CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 23 de setembro de 2021 ( 1 )

Processo C‑263/20

Airhelp Limited

contra

Laudamotion GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de cancelamento ou atraso considerável dos voos — Reserva de um voo através de uma plataforma eletrónica — Antecipação da hora de partida do voo — Receção da informação sobre a antecipação do voo através de endereço eletrónico — Alcance da obrigação de informação da transportadora aérea operadora — Diretiva 2000/31/CE — Serviços da sociedade da informação — Artigo 11.o — Ordem de encomenda — Presunção de receção»

I. Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria) tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e do artigo 7.o do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 ( 2 ), bem como do artigo 11.o da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico») ( 3 ).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Airhelp Limited à Laudamotion GmbH a respeito da recusa desta última em indemnizar passageiros aéreos, em cujos direitos a Airhelp sucede, em razão da antecipação do seu voo. A questão jurídica de saber se a antecipação da hora de partida de um voo pode dar direito a uma indemnização nos termos do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e do artigo 7.o do Regulamento n.o 261/2004 foi tratada de forma aprofundada nas conclusões que apresentei nos processos apensos C‑188/20, Azurair, e C‑196/20, Eurowings, bem como nos processos C‑146/20, Corendon Airlines, e C‑270/20, Austrian Airlines (ainda não publicados).

3.

Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões limitar‑se‑ão à análise da segunda questão prejudicial, através da qual o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o cumprimento da obrigação de informar atempadamente o passageiro do cancelamento deve ser apreciado exclusivamente à luz do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i) a iii), do Regulamento n.o 261/2004, excluindo assim a aplicação da legislação nacional sobre a receção de comunicações eletrónicas, que foi adotada com vista a transpor a Diretiva 2000/31.

II. Quadro jurídico

A.   Regulamento n.o 261/2004

4.

O artigo 2.o do Regulamento n.o 261/2004 prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

l)

“Cancelamento”, a não realização de um voo que anteriormente estava programado e em que, pelo menos, um lugar foi reservado.»

5.

O artigo 5.o deste regulamento dispõe, nos seus n.os 1 e 4:

«1.   Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

a)

Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos do artigo 8.o;

b)

Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos da alínea a) do n.o 1 e do n.o 2 do artigo 9.o, bem como, em caso de reencaminhamento quando a hora de partida razoavelmente prevista do novo voo for, pelo menos, o dia após a partida que estava programada para o voo cancelado, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.o 1 do artigo 9.o; e

c)

Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.o, salvo se:

i)

tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou

ii)

tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou

iii)

tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.

[…]

4.   O ónus da prova relativamente à questão de saber se e quando foi o passageiro informado do cancelamento recai sobre a transportadora aérea operadora.»

6.

O artigo 7.o do referido regulamento tem a seguinte redação:

«1.   Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)

250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

[…]»

7.

O artigo 13.o do mesmo regulamento prevê:

«Se a transportadora aérea operadora tiver pago uma indemnização ou tiver cumprido outras obrigações que por força do presente regulamento lhe incumbam, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o seu direito de exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito aplicável. Em especial, o presente regulamento em nada limita o direito de uma transportadora aérea operante de pedir o seu ressarcimento a um operador turístico, ou qualquer outra pessoa, com quem tenha contrato. Do mesmo modo, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o direito de um operador turístico ou de um terceiro, que não seja um passageiro, com quem uma transportadora aérea operadora tenha um contrato, de pedir o seu ressarcimento ou uma indemnização à transportadora aérea operadora nos termos do direito relevante aplicável.»

B.   Diretiva 2000/31

8.

O artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2000/31 tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros assegurarão, salvo acordo em contrário das partes que não sejam consumidores, que, nos casos em que o destinatário de um serviço efetue a sua encomenda exclusivamente por meios eletrónicos, se apliquem os seguintes princípios:

o prestador de serviços tem de acusar a receção da encomenda do destinatário do serviço, sem atraso injustificado e por meios eletrónicos,

considera‑se que a encomenda e o aviso de receção são recebidos quando as partes a que são endereçados têm possibilidade de aceder a estes.»

III. Matéria de facto, tramitação do processo principal e questões prejudiciais

9.

