ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

8 de outubro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigos 34.o e 36.o TFUE — Livre circulação de mercadorias — Restrições quantitativas — Medidas de efeito equivalente — Recusa de aprovar uma alteração às informações e documentos relativos a um medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela — Proteção da saúde e da vida das pessoas — Diretiva 2001/83/CE»

No processo C‑602/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgericht Köln (Tribunal Administrativo de Colónia, Alemanha), por Decisão de 9 de julho de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de agosto de 2019, no processo

kohlpharma GmbH

contra

Bundesrepublik Deutschland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras (relator), presidente de secção, N. Piçarra, D. Šváby, S. Rodin e K. Jürimäe, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da kohlpharma GmbH, por W. Rehmann, Rechtsanwalt,

em representação da Bundesrepublik Deutschland, por K. Hechinger, na qualidade de agente,

em representação da Irlanda, por G. Hodge, M. Browne, J. Quaney e A. Joyce, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por E. Manhaeve, M. Noll‑Ehlers e A. Sipos, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 34.o e 36.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a kohlpharma GmbH à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha) a propósito da recusa do Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte (Instituto Federal dos Medicamentos e dos Produtos Médicos, a seguir «Instituto Federal dos Medicamentos») de aprovar a alteração das informações e dos documentos relativos a um medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do artigo 1.o, ponto 28‑D, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2001, L 311, p. 67; retificações no JO 2009, L 87, p. 174, e no JO 2011, L 276, p. 63), conforme alterada pela Diretiva 2012/26/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 (JO 2012, L 299, p. 1) (a seguir «Diretiva 2001/83»), o «[s]istema de farmacovigilância» é definido como «um sistema utilizado pelo titular de uma autorização de introdução no mercado e pelos Estados‑Membros a fim de cumprir as tarefas e as responsabilidades constantes do título IX, tendo em vista o acompanhamento da segurança dos medicamentos autorizados e a deteção de alterações na respetiva relação risco‑benefício».

4

O artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva prevê:

«Não pode ser introduzido um medicamento no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida pela autoridade competente desse Estado‑Membro uma autorização de introdução no mercado, em conformidade com a presente diretiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização em conformidade com o Regulamento (CE) n.o 726/2004 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Medicamentos (JO 2004, L 136, p. 1)], em conjugação com o Regulamento (CE) n.o 1901/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho[, de 12 de dezembro de 2006, relativo a medicamentos para uso pediátrico e que altera o Regulamento (CEE) n.o 1768/92, a Diretiva 2001/20/CE, a Diretiva 2001/83/CE e o Regulamento (CE) n.o 726/2004 (JO 2006, L 378, p. 1),] e com o Regulamento (CE) n.o 1394/2007 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo a medicamentos de terapia avançada e que altera a Diretiva 2001/83/CE e o Regulamento (CE) n.o 726/2004 (JO 2007, L 324, p. 121)].

[…]»

5

O artigo 8.o, n.o 3, da referida diretiva especifica as informações e os documentos que devem acompanhar o pedido de autorização de introdução no mercado apresentado à autoridade competente do Estado‑Membro em causa, os quais incluem os resultados dos ensaios farmacêuticos (físico‑químicos, biológicos ou microbiológicos), pré‑clínicos (toxicológicos e farmacológicos) e clínicos.

6

O artigo 26.o da mesma diretiva enuncia:

«1.   A autorização de introdução no mercado será recusada se, após verificação das informações e dos documentos enumerados nos artigos 8.o, 10.o, 10.o‑A, 10.o‑B e 10.o‑C, for manifesto que:

a)

A relação risco‑benefício não é considerada favorável; ou

b)

O efeito terapêutico do medicamento está insuficientemente comprovado pelo requerente; ou

c)

O medicamento não tem a composição qualitativa e quantitativa declarada.

2.   A autorização será igualmente recusada se as informações ou os documentos apresentados em apoio do pedido não cumprirem o disposto nos artigos 8.o, 10.o, 10.o‑A, 10.o‑B e 10.o‑C.

