný súd Slovenskej republiky (Tribunal Constitucional da República Eslovaca) obstam a que uma parte implicada num ou noutro desses processos possa exercer os seus direitos processuais fundamentais, o que seria suscetível de violar não só as disposições da referida diretiva mas também os artigos 47.o e 50.o da Carta, bem como o artigo 82.o TFUE.

21

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se se uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, por força da qual a fiscalização, pelo Tribunal Constitucional de um Estado‑Membro, de uma disposição legislativa que revoga uma amnistia está limitada à apreciação da sua conformidade com a Constituição nacional, sem que possa ser apreciada, além disso, a sua conformidade com o direito da União, é compatível com o artigo 267.o TFUE, com os direitos fundamentais garantidos, nomeadamente, com os artigos 47.o e 50.o da Carta, bem como com o princípio da cooperação leal, que decorre do artigo 4.o, n.o 3, TUE. Por outro lado, o «mecanismo nacional» de revogação de uma amnistia pode, segundo o referido órgão jurisdicional, entrar em conflito com os princípios da proporcionalidade e da efetividade, que limitam a autonomia processual dos Estados‑Membros na adoção de disposições jurídicas internas.

22

Nestas circunstâncias, o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O princípio “ne bis in idem” opõe‑se à emissão de um mandado de detenção europeu na aceção da Decisão‑quadro [2002/584], tendo em conta o artigo 50.o da [Carta], quando o processo penal tenha sido definitivamente [arquivado] por uma decisão judicial de absolvição ou de interrupção da instância, no caso de estas decisões terem sido proferidas com base numa amnistia que foi revogada pelo legislador depois de estas decisões se terem tornado definitivas e a ordem jurídica interna prever que a revogação de tal amnistia implica a anulação das decisões das autoridades públicas se estas tiverem sido tomadas com fundamento em amnistias e perdões, desaparecendo assim os obstáculos legais às ações penais fundad[o]s numa amnistia assim revogada, sem necessidade de uma decisão judicial ou de procedimento jurisdicional especial?

2)

Uma disposição da lei nacional que anula diretamente, sem decisão de um órgão jurisdicional nacional, a decisão de um órgão jurisdicional nacional que interrompe o processo penal que, por força do direito nacional, é uma decisão definitiva que implica a absolvição e com base na qual foi definitivamente interrompido o processo penal na sequência de uma amnistia concedida em conformidade com uma lei nacional, é compatível com o direito a um tribunal imparcial, garantido pelo artigo 47.o da [Carta] e com o direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito, garantido no artigo 50.o da [Carta] e no artigo 82.o [TFUE]?

3)

Uma disposição do direito nacional que limita a fiscalização pelo [Ústavný súd Slovenskej republiky (Tribunal Constitucional da República Eslovaca)] da resolução do [Conselho Nacional da República Eslovaca] que revoga uma amnistia ou perdões individuais, adotada em aplicação do artigo 86.o, alínea i), da Constituição [alterada], à apreciação da respetiva constitucionalidade, sem tomar em conta atos vinculativos adotados pela União Europeia, nomeadamente a [Carta], o Tratado [FUE] e o Tratado [UE], é compatível com o princípio da cooperação leal na aceção do artigo 4.o, n.o 3, [TUE], do artigo 267.o [TFUE] e do artigo 82.o [TFUE], com o direito a um tribunal imparcial, garantido no artigo 47.o da [Carta] e com o direito a não ser julgado e punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito, garantido no artigo 50.o da [Carta]?»

Quanto à tramitação processual no Tribunal de Justiça

Quanto ao pedido de tramitação prejudicial urgente

23

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, invocando o artigo 17.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, segundo o qual «[u]m mandado de detenção europeu deve ser tratado e executado com urgência».

24

Em 3 de junho de 2020, o Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta da juíza relatora, ouvida a advogada‑geral, que o referido pedido não devia ser deferido, uma vez que aquele órgão jurisdicional não apresentou nenhum elemento que permitisse apreciar as razões específicas por força das quais era urgente pronunciar‑se sobre o presente processo. Em especial, o referido órgão jurisdicional não referiu uma situação de detenção dos arguidos nem, a fortiori, expôs as razões pelas quais as respostas do Tribunal de Justiça poderiam ter sido determinantes para uma eventual libertação das referidas pessoas.

Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

25

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de junho de 2021, AB pediu que fosse reaberta a fase oral do processo.

