ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)
2 de setembro de 2021 (*)
«Incumprimento de Estado — Artigo 110.º TFUE — Imposições internas — Imposições discriminatórias — Proibição — Veículos usados importados dos outros Estados‑Membros — Componente do imposto de registo calculada com base nas emissões de dióxido de carbono — Não consideração da desvalorização do veículo»
No processo C‑169/20,
que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.º TFUE, que deu entrada em 23 de abril de 2020,
Comissão Europeia, representada, inicialmente, por M. França e C. Perrin, em seguida, por G. Braga da Cruz e C. Perrin, na qualidade de agentes,
demandante,
contra
República Portuguesa, representada por L. Inez Fernandes, N. Vitorino, A. Pimenta, P. Barros da Costa e S. Jaulino, na qualidade de agentes,
demandada,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),
composto por: N. Piçarra, presidente de secção, M. Vilaras (relator), presidente da Quarta Secção, e D. Šváby, juiz,
advogado‑geral: G. Pitruzzella,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
Quadro jurídico
2 O artigo 1.º do Código do Imposto sobre Veículos, aprovado pela Lei n.º 22‑A/2007 [Diário da República, 1.ª série, n.º 124, de 29 de junho de 2007, p. 4164‑(2)], na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018 (Diário da República, 1.ª série, n.º 251, de 31 de dezembro de 2018, p. 6039) (a seguir «Código do Imposto sobre Veículos»), dispõe:
«O imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.»
3 O artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, com a epígrafe «Taxas normais — automóveis», tem a seguinte redação:
«I — A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:
a) Aos automóveis de passageiros;
b) Aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas nem pela taxa intermédia.
TABELA A
Componente cilindrada
|
Escalão de cilindrada (centímetros cúbicos) |
Taxa por centímetros cúbicos (euros) |
Parcela a abater (euros) |
|
Até 1 000 |
0,99 |
767,50 |
|
Entre 1 001 e 1 250 |
1,07 |
769 |
|
Mais de 1 250 |
5,06 |
5.600,00 |
Componente ambiental
Veículos a gasolina
|
Escalão de CO2 (gramas por quilómetro) |
Taxas (euros) |
Parcela a abater (euros) |
|
Até 99 |
4,18 |
386,00 |
|
De 100 a 115 |
7,31 |
678,86 |
|
De 116 a 145 |
47,51 |
5.337,00 |
|
De 146 a 175 |
55,35 |
6.454,52 |
|
De 176 a 195 |
141,00 |
21.358,39 |
|
Mais de 195 |
185,91 |
30.183,74 |
Veículos a gasóleo
|
Escalão de CO2 (gramas por quilómetro) |
Taxas (euros) |
Parcela a abater (euros) |
|
Até 79 |
5,22 |
396,88 |
|
De 80 a 95 |
21,20 |
1.671,07 |
|
De 96 a 120 |
71,62 |
6.504,65 |
|
De 121 a 140 |
158,85 |
17.107,60 |
|
De 141 a 160 |
176,66 |
19.635,10 |
|
Mais de 160 |
242,65 |
30.235,96 |
[...]»
4 O artigo 11.º do referido código, com a epígrafe «Taxas — veículos usados», dispõe:
«1. O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados‑Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória, nos termos das regras do presente código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA D
|
Tempo de uso |
Percentagem de redução |
|
Até 1 ano |
10 |
|
Mais de 1 a 2 anos |
20 |
|
Mais de 2 a 3 anos |
28 |
|
Mais de 3 a 4 anos |
35 |
|
Mais de 4 a 5 anos |
43 |
|
Mais de 5 a 6 anos |
52 |
|
Mais de 6 a 7 anos |
60 |
|
Mais de 7 a 8 anos |
65 |
|
Mais de 8 a 9 anos |
70 |
|
Mais de 9 a 10 anos |
75 |
|
Mais de 10 anos |
80 |
2. Para efeitos de aplicação do número anterior, entende‑se por “tempo de uso” o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.
3. Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado nos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:
ISV = (V/VR x Y) + C
Em que:
ISV representa o montante do imposto a pagar;
V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;
VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando‑se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;
Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;
C é o “custo de impacte ambiental”, aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.
4. Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume‑se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.
[...]»
Procedimento pré‑contencioso
5 Em 25 de janeiro de 2019, a Comissão enviou uma notificação para cumprir à República Portuguesa, na qual chamava a atenção das autoridades portuguesas para a circunstância de que a exclusão da desvalorização da componente ambiental do cálculo do valor dos veículos usados importados de outros Estados‑Membros, no âmbito da determinação do montante do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos (a seguir «imposto em causa»), poderia resultar numa possível incompatibilidade da legislação portuguesa na matéria com o artigo 110.º TFUE.
6 As autoridades portuguesas responderam à notificação para cumprir por ofício de 3 de abril de 2019, no qual afirmaram que a legislação portuguesa estava em plena conformidade com o Tratado FUE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça.
7 Por carta de 28 de novembro de 2019, a Comissão enviou à República Portuguesa um parecer fundamentado, no qual insistiu que, apesar dos argumentos apresentados pelas autoridades portuguesas, a cobrança por um Estado‑Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.º TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a desvalorização real do veículo, exceda o imposto residual incorporado no valor dos veículos usados semelhantes já registados no território nacional, o que acontecia com o imposto em causa.
8 A República Portuguesa respondeu ao parecer fundamentado por ofício de 27 de dezembro de 2019, mantendo a sua posição.
9 Considerando que a legislação em vigor em Portugal continua a ser incompatível com o Tratado FUE, a Comissão decidiu intentar a presente ação.
Quanto à ação
Argumentos das partes
10 A Comissão considera que, ao não desvalorizar, no âmbito da determinação do montante do imposto em causa, a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados importados no território português e adquiridos noutros Estados‑Membros, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
11 Com efeito, as modalidades e a forma de cálculo do imposto em causa levariam a que a tributação de um veículo usado importado de outro Estado‑Membro fosse quase sempre mais elevada do que a de um veículo usado semelhante registado em Portugal, dando origem a uma discriminação entre estas duas categorias de veículos.
12 A Comissão recorda que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa em primeiro lugar examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre essas duas categorias de veículos.
13 No caso em apreço, os veículos fabricados ou montados em Portugal e registados como novos neste Estado‑Membro estão sujeitos uma única vez ao imposto em causa, que tem duas componentes, a componente cilindrada e a componente ambiental. Na venda subsequente do veículo em causa, como veículo usado, o seu valor comercial é igual a uma percentagem residual do seu valor inicial, em função da sua desvalorização, e inclui o montante residual do imposto pago.
14 Em contrapartida, os veículos usados importados em Portugal para aí serem registados, nomeadamente os que são portadores de matrícula definitiva atribuída por outro Estado‑Membro, são tributados uma única vez, no momento da apresentação da declaração aduaneira, a uma taxa reduzida. Todavia, em conformidade com o artigo 11.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos, a componente ambiental utilizada para calcular o valor do veículo não é desvalorizada. Daqui decorre que a desvalorização tomada em consideração para efeitos de cálculo do imposto em causa é muito inferior à desvalorização efetiva do veículo.
15 Ora, ter em conta o valor de um veículo, que é superior ao seu valor real, e não ter em conta a sua depreciação real conduziria a uma tributação mais elevada dos veículos usados importados superior ao imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar adquirido e já registado no território nacional, o que seria contrário ao artigo 110.º TFUE.