Dois passageiros aéreos reservaram um voo entre Palma de Maiorca (Espanha) e Viena (Áustria), operado pela transportadora aérea Laudamotion, através de uma plataforma eletrónica de reserva. Aquando da reserva nessa plataforma, esses passageiros forneceram os seus endereços eletrónicos privados e os seus números de telefone. A referida plataforma procedeu à reserva do voo em nome dos referidos passageiros junto da Laudamotion, tendo sido criado no decurso dessa reserva um endereço de correio eletrónico específico para a referida reserva. Este endereço era o único endereço conhecido pela transportadora aérea para contactar os passageiros.

10.

O voo, cuja partida estava inicialmente prevista para 14 de junho de 2018, às 14:40 horas, e a chegada às 17:05 horas do mesmo dia, foi antecipado pela transportadora aérea em mais de seis horas, partindo, por conseguinte, às 8:25 horas.

11.

A Airhelp, à qual os dois passageiros tinham cedido os seus eventuais direitos a uma indemnização nos termos do Regulamento n.o 261/2004, intentou uma ação no Bezirksgericht Schwechat (Tribunal de Primeira Instância de Schwechat, Áustria). Alegou que a transportadora aérea Laudamotion era devedora do montante total de 500 EUR para os dois passageiros, nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), deste regulamento, devido, nomeadamente, à antecipação do voo em mais de seis horas, de que os passageiros tinham sido informados apenas em 10 de junho de 2018, através do endereço eletrónico privado fornecido por estes.

12.

A Laudamotion contestou a procedência do pedido da Airhelp com o fundamento de que a antecipação do voo tinha sido comunicada, em tempo útil, em 23 e 29 de maio de 2018 para o endereço eletrónico fornecido pela plataforma de reserva.

13.

Uma vez que o Bezirksgericht Schwechat (Tribunal de Primeira Instância de Schwechat) julgou improcedente a ação da Airhelp, esta última interpôs recurso no Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg), o órgão jurisdicional de reenvio. Este interroga‑se, nomeadamente, sobre a questão de saber se a antecipação de um voo constitui um cancelamento na aceção do Regulamento n.o 261/2004 e sobre o alcance da obrigação de informação da transportadora aérea operadora.

14.

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que partilha da opinião do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) ( 4 ), segundo a qual uma antecipação do voo previsto, que não possa ser considerada insignificante, pode fundamentar um direito a indemnização ao abrigo do artigo 7.o, n.o 1, deste regulamento e segundo a qual a programação inicial dos voos é posta em causa quando se antecipa um voo em várias horas.

15.

Quanto à questão de saber se os passageiros no processo principal foram corretamente informados da antecipação do seu voo, o órgão jurisdicional de reenvio defende que, por força da legislação austríaca que transpõe a Diretiva 2000/31, uma presunção de notificação surge não apenas nos casos previstos no artigo 11.o, n.o 1, desta diretiva, mas também no caso de uma simples troca de mensagens de correio eletrónico. Isso significa, no caso em apreço, que se considera que um passageiro foi informado da antecipação do seu voo quando a comunicação da transportadora aérea operadora puder ser consultada por esse passageiro. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, por conseguinte, se se deve aplicar a legislação nacional, a Diretiva 2000/31 ou o Regulamento n.o 261/2004, a fim de determinar se os passageiros foram corretamente informados da antecipação do seu voo.

16.

Foi nestas circunstâncias que o Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e o artigo 7.o do [Regulamento n.o 261/2004] ser interpretados no sentido de que o passageiro tem direito a indemnização quando a hora de partida tiver sido antecipada das 14:40 horas inicialmente previstas para as 08:25 horas do mesmo dia?

2)

Deve o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), primeiro a terceiro travessões, do [Regulamento n.o 261/2004] ser interpretado no sentido de que, para determinar se o passageiro foi informado do cancelamento, há que atender exclusivamente aos termos desta disposição e de que se opõe à aplicação da legislação nacional sobre a receção de declarações, adotada na sequência da transposição da [Diretiva 2000/31], e que contém uma ficção relativa à receção da declaração?

