CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 16 de junho de 2022 ( 1 )

Processo C‑632/20 P

Reino de Espanha

contra

Comissão Europeia

«Recurso — Relações externas — Acordo de Estabilização e de Associação entre a União e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Kosovo, por outro — Comunicações eletrónicas — Regulamento (UE) 2018/1971 — Organismo dos Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (ORECE) — Artigo 35.o, n.o 2 — Participação da autoridade reguladora nacional (ARN) do Kosovo neste organismo — Conceitos de “país terceiro” e de “Estado terceiro” — Competência orgânica da Comissão»

I. Introdução

1.

O chamado Regulamento ORECE ( 2 ) constitui a base jurídica do Organismo dos Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (a seguir «ORECE») e da Agência de Apoio ao ORECE (a seguir «Gabinete do ORECE»).

2.

O artigo 35.o do regulamento trata, em especial, da cooperação destes órgãos com as autoridades reguladoras nacionais (a seguir «ARN») de países terceiros. A Comissão, com base nesta disposição, determinou, em 18 de março de 2019 ( 3 ), através da decisão controvertida, que a ARN do Kosovo podia participar no Conselho de Reguladores, nos grupos de trabalho do ORECE e no Conselho de Administração do Gabinete do ORECE.

3.

A Espanha impugnou esta decisão, defendendo, em especial, que à participação da ARN do Kosovo obsta o facto de alguns Estados‑Membros, entre eles a própria Espanha, não terem reconhecido o Kosovo como um Estado soberano, sendo que a própria União ainda não se pronunciou sobre esta questão. Complementarmente, a Espanha questiona a competência da Comissão para decidir, unilateralmente, acerca da referida participação.

4.

Os intervenientes debatem intensamente estas questões, com fundamento no direito primário, mas, tudo apreciado com mais atenção, constata‑se que é possível decidir este litígio apenas com base no Regulamento ORECE e no Acordo de Estabilização e de Associação com o Kosovo ( 4 ).

II. Quadro jurídico

A.   Acordo de Estabilização e de Associação com o Kosovo

5.

A União celebrou entre 2001 e 2016 acordos de estabilização e de associação (a seguir «AEA») com a Macedónia do Norte ( 5 ), a Albânia ( 6 ), o Montenegro ( 7 ), a Sérvia ( 8 ), a Bósnia e Herzegovina ( 9 ) e o Kosovo. Para o presente processo interessa, em especial, o AEA Kosovo.

6.

A menção «Kosovo», que consta tanto do título do acordo como do início do preâmbulo, é acompanhada da seguinte nota de rodapé, que se encontra também reproduzida materialmente no considerando 17 do preâmbulo:

«Esta designação não prejudica as posições relativas ao estatuto e é conforme com a Resolução 1244/1999 do CSNU e com o parecer do TIJ sobre a declaração de independência do Kosovo.»

7.

O artigo 2.o do AEA Kosovo tem também por objeto a questão do reconhecimento do Kosovo como um Estado independente:

«Nenhum dos termos, formulações ou definições utilizados no presente Acordo, incluindo os respetivos anexos e protocolos, constitui um reconhecimento do Kosovo pela UE como um Estado independente nem um reconhecimento do Kosovo nessa qualidade por parte dos Estados‑Membros quando estes não tenham, a título individual, assumido anteriormente essa posição.»

8.

O artigo 111.o do AEA Kosovo trata das redes e serviços de comunicações eletrónicas:

«A cooperação incide principalmente em domínios prioritários relacionados com o acervo da UE nesta matéria.

As Partes reforçam, nomeadamente, a cooperação no setor das redes e dos serviços de comunicações eletrónicas, tendo por objetivo final a adoção pelo Kosovo, cinco anos após a entrada em vigor do presente Acordo, do acervo da UE neste setor, prestando especial atenção à garantia e reforço da independência das autoridades reguladoras [competentes].»

9.

O artigo 95.o do AEA Macedónia do Norte, o artigo 104.o do AEA Albânia, o artigo 106.o do AEA Montenegro, o artigo 106.o do AEA Sérvia e o artigo 104.o do AEA Bósnia e Herzegovina consagram disposições semelhantes.

B.   Regulamento ORECE

10.

O Regulamento ORECE revogou o Regulamento (CE) n.o 1211/2009 ( 10 ), através do qual se instituíram originariamente o ORECE e o Gabinete do ORECE.

11.

Nos termos do considerando 5 do Regulamento ORECE, o ORECE funciona como um fórum de cooperação entre as ARN e entre estas e a Comissão, no exercício do conjunto das responsabilidades que lhes foram confiadas pelo quadro regulamentar da União. O ORECE foi criado para prestar aconselhamento especializado e para agir com independência e transparência.

12.

O considerando 13 do Regulamento ORECE descreve a função do ORECE:

«O ORECE deverá oferecer conhecimentos especializados e conquistar a confiança graças à sua independência, à qualidade do seu aconselhamento e das informações que presta, à transparência dos seus procedimentos e dos seus métodos de trabalho, e à sua diligência no exercício das suas atribuições. A independência do ORECE não deverá impedir o seu conselho de reguladores de deliberar com base em projetos elaborados pelos grupos de trabalho.»

13.

O considerando 20 do Regulamento ORECE incide sobre a cooperação com os serviços de países terceiros:

«O ORECE deverá estar habilitado para celebrar acordos com os órgãos, os organismos e os grupos consultivos competentes da União, com as autoridades competentes dos países terceiros e com as organizações internacionais, os quais não deverão criar obrigações jurídicas. O objetivo desses acordos poderá ser, por exemplo, o desenvolvimento de relações de cooperação e o intercâmbio de opiniões sobre questões de regulação. A Comissão deverá assegurar que os acordos necessários sejam coerentes com a política e com as prioridades da União, e que o ORECE aja no âmbito do seu mandato e do quadro institucional existente e não seja visto como representando a posição da União para o exterior, nem como vinculando a União a obrigações internacionais.»

14.

O considerando 34 do Regulamento ORECE refere‑se igualmente à cooperação com países terceiros:

«A fim de continuar a alargar a aplicação coerente do quadro regulamentar para as comunicações eletrónicas, o conselho de reguladores, os grupos de trabalho e o conselho de administração deverão estar abertos à participação das autoridades reguladoras competentes no domínio das comunicações eletrónicas dos países terceiros que, para o efeito, tenham celebrado acordos com a União, como os Estados do EEE/EFTA e os países candidatos à adesão.»

15.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento ORECE, as atividades do ORECE inscrevem‑se no âmbito dos Regulamentos UE n.o 531/2012 ( 11 ) e (UE) 2015/2120 ( 12 ) e da Diretiva (UE) 2018/1972 ( 13 ). Assim, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, o ORECE visa, em particular, garantir a aplicação coerente do quadro regulamentar para as comunicações eletrónicas, no âmbito referido no n.o 1 do mencionado artigo.

16.

O artigo 3.o, n.os 3 e 4, do Regulamento ORECE estabelece a base do trabalho do ORECE:

«3.   O ORECE exerce as suas atribuições com independência, imparcialidade, transparência e de forma atempada.

4.   O ORECE apoia‑se nos conhecimentos especializados disponíveis nas [ARN].

17.

O artigo 4.o do Regulamento ORECE prevê que o ORECE apoie outras instituições em matéria da regulação de comunicações eletrónicas. Nomeadamente, emite pareceres, formula recomendações, adota posições comuns e estabelece melhores práticas, que devem ser respeitados, com toda a abrangência possível, pelas ARN e pela Comissão.

18.

Nos termos do artigo 7.o do Regulamento ORECE, o Conselho de Reguladores é composto por um membro de cada Estado‑Membro. Cada membro é nomeado pela ARN do Estado‑Membro em causa. Os membros do Conselho de Reguladores e os seus suplentes são nomeados em função dos seus conhecimentos no domínio das comunicações eletrónicas, tendo em conta as competências relevantes de gestão, administrativas e orçamentais.

19.

Nos termos do artigo 8.o do Regulamento ORECE, o Conselho de Reguladores e os seus membros agem com independência e no interesse da União.

20.

O artigo 35.o do Regulamento ORECE constitui a disposição central em matéria de cooperação com países terceiros:

«1.   Na medida do necessário para atingir os objetivos estabelecidos no presente regulamento e para exercer as suas atribuições, e sem prejuízo das competências dos Estados‑Membros e das instituições da União, o ORECE e o Gabinete do ORECE podem cooperar com os órgãos, os organismos e os grupos consultivos competentes da União, com as autoridades competentes dos países terceiros e com as organizações internacionais.

