ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

18 de janeiro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigos 20.o e 21.o TFUE — Âmbito de aplicação — Renúncia à nacionalidade de um Estado‑Membro com vista à obtenção da nacionalidade de outro Estado‑Membro em conformidade com a garantia deste último de naturalizar o interessado — Revogação dessa garantia por motivos de ordem pública ou de segurança pública — Princípio da proporcionalidade — Situação de apatridia»

No processo C‑118/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 13 de fevereiro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de março de 2020, no processo

JY

contra

Wiener Landesregierung,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos (relator), S. Rodin e I. Jarukaitis, presidentes de secção, F. Biltgen, P. G. Xuereb, N. Piçarra e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 1 de março de 2021,

considerando as observações apresentadas:

em representação de JY, por G. Klammer e E. Daigneault, Rechtsanwälte,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, D. Hudsky, J. Schmoll e E. Samoilova, na qualidade de agentes,

em representação do Governo estónio, por N. Grünberg, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por A.‑L. Desjonquères, N. Vincent e D. Dubois, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por J. M. Hoogveld, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e E. Montaguti, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 1 de julho de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 20.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe JY ao Wiener Landesregierung (Governo do Land de Viena, Áustria) a respeito da decisão deste de revogar a garantia de concessão da nacionalidade austríaca a JY e de indeferir o seu pedido de obtenção dessa nacionalidade.

Quadro jurídico

Direito internacional

Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia

3

O artigo 7.o, n.o 2, da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, adotada em Nova Iorque, em 30 de agosto de 1961, nas Nações Unidas, e que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1975 (a seguir «Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia»), prevê:

«Um nacional de um Estado Contratante que queira naturalizar‑se num país estrangeiro só perde a sua nacionalidade, se adquirir ou lhe tiverem sido dadas garantias de lhe ser concedida a nacionalidade desse mesmo país.»

Convenção Europeia sobre a Nacionalidade

4

A Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, adotada em 6 de novembro de 1997 no âmbito do Conselho da Europa, entrou em vigor em 1 de março de 2000 e é aplicável à República da Áustria desde esta última data.

5

O artigo 4.o desta convenção, sob a epígrafe «Princípios», enuncia:

«As normas de cada Estado sobre a nacionalidade basear‑se‑ão nos seguintes princípios:

a) Todos os indivíduos têm direito a uma nacionalidade;

b) A apatridia deverá ser evitada;

[…]»

6

O artigo 7.o da referida convenção, sob a epígrafe «Perda de nacionalidade ex lege ou por iniciativa de um Estado Parte», prevê o seguinte:

«1.   Um Estado Parte não poderá prever, no seu direito interno, a perda da sua nacionalidade ex lege ou por sua iniciativa, exceto nos seguintes casos:

a)

Aquisição voluntária de outra nacionalidade;

b)

Aquisição da nacionalidade do Estado Parte mediante conduta fraudulenta, informações falsas ou encobrimento de quaisquer factos relevantes atribuíveis ao requerente;

[…]

d)

Conduta que prejudique seriamente os interesses vitais do Estado Parte;

[…]

3.   O direito interno de um Estado Parte não deverá prever a perda da sua nacionalidade nos termos dos n.os 1 e 2 do presente artigo se o indivíduo em causa se tornar, consequentemente, um apátrida, com exceção dos casos previstos no n.o 1, alínea b), do presente artigo.»

7

O artigo 8.o da mesma convenção, sob a epígrafe «Perda da nacionalidade por iniciativa do indivíduo», dispõe, no seu n.o 1:

«Cada Estado Parte permitirá a renúncia à sua nacionalidade, desde que os indivíduos em causa não se tornem apátridas.»

8

O artigo 15.o da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade prevê:

«As disposições da presente Convenção não obstarão a que um Estado Parte estabeleça no seu direito interno que:

a)

Os seus nacionais que adquiram ou possuam a nacionalidade de um outro Estado conservem ou percam a sua nacionalidade;

b)

A aquisição ou conservação da sua nacionalidade fique sujeita à renúncia ou à perda de outra nacionalidade.»

9

Nos termos do artigo 16.o da referida convenção:

«Nenhum Estado Parte fará da renúncia ou da perda de outra nacionalidade condição para a aquisição ou conservação da sua nacionalidade, nos casos em que tal renúncia ou perda não se mostre viável ou não possa ser razoavelmente exigida.»

Direito da União

10

O artigo 20.o TFUE dispõe:

«1.   É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.