3)

Devem o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), primeiro a terceiro travessões, do [Regulamento n.o 261/2004] e o artigo 11.o da [Diretiva 2000/31] ser interpretados no sentido de que, em caso de reserva de um voo pelo passageiro através de uma plataforma de reservas, à qual o referido passageiro comunicou o seu número de telefone e o seu endereço eletrónico, mas a plataforma transmitiu à transportadora aérea o número de telefone e um endereço eletrónico gerado automaticamente pela referida plataforma, o envio da notificação relativa à antecipação do voo para o endereço eletrónico gerado automaticamente deve ser considerada uma informação ou receção da notificação da antecipação do voo, mesmo que a plataforma de reservas não reenvie ao passageiro a notificação da transportadora aérea ou o faço com atraso?»

IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

17.

A decisão de reenvio, com data de 26 de maio de 2020, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 15 de junho de 2020.

18.

As partes no processo principal bem como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas no prazo fixado pelo artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

19.

Na reunião geral de 27 de abril de 2021, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência de alegações.

V. Análise jurídica

A.   Quanto à segunda questão prejudicial

20.

Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o cumprimento da obrigação de informar atempadamente o passageiro do cancelamento deve ser apreciado exclusivamente à luz do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i) a iii), do Regulamento n.o 261/2004. Em caso afirmativo, este regulamento opõe‑se, com efeito, à aplicação da legislação nacional sobre a receção de comunicações eletrónicas, que foi adotada com vista a transpor a Diretiva 2000/31.

21.

Como explicarei em pormenor a seguir, considero que o cumprimento da obrigação de informar atempadamente o passageiro do cancelamento deve ser apreciado exclusivamente à luz do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i) a iii), do Regulamento n.o 261/2004. Esta interpretação decorre simultaneamente da redação e do objetivo das disposições pertinentes.

22.

Por um lado, o capítulo II, secção 3, daquela diretiva contém disposições relativas aos contratos celebrados por meios eletrónicos. O artigo 11.o, n.o 1, da referida diretiva, sob a epígrafe «Ordem de encomenda», dispõe que os Estados‑Membros assegurarão que, nos casos em que o destinatário de um serviço efetue a sua encomenda exclusivamente por meios eletrónicos, o prestador tem de «acusar a receção da encomenda do destinatário do serviço, sem atraso injustificado e por meios eletrónicos» (primeiro travessão) e que «[se considera] que a encomenda e o aviso de receção são recebidos quando as partes a que são endereçados têm possibilidade de aceder a estes» (segundo travessão).

23.

Embora as informações relativas a um cancelamento não constituam uma «encomenda» nem um «aviso de receção» na aceção do artigo 11.o da Diretiva 2000/31, resulta da decisão de reenvio que a legislação nacional em causa no processo principal vai além desta diretiva na medida em que prevê que a regra relativa à notificação se aplica não só às «encomendas» e aos «avisos de receção», mas a todos os outros documentos eletrónicos juridicamente pertinentes, incluindo os documentos relativos à reserva de voos. Segundo as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, tanto o artigo 11.o, n.o 1, segundo travessão, da Diretiva 2000/31 como as disposições nacionais que transpõem esta disposição preveem uma «ficção de receção da notificação» que, em substância, ocorre quando a declaração pode ser consultada ( 5 ).

24.

Por outro lado, importa observar que as informações referidas no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004 são as que são fornecidas «em caso de cancelamento de um voo» e graças às quais os passageiros em causa são «informados do cancelamento». É evidente que essas informações relativas a um cancelamento não constituem uma «encomenda» nem um «aviso de receção» na aceção do artigo 11.o da Diretiva 2000/31. Por conseguinte, deve considerar‑se, para efeitos da análise, que os atos jurídicos em causa são, em princípio, comunicações com um objeto diferente.

25.

Acrescento que não se pode deduzir da redação do artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004 que o método através do qual as referidas informações devem chegar ao passageiro está limitado aos meios eletrónicos. Pelo contrário, o único requisito é que «[os passageiros em causa] [tenham sido] informados do cancelamento [do voo]», o que autoriza, em princípio, outros meios de comunicação. É certo que, tendo em conta a especial importância que reveste este tipo de informações para o exercício efetivo dos direitos conferidos pelo Regulamento n.o 261/2004, é necessário que o meio de comunicação escolhido seja adequado e adaptado às exigências do transporte aéreo de passageiros ( 6 ).

26.