Para esse efeito, o ORECE e o Gabinete do ORECE podem celebrar acordos, mediante aprovação prévia da Comissão. Esses acordos não criam obrigações jurídicas.

2.   O conselho de reguladores, os grupos de trabalho e o conselho de administração estão abertos à participação das autoridades reguladoras dos países terceiros que sejam as principais responsáveis no que respeita às comunicações eletrónicas, caso esses países terceiros tenham celebrado acordos com a União para o efeito.

Nos termos das disposições aplicáveis desses acordos, são celebrados acordos que determinam, nomeadamente, a natureza, o âmbito e o modo de participação, sem direito de voto, das autoridades reguladoras dos países terceiros em causa nos trabalhos do ORECE e do Gabinete do ORECE, incluindo disposições relativas à participação nas iniciativas desenvolvidas pelo ORECE, às contribuições financeiras e ao pessoal para o Gabinete do ORECE. No que diz respeito às questões de pessoal, esses acordos devem respeitar sempre o Estatuto dos Funcionários.

3. […].»

C.   Decisão controvertida da Comissão, de 18 de março de 2019

21.

No dia 18 de março de 2019, a Comissão adotou a decisão controvertida, juntamente com cinco decisões semelhantes relativas às participações das ARN do Montenegro ( 14 ), da Macedónia do Norte ( 15 ), da Bósnia e Herzegovina ( 16 ), da Sérvia ( 17 ) e da Albânia ( 18 ) no ORECE.

22.

A decisão controvertida faz referência, nos primeiros dois considerandos, ao artigo 17.o, n.o 1, TUE e ao artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE.

23.

As notas de rodapé ao título da decisão controvertida e ao n.o 1.1. do respetivo anexo repetem, quanto à menção «Kosovo», o teor da nota de rodapé que consta do AEA Kosovo ( 19 ):

«Esta designação não prejudica as posições relativas ao estatuto e é conforme com a Resolução 1244/1999 do CSNU e com o parecer do TIJ sobre a declaração de independência do Kosovo.»

24.

O considerando 3 da decisão controvertida tem o seguinte teor:

«Nos termos do artigo 111.o do [AEA Kosovo], a cooperação em matéria de comunicações eletrónicas centrar‑se‑á principalmente em setores prioritários do acervo da UE neste domínio. As Partes devem, nomeadamente, reforçar a sua cooperação no setor das redes de comunicações eletrónicas e serviços conexos, prestando especial atenção em assegurar e reforçar a independência das autoridades reguladoras pertinentes. Por conseguinte, a União e o Kosovo celebraram um acordo na aceção do artigo 35.o, n.o 2, do [Regulamento ORECE].»

25.

De acordo com o considerando 5 da decisão controvertida, «[…] é conveniente estabelecer os termos práticos da participação da autoridade reguladora do Kosovo no conselho de reguladores, nos grupos de trabalho do ORECE e no conselho de administração do Gabinete ORECE».

26.

Consequentemente, o artigo 1.o da decisão controvertida prevê que a ARN do Kosovo pode participar no Conselho de Reguladores e nos grupos de trabalho do ORECE, bem como no Conselho de Administração do Gabinete ORECE.

27.

As regras materiais dessa participação encontram‑se previstas no anexo à decisão controvertida. Preveem‑se aí ainda regras quanto à intervenção de pessoal do Kosovo e à contribuição financeira do Kosovo.

III. Tramitação processual até à data e alegações de recurso das partes

28.

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 19 de junho de 2019, o Reino de Espanha requereu a anulação da decisão controvertida.

29.

O Reino de Espanha invocou três fundamentos de recurso. Com o primeiro fundamento, sustentou a violação do artigo 35.o do Regulamento ORECE, por entender que o Kosovo não é um «país terceiro». Através do segundo fundamento de recurso sustentou uma outra violação deste mesmo artigo, na medida em que inexistiria um «acordo com a União», para efeitos da participação da ARN do Kosovo no ORECE. Através do terceiro fundamento de recurso, o Reino de Espanha sustentou, uma vez mais, uma violação do referido artigo, agora no sentido de a Comissão se ter afastado do procedimento estabelecido para a participação das ARN de países terceiros no ORECE.

30.

Através do acórdão impugnado o Tribunal Geral negou provimento ao recurso e condenou o Reino de Espanha nas despesas do processo.

31.

Em 24 de novembro de 2020, o Reino de Espanha interpôs o recurso que deu origem aos presentes autos e no qual pede que o Tribunal de Justiça se digne:

dar provimento ao presente recurso e anular o acórdão do Tribunal Geral de 23 de setembro de 2020, no processo T‑370/19 contra a Comissão Europeia;

proceder à anulação da Decisão da Comissão, de 18 de março de 2019, relativa à participação da autoridade reguladora nacional do Kosovo no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas; e

condenar a recorrida nas despesas.

32.

A Comissão Europeia pede que seja negado provimento ao recurso e que o recorrente seja condenado nas despesas do processo.

33.

Os intervenientes apresentaram observações escritas. O Tribunal de Justiça prescindiu da realização de audiência de alegações.

IV. Apreciação jurídica

34.

O presente litígio é uma decorrência da circunstância de a União, até ao momento, se ter abstido de tomar uma posição acerca do estatuto do Kosovo como um Estado soberano, na aceção do direito internacional. Esta falta de tomada de posição resulta, designadamente, do artigo 2.o e do considerando 17 do AEA Kosovo. Importa esclarecer que alguns Estados‑Membros, entre os quais a Espanha, não reconheceram o Kosovo como um Estado soberano.

35.

Assim, a Espanha insurge‑se contra o facto de a Comissão, através da decisão controvertida, ter aceitado a participação da ARN do Kosovo no ORECE, nos termos do artigo 35.o do Regulamento ORECE. Após a prolação do acórdão do Tribunal Geral, através do qual foi negado provimento ao recurso, o referido Estado‑Membro interpôs o presente recurso, assente em cinco fundamentos, que contudo se reconduzem a duas questões centrais.

36.

Por um lado, através dos três primeiros fundamentos de recurso e da primeira parte do quarto fundamento de recurso, a Espanha põe em causa, no essencial, que o artigo 111.o do AEA Kosovo e o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE constituam base suficiente que permita à ARN do Kosovo participar no Conselho de Reguladores, nos grupos de trabalho do ORECE e no Conselho de Administração do Gabinete do ORECE.

37.

Por outro lado, a Espanha, especialmente através do quinto fundamento de recurso, mas também da segunda parte do quarto fundamento de recurso, põe em causa a competência orgânica da Comissão para adotar a decisão controvertida.

38.

Importa começar por esclarecer que a decisão controvertida, ao contrário do que a Espanha reiteradamente alega, não reconheceu o Kosovo como um Estado. Efetivamente, a decisão contém duas notas de rodapé segundo as quais a designação «Kosovo» não prejudica as posições relativas ao estatuto e é conforme com a Resolução 1244/1999 do CSNU e com o parecer do TIJ sobre a declaração de independência do Kosovo. Estas notas de rodapé correspondem, no essencial, ao considerando 17 do AEA Kosovo e a uma outra nota de rodapé semelhante, que consta deste acordo, o que evidencia que a decisão controvertida, tal como o AEA, não se destina a ter por efeito um reconhecimento (implícito) do Kosovo como Estado.

39.

Portanto, inexistindo tal reconhecimento do Kosovo, torna‑se inútil decidir no presente processo em que medida os órgãos da União podem proceder a esse reconhecimento. Por conseguinte, também falece a reiterada alegação da Espanha, segundo a qual a Comissão não tem competência para decidir acerca desse reconhecimento.

A.   Primeiro a terceiro fundamentos de recurso, bem como primeira parte do quarto fundamento de recurso — participação da ARN do Kosovo no ORECE

40.

O artigo 35.o do Regulamento ORECE regula a cooperação com instituições da União, de países terceiros e de organizações internacionais. Assim, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, primeira parte, o Conselho de Reguladores, os grupos de trabalho e o Conselho de Administração estão abertos à participação das autoridades reguladoras dos países terceiros que sejam as principais responsáveis no que respeita às comunicações eletrónicas, caso esses países terceiros tenham celebrado acordos com a União para o efeito.

41.