3.   O requerente ou o titular da autorização de introdução no mercado é responsável pela exatidão dos documentos e dos dados que apresentar.»

7

O título IX, sob a epígrafe «Farmacovigilância», da Diretiva 2001/83 inclui o artigo 101.o desta, que prevê:

«1.   Os Estados‑Membros criam um sistema de farmacovigilância para executarem as funções que lhes incumbem em matéria de farmacovigilância e de participação nas atividades de farmacovigilância da União [Europeia].

O sistema de farmacovigilância é utilizado para recolher informações sobre os riscos dos medicamentos para os doentes ou para a saúde pública. Estas informações dizem sobretudo respeito a reações adversas no ser humano derivad[a]s da utilização do medicamento nos termos da autorização de introdução no mercado ou fora dos termos da mesma, e a reações adversas ligadas a exposição profissional.

2.   Com base no sistema de farmacovigilância referido no n.o 1, os Estados‑Membros procedem à avaliação científica de todas as informações, ponderam opções de minimização e prevenção dos riscos e tomam as medidas reguladoras necessárias relativas à autorização de introdução no mercado. […]»

8

Nos termos do artigo 104.o desta diretiva:

«1.   Para o cumprimento das suas tarefas de farmacovigilância, os titulares de autorizações de introdução no mercado devem aplicar um sistema de farmacovigilância equivalente ao sistema de farmacovigilância do Estado‑Membro relevante previsto no n.o 1 do artigo 101.o

2.   Com base no sistema de farmacovigilância referido no n.o 1, os titulares de autorizações de introdução no mercado procedem à avaliação científica de todas as informações, ponderam opções de minimização e prevenção dos riscos e tomam as medidas reguladoras necessárias.

[…]

3.   No âmbito do sistema de farmacovigilância, o titular da autorização de introdução no mercado deve:

a)

Dispor, de modo permanente e contínuo, de uma pessoa responsável pela farmacovigilância que possua as qualificações adequadas;

b)

Gerir e disponibilizar, a pedido, o dossiê principal do sistema de farmacovigilância;

c)

Aplicar um sistema de gestão de riscos para cada medicamento;

d)

Controlar os resultados das medidas de minimização dos riscos previstas no plano de gestão dos riscos ou estabelecidas como condições para a autorização de introdução no mercado nos termos dos artigos 21.o‑A, 22.o ou 22.o‑A;

e)

Atualizar o sistema de gestão de riscos e controlar os dados de farmacovigilância para determinar se existem novos riscos ou se os riscos se alteraram, ou se existem alterações na relação risco‑benefício dos medicamentos.

[…]»

Direito alemão

9

A Gesetz über den Verkehr mit Arzneimitteln (Lei Relativa à Comercialização de Medicamentos), de 24 de agosto de 1976 (BGBl. 1976 I, p. 2445), na sua versão publicada em 12 de dezembro de 2005 (BGBl. 2005 I, p. 3394), conforme alterada pela Lei de 6 de maio de 2019 (BGBl. 2019 I, p. 646) (a seguir «AMG»), prevê, no seu § 29, n.o 1, que o titular da autorização de introdução no mercado (a seguir «AIM») de um medicamento deve informar imediatamente o Instituto Federal dos Medicamentos sobre qualquer alteração às informações e aos documentos relativos ao medicamento em causa.

10

O § 29, n.o 2a, da AMG prevê que tal alteração, incluindo, nomeadamente, a alteração da forma farmacêutica ou das informações sobre a posologia do medicamento em causa, só deve ser efetuada após consentimento da autoridade federal superior.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

A kohlpharma introduziu no mercado alemão, no âmbito de uma importação paralela, o medicamento Impromen 5 mg, sob a forma de comprimidos, o qual está sujeito à obrigação de receita médica. Este medicamento, que contém a substância ativa Bromperidol e é receitado para tratar certas formas de psicose que requerem tratamento com neuroléticos, foi objeto de uma AIM emitida pela autoridade competente da República Italiana e introduzido no mercado deste Estado‑Membro.