26

Em apoio do seu pedido, AB observa que a advogada‑geral salientou, nos n.os 53 e 54 das suas conclusões, a existência de um certo número de imprecisões que viciam o pedido de decisão prejudicial. Neste contexto, AB pretende especificar, como circunstância nova, que, na sua Decisão de 29 de junho de 2001, o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III) fundamentou o arquivamento da ação penal não em razão de uma amnistia mas com base no princípio de direito nacional ne bis in idem.

27

Por força do artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, nomeadamente quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal, ou quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

28

Contudo, tal não sucede no caso em apreço.

29

Com efeito, no seu pedido, AB limita‑se a apresentar a sua própria interpretação dos factos na origem do processo e, em especial, da Decisão de 29 de junho de 2001 do Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III).

30

Ora, além de tal interpretação não constituir um facto novo, na aceção do artigo 83.o do Regulamento de Processo, segundo jurisprudência constante, no âmbito de um processo prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional tem competência exclusiva para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal. Neste âmbito, o Tribunal de Justiça apenas está habilitado a pronunciar‑se sobre a interpretação ou a validade do direito da União à luz da situação de facto e de direito tal como descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio, a fim de fornecer a este último os elementos úteis à resolução do litígio que lhe foi submetido (Acórdãos de 27 de abril de 2017, A‑Rosa Flussschiff, C‑620/15, EU:C:2017:309, n.o 35, e de 14 de novembro de 2019, Dilly’s Wellnesshotel, C‑585/17, EU:C:2019:969, n.o 45 e jurisprudência referida).

31

Por outro lado, na medida em que, com o seu pedido de reabertura da fase oral do processo, AB procura responder às conclusões da advogada‑geral, basta salientar que o teor das conclusões da advogada‑geral também não pode ser constitutivo, enquanto tal, de um facto novo, sob pena de ser permitido às partes, através da invocação desse facto, responder às referidas conclusões. Ora, as conclusões do advogado‑geral não podem ser debatidas pelas partes. O Tribunal de Justiça teve, assim, oportunidade de sublinhar que, em conformidade com o artigo 252.o TFUE, cabe ao advogado‑geral apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção, para o assistir no cumprimento da sua missão que é assegurar o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados. Por força do artigo 20.o, quarto parágrafo, deste Estatuto e do artigo 82.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, as conclusões do advogado‑geral põem termo à fase oral. Situando‑se fora do debate entre as partes, as conclusões dão início à fase das deliberações do Tribunal de Justiça. Não se trata, assim, de um parecer destinado aos juízes ou às partes que provém de uma autoridade externa ao Tribunal de Justiça, mas da opinião individual, fundamentada e expressa publicamente, de um membro da própria instituição (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.o 21 e jurisprudência referida).

32

No caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera, ouvida a advogada‑geral, que os elementos apresentados por AB não revelam nenhum facto novo que possa ter influência determinante na decisão que é chamado a proferir no presente processo e que esta última não deve ser decidida com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou os interessados. Por outro lado, dispondo, no termo das fases escrita e oral do processo, de todos os elementos necessários, o Tribunal de Justiça considera estar suficientemente esclarecido para decidir.

33

Por conseguinte, não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

34

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 50.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe à emissão de um mandado de detenção europeu contra uma pessoa que foi objeto de uma ação penal inicialmente interrompida por uma decisão judicial transitada em julgado adotada com fundamento numa amnistia, e retomada na sequência da adoção de uma lei que revoga essa amnistia e anula a referida decisão judicial.

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

35

O Governo eslovaco contesta a competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre a primeira questão prejudicial com o fundamento de que, uma vez que nenhuma disposição de direito da União é aplicável ao processo principal, a Carta também não o é. Na realidade, o órgão jurisdicional de reenvio pretende que o Tribunal de Justiça examine o direito nacional eslovaco em matéria de amnistia, o que está excluído da competência deste. Por outro lado, o direito da União não é aplicável ratione temporis, uma vez que todos os factos em causa no processo principal ocorreram antes da adesão da República Eslovaca à União.

36

A este respeito, há que salientar que a primeira questão prejudicial tem por objeto o artigo 50.o da Carta.

37

Ora, o âmbito de aplicação da Carta, no que diz respeito à ação dos Estados‑Membros, é definido no artigo 51.o, n.o 1, da mesma, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União.

38

De resto, o artigo 51.o, n.o 1, da Carta confirma a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União se destinam a ser aplicados em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, Okrazhna prokuratura — Haskovo e Apelativna prokuratura — Plovdiv, C‑393/19, EU:C:2021:8, n.o 31 e jurisprudência referida).

