ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

2 de fevereiro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Diretiva 2003/6/CE — Artigo 14.o, n.o 3 — Regulamento (UE) n.o 596/2014 — Artigo 30.o, n.o 1, alínea b) — Abuso de mercado — Sanções administrativas de natureza penal — Falta de cooperação com as autoridades competentes — Artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito ao silêncio e à não autoincriminação»

No processo C‑481/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália), por Decisão de 6 de março de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de junho de 2019, no processo

DB

contra

Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (Consob),

sendo interveniente:

Presidente del Consiglio dei ministri,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, E. Regan, M. Ilešič, L. Bay Larsen, A. Kumin e N. Wahl, presidentes de secção, T. von Danwitz, M. Safjan (relator), F. Biltgen, K. Jürimäe, I. Jarukaitis e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 13 de julho de 2020,

vistas as observações apresentadas:

em representação de DB, por R. Ristuccia e A. Saitta, avvocati,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili e P. G. Marrone, avvocati dello Stato,

em representação do Governo espanhol, inicialmente por A. Rubio González, e em seguida por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agentes,

em representação do Parlamento Europeu, por L. Visaggio, C. Biz e L. Stefani, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por M. Chavrier, E. Rebasti, I. Gurov e E. Sitbon, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por V. Di Bucci, P. Rossi, T. Scharf e P. J. O. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 27 de outubro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como a interpretação e validade do artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado) (JO 2003, L 96, p. 16), e do 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento (UE) n.o 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso de mercado (regulamento abuso de mercado) e que revoga a Diretiva 2003/6 e as Diretivas 2003/124/CE, 2003/125/CE e 2004/72/CE da Comissão (JO 2014, L 173, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe DB à Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (Consob) (Comissão Nacional das Sociedades e da Bolsa, Itália) a respeito da legalidade de sanções aplicadas a DB por ilícitos de abuso de informação privilegiada e falta de cooperação no âmbito de uma investigação levada a cabo pela Consob.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2003/6

3

Os considerandos 37, 38 e 44 da Diretiva 2003/6 têm a seguinte redação:

«(37)

Um conjunto mínimo de sólidos instrumentos e competências comuns a atribuir à autoridade competente de cada Estado‑Membro garantirá a eficácia da supervisão. As empresas de mercado e todos os agentes económicos deverão também contribuir, ao seu nível, para a integridade do mercado. […]

(38)

A fim de garantir uma eficácia adequada ao enquadramento comunitário do abuso de mercado, qualquer infração às proibições ou requisitos estabelecidos por força da presente diretiva terá de ser rapidamente detetada, sendo‑lhe aplicada uma sanção. Para este efeito, as sanções devem ser suficientemente dissuasivas e proporcionadas à gravidade da infração e às mais‑valias realizadas e devem ser aplicadas de forma sistemática.

[…]

(44)

A presente diretiva respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos na [Carta], em especial no artigo 11.o, bem como no artigo 10.o da Convenção Europeia [para a Proteção] dos Direitos do Homem [e das Liberdades Fundamentais]. […]»

4

O artigo 12.o desta diretiva dispõe:

«1.   A autoridade competente deve ser investida de todos os poderes de supervisão e de investigação necessários para o exercício das suas funções. […]

2.   Sem prejuízo do n.o 7 do artigo 6.o, os poderes a que se refere o n.o 1 do presente artigo são exercidos de harmonia com o direito nacional e incluem pelo menos o direito de:

a)

Aceder a qualquer documento, independentemente da sua forma, e receber uma cópia do mesmo;

b)

Solicitar informações a qualquer pessoa, incluindo as pessoas que sucessivamente intervenham na transmissão de ordens ou na realização das operações em causa, bem como os seus comitentes, e, se necessário, convocar uma pessoa e colher o seu depoimento;

[…]

3.   O disposto no presente artigo aplica‑se sem prejuízo das disposições legislativas nacionais em matéria de sigilo profissional.»

5

Nos termos do artigo 14.o da referida diretiva:

«1.   Sem prejuízo do direito de imporem sanções penais, os Estados‑Membros asseguram, nos termos da respetiva legislação nacional, que possam ser tomadas medidas administrativas adequadas ou aplicadas sanções administrativas relativamente às pessoas responsáveis por qualquer incumprimento das disposições aprovadas por força da presente diretiva. Os Estados‑Membros asseguram que estas medidas sejam efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

2.   A Comissão estabelece, nos termos do n.o 2 do artigo [17.o], uma lista informativa das medidas e sanções administrativas referidas no n.o 1.

