Processo C‑897/19 PPU

Processo penal

contra

I.N.

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vrhovni sud)

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 2 de abril de 2020

«Reenvio prejudicial — Processo prejudicial com tramitação urgente — Acordo EEE — Não discriminação — Artigo 36.o — Livre prestação de serviços — Âmbito de aplicação — Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega relativo à associação destes Estados à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen — Acordo sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia, por um lado, e a Islândia e a Noruega, por outro — Extradição para um Estado terceiro de um nacional islandês — Proteção dos nacionais de um Estado‑Membro contra a extradição — Falta de proteção equivalente dos nacionais de outro Estado — Nacional islandês que obteve o asilo ao abrigo do direito nacional antes da aquisição da cidadania islandesa — Restrição à livre circulação — Justificação baseada na prevenção da impunidade — Proporcionalidade — Verificação das garantias previstas no artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

  1. Direito da União Europeia — Princípios — Igualdade de tratamento — Discriminação em razão da nacionalidade — Proibição — Âmbito de aplicação — Diferença de tratamento entre os nacionais dos Estados‑Membros e os de um Estado terceiro membro da Associação Europeia de Comércio Livre — Exclusão

    (Artigo 18.o TFUE)

    (cf. n.os 39 e 40)

  2. Cidadania da União — Disposições do Tratado — Âmbito de aplicação pessoal — Nacional de um Estado terceiro membro da Associação Europeia de Comércio Livre — Exclusão

    (Artigos 20.° e 21.° TFUE)

    (cf. n.os 39 e 41)

  3. Acordos internacionais — Acordo que cria o Espaço Económico Europeu — Âmbito de aplicação — Livre prestação de serviços — Alcance jurídico idêntico ao das disposições da União — Nacional de um Estado da Associação Europeia de Comércio Livre, parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, que se deslocou a um Estado‑Membro para aí beneficiar de serviços — Inclusão — Consequência — Situação do referido nacional abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União

    (Artigo 56.o TFUE; Acordo EEE, artigo 36.o)

    (cf. n.os 49, 50, 52‑54)

  4. Acordos internacionais — Acordo que cria o Espaço Económico Europeu — Livre prestação de serviços — Pedido dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro destinado à extradição de um nacional de um Estado da Associação Europeia de Comércio Livre, parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, que se deslocou ao referido Estado‑Membro para aí exercer o seu direito à livre prestação de serviços — Estado‑Membro que proíbe a extradição dos seus próprios nacionais — Dever desse Estado‑Membro de informar o Estado da EFTA e, sendo caso disso, a seu pedido, de lhe entregar o seu nacional, em conformidade com as disposições de um Acordo sobre os processos de entrega celebrado entre a União e o referido Estado da EFTA — Requisito

    (cf. n.os 56, 57, 59, 60, 62, 69, 70, 71, 75‑77 e disp.)

  5. Acordos internacionais — Acordo que cria o Espaço Económico Europeu — Livre prestação de serviços — Pedido dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro destinado à extradição de um nacional de um Estado da Associação Europeia de Comércio Livre, parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, que se deslocou ao referido Estado‑Membro para aí exercer o seu direito à livre prestação de serviços — Obrigação de verificação das garantias previstas no artigo 19.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Elementos de apreciação — Concessão do estatuto de refugiado ao referido nacional, antes da aquisição da nacionalidade do Estado da EFTA — Caráter particularmente sério dessa circunstância

    (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 19.°, n.o 2; Acordo EEE, artigo 36.o)

    (cf. n.os 63‑68, 77 e disp.)