12

Em 17 de setembro de 1990, a kohlpharma obteve da autoridade competente da República Federal da Alemanha uma autorização de importação paralela para o referido medicamento, importado de Itália. Esta autorização foi concedida sob reserva da sua adaptação às futuras alterações da AIM de referência na Alemanha, a qual dizia respeito ao medicamento Consilium 5 mg (Impromen 5 mg), apresentado igualmente sob a forma de comprimidos, que continha a mesma substância ativa e se destinava ao mesmo tratamento que o medicamento Impromen 5 mg.

13

O titular desta AIM de referência foi igualmente autorizado a comercializar e, posteriormente, comercializou o Consilium 5 mg (Impromen 5 mg) sob a forma de gotas e utilizou um folheto informativo combinado para as gotas e os comprimidos.

14

A referida AIM de referência caducou em 30 de junho de 2010, e o medicamento Consilium 5 mg (Impromen 5 mg), sob a forma de comprimidos, já não está disponível no mercado alemão, permanecendo apenas no mercado o medicamento sob a forma de gotas. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a República Italiana é o único Estado‑Membro que ainda autoriza a introdução no mercado desta preparação farmacêutica sob as suas duas formas.

15

Em 30 de novembro de 2015, a kohlpharma notificou ao Instituto Federal dos Medicamentos, ao abrigo do § 29 da AMG, algumas alterações ao folheto informativo e às características técnicas relativas à posologia do medicamento que importa para a Alemanha, utilizando por analogia as indicações de posologia para as gotas autorizadas neste Estado‑Membro. Mais especificamente, a recomendação posológica da preparação farmacêutica sob a forma de gotas, o Impromen Tropfen 2 mg/ml, que beneficia de uma AIM emitida pelas autoridades competentes da República Federal da Alemanha, foi utilizada e integrada no folheto informativo do medicamento sob a forma de comprimidos importado pela kohlpharma para a Alemanha. Este folheto indica que, caso seja receitada uma posologia precisa, que não corresponda à dosagem dos comprimidos, o Impromen está igualmente disponível sob a forma de gotas.

16

Por carta de 25 de fevereiro de 2016, o Instituto Federal dos Medicamentos informou a kohlpharma da sua decisão de recusa das alterações que esta lhe havia notificado, dado que a autorização de importação paralela só tinha sido concedida sob reserva da adaptação à AIM de referência e que tal adaptação já não era possível há anos. A adaptação do folheto informativo com base na preparação farmacêutica sob a forma de gotas é impossível do ponto de vista regulamentar, nomeadamente na medida em que uma terapia pode ser administrada sob a forma de gotas, através do Impromen Tropfen 2 mg/ml com 0,5 ml, ou seja, um 1 mg, ao passo que, sob a sua forma de comprimidos, uma terapia só pode ser administrada com 5 mg. Por conseguinte, o ajuste individual da posologia não pode ser feito da mesma maneira com os comprimidos.

17

A kohlpharma deduziu oposição a esta decisão, alegando que as alterações que notificou fazem referência a um medicamento que contém a mesma substância ativa e consistem apenas em transpor para os comprimidos indicações relativas às gotas. Além disso, a utilização do medicamento sob a forma de comprimidos depende da receita do médico e constitui uma prática importante e bem estabelecida de substituição da preparação farmacêutica sob a forma de gotas.

18

Por Decisão de 1 de julho de 2016, o Instituto Federal dos Medicamentos indeferiu a oposição deduzida pela kohlpharma, referindo, nomeadamente, que as alterações propostas por esta última «causavam incerteza e reduziam a aceitação pelo paciente», o que é incompatível com a «necessidade de garantir a segurança dos medicamentos».