2.   Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados. Assistem‑lhes, nomeadamente:

a)

O direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros;

[…]»

Direito austríaco

11

O § 10 da Staatsbürgerschaftsgesetz 1985 (Lei da Nacionalidade de 1985) (BGBl. 311/1985), na versão aplicável ao processo principal (a seguir «Lei da Nacionalidade»), dispõe:

«(1)   Salvo disposição em sentido contrário na presente lei federal, a nacionalidade só pode ser concedida a um estrangeiro

[…]

6.

Se o estrangeiro, em virtude do seu comportamento anterior, der garantias de que tem uma atitude positiva em relação à República e de que não representa uma ameaça para a paz, a ordem e a segurança públicas nem põe em risco outros interesses públicos mencionados no artigo 8.o, n.o 2, da [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950];

[…]

(2)   Não pode ser concedida a cidadania a um estrangeiro

[…]

2.

Se este tiver sido, mais do que uma vez, condenado por decisão transitada em julgado, por contraordenação grave de especial relevância […]

[…]

(3)   Não pode ser concedida a nacionalidade a um estrangeiro que possua uma nacionalidade estrangeira se este

1.

Não efetuar as diligências necessárias para renunciar à sua nacionalidade anterior, apesar de poder fazê‑lo e de estas diligências poderem razoavelmente ser‑lhe exigidas […]

[…]»

12

O § 20, n.os 1 a 3, da Lei da Nacionalidade dispõe:

«(1)   A concessão da nacionalidade só deve ser garantida a um estrangeiro no caso de este provar, no prazo de dois anos, que renunciou à sua nacionalidade anterior, quando

1.

Não seja apátrida;

2.

[…] e

3.

Tal garantia lhe possa permitir ou facilitar a renúncia à sua nacionalidade anterior.

(2)   A referida garantia deve ser revogada quando o estrangeiro, com exceção do § 10, n.o 1, ponto 7, deixe de preencher alguma das condições exigidas para a concessão da nacionalidade.

(3)   A nacionalidade cuja concessão tenha sido garantida deve ser concedida assim que o estrangeiro

1.

Deixar de possuir a sua nacionalidade anterior, ou

2.

Provar que não lhe foi possível efetuar as diligências necessárias para renunciar à sua nacionalidade anterior ou que estas diligências não podiam razoavelmente ser‑lhe exigidas.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

Por carta de 15 de dezembro de 2008, JY, à data nacional estónia, pediu a concessão da nacionalidade austríaca.

14

Por Decisão de 11 de março de 2014, o Niederösterreichische Landesregierung (Governo do Land da Baixa Áustria, Áustria) garantiu a JY, em conformidade, nomeadamente, com o § 20 da Lei da Nacionalidade, que a nacionalidade austríaca lhe seria concedida se provasse, no prazo de dois anos, que renunciou à nacionalidade estónia.

15

JY, que tinha, desde então, transferido a sua residência principal para Viena (Áustria), apresentou no prazo de dois anos a confirmação, pela República da Estónia, de que, por Decisão do Governo deste Estado‑Membro de 27 de agosto de 2015, deixara de ter a nacionalidade estónia. Desde que perdeu esta nacionalidade, JY é apátrida.

16

Por Decisão de 6 de julho de 2017, o Wiener Landesregierung (Governo do Land de Viena, Áustria), que passou a ser a autoridade competente para analisar o pedido de JY, revogou a Decisão do Niederösterreichische Landesregierung (Governo do Land da Baixa Áustria) de 11 de março de 2014, em conformidade com o § 20, n.o 2, da Lei da Nacionalidade, e indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade austríaca de JY, nos termos do § 10, n.o 1, ponto 6, desta lei.

17

Para justificar esta decisão, o Wiener Landesregierung (Governo do Land de Viena) indicou que JY, depois de ter obtido a garantia de que a nacionalidade austríaca lhe seria concedida, tinha praticado duas contraordenações graves, resultantes da não aposição, no seu veículo, do dístico de inspeção técnica e da condução de veículo a motor sob o efeito do álcool, e tinha praticado oito contraordenações entre 2007 e 2013, ou seja, antes de essa garantia lhe ter sido dada. Por conseguinte, segundo a referida autoridade administrativa, JY já não preenchia as condições de concessão da nacionalidade previstas no § 10, n.o 1, ponto 6, da Lei da Nacionalidade.