Conforme o considerando 3 da decisão controvertida, o artigo 111.o do AEA Kosovo consubstancia um tal acordo. Desta forma, a Comissão, através desta decisão, autorizou a participação da ARN do Kosovo no ORECE.

42.

Através dos três primeiros fundamentos de recurso, bem como da primeira parte do quarto fundamento de recurso, a Espanha impugna a decisão do Tribunal Geral pela qual este declara que a referida participação da ARN do Kosovo é admissível.

43.

Concretamente, a Espanha põe em causa a interpretação da expressão «países terceiros» (primeiro fundamento de recurso), põe em causa, de uma forma geral, que o artigo 35.o do Regulamento ORECE e o artigo 111.o do AEA Kosovo permitam uma participação do Kosovo no ORECE (segundo fundamento de recurso) e, em especial, põe em causa que o artigo 111.o do AEA Kosovo consubstancie um acordo na aceção do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE (terceiro fundamento de recurso e primeira parte do quarto fundamento de recurso). Contudo, em particular a análise do primeiro fundamento de recurso exige que se incida sobre argumentos que igualmente relevam no quadro da apreciação dos demais fundamentos de recurso.

1. Quanto ao primeiro fundamento de recurso — o conceito de «países terceiros»

44.

Na decisão controvertida a Comissão considerou o Kosovo um «país terceiro», na aceção do artigo 35.o do Regulamento ORECE. O Tribunal Geral fez seu este entendimento e decidiu, no n.o 36 do acórdão recorrido, que o conceito de «país terceiro», na aceção do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, tem um alcance mais amplo, que vai além dos Estados soberanos no sentido do direito internacional, pelo que abrange, designadamente, o Kosovo.

45.

A este propósito, o Tribunal Geral, nos n.os 29 a 35 do acórdão recorrido, baseou‑se na circunstância de nas disposições do TFUE tanto se utilizar o termo «países terceiros» como o termo «Estados terceiros», donde decorre que distingue entre ambos. O Tribunal Geral aludiu, neste contexto, às epígrafes dos títulos III e VI da quinta parte do TFUE, bem como aos artigos 212.o e 217.o Assim, decidiu, no n.o 30 do acórdão recorrido, «que as disposições do Tratado FUE relativas aos “países terceiros” se destinam claramente a oferecer a possibilidade de celebração de acordos internacionais com entidades “que não sejam Estados”».

46.

Através do seu primeiro fundamento de recurso, a Espanha alega que esta decisão enferma de erro de direito. No entendimento da Espanha, o conceito de «países terceiros» só pode abranger Estados na aceção do direito internacional. Dentro desta linha de raciocínio, uma interpretação ampla do conceito de «países terceiros» dar‑lhe‑ia, no direito da União, um sentido distinto daquele que lhe é atribuído no direito internacional.

47.

Diferentemente, a Comissão considera que, atendendo às várias disposições contidas nos Tratados e nos atos jurídicos de direito da União, que distinguem entre países terceiros e Estados terceiros, se impõe proceder, também no plano substantivo, a uma distinção entre ambas as expressões.

48.

Considero que o Tribunal Geral, no n.o 36 do acórdão recorrido, em termos de resultado final, acabou por interpretar bem o conceito de «países terceiros», tal como previsto no artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE. É o que resulta, desde logo, da interpretação, segundo os métodos clássicos, do conceito de «países terceiros», tal como consagrado no artigo 35.o do Regulamento ORECE, que se revela em harmonia com a prática no direito internacional [v. infra, alíneas b) a f)].

49.

Contudo, não se me afigura ajustado confirmar a fundamentação do Tribunal Geral, plasmada nos n.os 29 a 35 do acórdão recorrido, segundo a qual a distinção entre os conceitos de «Estado terceiro» e «país terceiro» resulta, desde logo, dos próprios Tratados [v. infra, alínea a)]. O Tribunal de Justiça deve substituir esta fundamentação por outra, assente no Regulamento ORECE.

a) Quanto às expressões utilizadas nos Tratados

50.

Nas considerações do Tribunal Geral acerca das expressões utilizadas nos Tratados, acaba‑se por ignorar que nem em todas as versões linguísticas dos Tratados se distingue entre Estados terceiros e países terceiros ou entre Estados e países. Nomeadamente nas versões estónia, letã, polaca e eslovena utiliza‑se maioritariamente, ou mesmo sempre, a mesma expressão, neste caso a que equivale a «Estado terceiro». Resulta, porém, dos artigos 198.o, 208.o e 212.o TFUE que também nestas versões linguísticas, com exceção da eslovena, se consagrou a expressão equivalente a «país», por exemplo em «países em desenvolvimento» ou em «países e territórios não europeus».

51.

Mesmo em versões linguísticas nas quais se procede maioritariamente à referida distinção, nem sempre existe coincidência. Assim, por exemplo, na versão alemã dos artigos 67.o, 77.o, 78.o e 79.o TFUE faz‑se referência a «Drittstaatsangehörigen» [«nacionais de Estados terceiros»], enquanto por exemplo na versão francesa, na versão inglesa e na versão dinamarquesa utilizam‑se, respetivamente, as expressões «ressortisants des pays tiers», «third‑country nationals» ou «nationals of third countries» e «tredjelandsstatsborgere», referindo‑se, portanto, a nacionais de países terceiros.

52.

Esta falta de coerência era menos evidente no Tratado CEE originário, de 1957, que só era vinculativo em quatro idiomas, mas também já se verificava. Assim, por exemplo, a versão alemã do artigo 3.o, alínea b), refere‑se à política aduaneira e comercial «relativamente a países terceiros», enquanto as outras três versões linguísticas utilizam a expressão «Estados terceiros».

53.

Contudo, uma vez que as diversas versões linguísticas devem ser interpretadas de modo uniforme ( 20 ) e a nenhuma pode ser atribuído caráter prioritário em relação às outras ( 21 ), não se pode extrair, da distinção a que se procede nas demais versões linguísticas, existir necessariamente uma diferença de sentido.

54.

Por conseguinte, o ponto de partida da argumentação do Tribunal Geral — ou seja, a clara distinção, operada nos n.os 29 e 30 do acórdão recorrido, entre os conceitos de «países terceiros» e de «Estados terceiros» no TFUE — enferma de erro de direito.

55.

Contudo, se os fundamentos de um acórdão do Tribunal Geral revelarem uma violação do direito da União, mas a sua parte decisória se mostrar justificada por outros fundamentos jurídicos, essa violação não deve acarretar a anulação desse acórdão. Há, isso sim, que proceder à substituição da fundamentação ( 22 ).

56.

É certamente concebível vir a confirmar‑se a interpretação que o Tribunal Geral fez das disposições do TFUE, através da análise da sistemática geral destas disposições e da respetiva finalidade ( 23 ). Mas sucede que para isso não basta a presunção do Tribunal Geral, no n.o 30 do acórdão recorrido, segundo a qual as disposições do TFUE relativas a «países terceiros» se destinam claramente a oferecer a possibilidade de celebração de acordos internacionais com entidades «que não sejam Estados». Efetivamente, seria necessário um exame significativamente mais profundo da sistemática e da finalidade de todas as previsões dos Tratados que, em determinadas versões linguísticas, utilizam os termos «países terceiros» ou «Estados terceiros» ou, até mesmo, os termos «país» e «Estado».

57.

Acontece que isso não se afigura, in casu, necessário, pois para o exame da decisão controvertida basta interpretar o termo «país terceiro», tal como é utilizado no artigo 35.o do Regulamento ORECE. E a interpretação desta disposição, segundo os métodos tradicionais, confirma o resultado a que o Tribunal Geral chegou.

b) O teor do artigo 35.o do Regulamento ORECE

58.

Tal como o Tribunal Geral constatou no n.o 28 do acórdão recorrido, o conceito de «país terceiro», utilizado no artigo 35.o do Regulamento ORECE, não se encontra definido nem neste regulamento, nem noutras disposições relevantes dos Tratados.

59.

Na maioria das versões linguísticas do artigo 35.o do Regulamento ORECE utiliza‑se o termo «países terceiros» e não o termo «Estados terceiros» ( 24 ). A Comissão extrai, daqui, que o conceito de «país terceiro» tem um outro sentido do que o conceito de «Estado terceiro».

60.

A Espanha, alega, contrariamente, que entre os conceitos de «Estado terceiro» e «país terceiro» não existe diferença semântica. A única diferença relevante entre ambos os conceitos consiste exclusivamente no grau de formalidade jurídica. É por isso que em linguagem comum se fala da língua do país, do clima do país ou da gastronomia de um «país», sendo que já no contexto jurídico se fala do reconhecimento de um «Estado».