19

Em 1 de agosto do ano seguinte, a kohlpharma interpôs recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio. No âmbito desse recurso, sustentou, nomeadamente, que tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam enquanto importador paralelo, tendo adaptado o folheto informativo utilizado em Itália aos requisitos mais estritos aplicáveis às gotas na Alemanha e que a referida decisão teve por consequência que o folheto informativo relativo ao seu produto que se encontrava no mercado era obsoleto.

20

Nesse órgão jurisdicional, o Instituto Federal dos Medicamentos alegou, por um lado, que o esquema posológico para as gotas contém requisitos que não podem ser cumpridos com comprimidos e, por outro, que as gotas autorizadas na Alemanha diferem das gotas autorizadas em Itália quanto à concentração da substância ativa. Além disso, observa que a adaptação individual da posologia é impossível com os comprimidos e que os importadores paralelos não estão sujeitos, segundo a regulamentação aplicável, à obrigação de apresentar regularmente relatórios de segurança.

21

Todavia, no que se refere à eventual justificação da medida nacional contestada a título da proteção efetiva da vida e da saúde das pessoas, na aceção do artigo 36.o TFUE, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que não pode constatar indícios suficientes de um risco para a proteção efetiva da vida e da saúde das pessoas, na aceção deste artigo, suscetível de pôr em causa a validade da autorização de importação paralela da kohlpharma.

22

Coloca‑se, assim, a questão da possibilidade e das condições em que podem ocorrer alterações de tal autorização de importação paralela após a caducidade da AIM de referência. Segundo o órgão jurisdicional nacional, tais alterações não estão automaticamente excluídas e devem ser apreciadas segundo os mesmos critérios que os aplicáveis à concessão de uma autorização de importação paralela. Como tal, estas alterações devem ser recusadas quando se verifique um dos fundamentos de recusa previstos no artigo 26.o da Diretiva 2001/83. Uma vez que, no entanto, já não existe AIM de referência, esse órgão jurisdicional questiona‑se sobre quais os critérios que podem justificar as referidas alterações pelo importador paralelo.

23

No caso vertente, as alterações propostas pela kohlpharma baseiam‑se na reprodução parcial das indicações relativas ao medicamento em causa sob a forma de gotas, autorizado na Alemanha, no que respeita aos comprimidos, em conjugação com as indicações autorizadas em Itália. Contudo, esta abordagem foi rejeitada pelo Instituto Federal dos Medicamentos, com o fundamento de que é incompatível com o conceito regulamentar de «importação paralela».

24

Foi nestas condições que o Verwaltungsgericht Köln (Tribunal Administrativo de Colónia, Alemanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O princípio da livre circulação de mercadorias estabelecido no artigo 34.o TFUE e os princípios da importação paralela de medicamentos, desenvolvidos nessa base, exigem o consentimento da autoridade nacional de registo para alterar as informações posológicas de um medicamento importado em paralelo, mesmo que a [AIM] de referência tenha caducado e a alteração seja justificada por uma adoção das informações relativas a um medicamento nacional cuj[a] [substância] ativ[a] é substancialmente equivalente, em conjugação com as indicações autorizadas no Estado de exportação para o medicamento importado em paralelo?

2)

À luz dos artigos 34.o e 36.o TFUE, pode a autoridade nacional recusar essa alteração com o fundamento de que os importadores paralelos estão dispensados da obrigação de apresentar relatórios de segurança periódicos e, na falta de uma [AIM] de referência nacional, não existem dados atuais sobre a avaliação de riscos e benefícios, que a [AIM] nacional existente diz respeito a uma forma farmacêutica diferente e em relação à [AIM] para a mesma forma farmacêutica no Estado de exportação, a uma concentração diferente d[a] [substância] ativ[a], e ainda que não é concebível a combinação de duas formas farmacêuticas nos textos informativos?»