18

Por Sentença de 23 de janeiro de 2018, o Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena, Áustria) negou provimento ao recurso interposto por JY da referida decisão. Depois de ter salientado que a garantia de concessão da nacionalidade austríaca pode ser revogada, em conformidade com o § 20, n.o 2, da Lei da Nacionalidade, também no caso de, como no presente processo, surgir um motivo de recusa após a apresentação da prova da renúncia à nacionalidade anterior, este órgão jurisdicional sublinhou que as duas contraordenações graves praticadas por JY eram suscetíveis, a primeira, de pôr em perigo a proteção da segurança da circulação pública e, a segunda, de pôr especialmente em perigo a segurança dos outros utilizadores da via pública. Assim, segundo o referido órgão jurisdicional, estas duas contraordenações graves, consideradas em conjunto com as oito contraordenações praticadas entre 2007 e 2013, já não permitiam dar, em relação a JY, um prognóstico favorável para o futuro, na aceção do § 10, n.o 1, ponto 6, desta lei. Entendeu que a residência de longa duração de JY na Áustria e a sua integração profissional e pessoal nesse Estado‑Membro não eram suscetíveis de pôr em causa esta conclusão.

19

Por outro lado, o Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena) considerou que, tendo em conta a existência dessas infrações, a decisão em causa no processo principal era proporcionada à luz da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia. O referido órgão jurisdicional considerou igualmente que o processo principal não era abrangido pelo direito da União.

20

JY interpôs recurso de «Revision» dessa sentença para o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria).

21

Este órgão jurisdicional explica que o direito austríaco da nacionalidade se baseia, nomeadamente, na conceção segundo a qual as nacionalidades múltiplas devem, se possível, ser evitadas. Além disso, diferentes ordens jurídicas estrangeiras, a fim de evitar a apatridia, não autorizam a renúncia prévia à nacionalidade. Todavia, não exigem que a outra nacionalidade (no caso em apreço, a nacionalidade austríaca) seja adquirida em primeiro lugar, limitando‑se a uma garantia de que essa outra nacionalidade será concedida.

22

O referido órgão jurisdicional expõe que a garantia referida no § 20, n.o 1, da Lei da Nacionalidade cria um direito à concessão da nacionalidade condicionado apenas à prova da renúncia à nacionalidade estrangeira. Todavia, por força do § 20, n.o 2, desta lei, essa garantia deve ser revogada quando o estrangeiro deixar de preencher uma das condições exigidas para a referida concessão.

23

Ora, no caso em apreço, tendo em conta as contraordenações praticadas por JY antes e depois de lhe ter sido dada a garantia de concessão da nacionalidade austríaca, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, em virtude do direito austríaco, as condições de revogação dessa garantia estavam preenchidas, na aceção do § 20, n.o 2, da Lei da Nacionalidade, uma vez que a interessada já não preenchia uma das exigências previstas para a concessão da nacionalidade austríaca, a saber, a enunciada no § 10, n.o 1, ponto 6, desta lei.

24

Todavia, coloca‑se a questão de saber se a situação de JY, pela sua natureza e pelas suas consequências, está abrangida pelo direito da União e se, para adotar a decisão em causa no processo principal, a autoridade administrativa competente devia respeitar esse direito, em especial o princípio da proporcionalidade por ele consagrado.

25

A este respeito, à semelhança do que decidiu o Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena), o órgão jurisdicional de reenvio entende que tal situação não está abrangida pelo direito da União.

26

Com efeito, na data da adoção da decisão de revogação em causa no processo principal, data que era determinante para apreciar a procedência da sentença do Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena), JY já não tinha o estatuto de cidadão da União. Por conseguinte, ao invés das situações que deram origem aos Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann (C‑135/08, EU:C:2010:104), e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C‑221/17, EU:C:2019:189), a perda da cidadania da União não foi o corolário dessa decisão. Pelo contrário, devido à revogação da garantia de concessão da nacionalidade austríaca, em conjugação com o indeferimento do seu pedido de concessão da referida nacionalidade, JY perdeu o direito, adquirido condicionalmente, de recuperar a cidadania da União a que ela própria já renunciara anteriormente.

27

Todavia, na hipótese de um caso como o de JY estar abrangido pelo direito da União, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais competentes devem verificar, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se a revogação da garantia de concessão da nacionalidade em causa, que obsta a que a cidadania da União seja novamente obtida, é compatível, do ponto de vista do direito da União, com o princípio da proporcionalidade, tendo em conta as consequências dessa decisão para a situação da pessoa interessada. Esse órgão jurisdicional considera que seria lógico, nesta hipótese, que tal fiscalização da proporcionalidade fosse exigida e interroga‑se, no caso em apreço, se o mero facto de JY ter renunciado à sua cidadania da União pondo ela própria termo à relação particular de solidariedade e de lealdade que a unia à Estónia, bem como à reciprocidade de direitos e deveres perante esse Estado‑Membro, que eram o fundamento do vínculo de nacionalidade (v., neste sentido, Acórdão de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 33), é decisivo a este respeito.