39

Assim, quando uma situação jurídica não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para dela conhecer, e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, só por si, fundamentar essa competência (Acórdão de 14 de janeiro de 2021, Okrazhna prokuratura — Haskovo e Apelativna prokuratura — Plovdiv, C‑393/19, EU:C:2021:8, n.o 32 e jurisprudência referida).

40

No caso em apreço, é verdade que, como salienta a Comissão Europeia, o processo principal diz respeito a infrações que não estão harmonizadas no direito da União e que, além disso, este direito não regula a adoção e a revogação de uma amnistia.

41

Todavia, a primeira questão não tem por objeto a interpretação da legislação nacional relativa a essas infrações ou a essa amnistia, mas a interpretação do artigo 50.o da Carta no âmbito do processo de emissão de um mandado de detenção europeu que o órgão jurisdicional de reenvio pretende instaurar.

42

Ora, tal processo é abrangido pelo âmbito de aplicação ratione materiae e ratione temporis da Decisão‑Quadro 2002/584, pelo que, sendo esta decisão suscetível de ser aplicada ao processo de emissão do mandado de detenção europeu que o órgão jurisdicional de reenvio pretende instaurar, a Carta é igualmente suscetível de ser aplicada a este processo.

43

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para responder à primeira questão prejudicial.

Quanto à admissibilidade

44

O Governo eslovaco e a Comissão sublinham que o órgão jurisdicional de reenvio ainda não emitiu um mandado de detenção europeu e que não é certo que o faça, uma vez que não está provado que a pessoa relativamente à qual esse mandado deveria ser emitido se encontra no território de um dos Estados‑Membros. Ora, os Estados‑Membros só aplicam o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, quando a autoridade judiciária de emissão e a autoridade judiciária de execução aplicam as disposições nacionais adotadas em execução da Decisão‑Quadro 2002/584. Assim, só a emissão efetiva de um mandado de detenção europeu poderia ser considerada uma aplicação do direito da União. Em contrapartida, a simples intenção de emitir um mandado de detenção europeu não é suficiente para que o processo penal em causa seja considerado uma aplicação do direito da União, tendo como consequência a aplicação da Carta a todas as questões relativas à legalidade desse processo. A primeira questão prejudicial não é, por isso, pertinente e é hipotética e, por conseguinte, inadmissível.

45

A este respeito, importa recordar que, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais ao abrigo do artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.o 27 e jurisprudência referida).

46

Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.o 28 e jurisprudência referida).

47

No caso em apreço, resulta claramente da decisão de reenvio que o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III) considera que os requisitos de emissão de um mandado de detenção europeu contra um dos arguidos estão, em princípio, reunidos e tem a intenção de emitir esse mandado de detenção europeu, uma vez que é possível que essa pessoa se encontre noutro Estado‑Membro ou aí se possa deslocar. Além disso, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que a emissão de um mandado de detenção europeu pelo órgão jurisdicional de reenvio depende da resposta que o Tribunal de Justiça der à primeira questão prejudicial.

48

Nestas condições, alegar que cabe a um órgão jurisdicional nacional que tem dúvidas quanto à legalidade — à luz das disposições aplicáveis do direito da União — da emissão de um mandado de detenção europeu, emitir tal mandado para poder, em seguida, apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial iria manifestamente contra a finalidade do referido artigo 267.o TFUE.

49

Com efeito, segundo jurisprudência constante, o mecanismo prejudicial estabelecido por esta disposição destina‑se a assegurar em todas as circunstâncias ao direito da União o mesmo efeito em todos os Estados‑Membros e, assim, evitar divergências na interpretação deste direito cuja aplicação cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais e assegurar essa aplicação, ao facultar ao juiz nacional um meio para eliminar as dificuldades que a exigência de dar ao direito da União o seu pleno efeito no âmbito dos sistemas jurisdicionais dos Estados‑Membros poderia suscitar. Assim, os órgãos jurisdicionais nacionais têm uma faculdade muito ampla, ou mesmo a obrigação, de recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou apreciação da validade de disposições do direito da União sobre as quais têm de decidir (Acórdão de 6 de outubro de 2021Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 28 e jurisprudência referida).

50

Isso é aplicável, por maioria de razão, no caso em apreço, dado que o sistema do mandado de detenção europeu inclui uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada, uma vez que, à proteção judiciária prevista no primeiro nível, no momento da adoção de uma decisão judicial nacional, como um mandado de detenção nacional, acresce a que deve ser garantida no segundo nível, no momento da emissão do mandado de detenção europeu [v., neste sentido, Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Parquet général du Grand‑Duché de Luxembourg e Openbaar Ministerie (Procuradores de Lyon e de Tours), C‑566/19 PPU e C‑626/19 PPU, EU:C:2019:1077, n.o 59 e jurisprudência referida].