Quanto às questões prejudiciais

25

A título preliminar, importa salientar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a Diretiva 2001/83 não é aplicável a um medicamento que beneficia de uma AIM num Estado‑Membro e cuja importação noutro Estado‑Membro constitua uma importação paralela em relação a um medicamento que já beneficia de uma AIM nesse segundo Estado‑Membro, não podendo este medicamento importado, neste caso, ser considerado como sendo introduzido pela primeira vez no mercado no Estado‑Membro de importação. Tal situação está, por conseguinte, abrangida pelas disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de mercadorias, entre as quais os artigos 34.o e 36.o TFUE (Acórdão de 3 de julho de 2019, Delfarma, C‑387/18, EU:C:2019:556, n.o 19 e jurisprudência referida), que, em substância, proíbem, em princípio, aos Estados‑Membros as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente, as quais podem, todavia, ser justificadas, nomeadamente, por razões de proteção da saúde e da vida das pessoas.

26

A livre circulação de mercadorias implica que um operador que tenha adquirido um medicamento legalmente comercializado num Estado‑Membro ao abrigo de uma AIM emitida nesse Estado possa importar esse medicamento noutro Estado‑Membro, onde o referido medicamento já beneficia de uma AIM, sem ser obrigado a obter aquela autorização em conformidade com a Diretiva 2001/83 e sem ter de fornecer todas as informações e os documentos previstos nesta para o controlo da eficácia e da inocuidade do medicamento. Assim, um Estado‑Membro não deve entravar a importação paralela de um medicamento impondo ao importador o cumprimento dos mesmos requisitos aplicáveis às empresas que pedem, pela primeira vez, uma AIM para um medicamento, na condição, contudo, de a importação desse medicamento não pôr em causa a proteção da saúde pública (Acórdão de 3 de julho de 2019, Delfarma, C‑387/18, EU:C:2019:556, n.os 21 e 22 e jurisprudência referida).

27

A autoridade competente do Estado‑Membro de importação deve, por conseguinte, no momento da importação e com fundamento nas informações de que dispõe, assegurar‑se de que o medicamento importado paralelamente e aquele que é objeto de uma AIM no Estado‑Membro de importação, sem serem idênticos em tudo, foram, pelo menos, fabricados segundo a mesma fórmula e com a mesma substância ativa e têm os mesmos efeitos terapêuticos e de que o medicamento importado não suscita problemas de qualidade, de eficácia e de inocuidade. Se todos esses critérios estiverem preenchidos, o medicamento importado deve ser considerado como tendo sido já introduzido no mercado nesse Estado e, por conseguinte, deve poder beneficiar da AIM concedida para esse medicamento já existente no mercado, a não ser que a isso se oponham considerações de proteção eficaz da vida e da saúde das pessoas. Assim, esta autoridade é obrigada a autorizá‑lo se estiver convencida de que o referido medicamento, não obstante a eventual existência de diferenças relativas aos excipientes, não suscita problemas de qualidade, de eficácia e de inocuidade (Acórdão de 3 de julho de 2019, Delfarma, C‑387/18, EU:C:2019:556, n.os 23 e 24 e jurisprudência referida).

28

No processo que deu origem ao Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring (C‑172/00, EU:C:2002:474), o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o artigo 34.o TFUE se opõe a uma regulamentação nacional segundo a qual a retirada da AIM de um medicamento de referência, a pedido do seu titular, implica que a autorização de importação paralela desse medicamento deixe automaticamente de ser válida. Todavia, declarou que, se se demonstrar que a coexistência de duas versões de um mesmo medicamento no mercado de um Estado‑Membro acarreta efetivamente um risco para a saúde das pessoas, esse risco pode justificar restrições à importação da antiga versão do medicamento na sequência da retirada da AIM de referência, pelo seu titular, em relação a esse mercado (Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring, C‑172/00, EU:C:2002:474, n.o 46).