28

Nestas circunstâncias, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A situação de uma pessoa singular que, como a recorrente no processo principal, renunciou à sua nacionalidade de um único Estado‑Membro da União Europeia e, por consequência, à sua cidadania da União, a fim de obter a nacionalidade de outro Estado‑Membro em conformidade com a garantia de que essa nacionalidade, que tinha pedido, lhe seria concedida, e cuja possibilidade de recuperar a cidadania da União é posteriormente afastada na sequência da revogação daquela garantia, é abrangida, pela sua natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União, de modo que, na decisão de revogação da garantia, há que ter em conta o direito da União?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

2)

Devem as autoridades nacionais competentes, incluindo eventualmente os órgãos jurisdicionais nacionais, na decisão que revoga a garantia de concessão da nacionalidade do Estado‑Membro, verificar se a revogação da garantia que implica a impossibilidade de recuperação da cidadania da União, tendo em conta as suas consequências [para] a situação da pessoa em causa, é compatível, à luz do direito da União, com o princípio da proporcionalidade?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

29

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a situação de uma pessoa que, tendo a nacionalidade de um único Estado‑Membro, renuncia a essa nacionalidade e perde, por esse facto, o seu estatuto de cidadão da União, com vista a obter a nacionalidade de outro Estado‑Membro, na sequência da garantia dada pelas autoridades deste último Estado‑Membro de que essa nacionalidade lhe seria concedida, está abrangida, pela sua natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União quando essa garantia é revogada, o que tem por efeito impedir essa pessoa de recuperar o estatuto de cidadania da União.

30

Antes de mais, há que sublinhar que, em conformidade com o § 20, n.o 1, da Lei da Nacionalidade, a nacionalidade austríaca é garantida a um estrangeiro que satisfaça as condições estabelecidas nessa disposição, se este provar, no prazo de dois anos, que renunciou à sua nacionalidade anterior. Daqui resulta que, no âmbito do processo de naturalização, a concessão da nacionalidade austríaca a esse estrangeiro, na sequência de tal garantia, impõe, como condição prévia, a perda da sua nacionalidade anterior.

31

Por conseguinte, num primeiro momento, a perda — pelo menos provisória — do estatuto de cidadão da União de uma pessoa, como JY, que tem unicamente a nacionalidade do seu Estado‑Membro de origem e que dá início a um processo de naturalização a fim de obter a nacionalidade austríaca, decorre diretamente do facto de, a pedido dessa pessoa, o governo do Estado‑Membro de origem ter dissolvido o vínculo de nacionalidade com esta.

32

Só num segundo momento é que a decisão das autoridades austríacas competentes de revogar a garantia de concessão da nacionalidade austríaca implica a perda definitiva do estatuto de cidadão da União dessa pessoa.

33

Por conseguinte, na data em que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, deve ser apreciada a procedência do recurso que lhe foi submetido, a saber, a da decisão de revogação da garantia de concessão da nacionalidade austríaca, JY já se tinha tornado apátrida e, portanto, tinha perdido o seu estatuto de cidadão da União.

34

Este órgão jurisdicional e o Governo austríaco concluem daí que a situação em causa no processo principal não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União e precisam, a este respeito, que esta situação se distingue das que deram origem aos Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann (C‑135/08, EU:C:2010:104), e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C‑221/17, EU:C:2019:189).

35

No entanto, importa, em primeiro lugar, salientar que, numa situação como a de JY, embora a perda do estatuto de cidadão da União decorra do facto de o Estado‑Membro de origem dessa pessoa, a pedido desta, ter dissolvido o vínculo de nacionalidade com esta última, o referido pedido foi formulado no âmbito de um processo de naturalização destinado à obtenção da nacionalidade austríaca e constitui a consequência de a referida pessoa, tendo em conta a garantia que lhe tinha sido dada de que lhe seria concedida a nacionalidade austríaca, ter cumprido as exigências constantes tanto da Lei da Nacionalidade como da decisão sobre essa garantia.

36

Nestas condições, não se pode considerar que uma pessoa como JY renunciou voluntariamente ao estatuto de cidadão da União. Pelo contrário, tendo recebido do Estado‑Membro de acolhimento a garantia de que lhe seria concedida a nacionalidade deste, o pedido de dissolução do vínculo de nacionalidade com o Estado‑Membro de que é nacional tem por objeto permitir‑lhe preencher uma condição de aquisição dessa nacionalidade e, uma vez esta obtida, continuar a beneficiar do estatuto de cidadão da União e dos direitos que lhe estão associados.

37

Em segundo lugar, importa recordar que, por um lado, a definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade é, em conformidade com o direito internacional, da competência de cada Estado‑Membro e que, por outro, em situações abrangidas pelo direito da União, as regras nacionais em causa devem respeitá‑lo (Acórdão de 14 de dezembro de 2021, V.М.А., C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 38 e jurisprudência referida).