51

Assim, no que se refere a uma medida que, tal como a emissão de um mandado de detenção europeu, pode afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, esta proteção implica que uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção [Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau), C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456, n.o 68].

52

Por conseguinte, ao submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial de interpretação para se certificar de que a adoção de um mandado de detenção europeu cumpre as obrigações que decorrem do direito da União, a autoridade judiciária de emissão pretende cumprir as obrigações que decorrem da Decisão‑Quadro 2002/584 e, por conseguinte, aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

53

Além disso, contrariamente ao que observa a Comissão, tal consideração não tem por consequência tornar aplicável o direito da União ao processo penal no âmbito do qual esse mandado de detenção europeu pode ser emitido, uma vez que esse processo penal é distinto do processo de emissão do referido mandado, ao qual só se aplica a Decisão‑Quadro 2002/584 e, portanto, o direito da União.

54

Daí se conclui que a primeira questão prejudicial é admissível.

Quanto ao mérito

55

Para responder à primeira questão prejudicial, importa salientar que, como resulta dos próprios termos do artigo 50.o da Carta, que consagra o princípio ne bis in idem no direito da União, «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

56

A fim de determinar se uma decisão judiciária constitui uma decisão pela qual alguém foi definitivamente julgado, importa nomeadamente assegurar que esta decisão foi proferida na sequência de uma apreciação de mérito do processo [v., por analogia, no que respeita ao artigo 54.o da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen, em 19 de junho de 1990 (JO 2000, L 239, p. 19), Acórdãos de 10 de março de 2005, Miraglia, C‑469/03, EU:C:2005:156, n.o 30, de 5 de junho de 2014, M, C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 28, e de 29 de junho de 2016, Kossowski, C‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 42].

57

Esta interpretação é confirmada, por um lado, pela redação do artigo 50.o da Carta, uma vez que, como salientou a advogada‑geral no n.o 51 das suas conclusões, os conceitos de «condenação» e de «absolvição» a que se refere esta disposição implicam necessariamente que a responsabilidade penal da pessoa em causa tenha sido apreciada e que tenha sido adotada uma decisão a este respeito.

58

Por outro lado, a referida interpretação é conforme ao objetivo legítimo de evitar a impunidade das pessoas que cometeram uma infração, objetivo que se insere no contexto do espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de pessoas, previsto no artigo 3.o, n.o 2, TUE [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2016,Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 36 e 37, de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija, C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 60, e de 12 de maio de 2021, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol), C‑505/19, EU:C:2021:376, n.o 86].

59

No caso em apreço, é certo que resulta da decisão de reenvio que a Decisão de 29 de junho de 2001, pela qual o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III) arquivou a ação instaurada contra os arguidos tem, segundo o direito nacional, os efeitos de uma decisão de absolvição.

60

No entanto, independentemente da natureza e dos efeitos dessa decisão no direito eslovaco, parece resultar dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que a referida decisão, adotada com base, nomeadamente, na amnistia de 1998, teve por único efeito interromper a referida ação penal, antes de o Okresný súd Bratislava III (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava III) ou qualquer outro órgão jurisdicional eslovaco ter podido pronunciar‑se sobre a responsabilidade penal dos arguidos, o que, todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

61

Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão prejudicial que o artigo 50.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à emissão de um mandado de detenção europeu contra uma pessoa que tenha sido objeto de uma ação penal inicialmente interrompida por uma decisão judicial transitada em julgado adotada com fundamento numa amnistia, e retomada na sequência da adoção de uma lei que revoga essa amnistia e anula a referida decisão judicial, no caso de esta última ter sido adotada antes de qualquer apreciação da responsabilidade penal da pessoa em causa.

Quanto à segunda questão

62

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (Acórdão de 26 de outubro de 2021, PL Holdings, C‑109/20, EU:C:2021:875, n.o 34 e jurisprudência referida).

63

Assim, à luz dos fundamentos do pedido de decisão prejudicial, conforme resumidos no n.o 20 do presente acórdão, há que entender a segunda questão prejudicial no sentido de que visa determinar se a Diretiva 2012/13 deve ser interpretada no sentido de que é aplicável a um processo de natureza legislativa relativo à revogação de uma amnistia e a um processo judicial que tenha por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição nacional e, em caso de resposta afirmativa, se essa diretiva, lida nomeadamente à luz dos artigos 47.o e 50.o da Carta, se opõe a tais processos.