29

Apesar da diferença entre os factos em causa no processo que deu origem ao acórdão referido no número anterior e os que estão em causa no processo principal, as considerações efetuadas naquele acórdão são válidas, mutatis mutandis, no caso de a validade da AIM de um medicamento de referência ter caducado e de não haver coexistência de duas versões de um mesmo medicamento no mercado de um Estado‑Membro.

30

Com efeito, tal como a revogação de uma AIM a pedido do seu titular, a caducidade de uma AIM de referência não implica, em si mesma, que seja posta em causa a qualidade, a eficácia e a inocuidade de um medicamento que beneficia de uma autorização de importação paralela com base nessa AIM de referência, particularmente quando o medicamento em causa continua, como no processo principal, a ser legalmente comercializado no Estado‑Membro de exportação, ao abrigo da AIM emitida nesse Estado‑Membro, e a farmacovigilância no Estado‑Membro de importação pode ser assegurada através de uma colaboração com as autoridades nacionais do Estado‑Membro de exportação (v., neste sentido, Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring, C‑172/00, EU:C:2002:474, n.os 36 e 38).

31

Pelas mesmas razões, a circunstância de o medicamento que beneficia de uma autorização de importação paralela com base nessa AIM de referência ser, devido a essa AIM ter caducado, atualmente o único comercializado no Estado‑Membro de importação, como é o caso do medicamento em causa no processo principal, também não permite afastar, por princípio, os ensinamentos do Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring (C‑172/00, EU:C:2002:474).

32

Todavia, embora não haja razões de natureza geral que possam justificar que a revogação da AIM de referência implica a revogação da autorização de importação paralela, isso não exclui que, em casos concretos, possa haver razões de proteção da saúde pública que possam justificar a revogação da autorização de importação paralela (Acórdão de 8 de maio de 2003, Paranova Läkemedel e o., C‑15/01, EU:C:2003:256, n.o 31).

33

No caso vertente, resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a autoridade competente da República Federal da Alemanha concedeu, em 17 de setembro de 1990, uma autorização de importação paralela que abrangia o medicamento Impromen 5 mg sob a forma de comprimidos, importado pela kohlpharma de Itália, onde este medicamento beneficiava de uma AIM, uma vez que, à época, o medicamento Consilium 5 mg (Impromen 5 mg) beneficiava na Alemanha de uma AIM emitida pela mesma autoridade, que podia servir de AIM de referência para essa importação paralela.

34

Enquanto o medicamento Impromen 5 mg continua a beneficiar de uma AIM em Itália, a AIM do medicamento Consilium 5 mg (Impromen 5 mg) na Alemanha caducou em 30 de junho de 2010. Resulta, todavia, da jurisprudência referida nos n.os 28 a 32 do presente acórdão que a caducidade desta AIM de referência não pode implicar que a autorização de importação paralela na Alemanha, de que beneficia a kohlpharma, possa ser considerada por este Estado‑Membro como tendo caducado automaticamente, uma vez que, em particular, a autorização de importação paralela concedida à kohlpharma continua a ser válida, como o Instituto Federal dos Medicamentos confirmou em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça.

35

Assim, resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que as questões submetidas ao Tribunal de Justiça não têm por objeto a autorização de importação paralela, mas apenas a autorização de alteração das informações e dos documentos relativos ao medicamento importado pela kohlpharma. Com efeito, através da decisão que é objeto do litígio no processo principal, o Instituto Federal dos Medicamentos recusou aprovar essas alterações com o fundamento, em substância, de que estas se baseavam nas indicações relativas à preparação farmacêutica Impromen Tropfen 2 mg/ml, sob a forma de gotas, a única forma deste medicamento atualmente autorizada no mercado alemão.