38

Acresce que o artigo 20.o, n.o 1, TFUE confere a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União, o qual, segundo jurisprudência constante, tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros [Acórdão de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de saúde públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 41 e jurisprudência referida].

39

Ora, quando, no âmbito de um processo de naturalização, as autoridades competentes do Estado‑Membro de acolhimento revogam a garantia de concessão da nacionalidade desse Estado, o interessado que era nacional de um único outro Estado‑Membro e que renunciou à sua nacionalidade de origem para cumprir as exigências inerentes a esse processo encontra‑se numa situação em que lhe é impossível continuar a invocar os direitos decorrentes do seu estatuto de cidadão da União.

40

Por conseguinte, tal procedimento, considerado no seu conjunto, mesmo que implique uma decisão administrativa de um Estado‑Membro diferente daquele cuja nacionalidade é pedida, afeta o estatuto conferido pelo artigo 20.o TFUE aos nacionais dos Estados‑Membros, uma vez que pode levar a privar uma pessoa que se encontre numa situação como a de JY da totalidade dos direitos associados a esse estatuto, ainda que, no momento do início do procedimento de naturalização, essa pessoa possuísse a nacionalidade de um Estado‑Membro e tivesse, assim, o estatuto de cidadão da União.

41

Em terceiro lugar, é pacífico que JY, enquanto nacional estónia, exerceu a sua liberdade de circulação e de residência, ao abrigo do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, instalando‑se na Áustria, onde reside há vários anos.

42

Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que os direitos conferidos a um cidadão da União pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE tendem, designadamente, a favorecer a integração progressiva do cidadão da União em causa na sociedade do Estado‑Membro de acolhimento (Acórdão de 14 de novembro de 2017, Lounes, C‑165/16, EU:C:2017:862, n.o 56).

43

Assim, a lógica de integração progressiva favorecida por esta disposição do Tratado FUE exige que a situação de um cidadão da União, a quem foram conferidos direitos ao abrigo da referida disposição devido ao exercício do seu direito à livre circulação na União e que está exposto à perda não só do benefício desses direitos mas também do próprio estatuto de cidadão da União, embora tenha procurado, através da naturalização no Estado‑Membro de acolhimento, integrar‑se mais plenamente na sociedade desse Estado, seja abrangida pelo âmbito das disposições do Tratado relativas à cidadania da União.

44

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que a situação de uma pessoa que, tendo a nacionalidade de um único Estado‑Membro, renuncia a essa nacionalidade e perde, por esse facto, o seu estatuto de cidadão da União, com vista a obter a nacionalidade de outro Estado‑Membro, na sequência da garantia dada pelas autoridades deste último Estado de que essa nacionalidade lhe seria concedida, está abrangida, pela sua natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União quando essa garantia é revogada, o que tem por efeito impedir essa pessoa de recuperar o estatuto de cidadão da União.

Quanto à segunda questão

45

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que as autoridades nacionais competentes e, sendo caso disso, os órgãos jurisdicionais nacionais do Estado‑Membro de acolhimento são obrigados a verificar se a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade desse Estado‑Membro, que torna definitiva a perda do estatuto de cidadão da União para a pessoa em causa, é compatível com o princípio da proporcionalidade, tendo em conta as consequências que a mesma acarreta para a situação dessa pessoa.

46

Como foi recordado no n.o 38 do presente acórdão, o estatuto de cidadão da União conferido pelo artigo 20.o, n.o 1, TFUE a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros. A este respeito, o artigo 20.o, n.o 2, alínea a), TFUE prevê que os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados e têm, entre outros, o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros.

47

Ora, quando, no âmbito de um processo de naturalização iniciado num Estado‑Membro, este último, ao abrigo da competência que detém para definir as condições de aquisição e de perda da nacionalidade, exige que um cidadão da União renuncie à nacionalidade do seu Estado‑Membro de origem, o exercício e o efeito útil dos direitos que o artigo 20.o TFUE confere a esse cidadão da União exige que ele não fique, em nenhum momento, exposto à perda do seu estatuto fundamental de cidadão da União apenas devido a esse procedimento.

48

Com efeito, qualquer perda, ainda que provisória, desse estatuto implica que a pessoa em causa seja privada, durante um período indeterminado, da possibilidade de gozar de todos os direitos conferidos pelo referido estatuto.

49

A este respeito, importa recordar que os princípios que decorrem do direito da União no que respeita à competência dos Estados‑Membros em matéria de nacionalidade e à obrigação de estes exercerem essa competência no respeito do direito da União se aplicam tanto ao Estado‑Membro de acolhimento como ao Estado‑Membro da nacionalidade de origem (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 62).