61.

Foi neste sentido que o Tribunal de Justiça já decidiu que o conceito de «país» é utilizado muitas vezes nos Tratados como sinónimo do termo «Estado» ( 25 ).

62.

Contudo, não se afigura imperativo interpretar os conceitos de «Estado» e de «país» como tendo sempre o mesmo alcance. Na verdade, até é concebível que a utilização do conceito de «país terceiro» permita a distinção relativamente ao conceito de «Estado terceiro».

63.

Acontece que uma tal diferenciação, ao nível do texto do artigo 35.o do Regulamento ORECE, se vê confrontada com o mesmo problema que se verifica a propósito das já referidas disposições do TFUE, pois a circunstância de, nas versões estónia, letã, polaca e eslovena da maior parte das disposições de direito primário, não se distinguir entre países terceiros e Estados terceiros ( 26 ) repete‑se no artigo 35.o do Regulamento ORECE. Além disso, nas versões búlgara e lituana das disposições de direito primário até se utilizam, parcialmente, duas expressões distintas, mas já nas respetivas versões linguísticas do artigo 35.o do Regulamento ORECE se utiliza o equivalente ao termo «Estados terceiros».

64.

Tal como já se referiu, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de base única à interpretação dessa disposição e não lhe pode ser atribuído caráter prioritário em relação às outras versões linguísticas ( 27 ). As disposições do direito da União devem, isso sim, ser interpretadas e aplicadas de maneira uniforme, à luz das versões redigidas em todas as línguas da União. Em caso de disparidade entre as diferentes versões linguísticas de um diploma do direito da União, a disposição em causa deve ser interpretada em função da economia geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento ( 28 ). Além disso, a génese da disposição pode igualmente incluir elementos pertinentes para a sua interpretação ( 29 ).

c) Contexto dispositivo do artigo 35.o do Regulamento ORECE

65.

Importa agora analisar o artigo 35.o do Regulamento ORECE no seu contexto dispositivo.

66.

Segundo o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, a participação no ORECE pressupõe a celebração de acordos entre os países terceiros em causa e a União. O considerando 34 refere, a título exemplificativo, os Estados do EEE/EFTA e os países candidatos à adesão.

67.

No momento da adoção desta disposição, o legislador tinha certamente em mente os acordos relativos à cooperação no setor das redes de comunicações eletrónicas e serviços conexos, celebrados com a Albânia, com o Montenegro e com a Sérvia, que eram países que a União, nessa altura, já reconhecera como países candidatos à adesão.

68.

É certo que o Kosovo não é um país candidato, mas, como já se mencionou, a referência ao estatuto de país candidato no considerando 34 é meramente exemplificativa e, por conseguinte, não restringe o círculo dos possíveis parceiros.

69.

Contudo, muito mais importante é que a União, ainda antes da adoção do Regulamento ORECE, já celebrara um acordo, que consta do artigo 111.o do AEA Kosovo, o qual — como o Tribunal Geral constatou no n.o 49 do acórdão recorrido — coincide, no essencial, com o estipulado nos acordos correspondentes celebrados com os países candidatos Albânia, Montenegro e Sérvia. Estas convenções bastaram para a participação das ARN destes países. Não seria compreensível que o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE não se referisse igualmente ao acordo com o Kosovo.

70.

É certo que a Espanha alega, no âmbito do terceiro fundamento de recurso, que o Tribunal Geral, neste contexto, não se debruçou sobre o artigo 95.o do AEA Macedónia do Norte. Ao contrário do que sucede com o artigo 111.o do AEA Kosovo, o artigo 95.o, n.o 2, sexto travessão, do AEA Macedónia do Norte refere expressamente a «cooperação no âmbito das estruturas europeias» como um dos domínios prioritários a privilegiar pelas iniciativas de cooperação. Neste contexto, a Espanha remete, também, para um outro documento que contém indicações detalhadas quanto à cooperação, mais concretamente para o Plano de Ação UE‑Tunísia para a concretização da parceria privilegiada (2013‑2017) no âmbito da Política Europeia de Vizinhança ( 30 ). Na primeira parte do quarto fundamento de recurso, a Espanha menciona ainda o acordo, substancialmente mais específico do que aquele que vem consagrado no artigo 111.o do AEA Kosovo, que resulta da decisão do Comité Misto do EEE, relativa à participação dos Estados do EEE ( 31 ).

71.

Contudo, o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE não foi adotado para conter essas normas específicas em matéria de cooperação; foi‑o, isso sim, à luz, nomeadamente, dos acordos de associação indicados pelo Tribunal Geral, que então já existiam. Por isso, não se pode concluir, a partir dos textos indicados pela Espanha, que um tal acordo expresso acerca da cooperação no âmbito das estruturas europeias constitua um pressuposto necessário para a aplicação do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE.

72.

De resto, é desde logo o contexto dispositivo que existe entre o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE e o AEA celebrado nos Balcãs Ocidentais que milita a favor do entendimento segundo o qual o conceito de país terceiro, na aceção do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, abrange também o Kosovo.

d) Génese do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE

73.

A génese do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE confirma a interpretação feita à luz do seu contexto dispositivo.

74.

O artigo 26.o, n.o 2, da proposta da Comissão ( 32 ) ainda se encontrava redigido em termos algo equívocos, pois nele referia‑se a «[…] participação das autoridades de regulamentação de países terceiros competentes no domínio das comunicações eletrónicas que tenham celebrado acordos com a União para o efeito». Assim, não era claro se era necessária a celebração de acordos com as autoridades reguladoras ou com os países terceiros.

75.

Contudo, no processo de discussão precisou‑se o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, passando‑se a prever a necessidade de que «esses países terceiros tenham celebrado acordos com a União para o efeito».

76.

Esta especificação revela, exatamente como o considerando 34 do Regulamento ORECE, que o artigo 35.o foi adotado tendo em conta os acordos que efetivamente já existiam e, por conseguinte, tendo também em conta o acordo com o Kosovo, consagrado no artigo 111.o do AEA Kosovo.

e) Interpretação teleológica do artigo 35.o do Regulamento ORECE

77.

Por fim, corresponde também ao sentido e à finalidade do artigo 35.o do Regulamento ORECE possibilitar a cooperação com a ARN do Kosovo.

78.

Esta disposição tem manifestamente como objetivo promover a cooperação do ORECE e do Gabinete do ORECE com outras autoridades reguladoras do setor das comunicações eletrónicas. Neste sentido, o considerando 20 prevê que o objetivo dos acordos (de trabalho) poderá ser o desenvolvimento de relações de cooperação e o intercâmbio de opiniões sobre questões de regulação. Ora, a Espanha não põe em causa que no Kosovo existe uma autoridade reguladora deste setor.

79.

Além disso, resulta do considerando 34 do Regulamento ORECE que a cooperação tem como finalidade continuar a alargar a aplicação coerente do quadro regulamentar para as comunicações eletrónicas. Com esta mesma finalidade estatui o artigo 111.o do AEA Kosovo que o Kosovo deve adotar o acervo da UE neste setor.

80.

Desta forma, as finalidades do artigo 35.o, tal como se encontram expressamente previstas nos considerandos 20 e 34, militam a favor do entendimento segundo o qual o Kosovo deve ser considerado como um país terceiro, na aceção da referida disposição.

f) Considerações complementares em matéria de direito internacional

81.

De resto, a Espanha alega que a interpretação do conceito de «país terceiro», pela Comissão e pelo Tribunal Geral, gera uma nova categoria de sujeitos de direito internacional, que não têm previsão no direito internacional comum.

82.

Porém, a Comissão objeta, com razão, que no direito internacional não existe uma definição genericamente válida do conceito de «país terceiro» ou de «país».

83.

Assim, por exemplo, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, pelo menos nos idiomas da União inglês, francês e espanhol, só utiliza a expressão «estados», e não também a expressão «países». Já por exemplo na Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 28 de julho de 1951, tanto se utiliza a expressão «Vertragsstaaten» [«Estados Contratantes»] (noutras versões linguísticas: «Contracting States», États Contractants», como a expressão «Land» [«país»] («country», «pays»), em especial quando se refere aos países de origem ou de acolhimento.

84.