Fundamentalmente, saliento que, nos termos do artigo 5.o, n.o 4, do Regulamento n.o 261/2004, o «ónus da prova» relativamente à questão de saber se e quando foi o passageiro informado do cancelamento recai sobre a transportadora aérea operadora. O facto de o ónus da prova recair sobre a transportadora aérea operadora ( 7 ) contribui para garantir o elevado nível de proteção dos passageiros mencionado no considerando 1 do Regulamento n.o 261/2004.

27.

É necessário recordar a importância deste objetivo legislativo no presente contexto, uma vez que, segundo jurisprudência constante, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte ( 8 ). No Acórdão Krijgsman, o Tribunal de Justiça sublinhou a importância da obrigação de apresentar elementos de prova da notificação da informação ao passageiro, que decorre do artigo 5.o, n.o 4, do Regulamento n.o 261/2004, para salvaguardar os seus direitos ( 9 ). Com efeito, o passageiro, ao receber esta informação, deve ser capaz de reagir atempadamente ao cancelamento do seu voo, limitando assim os inconvenientes daí resultantes, e de exercer os seus direitos em relação à transportadora aérea.

28.

A este respeito, deve observar‑se que o artigo 11.o, n.o 1, segundo travessão, da Diretiva 2000/31 tem por efeito inverter o ónus da prova na medida em que as encomendas e os avisos de receção «considera[m]‑se […] recebidos» quando as partes a que são endereçados têm possibilidade de aceder a estes. Tal presunção de «boa receção» da informação devida ao passageiro parece‑me incompatível com o ónus da prova imposto às transportadoras aéreas em conformidade com o Regulamento n.o 261/2004, na medida em que, em virtude dessa presunção, caberia ao passageiro, sem nenhuma outra exceção, demonstrar que não recebeu a informação em tempo útil.

29.

Tal prova parece‑me extremamente difícil de fornecer na prática, pelo que o objetivo, referido no n.o 28 das presentes conclusões, que consiste em proteger os passageiros aéreos corre o risco de ser posto em causa. Com efeito, no caso de surgirem problemas de comunicação relacionados com erros humanos ou com falhas técnicas, impor ao passageiro a obrigação de demonstrar que não está na posse de nenhuma comunicação que contenha as informações referidas no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004 equivaleria a exigir‑lhe que provasse o inverificável ou, por outras palavras, que fizesse o impossível. Ora, é evidente que o princípio segundo o qual «ninguém está obrigado ao impossível» («impossibilium nulla obligatio est»), reconhecido na ordem jurídica da União ( 10 ), opor‑se‑ia a tal abordagem.

30.

O artigo 5.o, n.o 4, do Regulamento n.o 261/2004 constitui uma lex specialis relativamente às disposições da Diretiva 2000/31, na medida em que impõe obrigações específicas quanto ao modo como a informação deve ser comunicada aos passageiros. Tendo em conta o interesse destes últimos em serem informados de qualquer eventual imprevisto que afete significativamente o horário dos voos, e tendo em conta os inconvenientes que geralmente resultam do cancelamento de um voo, parece‑me que uma simples presunção de «boa receção» dificilmente satisfaz as exigências acrescidas em matéria de transporte aéreo dos passageiros.

31.

Tendo em conta as considerações precedentes, considero que o requisito de notificação previsto no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i) a iii), do Regulamento n.o 261/2004, lido à luz do n.o 4 deste mesmo artigo, se opõe à aplicação de disposições da legislação nacional que transpõe a Diretiva 2000/31, por força das quais as mensagens eletrónicas são consideradas recebidas, pelo que, para garantir um elevado nível de proteção dos passageiros aéreos, é exclusivamente à luz deste regulamento que há que verificar o cumprimento da obrigação de informar o passageiro do cancelamento.

32.

A mesma conclusão, quanto ao não cumprimento do nível de proteção dos consumidores previsto no Regulamento n.o 261/2004, se aplica às disposições do direito nacional não harmonizadas, citadas no despacho de reenvio, que, no âmbito da transposição do artigo 11.o da Diretiva 2000/31, alargaram o âmbito de aplicação substantiva das encomendas e dos avisos de receção a outras comunicações eletrónicas, nomeadamente às comunicações eletrónicas relativas ao cancelamento de um voo.

33.