50

Daqui resulta que, quando um nacional de um Estado‑Membro renuncia à sua nacionalidade para poder obter a nacionalidade de outro Estado‑Membro e, assim, continuar a beneficiar do estatuto de cidadão da União, o Estado‑Membro de origem não deve adotar, com fundamento numa garantia dada por esse outro Estado‑Membro de que a nacionalidade deste será concedida ao interessado, uma decisão definitiva relativa à perda da nacionalidade, sem se certificar de que essa decisão só entra em vigor depois de a nova nacionalidade ter sido efetivamente adquirida.

51

Assim sendo, numa situação em que o estatuto de cidadão da União já foi provisoriamente perdido pelo facto de, no âmbito de um processo de naturalização, o Estado‑Membro de origem ter retirado a sua nacionalidade à pessoa em causa antes de esta ter efetivamente adquirido a nacionalidade do Estado‑Membro de acolhimento, a obrigação de assegurar o efeito útil do artigo 20.o TFUE incumbe, antes de mais, a este último Estado‑Membro. Esta obrigação impõe‑se, em especial, quando o referido Estado‑Membro decide revogar a garantia, anteriormente dada a essa pessoa, de concessão da nacionalidade, desde que essa decisão possa ter por efeito tornar definitiva a perda do estatuto de cidadão da União. Tal decisão só pode, portanto, ser tomada por motivos legítimos e no respeito do princípio da proporcionalidade.

52

A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que é legítimo um Estado‑Membro querer proteger a relação especial de solidariedade e de lealdade entre ele próprio e os seus nacionais, bem como a reciprocidade de direitos e de deveres, que são o fundamento do vínculo de nacionalidade (Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 51, e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 33).

53

No caso em apreço, como indicou o Governo austríaco e como resulta do § 10, n.o 3, da Lei da Nacionalidade, esta lei tem designadamente por objetivo evitar que uma mesma pessoa possua múltiplas nacionalidades. O § 20, n.o 1, da referida lei faz parte das disposições que visam, precisamente, alcançar esse objetivo.

54

A este respeito, importa salientar, por um lado, que, no exercício da competência que detém para definir as condições de aquisição e de perda da sua nacionalidade, é legítimo que um Estado‑Membro, como a República da Áustria, considere que há que evitar os efeitos indesejáveis da posse de várias nacionalidades.

55

A legitimidade, em princípio, deste objetivo é corroborada pelo artigo 15.o, alínea b), da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, segundo o qual as disposições desta convenção não obstarão a que um Estado parte estabeleça no seu direito interno que a aquisição ou conservação da sua nacionalidade fique sujeita à renúncia ou à perda de outra nacionalidade. Como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 92 das suas conclusões, esta legitimidade é ainda corroborada pelo artigo 7.o, n.o 2, da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, segundo o qual um nacional de um Estado contratante que queira naturalizar‑se num país estrangeiro só perde a sua nacionalidade se adquirir ou lhe tiverem sido dadas garantias de lhe ser concedida a nacionalidade desse mesmo país.

56

Por outro lado, o § 20, n.o 2, da Lei da Nacionalidade prevê a revogação da garantia de concessão da nacionalidade austríaca quando o interessado deixe de preencher alguma das condições exigidas para essa concessão. Entre estas condições figura a prevista no § 10, n.o 1, ponto 6, desta lei, segundo o qual o interessado, em virtude do seu comportamento anterior, deve dar garantias de que tem uma atitude positiva em relação à República da Áustria e de que não representa uma ameaça para a paz, a ordem e a segurança públicas nem põe em risco outros interesses públicos mencionados no artigo 8.o, n.o 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

57

Ora, a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade pelo facto de o interessado não ter uma atitude positiva em relação ao Estado‑Membro de que pretende adquirir a nacionalidade e de o seu comportamento ser suscetível de ameaçar a ordem e a segurança públicas desse Estado‑Membro assenta num motivo de interesse geral (v., por analogia, Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 51).

58

Todavia, tendo em conta a importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União, que, como foi recordado nos n.os 38 e 46 do presente acórdão, constitui o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros, cabe às autoridades nacionais competentes e aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade, quando implique a perda do estatuto de cidadão da União e dos direitos daí decorrentes, respeita o princípio da proporcionalidade no que se refere às consequências que a mesma implica para a situação da pessoa em causa e, se for caso disso, dos membros da sua família, à luz do direito da União (v., por analogia, Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.os 55 e 56, e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 40).