Contudo, em especial o Fundo Monetário Internacional (a seguir «FMI») revela que no direito internacional se utiliza ainda um outro conceito de país. No artigo II dos «Articles of Agreement of the International Fund», que apenas são vinculativos em língua inglesa ( 33 ), refere‑se que a participação é aberta a certos «países» («countries»). Com base nesta disposição, o FMI aceitou como membros diferentes entidades territoriais que não se encontram reconhecidas como Estados, entre elas, em especial, o Kosovo ( 34 ), mas também Hong Kong, Macau ou os territórios ultramarinos britânicos Anguila e Monserrate ( 35 ).

85.

A prática da União em matéria de direito internacional — em especial no que respeita ao Kosovo — revela, de resto, que está disposta a celebrar acordos juridicamente vinculativos com entidades territoriais que, ela própria, não reconheceu como Estado. Para além do AEA Kosovo, a União celebrou ainda um acordo‑quadro relativo aos princípios gerais da participação do Kosovo em programas da União ( 36 ). Além disso, como o Tribunal Geral constatou no n.o 31 do acórdão recorrido, a União celebrou acordos com a Organização de Libertação da Palestina (OLP), o Território Aduaneiro Distinto de Taiwan, Penghu, Kinmen e Matsu, o Governo da Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China ou ainda a Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China.

86.

Ou seja, o alegado relativamente a possíveis contradições com o direito internacional também não convence. Desta forma, improcede o primeiro fundamento de recurso.

2. Quanto ao segundo fundamento de recurso — reconhecimento do Kosovo?

87.

Através do segundo fundamento de recurso a Espanha insurge‑se contra os n.os 33 e 34 do acórdão recorrido. Nesta passagem, o Tribunal Geral recorda que a União se absteve de tomar posição sobre o estatuto do Kosovo enquanto Estado à luz do direito internacional, como resulta do considerando 17 e do artigo 2.o do AEA Kosovo. Segundo o Tribunal Geral, estas referências, feitas por precaução, visam distinguir entre, por um lado, o estatuto de «Estado» e, por outro, a capacidade do Kosovo de se comprometer ao abrigo do direito internacional como ator desse direito, integrando o conceito mais amplo de «país terceiro».

88.

A Espanha conjuga, no contexto deste fundamento de recurso, várias objeções à decisão controvertida. No essencial, este Estado‑Membro imputa à Comissão a violação da competência dos Estados‑Membros de decidirem acerca do reconhecimento ou não do Kosovo como Estado. Segundo refere, apesar de nem todos os Estados‑Membros terem reconhecido o Kosovo como Estado, a Comissão, através da decisão controvertida, acaba por fazê‑lo, ainda que implicitamente, indo mais longe do que o próprio AEA Kosovo. Desta forma, violou‑se o artigo 111.o do AEA Kosovo, em conjugação com o artigo 35.o do Regulamento ORECE, em termos que o Tribunal Geral não sancionou.

89.

Na verdade, fica prejudicada a questão de saber como se distribui a competência entre a União e os Estados‑Membros, no que concerne ao reconhecimento de Estados, pois, tal como já referi, não está em causa o reconhecimento do Kosovo ( 37 ).

90.

Mas, em especial, inexiste qualquer violação do artigo 111.o do AEA Kosovo e do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, pois estas disposições, tal como também já foi referido ( 38 ), têm por objetivo integrar a ARN do Kosovo no ORECE.

91.

Por conseguinte, improcede o segundo fundamento de recurso, não se revelando necessário decidir se este fundamento é novo relativamente ao alegado em primeira instância e, por conseguinte, inadmissível.

3. Quanto ao terceiro fundamento de recurso — participação da ARN do Kosovo no ORECE e no Conselho de Administração do Gabinete do ORECE

92.

A Espanha, através do terceiro fundamento de recurso, imputa à Comissão ter interpretado erradamente o artigo 35.o do Regulamento ORECE, em conjugação com o artigo 111.o do AEA Kosovo, ao concluir que a referida cooperação abrange igualmente a participação no ORECE. Na opinião da Espanha, o artigo 111.o do AEA Kosovo não constitui fundamento jurídico suficiente para a prolação da decisão controvertida, visto que a disposição em causa não prevê expressamente a participação da ARN do Kosovo no ORECE e no Gabinete do ORECE.

93.

Ou seja, a questão central do terceiro fundamento de recurso visa apurar se o AEA Kosovo, em especial o seu artigo 111.o, deve ser considerado um «acordo para o efeito», na aceção do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, como o Tribunal Geral decidiu no n.o 49 do acórdão recorrido.

94.

A Espanha alega, a este propósito, que o Tribunal Geral não atendeu ao AEA Macedónia do Norte, o qual, ao contrário dos outros acordos de associação em causa, faz expressa referência à «cooperação no âmbito das estruturas europeias». Contudo, já referi, no âmbito da análise do primeiro fundamento de recurso, que a adoção de uma formulação deste tipo não pode ser arvorada em pressuposto necessário para a existência de acordo, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE ( 39 ).

95.

A Espanha entende, ainda, que a falta de reconhecimento do Kosovo como Estado obsta a que se possa considerar a participação da ARN do Kosovo no ORECE como cooperação, na aceção do artigo 35.o do Regulamento ORECE. Não obstante, resulta do que se vem expondo que o artigo 111.o do AEA Kosovo e o artigo 35.o do Regulamento ORECE têm em vista integrar a ARN do Kosovo no ORECE, independentemente desse reconhecimento ( 40 ).

96.

A Espanha alega, ainda, que a expressão «cooperação», utilizada no artigo 111.o do AEA Kosovo, não implica necessariamente a participação no ORECE, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE. Bastaria a cooperação à qual se refere o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento ORECE, tal como foi estipulado com outros parceiros. Efetivamente, a participação do Kosovo nas estruturas do ORECE confere‑lhe influência sobre a configuração do direito da União, visto que essas estruturas para ela contribuem.

97.

É verdade que os representantes da ARN Kosovo, nos termos da decisão controvertida, participam no Conselho de Reguladores, em grupos de trabalho e no Conselho de Administração, podendo apresentar observações.

98.

Contudo, essas pessoas, no âmbito das suas participações tanto no Conselho de Reguladores como no Conselho de Administradores, não devem defender os pontos de vista do Kosovo ou da respetiva ARN, mas sim atuar sem sujeição a quaisquer instruções, como resulta dos n.os 1.7 e 3.6 do anexo à decisão controvertida. Os demais membros de ambos os conselhos encontram‑se sujeitos ao mesmo dever de independência, nos termos do artigo 8.o, n.o 2, e 15.o, n.o 3, do Regulamento ORECE. Pois, efetivamente, como resulta dos considerandos 5 e 13, bem como do artigo 3.o, n.os 3 e 4, o ORECE foi criado para oferecer conhecimentos especializados e agir de forma independente e transparente.

99.

Ou seja, a cooperação nos conselhos do ORECE, a que se reporta a decisão controvertida, não revela características típicas da participação de um Estado no processo legislativo da União, visando antes o desenvolvimento de práticas de regulação coerentes, em que os textos do ORECE, nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento ORECE, devam ser tidos na melhor conta. Trata‑se portanto de uma coordenação não vinculativa de autoridades reguladoras.

100.

Só que também neste domínio a participação dos representantes da ARN do Kosovo não assume uma influência decisiva na formação da vontade do ORECE, pois as ARN dos países terceiros, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE, não têm direito de voto.

101.

Acresce que a referência, que consta do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, a um acordo, tal como foi celebrado nos termos do artigo 111.o do AEA Kosovo, não permite que se ponha em causa que a Comissão concretizou a cooperação com a ARN do Kosovo prevendo a sua participação nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE e não através do modo de cooperação menos intensivo ao qual se reporta o artigo 35.o, n.o 1.

102.

Deste modo, não colhe a alegação ora em causa, improcedendo o terceiro fundamento de recurso, in totum.

4. Quanto à primeira parte do quarto fundamento de recurso — base jurídica para a adoção da decisão controvertida

103.

A Espanha, através da primeira parte do quarto fundamento de recurso, volta a pôr em causa que o artigo 111.o do AEA Kosovo possa constituir base jurídica suficiente para a adoção da decisão controvertida.

104.

A este propósito, a Espanha censura, em especial, o n.o 72 do acórdão recorrido, segundo o qual «não é juridicamente necessário exigir que a “abertura para a participação” de uma ARN de um país terceiro esteja sujeita a uma autorização específica estabelecida no âmbito de um acordo internacional. Com efeito, essa abertura e as “regras de entrada” adotadas para participar no ORECE não implicam qualquer obrigação jurídica para essa ARN, uma vez que, em última análise, cabe à ARN tomar livremente a decisão subsequente de participar no ORECE em conformidade com essas regras».