A este respeito, importa recordar que, como o Tribunal de Justiça observou na sua jurisprudência, na maior parte dos aspetos do comércio eletrónico, a Diretiva 2000/31 não visa «uma harmonização das regras materiais, mas define um “domínio coordenado” no âmbito do qual o mecanismo do artigo 3.o deve permitir, de acordo com o [considerando 22] desta diretiva, sujeitar os serviços da sociedade da informação, em princípio, ao regime jurídico do Estado‑Membro onde o prestador de serviços se encontra estabelecido» ( 11 ). Esta interpretação é confirmada pelos considerandos 6, 7, 10 e 22 da referida diretiva.

34.

Na medida em que o legislador nacional optou — voluntariamente e sem que o direito da União o exija expressamente — por alargar o âmbito de aplicação das regras harmonizadas sobre o comércio eletrónico a outros elementos não previstos pela Diretiva 2000/31, não se pode considerar que essas disposições fazem parte da legislação harmonizada sobre o comércio eletrónico. Nesse caso, coloca‑se sobretudo a questão da compatibilidade das disposições da legislação nacional com as do Regulamento n.o 261/2004.

35.

Independentemente da questão de saber se as disposições nacionais em causa foram adotadas — correta ou incorretamente — no âmbito da transposição da Diretiva 2000/31, é legítimo concluir que estas comprometem o objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 261/2004. Por conseguinte, o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i) a iii), do Regulamento n.o 261/2004, lido à luz do n.o 4 deste artigo, deve ser interpretado no sentido de que se opõe às disposições da legislação nacional que se baseiam no artigo 11.o da Diretiva 2000/31.

B.   Resposta à segunda questão prejudicial

36.

Pelas razões acima expostas, proponho responder à segunda questão prejudicial que o artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i a iii), do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que a obrigação de informar o passageiro do cancelamento deve ser cumprida exclusivamente à luz do referido regulamento, opondo‑se à aplicação das disposições nacionais que criam uma presunção de acesso às comunicações eletrónicas.

VI. Conclusão

37.

À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à segunda questão prejudicial submetida pelo Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria):

O artigo 5.o, n.o 1, alínea c), i a iii), do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91, deve ser interpretado no sentido de que a obrigação de informar o passageiro do cancelamento deve ser cumprida exclusivamente à luz do referido regulamento, opondo‑se à aplicação das disposições nacionais que criam uma presunção de acesso às comunicações eletrónicas.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2004, L 46, p. 1.

( 3 ) JO 2000, L 178, p. 1.

( 4 ) Segundo as informações que figuram no pedido de decisão prejudicial, esta opinião foi expressa num comunicado de imprensa do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) n.o 89/2015, X ZR 59/14 e elaborado na sequência de uma decisão que declara a aquiescência do pedido.

( 5 ) V. p. 10 da decisão de reenvio.

( 6 ) Steinrötter, B., Beck’scher Online‑Großkommentar (Gsell/Krüger/Lorenz/Mayer), artigo 1.o, n.o 19, do Regulamento (CE) n.o 261/2004, artigo 5.o, n.os 23 e 25, indica que não existem requisitos formais quanto ao método através do qual as informações relativas a um cancelamento devem chegar ao passageiro. No entanto, o autor recomenda escolher um meio de comunicação que assegure que o passageiro tenha sido efetivamente informado do cancelamento do voo. Se o passageiro objetar que não recebeu a mensagem, incumbe à transportadora aérea provar que o passageiro foi informado do cancelamento e quando o foi.

( 7 ) V. Comunicação da Comissão sobre as Orientações para a Interpretação do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos, e do Regulamento (CE) n.o 2027/97 relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas em caso de acidente, com a redação que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) n.o 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2016, C 214, p. 5), ponto 3.2.5., intitulado «Ónus da prova em caso de cancelamento».

( 8 ) V. Acórdãos de 16 de novembro de 2016, Hemming e o. (C‑316/15, EU:C:2016:879, n.o 27), e de 11 de maio de 2017, Krijgsman (C‑302/16, EU:C:2017:359, n.o 24).

( 9 ) Acórdão de 11 de maio de 2017 (C‑302/16, EU:C:2017:359, n.os 23 a 28).

( 10 ) V. Acórdãos de 3 de março de 2016, Daimler (C‑179/15, EU:C:2016:134, n.o 42); de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation (C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 96), e de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci (C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 79).

( 11 ) V. Acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising e o. (C‑509/09 e C‑161/10, EU:C:2011:685, n.o 57).