59

A análise do respeito do princípio da proporcionalidade consagrado pelo direito da União exige uma apreciação da situação individual da pessoa em causa e, sendo caso disso, da situação da sua família, a fim de determinar se a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade, quando conduza à perda do estatuto de cidadão da União, tem consequências que afetarão de maneira desproporcionada, em relação ao objetivo prosseguido pelo legislador nacional, o desenvolvimento normal da sua vida familiar e profissional, à luz do direito da União. Tais consequências não podem ser hipotéticas ou eventuais (v., por analogia, Acórdão de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 44).

60

A este respeito, importa verificar, nomeadamente, se esta decisão se justifica em relação à gravidade da infração cometida pela pessoa em causa e à possibilidade de esta readquirir a sua nacionalidade originária (v., por analogia, Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 56).

61

No âmbito desta apreciação da proporcionalidade, incumbe, além disso, às autoridades nacionais competentes e, sendo o caso, aos órgãos jurisdicionais nacionais garantir que essa decisão seja conforme com os direitos fundamentais garantidos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça, e, especialmente, com o direito ao respeito da vida familiar, como enunciado no artigo 7.o desta Carta, sendo caso disso lido em conjugação com a obrigação de ter em conta o interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, da Carta (v., por analogia, Acórdão de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 45 e jurisprudência referida).

62

No caso em apreço, no que respeita, em primeiro lugar, à possibilidade de JY readquirir a nacionalidade estónia, o órgão jurisdicional de reenvio deverá ter em conta o facto de que, segundo as indicações dadas pelo Governo estónio na audiência, o direito estónio exige que a pessoa que obteve a dissolução da relação estatal com a República da Estónia, nomeadamente, resida durante oito anos nesse Estado‑Membro para poder readquirir a nacionalidade deste último.

63

Importa, todavia, sublinhar que um Estado‑Membro não pode ser impedido de revogar a garantia de concessão da sua nacionalidade pela simples razão de o interessado, que deixou de preencher as condições exigidas para adquirir essa nacionalidade, só dificilmente poder readquirir a nacionalidade do seu Estado‑Membro de origem (v., por analogia, Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.o 57).

64

No que respeita, em segundo lugar, à gravidade das infrações cometidas por JY, resulta do pedido de decisão prejudicial que lhe foi imputado o facto de ter praticado, depois de lhe ter sido dada a garantia de que lhe seria concedida a nacionalidade austríaca, duas contraordenações graves, relativas, a primeira, à não aposição, no seu veículo, do dístico de inspeção técnica e, a segunda, à condução de veículo a motor sob o efeito do álcool, bem como de ser responsável por oito contraordenações praticadas entre 2007 e 2013, antes de lhe ter sido dada essa garantia.

65

Por um lado, quanto a estas oito contraordenações, importa salientar que eram conhecidas na data em que aquela garantia foi dada e não impediram a sua concessão. Por conseguinte, as referidas infrações já não podem ser tidas em conta para fundamentar a decisão de revogação dessa garantia.

66

No que respeita, por outro lado, às duas contraordenações praticadas por JY depois de lhe ter sido dada a garantia de concessão da nacionalidade austríaca, o Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena) considerou‑as, respetivamente, como «compromete[ndo] a segurança pública do tráfego» e comprometendo «gravemente, a segurança dos outros utilizadores da via pública». Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta última infração constitui uma «violação tão grave das normas de defesa da ordem e da segurança do tráfego rodoviário que pode determinar, por si só, o incumprimento da condição de concessão da nacionalidade prevista no § 10, n.o 1, ponto 6, da [Lei da Nacionalidade], independentemente do grau de alcoolização».

67

O Governo austríaco expôs, nas suas observações escritas, que, em virtude de jurisprudência constante do Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo), no âmbito do procedimento previsto no § 20, n.o 2, da Lei da Nacionalidade, conjugado com o § 10, n.o 1, ponto 6, desta lei, há que ter em conta o comportamento global do requerente da nacionalidade, em especial as infrações que cometeu. A questão decisiva é saber se se trata de atos ilícitos que levem a concluir que este requerente irá também, no futuro, desrespeitar disposições essenciais adotadas para efeitos de proteção contra os riscos para a vida, a saúde, a segurança ou a paz e a ordem públicas, ou para a proteção de outros interesses jurídicos mencionados no artigo 8.o, n.o 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

68

A este respeito, importa recordar que, enquanto justificação de uma decisão que implica a perda do estatuto de cidadão da União conferido aos nacionais dos Estados‑Membros pelo artigo 20.o TFUE, os conceitos de «ordem pública» e de «segurança pública» devem ser entendidos em sentido estrito e, além do mais, o seu âmbito não pode ser unilateralmente determinado pelos Estados‑Membros sem fiscalização das instituições da União (v., por analogia, Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín, C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 82).