16 Para ilustrar o caráter discriminatório do imposto em causa, a Comissão apresenta uma série de quadros que permitem comparar o montante do referido imposto cobrado quando da primeira colocação em circulação de veículos novos em Portugal com o montante do mesmo imposto aplicável aos veículos usados similares com mais de dez anos, importados de outro Estado‑Membro. Segundo a Comissão, esses quadros mostram que o imposto residual incorporado no valor de veículos usados comparáveis registados como novos em Portugal em 2008 equivale a cerca de 20 % do montante do imposto pago quando do seu registo (depois de uma desvalorização de cerca de 80 %) e, por conseguinte, é, em qualquer caso, inferior ao imposto aplicável a veículos similares com mais de dez anos importados em Portugal no ano de 2018.
17 Por conseguinte, o montante do imposto em causa devido por ocasião do registo em Portugal de um veículo usado importado de outro Estado‑Membro excede o aplicável a um veículo usado similar já registado em Portugal, o que configura uma violação do artigo 110.º TFUE, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.
18 A Comissão alega, além disso, que, embora os contribuintes possam, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre Veículos, optar por um método alternativo de cálculo do imposto em causa, solicitando ao diretor da alfândega que recalcule o referido imposto com base na avaliação efetiva do veículo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um método alternativo de cálculo de um imposto não dispensa um Estado‑Membro da obrigação de respeitar os princípios fundamentais de uma norma de importância crucial do Tratado FUE nem autoriza esse Estado‑Membro a violar esse Tratado.
19 Segundo a Comissão, nenhum dos argumentos expostos na resposta das autoridades portuguesas à notificação para cumprir e ao parecer fundamentado, relativos ao facto de o regime português de tributação dos veículos automóveis se destinar a promover veículos que emitem menos dióxido de carbono, prosseguindo assim um objetivo de proteção do ambiente no cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º TFUE, pode conduzir a uma conclusão diferente.
20 A este respeito, em primeiro lugar, em resposta ao argumento da República Portuguesa de que a introdução do imposto em causa constitui uma aplicação do princípio da equivalência, consagrado no artigo 1.º do Código do Imposto sobre Veículos, e do princípio do poluidor‑pagador, permitindo preservar a igualdade de tratamento fiscal de todos os veículos com o mesmo nível de emissões de CO2, a Comissão recorda que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o princípio segundo o qual o imposto que incide sobre os veículos usados importados num Estado‑Membro não pode ser superior ao encargo do imposto residual incluído no custo de um veículo similar registado pela primeira vez no mesmo Estado‑Membro é igualmente aplicável aos impostos baseados, no todo ou em parte, num elemento ambiental.
21 Por essa mesma razão, o argumento relativo ao facto de que o potencial de poluição de um veículo não diminui com a idade, pelo que a componente ambiental do imposto em causa não se pode desvalorizar, não pode ser acolhido.
22 Em segundo lugar, a Comissão considera que o argumento da República Portuguesa segundo o qual a tributação das emissões de CO2 dos veículos novos e usados não pretende restringir a entrada de veículos para proteger a produção nacional, mas sim levar os consumidores a optar pela compra de veículos com menores emissões de CO2, tendo por fim último a proteção do ambiente, no cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º TFUE, deve ser rejeitado. Com efeito, resulta de jurisprudência constante que a prossecução de um objetivo ambiental não dispensa um Estado‑Membro da necessidade de evitar qualquer tipo de discriminação.
23 O Tribunal de Justiça indicou, assim, que o objetivo de proteção do ambiente pode ser realizado de forma mais completa e coerente, por exemplo, através de uma tributação anual, que não favoreça o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados e que, além disso, esteja de acordo com o princípio do poluidor‑pagador.
24 A Comissão acrescenta, na sua réplica, que o artigo 110.º TFUE não permite qualquer derrogação ao princípio da não discriminação, direta ou indireta, no que diz respeito às «importações» de outros Estados‑Membros. Por outro lado, observa que, no caso dos veículos registados como novos em Portugal, a componente ambiental do imposto em causa é coletada apenas uma vez, no momento do registo do veículo em questão. Consequentemente, o montante a pagar para registar um veículo usado importado excede o aplicável a um veículo usado semelhante já registado em Portugal, o que constituiria uma violação do artigo 110.º TFUE. Em contrapartida, não há que comparar a tributação de um veículo usado com a de um veículo novo, como a República Portuguesa parece propor.