105.

Ao invés, a Espanha entende que o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE pressupõe um acordo consideravelmente mais específico, tal como adotado, por exemplo, pelo Comité Misto do EEE.

106.

Já referi que também esta decisão em nada altera a circunstância de o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE ter sido adotado à luz dos acordos substancialmente menos específicos previamente celebrados com países candidatos à adesão dos Balcãs Ocidentais, acordos esses com o qual o artigo 111.o do AEA Kosovo é consentâneo ( 41 ).

107.

Diferentemente, o Comité Misto do EEE proferiu a sua decisão para implementação do já mencionado artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, o que não era possível, por motivos cronológicos, à data da celebração do AEA Kosovo. Já só por este motivo faz sentido que a decisão do Comité Misto do EEE seja mais detalhada do que o artigo 111.o do AEA Kosovo.

108.

Destarte, improcede também a primeira parte do quarto fundamento de recurso.

B.   Segunda parte do quarto fundamento de recurso e quinto fundamento de recurso — competência orgânica da Comissão

109.

A segunda parte do quarto fundamento de recurso e o quinto fundamento de recurso têm por objeto a circunstância de ter sido a Comissão a adotar a decisão controvertida. Ou seja, põe‑se em causa a sua competência orgânica.

110.

Através da segunda parte do quarto fundamento de recurso a Espanha alega, a este propósito, que desde logo a sensibilidade da questão do reconhecimento do Kosovo exige que seja o Conselho e não apenas a Comissão a decidir acerca da participação da ARN do Kosovo no ORECE, com base no artigo 17.o TUE. O Tribunal Geral decidiu mal, a este propósito, nos n.os 81 e 82 do acórdão recorrido.

111.

Nos termos do quinto fundamento de recurso, a Espanha defende, além disso, que o Tribunal Geral, nos n.os 76 e 77 do acórdão recorrido, interpretou erradamente o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, ao decidir que a Comissão, atendendo às suas funções executivas e aos seus poderes de representação externa, tem competência para estabelecer, unilateralmente, acordos (de trabalho).

112.

Para se poder decidir acerca destes fundamentos de recurso importa esclarecer a distribuição de competências, tal como prevista no artigo 35.o do Regulamento ORECE.

1. As disposições aplicáveis dos acordos

113.

No artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE prevê‑se que, nos termos das disposições aplicáveis dos acordos referidos no primeiro parágrafo, são celebrados, entre a União e os países terceiros em causa, «acordos [de trabalho] que determinam, nomeadamente, a natureza, o âmbito e o modo de participação […] das autoridades reguladoras dos países terceiros em causa».

114.

Assim, poder‑se‑ia entender, à primeira vista, que as modalidades do exercício dessa competência resultam dos respetivos acordos entre a União e o país terceiro em causa, já que o acordo (de trabalho) deve ser celebrado nos termos das disposições aplicáveis desses primeiros acordos.

115.

O artigo 111.o do AEA Kosovo não contém qualquer regra a este propósito. Assim, seria concebível o recurso ao Conselho de Estabilização e de Associação ao qual se refere o artigo 126.o, cuja intervenção a Espanha exigiu, perante o Tribunal Geral. Sucede que este Conselho, nos termos do artigo 128.o, só é competente para tomar decisões nos casos previstos no acordo. Ora, não se preveem competências deste Conselho, relacionadas com o artigo 111.o do AEA Kosovo. Consequentemente, não se podem extrair do AEA Kosovo regras relacionadas com a celebração dos acordos (de trabalho) a que se refere o artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE.

116.

Contudo, não se pode concluir daqui que não seja possível celebrar tais acordos. O Tribunal Geral referiu, com razão, no n.o 69 do acórdão recorrido, não impugnado pela Espanha, que sem tais acordos os objetivos do artigo 111.o do AEA Kosovo e do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE não poderiam ser realizados. O Tribunal Geral concluiu daqui, corretamente, no n.o 70 do acórdão recorrido, igualmente não impugnado, que a referência às disposições aplicáveis dos acordos apenas significa que a adoção dos acordos (de trabalho) não pode contradizer essas disposições.

117.

Já as modalidades do exercício dessa competência, no que respeita à participação da ARN do Kosovo, resultam exclusivamente do Regulamento ORECE.

2. Quanto à celebração de acordos (de trabalho)

118.

O regime relativo à participação da ARN de países terceiros, contido no artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, prevê a celebração de acordos (de trabalho), mas não prevê a possibilidade de adoção de decisões unilaterais [v. infra, alínea b)], nem a sua prolação pela Comissão [v. infra, alínea a)]. Ambas as circunstâncias implicam erros de direito, que devem conduzir à anulação do acórdão recorrido.

a) Competência orgânica da Comissão

119.

A Espanha impugna, com razão, a competência orgânica da Comissão para a adoção da decisão controvertida, que se julgou verificada nos termos, em especial, dos n.os 76 e 77 do acórdão impugnado.

120.

O artigo 13.o, n.o 2, primeira frase, TUE dispõe que cada instituição da União atua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabelecem. Esta disposição traduz o princípio do equilíbrio institucional, característico da estrutura institucional da União, o qual implica que cada uma das instituições exerça as suas competências no respeito pelas das outras ( 42 ).

121.

Nos n.os 76 e 77 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral extrai a competência necessária à adoção da decisão controvertida das funções executivas da Comissão, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, quarto período, TUE e dos seus poderes de representação externa, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, quinto período, TUE. As competências nestes domínios, que não tenham sido expressamente delegadas no ORECE, continuam a pertencer à Comissão.

122.

A justificação de competências com base, diretamente, no artigo 17.o TUE, já de si suscita dúvidas. As medidas de caráter executivo são geralmente adotadas através de atos jurídicos delegados. Acontece que, para o efeito, os artigos 290.o, n.o 1, e 291.o, n.o 2, TFUE exigem a delegação expressa de competência na Comissão ( 43 ). E no domínio da representação externa, é, em regra, necessária uma autorização do Conselho, nos termos do artigo 218.o, n.o 2, TFUE.

123.

É certo que o Tribunal Geral, no n.o 81 do acórdão recorrido, se baseia no facto de o artigo 16.o TUE poder fundamentar competências do Conselho ( 44 ), transferindo então esta jurisprudência para o artigo 17.o TUE. Só que o Tribunal de Justiça nem tem de decidir se essa transferência é possível, já que, ao contrário do que foi decidido no n.o 77 do acórdão recorrido, o Regulamento ORECE dispõe quais os órgãos que podem celebrar acordos (de trabalho), na aceção do artigo 35.o, n.o 2.

124.

É verdade que o artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE, se analisado isoladamente, nada refere a este propósito.

125.

Acontece que, nos termos do considerando 20 do Regulamento ORECE, o ORECE deverá estar habilitado para celebrar acordos, nomeadamente com as autoridades competentes dos países terceiros. Consequentemente, o artigo 9.o, alínea i), e o artigo 20.o, n.o 6, alínea m), preveem que o Conselho de Reguladores e o Diretor do Gabinete do ORECE autorizem a celebração de acordos (de trabalho).

126.

Já a Comissão, nos termos do considerando 20 do Regulamento ORECE, deve cingir‑se a exercer uma função de controlo.

127.

Assim, em especial no que respeita à cooperação com países terceiros, o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento ORECE prevê que o ORECE e o Gabinete do ORECE possam celebrar acordos (de trabalho), mediante aprovação prévia da Comissão.

128.

Esta distribuição de competências entre o ORECE e a Comissão está em harmonia com o conceito que subjaz ao Regulamento ORECE. De facto, o ORECE e o Gabinete do ORECE não são organismos destinados a executar missões da Comissão e que, por isso, dispõem de poderes dela derivados, como o Tribunal Geral assume no n.o 76 do acórdão recorrido. Efetivamente, o ORECE, como resulta dos considerandos 5 e 13, bem como do artigo 3.o, n.o 3, e do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento ORECE, deve oferecer aconselhamento especializado e agir com independência. As exigências relacionadas com a independência dos seus membros, plasmadas nos considerandos 22, 25 e 29, bem como no artigo 8.o, n.o 2, no artigo 16.o, n.o 1, alínea m), no artigo 20.o, n.o 3, e no artigo 42.o, confirmam‑no. Os membros do Conselho de Reguladores, que são nomeados pelas várias ARN nos termos do artigo 7.o, não atuam portanto como representantes das respetivas ARN, antes intervindo enquanto especialistas, nos debates no seio do ORECE. Acresce que, como resulta do considerando 32, para garantir essa independência, o Gabinete do ORECE deverá dispor de um orçamento próprio.