69

O Tribunal de Justiça já declarou que o conceito de «ordem pública» pressupõe, em todo o caso, além da perturbação da ordem social que qualquer infração à lei constitui, a existência de uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade. Quanto ao conceito de «segurança pública», decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que compreende quer a segurança interna de um Estado‑Membro quer a sua segurança externa e que, portanto, uma ameaça ao funcionamento das instituições e dos serviços públicos essenciais, bem como a sobrevivência da população, tal como o risco de uma perturbação grave das relações externas ou da coexistência pacífica dos povos, ou ainda uma ameaça aos interesses militares, podem afetar a segurança pública (Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín, C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 83 e jurisprudência referida).

70

No caso em apreço, importa salientar que, tendo em conta a natureza e a gravidade das duas contraordenações mencionadas no n.o 66 do presente acórdão, bem como a exigência de que os conceitos de «ordem pública» e de «segurança pública» sejam entendidos em sentido estrito, não se afigura que JY represente uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade ou uma ameaça à segurança pública da República da Áustria. É certo que estas infrações constituem uma violação das disposições relativas ao Código da Estrada que prejudicam a segurança rodoviária. Resulta, porém, tanto das observações escritas apresentadas por JY como da resposta do Governo austríaco a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça na audiência que estas duas contraordenações, que, de resto, conduziram a coimas relativamente mínimas de, respetivamente, 112 euros e 300 euros, não eram suscetíveis de conduzir à apreensão da carta de condução de JY e, portanto, de proibir esta última de conduzir um veículo a motor na via pública.

71

Não se pode considerar que as infrações ao Código da Estrada puníveis com simples coimas administrativas sejam suscetíveis de demonstrar que a pessoa responsável por essas infrações constitui uma ameaça para a ordem e a segurança públicas que possa justificar que a perda do seu estatuto de cidadão da União se torne definitiva. Isto é tanto mais assim quanto, no caso em apreço, essas infrações implicaram coimas administrativas menores e não privaram JY do direito de continuar a conduzir um veículo a motor na via pública.

72

Importa acrescentar, de resto, que, na hipótese de o órgão jurisdicional de reenvio verificar que, em conformidade com a garantia de concessão da nacionalidade austríaca, esta já tinha sido concedida à interessada, tais infrações não poderiam, por si só, dar lugar a uma revogação da naturalização.

73

Assim, tendo em conta as consequências importantes para a situação de JY, no que se refere, em especial, ao desenvolvimento normal da sua vida familiar e profissional, que a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade austríaca comporta, que tem por efeito tornar definitiva a perda do estatuto de cidadão da União, esta decisão não parece proporcionada à gravidade das infrações cometidas por essa pessoa.

74

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que as autoridades nacionais competentes e, sendo caso disso, os órgãos jurisdicionais nacionais do Estado‑Membro de acolhimento são obrigados a verificar se a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade desse Estado‑Membro, que torna definitiva a perda do estatuto de cidadão da União para a pessoa em causa, é compatível com o princípio da proporcionalidade tendo em conta as consequências que a mesma acarreta para a situação dessa pessoa. Esta exigência de compatibilidade com o princípio da proporcionalidade não é satisfeita quando essa decisão é justificada com contraordenações ao Código da Estrada, que, segundo o direito nacional aplicável, implicam uma simples sanção pecuniária.

Quanto às despesas

75

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

A situação de uma pessoa que, tendo a nacionalidade de um único Estado‑Membro, renuncia a essa nacionalidade e perde, por esse facto, o seu estatuto de cidadão da União, com vista a obter a nacionalidade de outro Estado‑Membro, na sequência da garantia dada pelas autoridades deste último Estado de que essa nacionalidade lhe seria concedida, está abrangida, pela sua natureza e pelas suas consequências, pelo direito da União quando essa garantia é revogada, o que tem por efeito impedir essa pessoa de recuperar o estatuto de cidadão da União.

 

2)

O artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que as autoridades nacionais competentes e, sendo caso disso, os órgãos jurisdicionais nacionais do Estado‑Membro de acolhimento são obrigados a verificar se a decisão de revogar a garantia de concessão da nacionalidade desse Estado‑Membro, que torna definitiva a perda do estatuto de cidadão da União para a pessoa em causa, é compatível com o princípio da proporcionalidade tendo em conta as consequências que a mesma acarreta para a situação dessa pessoa. Esta exigência de compatibilidade com o princípio da proporcionalidade não é satisfeita quando essa decisão é justificada com contraordenações ao Código da Estrada, que, segundo o direito nacional aplicável, implicam uma simples sanção pecuniária.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.