Resumo

Quando um Estado‑Membro deve decidir um pedido de extradição de um Estado terceiro relativo a um nacional de um Estado da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE), incumbe‑lhe verificar que esse nacional não será sujeito a pena de morte, a tortura ou a tratos ou penas desumanos ou degradantes

Antes de considerar executar o pedido de extradição, o Estado‑Membro deve disso informar o Estado da EFTA para lhe permitir solicitar a entrega do seu nacional

No Acórdão Ruska Federacija (C‑897/19 PPU), proferido em 2 de abril de 2020 no âmbito do processo prejudicial urgente, a Grande Secção do Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre as obrigações de um Estado‑Membro chamado a decidir um pedido de extradição enviado por um Estado terceiro, relativo a um nacional de um Estado que não é membro da União Europeia mas é membro da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) e parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE) ( 1 ). O Tribunal declarou que o Estado‑Membro requerido deve antes de mais verificar, em conformidade com o artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), se, em caso de extradição, o interessado não corre o risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a tratos ou penas desumanos ou degradantes. Ora, no âmbito desta verificação, constitui um elemento particularmente sério o facto de ao interessado, antes de adquirir a nacionalidade do Estado da EFTA em causa, ter sido concedido asilo por esse mesmo Estado, precisamente devido às ações penais na origem do pedido de extradição. Por outro lado, o Tribunal declarou que, antes de considerar executar esse pedido, o referido Estado‑Membro deve disso informar o Estado da EFTA para lhe permitir solicitar a entrega do seu nacional, desde que o referido Estado da EFTA seja competente, à luz do seu direito nacional, para proceder criminalmente contra esse nacional por atos praticados fora do seu território nacional.

No caso em apreço, em 20 de maio de 2015, um nacional russo foi objeto de um mandado de busca internacional emitido pelo gabinete da Interpol de Moscovo. Em 30 de junho de 2019, esse nacional, que entretanto adquiriu a nacionalidade islandesa, foi detido na Croácia com base no referido mandado de busca internacional. Em 6 de agosto de 2019, as autoridades croatas receberam um pedido de extradição proveniente da Rússia. O órgão jurisdicional croata encarregado de se pronunciar sobre a extradição considerou que estavam preenchidas as condições legais e autorizou‑a.

O interessado pediu então a anulação dessa decisão no Vrhovni sud (Supremo Tribunal, Croácia). Invocou neste quadro a existência de um risco de tortura e tratamentos desumanos ou degradantes em caso de extradição para a Rússia e o facto de, antes de ter obtido a nacionalidade islandesa, a Islândia lhe ter reconhecido o estatuto de refugiado, precisamente devido às ações penais de que era objeto na Rússia. Alegou também uma violação do Acórdão Petruhhin ( 2 ), no qual o Tribunal de Justiça decidiu que um Estado‑Membro que recebe um pedido de extradição relativo a um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, que se encontra no seu território, deve informar este último Estado‑Membro e, a seu pedido, entregar‑lhe o referido cidadão, em conformidade com a Decisão‑quadro 2002/584 ( 3 ), desde que o Estado‑Membro de que o cidadão é nacional seja competente para proceder criminalmente contra ele por atos praticados fora do seu território nacional.

No presente processo, o Vrhovni sud (Supremo Tribunal) perguntou ao Tribunal de Justiça se havia que seguir a interpretação adotada no Acórdão Petruhhin numa situação relativa não a um cidadão da União mas a um nacional islandês, sendo a Islândia um Estado da EFTA parte no Acordo EEE.

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça analisou a aplicabilidade do direito da União a esta situação. A este respeito, indicou que, na medida em que não se trata de um cidadão da União que se deslocou para um Estado‑Membro diferente do da sua nacionalidade, mas de um nacional de um Estado terceiro, os artigos 18.° (não discriminação com base na nacionalidade) e 21.° (liberdade de circulação e de permanência dos cidadãos da União) TFUE, interpretados no Acórdão Petruhhin, não são aplicáveis no caso em apreço. Todavia, a situação em causa é efetivamente abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União e, mais precisamente, do Acordo EEE, que é parte integrante do direito da União enquanto acordo internacional por ela celebrado. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal salientou antes de mais as relações privilegiadas que a Islândia mantém com a União uma vez que, além de ser membro do espaço Schengen e parte no Acordo EEE, este Estado terceiro participa no sistema europeu comum de asilo e celebrou com a União o Acordo sobre os processos de entrega ( 4 ).O Tribunal salientou em seguida que o 36.° do Acordo EEE garante a livre prestação de serviços de maneira idêntica, em substância, ao artigo 56.o TFUE. Por fim, decidiu que a livre prestação de serviços, quer no sentido do artigo 56.o TFUE quer do Acordo EEE, inclui a liberdade de se deslocar a outro Estado para aí beneficiar de um serviço, o que acontecia no caso em apreço, desejando o nacional islandês em causa passar as suas férias na Croácia e, assim, aí beneficiar de serviços associados ao turismo.