36

É neste contexto que há que examinar as questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

37

Por conseguinte, é de considerar que, com estas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 34.o e 36.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a autoridade competente de um primeiro Estado‑Membro recuse aprovar as alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que beneficia de uma AIM num segundo Estado‑Membro e que é objeto de uma autorização de importação paralela para o primeiro Estado‑Membro, apenas com o fundamento de que a AIM de referência no primeiro Estado‑Membro caducou e que as alterações propostas se baseiam, em conjugação com as indicações autorizadas no segundo Estado‑Membro para o medicamento que foi objeto de uma importação paralela, nas indicações relativas a um medicamento com a mesma indicação terapêutica e que beneficia de uma AIM nos dois Estados‑Membros, que é fabricado, no essencial, com a mesma substância ativa, mas sob outra forma farmacêutica.

38

A este respeito, importa recordar que resulta de jurisprudência constante que qualquer medida de um Estado‑Membro suscetível de entravar, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, o comércio na União deve ser considerada uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas, na aceção do artigo 34.o TFUE (Acórdãos de 11 de julho de 1974, Dassonville, 8/74, EU:C:1974:82, n.o 5, e de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o., C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 31).

39

Ora, uma regulamentação nacional que sujeita qualquer alteração das informações e dos documentos relativos a um medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela à aprovação de uma autoridade competente é suscetível de impedir o importador desse medicamento de apresentar essas informações e esses documentos da maneira que considere a mais adequada à prescrição do referido medicamento e, portanto, de entravar a sua comercialização. Tal regulamentação constitui, portanto, segundo a jurisprudência referida no número anterior, uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na aceção do artigo 34.o TFUE.

40

Nos termos do artigo 36.o TFUE, o imperativo da proteção da saúde é suscetível de justificar tal medida. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou em várias ocasiões que a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado FUE e que cabe aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado (Acórdãos de 20 de maio de 1976, de Peijper, 104/75, EU:C:1976:67, n.o 15, e de 19 de outubro de 2016, Deutsche Parkinson Vereinigung, C‑148/15, EU:C:2016:776, n.o 30).

41

Resulta, todavia, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o princípio da proporcionalidade, que constitui o fundamento da última frase do artigo 36.o TFUE, exige que a faculdade de os Estados‑Membros proibirem ou restringirem as importações de produtos oriundos de outros Estados‑Membros seja limitada ao estritamente necessário para alcançar os objetivos de proteção da saúde legitimamente prosseguidos. Por conseguinte, uma regulamentação ou prática nacional não pode beneficiar da derrogação prevista no referido artigo 36.o TFUE, quando a saúde e a vida das pessoas puderem ser protegidas de maneira igualmente eficaz através de medidas menos restritivas das trocas comerciais no mercado interno (Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring, C‑172/00, EU:C:2002:474, n.o 34 e jurisprudência referida).

42

No caso vertente, a autoridade competente do Estado‑Membro de importação, a saber, da República Federal da Alemanha, recusou aprovar as alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que beneficia de uma AIM no Estado‑Membro de exportação, no caso vertente a República Italiana, e que é objeto de uma autorização de importação paralela no Estado‑Membro de importação, apenas com o fundamento de que a AIM de referência desse medicamento neste último Estado‑Membro tinha caducado e que essas alterações se baseavam nas indicações relativas a outro medicamento que utiliza a mesma substância ativa sob outra forma farmacêutica, no caso vertente comprimidos, e não gotas, que beneficia de uma AIM no território tanto do Estado‑Membro de exportação como no do Estado‑Membro de importação.

43

Além disso, importa salientar que, por um lado, o Instituto Federal dos Medicamentos confirmou que a autorização de importação paralela de que beneficia a kohlpharma continua válida e que, por outro, o órgão jurisdicional de reenvio indicou que não havia indícios suficientes que demonstrassem a existência de um risco para a proteção efetiva da vida e da saúde das pessoas.

44

Face a estes elementos, que cabe exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, há que considerar que a recusa de uma autoridade competente do Estado‑Membro de importação de aprovar as alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que beneficia de uma AIM no Estado‑Membro de exportação e que é objeto de uma autorização de importação paralela no Estado‑Membro de importação, apenas com o fundamento de que a AIM de referência no Estado‑Membro de importação caducou e que essas alterações se baseiam nas indicações relativas a outro medicamento que utiliza a mesma substância ativa, sob outra forma farmacêutica, e que beneficia de uma AIM tanto no Estado‑Membro de exportação como no Estado‑Membro de importação, não pode ser considerada uma medida adequada e necessária para alcançar o objetivo de proteção da saúde.