25 A Comissão refuta igualmente o argumento da República Portuguesa segundo o qual a componente ambiental do imposto em causa constitui um tributo distinto e autónomo da componente calculada com base na cilindrada do veículo em questão. Com efeito, o imposto em causa está estruturado como um imposto único, ainda que as suas duas componentes sejam calculadas separadamente. Por outro lado, não há indicação de que as receitas geradas pela componente ambiental deste imposto tenham uma afetação distinta, por exemplo, para financiar projetos ambientais. A Comissão recorda, a este respeito, que teria sido possível alcançar o objetivo de proteção do ambiente de uma forma mais completa e coerente, por exemplo introduzindo um imposto separado para todos os veículos postos em circulação no território do Estado‑Membro em causa.
26 A República Portuguesa alega que deu cumprimento ao Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), ao alargar o número de escalões que servem para o cálculo da desvalorização dos veículos usados importados no seu território. Contudo, ao contrário do que sucedia na anterior redação deste normativo, as percentagens de redução passaram a aplicar‑se unicamente à componente cilindrada, sendo a componente ambiental paga na totalidade.
27 Este regime de tributação dos veículos usados faria todo o sentido, dado que os veículos novos pagam a totalidade do imposto em causa correspondente à componente ambiental, com base nos respetivos níveis de emissão de dióxido de carbono. Os veículos usados deveriam, por maioria de razão, suportar também o pagamento da totalidade dessa componente, uma vez que os danos que causam ao ambiente não são inferiores aos causados pelos veículos novos.
28 A República Portuguesa considera, assim, que o regime de tributação dos veículos usados aplicável no seu território não é contrário ao direito da União e respeita as orientações e metas da União em matéria de redução das emissões de dióxido de carbono, tendo em vista o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto da Convenção‑Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, adotado em 11 de dezembro de 1997, e do Acordo de Paris, adotado pela Conferência das Partes na referida convenção‑quadro (COP 21) em dezembro de 2015 e assinado em 22 de abril de 2016, ambos vinculativos para a União.
29 Além disso, a alteração ao artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos encontra‑se em consonância com o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do mesmo código. Na medida em que o potencial de poluição de um veículo não diminui com a idade, mas, pelo contrário, tende a aumentar, está em conformidade com o referido princípio e com o princípio do poluidor‑pagador, consagrado na Constituição portuguesa e no artigo 191.º, n.º 2, TFUE, não prever uma redução da componente ambiental do imposto em causa em função da desvalorização comercial dos veículos. Tal desvalorização conduziria, pelo contrário, a uma violação do princípio da igualdade, uma vez que os veículos usados seriam menos tributados por cada grama de dióxido de carbono emitido do que os veículos novos.
30 Por conseguinte, segundo a República Portuguesa, o regime português de tributação automóvel não pretende nem tem o efeito de regular a importação de veículos em Portugal, mas sim influenciar a escolha dos consumidores e levá‑los a optar pela compra de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, a fim de proteger o ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º TFUE, bem como no Protocolo de Quioto e no Acordo de Paris.
31 A República Portuguesa recorda, por outro lado, que, no estado atual do direito da União, não é necessário que o montante de um imposto que incida sobre a colocação em circulação de um veículo esteja ligado ao seu preço. Por conseguinte, os Estados‑Membros têm a liberdade de sujeitar os veículos a um sistema de tributação progressiva, em função de critérios objetivos como os que são tidos em conta pela legislação portuguesa, a saber, a potência fiscal, a cilindrada ou as emissões de dióxido de carbono do veículo em causa, desde que o sistema escolhido não tenha efeitos discriminatórios ou protecionistas a favor de produtos nacionais.