Em segundo lugar, após ter indicado que as disposições da Carta também são aplicáveis, uma vez que a situação em causa é regulada pelo direito da União, o Tribunal precisou o alcance da proteção proporcionada pelo artigo 19.o, n.o 2, da Carta, nos termos do qual ninguém pode ser extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes. Assim, o Tribunal declarou que o Estado‑Membro que recebeu o pedido de extradição deve verificar, antes de proceder à sua eventual execução, se esta não lesará os direitos referidos neste artigo. Para esse fim, salientou que, no caso em apreço, o facto de te sido concedido asilo ao interessado na Islândia constitui um elemento particularmente sério para efeitos dessa verificação, Tanto mais assim é quando essa concessão se baseou precisamente nas ações penais na origem do pedido de extradição. Por conseguinte, na falta de circunstâncias específicas, como uma evolução importante da situação na Rússia ou elementos que demonstrem que o interessado tinha simulado as referidas ações penais no momento do seu pedido de asilo, a decisão das autoridades islandesas de deferir esse pedido deve conduzir a Croácia a recusar a extradição.

Em terceiro lugar, na hipótese, nomeadamente, de o Estado‑Membro que recebeu o pedido de extradição considerar que a Carta não se opõe à sua execução, o Tribunal recordou que regras nacionais que proíbem a extradição dos nacionais, como é o caso da Croácia, introduzem uma diferença d tratamento na medida em que têm como consequência não conceder aos nacionais dos outros Estados da EFTA, partes no Acordo EEE, a mesma proteção contra a extradição. Assim, essas regras são suscetíveis de afetar a livre prestação de serviços, na aceção do artigo 36.o do Acordo EEE. O Tribunal salientou em seguida que tal restrição só se pode justificar se se basear em considerações objetivas e proporcionadas ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional. No caso em apreço, o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que se encontrem num território diferente daquele em que pretensamente cometeram a infração em causa é legítimo. Alem disso, regras que permitam a extradição dessas pessoas para um Estado terceiro afiguram‑se adequadas para alcançar o referido objetivo. Contudo, no que respeita ao caráter proporcionado dessa restrição, o Tribunal considerou que havia que privilegiar a troca de informações com o Estado da EFTA de que a pessoa em causa é nacional, a fim de lhe dar a oportunidade de emitir um pedido de entrega do seu nacional para efeitos de procedimento criminal. Quanto à Islândia, não lhe sendo a Decisão‑quadro 2002/584 aplicável, essa entrega seria possível com base no Acordo sobre os processos de entrega, cujas disposições são muito semelhantes às da decisão‑quadro.

Assim, em conclusão, o Tribunal declarou que a solução adotada no Acórdão Petruhhin devia ser aplicada por analogia a um nacional islandês que se encontra, relativamente ao Estado terceiro que solicita a sua extradição, numa situação objetivamente comparável à de um cidadão da União ao qual, segundo o artigo 3.o, n.o 2, TUE, a União propõe um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas no interior do qual é assegurada a livre circulação das pessoas.


( 1 ) Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3).

( 2 ) Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15); v., também, Comunicado de imprensa 84/2016.

( 3 ) Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24).

( 4 ) Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega (JO 2006 L 292, p. 2), aprovado, em nome da União, pelo artigo 1.o da Decisão 2014/835/UE do Conselho, de 27 de novembro de 2014, relativa à celebração do Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega (JO 2014, L 343, p. 1), que entrou em vigor em 1 de novembro de 2019.