129.

Seria difícil de compatibilizar com a independência do ORECE a Comissão dispor, em relação ao trabalho do referido ORECE, de competências decisórias unilaterais. Também a função de controlo da Comissão, à qual se alude no considerando 20 do Regulamento ORECE, encontra‑se limitada a certas questões, não podendo conduzir à adoção de determinado tipo de declaração sem a concordância do ORECE ou do Gabinete do ORECE.

130.

Por este motivo, não convence a conclusão à qual o Tribunal Geral chega no n.o 78 do acórdão recorrido, com base nas diferentes formulações do artigo 35.o, n.o 1, e do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE. A circunstância de apenas o artigo 35.o, n.o 1, conferir expressamente ao ORECE e ao Gabinete do ORECE poderes para celebrar acordos (de trabalho), mediante aprovação prévia da Comissão, não significa que os poderes se encontrem distribuídos de forma distinta, no âmbito do artigo 35.o, n.o 2.

131.

De facto, o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento ORECE fornece o regime geral da cooperação com países terceiros. Já o artigo 35.o, n.o 2, regula o caso especial da cooperação sob a forma de participação da ARN de um país terceiro no Conselho de Reguladores, nos grupos de trabalho e no Conselho de Administração. Mas também no que respeita a este caso especial se aplica o regime geral consagrado no n.o 1, desde que o regime especial do n.o 2 não preveja algo distinto.

132.

Inexiste esse regime especial no que respeita aos poderes para a celebração de acordos (de trabalho), nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE. Por esse motivo, aplica‑se, também no quadro do n.o 2, a regra geral do n.o 1, segundo a qual o ORECE e o Gabinete do ORECE podem celebrar acordos (de trabalho), mediante aprovação prévia da Comissão.

133.

É efetivamente de partir do princípio de que a participação no trabalho do ORECE, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, constitui, regra geral, uma forma de cooperação mais estreita do que a cooperação a que se refere o artigo 35.o, n.o 1. Porém, também aqui não se exige qualquer decisão pela Comissão, pois a decisão política acerca desta cooperação mais estreita já foi tomada pelo legislador. Este optou por abrir, genericamente, essa possibilidade, através da previsão do artigo 35.o, n.o 2, tendo apenas que confirmá‑la relativamente ao específico país terceiro em causa, através do acordo aí previsto. Foi o que fez in casu, através do artigo 111.o do AEA Kosovo. Poder‑se‑ia ter previsto aí outro regime para a decisão acerca da participação da ARN no ORECE, só que não foi isso que sucedeu.

134.

Por conseguinte, a decisão do Tribunal Geral, contida no n.o 77, segundo a qual a competência para estabelecer acordos de trabalho, acerca da participação da ARN do Kosovo, cabe à Comissão, enferma de erro de direito.

b) Forma da decisão acerca da participação

135.

Além disso, também a forma da decisão acerca da participação suscita dúvidas.

136.

O artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE, permite, na versão alemã, que se celebrem acordos (de trabalho), ou seja, não que sejam adotadas decisões unilaterais pelos órgãos da União ou de outros organismos.

137.

É verdade que outras versões linguísticas desta disposição são menos claras na sua referência a acordos. Assim, consta da versão inglesa «working arrangements», os quais importa então desenvolver. A expressão «arrangements» pode ser entendida como combinações, mas também como disposições, o que faria com que fosse possível a sua determinação unilateral. Na versão francesa utiliza‑se a expressão parecida «arrangements de travail», que se encontram previstos («il est prévu»). Já na versão espanhola, devem‑se mesmo estabelecer («se irán estableciendo») «normas de trabajo» — ou seja, normas de trabalho. Parece, contudo, que a expressão «normas de trabajo» resulta de um erro de tradução, pois noutras passagens do Regulamento ORECE, nas quais noutras versões linguísticas se faz referência a acordos (de trabalho), surge, na versão espanhola, a menção «acuerdos de trabajo», estando portanto em causa um acordo.

138.

Também outras referências a acordos (de trabalho), contidas noutras versões linguísticas do Regulamento ORECE, revelam claramente que estes textos não devem ser fixados unilateralmente, mas sim resultar de acordos entre os participantes. É o que resulta, em particular, do artigo 9.o, alínea i), e do artigo 20.o, n.o 6, alínea m), do Regulamento ORECE, segundo os quais é uma das funções do Conselho de Reguladores e do Diretor do Gabinete do ORECE autorizar a celebração de acordos (de trabalho), nomeadamente com as autoridades competentes dos países terceiros.

139.

O que se me afigura decisivo é o objetivo do artigo 35.o do Regulamento ORECE de possibilitar a cooperação com as ARN de países terceiros. No entanto, as condições de uma cooperação não podem ser fixadas unilateralmente pela União.

140.

Deste modo, o Tribunal Geral violou o artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento ORECE, ao ter decidido, no n.o 82 do acórdão recorrido, que a Comissão era competente para fixar unilateralmente, na decisão impugnada, acordos de trabalho aplicáveis à participação das ARN de países terceiros.

141.

Seria concebível vislumbrar‑se a decisão controvertida como uma proposta dirigida à ARN do Kosovo, com vista à celebração de um acordo (de trabalho). Acontece que a Comissão, nos termos do considerando 5 da decisão controvertida, estabelece logo através da mesma o próprio acordo (de trabalho). Assim, não é possível manter o acórdão recorrido, ainda que com outra fundamentação.

3. Conclusão intercalar

142.

Do que se acabou de expor resulta qual a decisão que se impõe proferir acerca da segunda parte do quarto fundamento de recurso e do quinto fundamento de recurso.

143.

Uma vez que se apurou que compete não ao Conselho, mas sim ao ORECE e ao Gabinete do ORECE, mediante aprovação prévia da Comissão, decidir acerca da participação da ARN do Kosovo, importa julgar improcedente a segunda parte do quarto fundamento de recurso.

144.

Já o quinto fundamento de recurso é procedente, pois a Comissão não dispunha de competência para adotar a decisão controvertida.

145.

Por conseguinte, importa anular o acórdão recorrido.

V. Quanto ao recurso no Tribunal Geral

146.

Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, este, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, pode decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado, ou remeter o processo ao Tribunal Geral para julgamento.

147.

O litígio está em condições de ser julgado, já que se apurou que a Comissão não dispunha de competência para adotar o despacho controvertido.

148.

Por conseguinte, importa julgar os pedidos da Espanha procedentes e anular a decisão controvertida.

VI. Quanto à manutenção dos efeitos da decisão controvertida

149.

Se o Tribunal de Justiça, tal como é por mim proposto, vier a anular a decisão controvertida unicamente com base no quinto fundamento de recurso, então deve, ao abrigo do artigo 264.o, segundo parágrafo, TFUE, manter os efeitos da decisão controvertida, até que seja substituída por um acordo (de trabalho) que materialmente lhe corresponda.

150.

Admito que a ARN do Kosovo até já possa ter‑se envolvido muito intensamente nos trabalhos do Conselho de Reguladores, dos grupos de trabalho e do Conselho de Administração, com base, diretamente, no artigo 35.o, n.o 2, primeiro parágrafo, do Regulamento ORECE e no artigo 111.o do AEA Kosovo.

151.

Contudo, pelo menos os acordos relativos às contribuições financeiras e ao pessoal para o Gabinete do ORECE, referidos no artigo 35.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento ORECE, não resultam, diretamente, do mesmo. Por conseguinte, a anulação das regras respetivas poderia pôr em causa a participação da ARN do Kosovo, apesar de ela, pelas razões já expostas, já ter previsão jurídica, independentemente da medida de execução.

152.

Importa, de resto, notar que as decisões relativas à participação das ARN de outros países terceiros dos Balcãs Ocidentais padecem do mesmo vício que a decisão controvertida. Não são, contudo, objeto do presente processo, de modo que o Tribunal de Justiça não tem que pronunciar‑se a esse propósito. Em todo o caso, faria todo o sentido substituir também essas decisões por acordos (de trabalho) entre o ORECE, o Gabinete do ORECE e cada uma das ARN.