64

Mesmo assim reformulada, esta questão é, segundo o Governo eslovaco e a Comissão, inadmissível. Com efeito, uma vez que a Diretiva 2012/13 apenas diz respeito ao processo penal, não é aplicável aos processos instaurados pelo Conselho Nacional da República Eslovaca ou pelo Ústavný súd Slovenskej republiky (Tribunal Constitucional da República Eslovaca) em conformidade com o direito eslovaco aplicável. Em especial, o processo neste último órgão jurisdicional não assenta nos direitos e nas obrigações de pessoas singulares ou coletivas determinadas e não tem por objeto examinar a sua responsabilidade penal. O único objetivo desse processo é apreciar a conformidade com a Constituição de uma resolução adotada pelo Conselho Nacional da República Eslovaca em aplicação do artigo 86.o, alínea i), da Constituição alterada.

65

A este respeito, basta salientar que as objeções assim apresentadas à admissibilidade da segunda questão prejudicial dizem respeito, em substância, ao próprio alcance do direito da União, em especial ao âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13 e, por conseguinte, à interpretação da mesma. Tais argumentos, que dizem, portanto, respeito ao mérito da questão submetida, não podem, assim, pela sua própria natureza, conduzir à inadmissibilidade dessa questão (v., por analogia, Acórdão de 20 de abril de 2021, Repubblika, C‑896/19, EU:C:2021:311, n.o 33 e jurisprudência referida).

66

A segunda questão prejudicial, conforme reformulada no n.o 63 do presente acórdão, é, pois, admissível.

67

Para responder a esta questão, importa salientar que, em conformidade com o seu artigo 1.o, a Diretiva 2012/13 estabelece regras relativas, por um lado, ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada e, por outro, ao direito à informação das pessoas submetidas a um mandado de detenção europeu sobre os seus direitos.

68

Além disso, em conformidade com o seu artigo 2.o, n.o 1, esta diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal, incluindo, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.

69

Decorre destas disposições que a referida diretiva é aplicável aos processos relativos aos mandados de detenção europeus e aos processos penais, na medida em que visam determinar se o suspeito ou o acusado cometeu uma infração penal.

70

Daqui resulta que um processo que não tenha por objeto determinar a responsabilidade penal de uma pessoa não pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2012/13.

71

Em particular, esta diretiva não pode, por conseguinte, aplicar‑se a um processo de natureza legislativa relativo à revogação de uma amnistia nem a um processo judicial que tenha por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição nacional. Com efeito, independentemente dos seus efeitos sobre a situação processual de uma pessoa, tais processos não visam determinar a eventual responsabilidade penal dessa pessoa.

72

Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão prejudicial que a Diretiva 2012/13 deve ser interpretada no sentido de que não é aplicável a um processo de natureza legislativa relativo à revogação de uma amnistia nem a um processo judicial que tenha por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição nacional.

Quanto à terceira questão

73

Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 3, TUE, os artigos 82.o e 267.o TFUE e os artigos 47.o e 50.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro por força da qual a fiscalização, pelo Tribunal Constitucional desse Estado‑Membro, de uma disposição legislativa que revoga uma amnistia se limita à apreciação da sua conformidade com a Constituição, sem que possa ser apreciada, além disso, a sua conformidade com o direito da União.

74

A este respeito, importa sublinhar desde logo que, como observou, com razão, o Governo eslovaco e como salientou a advogada‑geral no n.o 72 das suas conclusões, uma legislação nacional que prevê um processo de natureza legislativa relativo à revogação de uma amnistia e um processo judicial que tem por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição não aplica o direito da União, uma vez que tais processos não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação desse direito.

75

Uma vez que o direito da União não é aplicável a essa legislação nacional, o Tribunal de Justiça, tendo em conta as considerações mencionadas nos n.os 37 a 39 do presente acórdão, não é competente para responder à terceira questão prejudicial.

Quanto às despesas

76

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à emissão de um mandado de detenção europeu contra uma pessoa que tenha sido objeto de uma ação penal inicialmente interrompida por uma decisão judicial transitada em julgado adotada com fundamento numa amnistia, e retomada na sequência da adoção de uma lei que revoga essa amnistia e anula a referida decisão judicial, no caso de esta última ter sido adotada antes de qualquer apreciação da responsabilidade penal da pessoa em causa.

 

2)

A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, deve ser interpretada no sentido de que não é aplicável a um processo de natureza legislativa relativo à revogação de uma amnistia nem a um processo judicial que tenha por objeto a fiscalização da conformidade dessa revogação com a Constituição nacional.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: eslovaco.