45

Com efeito, sem essa aprovação, o medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela continua a ser introduzido no mercado acompanhado de informações e de documentos não atualizados e, portanto, que não tomam em consideração eventuais novas informações relativas a esse medicamento. Ora, tal situação é igualmente suscetível de gerar riscos para a saúde.

46

Na medida em que, no Estado‑Membro de importação, não está disponível no mercado nenhum medicamento que utilize a mesma substância ativa e que seja apresentado sob a mesma forma farmacêutica, a possibilidade de usar como base, para a atualização das informações e dos documentos relativos ao medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela, um medicamento, presente nesse mercado, que utilize a mesma substância ativa, mas sob outra forma farmacêutica, não pode ser automaticamente excluída.

47

O facto de os importadores paralelos não estarem sujeitos à obrigação de apresentar regularmente relatórios de segurança, evocado pelo Instituto Federal dos Medicamentos no órgão jurisdicional de reenvio, também não pode justificar uma recusa de aprovar alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que é objeto de uma autorização de importação paralela.

48

Com efeito, uma farmacovigilância que respeite as exigências decorrentes da Diretiva 2001/83 pode, normalmente, ser garantida em relação aos medicamentos importados paralelamente, através de uma colaboração com as autoridades nacionais dos outros Estados‑Membros, graças ao acesso aos documentos e dados fornecidos pelo fabricante nos Estados‑Membros onde esse medicamento ainda é comercializado com base numa AIM em vigor (v., neste sentido, Acórdão de 10 de setembro de 2002, Ferring, C‑172/00, EU:C:2002:474, n.o 38).

49

Resulta do exposto que há que responder às questões submetidas que os artigos 34.o e 36.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a autoridade competente de um primeiro Estado‑Membro recuse aprovar as alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que beneficia de uma AIM num segundo Estado‑Membro e que é objeto de uma autorização de importação paralela para o primeiro Estado‑Membro, apenas com o fundamento de que a AIM de referência no primeiro Estado‑Membro caducou e que as alterações propostas se baseiam, em conjugação com as indicações autorizadas no segundo Estado‑Membro para o medicamento que foi objeto de uma importação paralela, nas indicações relativas a um medicamento que tem a mesma indicação terapêutica, que beneficia de uma AIM nos dois Estados‑Membros em causa e que é fabricado, no essencial, com a mesma substância ativa, mas sob outra forma farmacêutica, na medida em que a autorização de importação paralela em causa ainda esteja válida e não haja indícios suficientes que demonstrem a existência de um risco para a proteção efetiva da vida e da saúde das pessoas.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

Os artigos 34.o e 36.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a autoridade competente de um primeiro Estado‑Membro recuse aprovar as alterações das informações e dos documentos relativos a um medicamento que beneficia de uma autorização de introdução no mercado num segundo Estado‑Membro e que é objeto de uma autorização de importação paralela para o primeiro Estado‑Membro, apenas com o fundamento de que a autorização de introdução no mercado de referência no primeiro Estado‑Membro caducou e que as alterações propostas se baseiam, em conjugação com as indicações autorizadas no segundo Estado‑Membro para o medicamento que foi objeto de uma importação paralela, nas indicações relativas a um medicamento que tem a mesma indicação terapêutica, que beneficia de uma autorização de introdução no mercado nos dois Estados‑Membros em causa e que é fabricado, no essencial, com a mesma substância ativa, mas sob outra forma farmacêutica, na medida em que a autorização de importação paralela em causa ainda esteja válida e não haja indícios suficientes que demonstrem a existência de um risco para a proteção efetiva da vida e da saúde das pessoas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.