32 Uma vez que a componente ambiental do imposto em causa não incide sobre o valor comercial dos veículos, não seria adequado ter em conta a desvalorização do seu valor comercial. Todos os veículos registados no território português estão sujeitos a esta componente do imposto em causa e, por conseguinte, não existiria nenhuma discriminação suscetível de entravar a livre circulação de pessoas e bens no mercado interno.
33 Na sua tréplica, a República Portuguesa acrescenta que está atualmente em discussão na Assembleia da República uma nova redação para o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos.
Apreciação do Tribunal de Justiça
34 Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 110.º TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados‑Membros. Este artigo é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.os 23 e 24 e jurisprudência referida).
35 Assim, a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.º TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 25 e jurisprudência referida).
36 Para efeitos da aplicação do artigo 110.º TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados já presentes no território do Estado‑Membro, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar‑se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado‑Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 26 e jurisprudência referida).
37 Neste contexto, para saber se um imposto cria uma discriminação indireta entre os veículos automóveis usados importados e os veículos automóveis usados similares já presentes no território nacional, importa examinar se tal imposto é neutro no que respeita à concorrência entre os veículos usados importados e os veículos usados similares anteriormente matriculados no território nacional e submetidos, no momento da matrícula, ao referido imposto (v., por analogia, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 38).
38 Além disso, o Tribunal de Justiça especificou que, a partir do momento em que se paga um imposto de matrícula num Estado‑Membro, o montante desse imposto é incorporado no valor do veículo. Deste modo, quando um veículo matriculado no Estado‑Membro em causa é, em seguida, vendido como veículo usado nesse mesmo Estado‑Membro, o seu valor de mercado, que inclui o montante residual do imposto de matrícula, será igual a uma percentagem, determinada pela desvalorização desse veículo, do seu valor inicial (Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 40 e jurisprudência referida).
39 No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.
40 Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.
41 Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.
42 A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.
43 Ora, importa recordar que, embora os Estados‑Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C‑213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).
44 A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C‑290/05 e C‑333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).
45 Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).
46 Em contrapartida, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado‑Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º TFUE.
47 Em seguida, a República Portuguesa alega, em substância, que a componente ambiental do imposto em causa constitui, na realidade, um imposto autónomo, distinto da componente deste imposto calculada em função da cilindrada do veículo em causa.
48 A este respeito, importa observar que, no artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, a componente ambiental é apresentada como um dos dois elementos utilizados para o cálculo de um imposto único e não como um imposto distinto. Além disso, e em qualquer caso, como resulta do n.º 46 do presente acórdão, tal imposto distinto continuaria a ser discriminatório em relação aos veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro, uma vez que o referido imposto excederia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares comprados e registados no território nacional.
49 Por outro lado, importa salientar que, embora, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre Veículos, os contribuintes possam optar por um método alternativo de cálculo do imposto em causa, requerendo ao diretor da alfândega que recalcule o referido imposto com base na avaliação efetiva do veículo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um método alternativo de cálculo de um imposto não dispensa um Estado‑Membro da obrigação de respeitar os princípios fundamentais de uma norma essencial do Tratado FUE, nem autoriza esse Estado‑Membro a violar esse Tratado (v., por analogia, Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453, n.º 34).
50 Por último, quanto à afirmação da República Portuguesa, avançada na tréplica, de que está em discussão na Assembleia da República portuguesa uma nova redação para o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, há que recordar que esse argumento é irrelevante, na medida em que a existência de um incumprimento deve, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, de modo que as alterações posteriormente ocorridas não podem ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça (Acórdão de 21 de março de 2019, Comissão/Itália, C‑498/17, EU:C:2019:243, n.º 29 e jurisprudência referida).
51 Nestas condições, há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
Quanto às despesas
52 Nos termos do artigo 138.º, n.º 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) decide:
1) Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.
2) A República Portuguesa é condenada nas despesas.
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Piçarra |
Vilaras |
Šváby |
Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 2 de setembro de 2021.
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O Secretário |
O Presidente da Nona Secção |
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A. Calot Escobar |
N. Piçarra |
* Língua do processo: português.