VII. Despesas

153.

Em conformidade com o disposto no artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso for julgado procedente e o Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decidirá igualmente sobre as despesas.

154.

Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do mesmo regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.o, n.o 1, desse regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

155.

Assim, compete à Comissão suportar tanto as despesas da Espanha como as suas próprias despesas.

VIII. Conclusão

156.

Em conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que decida do modo seguinte:

1)

O acórdão do Tribunal Geral de 23 de setembro de 2020, Espanha/Comissão (T‑370/19, EU:T:2020:440), é anulado.

2)

A Decisão da Comissão, de 18 de março de 2019, relativa à participação da autoridade reguladora nacional do Kosovo no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas, é anulada.

3)

Mantêm‑se os efeitos da decisão anulada até à sua substituição por um acordo (de trabalho) celebrado nos termos do artigo 35.o, n.o 2, do Regulamento (UE) 2018/1971, que cria o Organismo dos Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (ORECE) e a Agência de Apoio ao ORECE (Gabinete do ORECE).

4)

A Comissão Europeia suporta tanto as despesas da Espanha como as suas próprias despesas, incorridas nos processos no Tribunal Geral e no Tribunal de Justiça.


( 1 ) Língua original: alemão.

( 2 ) Regulamento (UE) 2018/1971 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que cria o Organismo dos Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (ORECE) e a Agência de Apoio ao ORECE (Gabinete do ORECE), e que altera o Regulamento (UE) 2015/2120 e revoga o Regulamento n.o 1211/2009 (JO 2018, L 321, p. 1).

( 3 ) Decisão da Comissão, de 18 de março de 2019, relativa à participação da autoridade reguladora nacional do Kosovo no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 26).

( 4 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre a União e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Kosovo, por outro (JO 2016, L 71, p. 3).

( 5 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a antiga República jugoslava da Macedónia, por outro (JO 2004, L 84, p. 13).

( 6 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a República da Albânia, por outro (JO 2009, L 107, p. 166).

( 7 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a República do Montenegro, por outro (JO 2010, L 108, p. 3).

( 8 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a República da Sérvia, por outro (JO 2013, L 278, p. 16).

( 9 ) Acordo de Estabilização e de Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a Bósnia e Herzegovina, por outro (JO 2015, L 164, p. 2).

( 10 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2009, que cria o Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (ORECE) e o Gabinete (JO 2009, L 337, p. 1).

( 11 ) Regulamento (UE) n.o 531/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2012, relativo à itinerância nas redes de comunicações móveis públicas da União (JO 2012, L 172, p. 10).

( 12 ) Regulamento (UE) 2015/2120 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que estabelece medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta e que altera a Diretiva 2002/22/CE relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas e o Regulamento (UE) n.o 531/2012 relativo à itinerância nas redes de comunicações móveis públicas da União (JO 2015, L 310, p. 1).

( 13 ) Diretiva (UE) 2018/1972 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (JO 2018, L 321, p. 36).

( 14 ) Decisão da Comissão relativa à participação da autoridade reguladora nacional do Montenegro no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 6).

( 15 ) Decisão da Comissão relativa à participação da autoridade reguladora nacional da República da Macedónia do Norte no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 11).

( 16 ) Decisão da Comissão relativa à participação da autoridade reguladora nacional da Bósnia e Herzegovina no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 16).

( 17 ) Decisão da Comissão relativa à participação da autoridade reguladora nacional da República da Sérvia no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 21).

( 18 ) Decisão da Comissão relativa à participação da autoridade reguladora nacional da República da Albânia no Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (JO 2019, C 115, p. 31).

( 19 ) V. supra, n.o 6.

( 20 ) Acórdãos de 27 de outubro de 1977, Bouchereau (30/77, EU:C:1977:172, n.os 13/14), de 27 de março de 1990, Cricket St Thomas (C‑372/88, EU:C:1990:140, n.o 19), e de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 43).

( 21 ) Acórdãos de 27 de março de 1990, Cricket St Thomas (C‑372/88, EU:C:1990:140, n.o 18), e de 26 de janeiro de 2021, Hessischer Rundfunk (C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63, n.o 65).

( 22 ) Acórdãos de 9 de setembro de 2008, FIAMM e o./Conselho e Comissão (C‑120/06 P e C‑121/06 P, EU:C:2008:476, n.o 187), de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão (C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 94), e de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci (C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 48).

( 23 ) Acórdãos de 27 de outubro de 1977, Bouchereau (30/77, EU:C:1977:172, n.os 13/14), e de 26 de janeiro de 2021, Hessischer Rundfunk (C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63, n.o 65).

( 24 ) É o caso das versões espanhola, checa, dinamarquesa, alemã, inglesa, francesa, irlandesa, grega, croata, italiana, húngara, maltesa, neerlandesa, portuguesa, romena, eslovaca, finlandesa e sueca.

( 25 ) Acórdão de 12 de novembro de 2019, Organisation juive européenne e Vignoble Psagot (C‑363/18, EU:C:2019:954, n.o 28).

( 26 ) V. supra, n.os 50 e 51.

( 27 ) V. supra, n.o 53.

( 28 ) Acórdãos de 1 de março de 2016, Kreis Warendorf e Osso (C‑443/14 e C‑444/14, EU:C:2016:127, n.o 27), e de 24 de fevereiro de 2022, Tiketa (C‑536/20, EU:C:2022:112, n.o 27).

( 29 ) Acórdãos de 22 de outubro de 2009, Zurita García e Choque Cabrera (C‑261/08 e C‑348/08, EU:C:2009:648, n.o 57), de 27 de novembro de 2012, Pringle (C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 135), de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 50), e de 20 de dezembro de 2017, Acacia e D’Amato (C‑397/16 e C‑435/16, EU:C:2017:992, n.o 31).

( 30 ) N.os 73 e 74 do anexo 2 à proposta conjunta de decisão do Conselho relativa à posição da União no âmbito do Conselho de Associação instituído pelo Acordo Euro‑Mediterrânico que cria uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a República da Tunísia, por outro, no que respeita à adoção de uma recomendação sobre a execução do Plano de Ação UE‑Tunísia para a concretização da parceria privilegiada (2013‑2017) (JOIN/2014/036 final, documento do Conselho 15164/14 ADD 1).

( 31 ) Decision of the EEA Joint Committee No 274/2021 of 24 September 2021 amending Annex XI (Electronic communication, audiovisual services and information society) and Protocol 37 (Containing the list provided for in Article 101) to the EEA Agreement (https://www.efta.int/eea‑lex/32018R1971).

( 32 ) Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que institui o Gabinete do Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Eletrónicas (ORECE) [COM(2016) 591 final].

( 33 ) Https://www.imf.org/external/pubs/ft/aa/pdf/aa.pdf.

( 34 ) Comunicado de imprensa n.o 09/240 do FMI de 29 de junho de 2009, Kosovo Becomes the International Monetary Fund’s 186th Member.

( 35 ) V. a lista de países membros em https://www.imf.org/en/Countries.

( 36 ) JO 2017, L 195, p. 1.

( 37 ) V. supra, n.os 38 e 39.

( 38 ) V. supra, n.os 65 a 80.

( 39 ) V. supra, n.os 70 e 71.

( 40 ) V. supra, n.os 65 a 80.

( 41 ) V. supra, n.o 70.

( 42 ) Acórdão de 28 de julho de 2016, Conselho/Comissão (C‑660/13, EU:C:2016:616, n.o 32).

( 43 ) V., por exemplo, os artigos 78.o e 79.o do Regulamento (CE) n.o 1107/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativo à colocação dos produtos fitofarmacêuticos no mercado e que revoga as Diretivas 79/117/CEE e 91/414/CEE do Conselho (JO 2009, L 309, p. 1), os artigos 131.o a 133.o do Regulamento (CE) n.o 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH), que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, que altera a Diretiva 1999/45/CE e revoga o Regulamento (CEE) n.o 793/93 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 1488/94 da Comissão, bem como a Diretiva 76/769/CEE do Conselho e as Diretivas 91/155/CEE, 93/67/CEE, 93/105/CE e 2000/21/CE da Comissão (JO 2006, L 396, p. 1), bem como, na área em que igualmente se integra o Regulamento ORECE, os artigos 117.o e 118.o da Diretiva (UE) 2018/1972 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas.

( 44 ) Acórdão de 28 de julho de 2016, Conselho/Comissão (C‑660/13, EU:C:2016:616, n.o 40).