3.   Os Estados‑Membros determinam as sanções a aplicar por falta de cooperação numa investigação realizada no âmbito do artigo 12.o

[…]»

Regulamento n.o 596/2014

6

Os considerandos 62, 63, 66 e 77 do Regulamento n.o 596/2014, que revogou e substituiu a Diretiva 2003/6 com efeitos a partir de 3 de julho de 2016, têm a seguinte redação:

«(62)

Um conjunto de sólidos instrumentos, competências e recursos à disposição da autoridade competente de cada Estado‑Membro garante a eficácia da supervisão. Por conseguinte, o presente regulamento prevê, em especial, um conjunto mínimo de poderes de supervisão e investigação a atribuir às autoridades competentes dos Estados‑Membros nos termos da legislação nacional. […]

(63)

Os agentes empresas do mercado e todos os agentes económicos deverão também contribuir para a integridade do mercado. […]

[…]

(66)

Embora o presente regulamento especifique um conjunto mínimo de poderes que deverão ser atribuídos às autoridades competentes, estes poderes devem ser exercidos no quadro de um sistema completo de legislação nacional que garanta o respeito pelos direitos fundamentais, incluindo o direito à privacidade. […]

[…]

(77)

O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos na [Carta]. Assim, o presente regulamento deverá ser interpretado e aplicado no respeito por esses direitos e princípios. […]»

7

Nos termos do artigo 14.o deste regulamento, sob a epígrafe «Proibição de abuso de informação privilegiada e de transmissão ilícita de informação privilegiada»:

«É proibido:

a)

Cometer ou tentar cometer abuso de informação privilegiada;

b)

Recomendar que alguém cometa abuso de informação privilegiada ou induzir alguém a cometer abuso de informação privilegiada; ou

c)

Transmitir ilicitamente informação privilegiada.»

8

O artigo 23.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Poderes das autoridades competentes», prevê, nos seus n.os 2 e 3:

«2.   Para o desempenho das suas funções ao abrigo do presente regulamento, as autoridades competentes dispõem, em conformidade com a legislação nacional, dos seguintes poderes mínimos de supervisão e investigação:

a)

Ter acesso a quaisquer documentos e dados, independentemente da sua forma, e receber ou fazer uma cópia dos mesmos;

b)

Solicitar ou exigir informações a qualquer pessoa, incluindo as pessoas que sucessivamente intervenham na transmissão de ordens ou na realização das operações em causa, bem como os seus comitentes, e, se necessário, intimar uma pessoa e colher o seu depoimento com vista a obter informações;

[…]

3.   Os Estados‑Membros asseguram a existência de medidas adequadas para que as autoridades competentes possam exercer os poderes de supervisão e investigação necessários ao desempenho das suas funções.

[…]»

9

O artigo 30.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Sanções administrativas e outras medidas administrativas», dispõe:

«1.   Sem prejuízo de quaisquer sanções penais e sem prejuízo dos poderes de supervisão das autoridades competentes, em conformidade com o artigo 23.o, os Estados‑Membros devem, em conformidade com a legislação nacional, atribuir às autoridades competentes os poderes para aplicarem sanções e outras medidas administrativas adequadas, pelo menos, no caso das seguintes infrações:

a)

violação dos […] artigos 14.o e 15.o […] e

b)

Falta de cooperação ou incumprimento numa investigação ou inspeção ou incumprimento de pedido abrangidos pelo artigo 23.o, n.o 2.

Os Estados‑Membros podem decidir não prever regras em matéria de sanções administrativas nos termos do primeiro parágrafo se essas infrações referidas no primeiro parágrafo, alíneas a) e b), já se encontrarem sujeitas a sanções penais de acordo com a sua legislação nacional até 3 de julho de 2016. Neste caso, os Estados‑Membros devem notificar, detalhadamente, à Comissão e à [Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA)] as regras penais relevantes aplicáveis.

[…]

2.   Os Estados‑Membros devem, em conformidade com a legislação nacional, atribuir às autoridades competentes poderes para aplicarem as seguintes sanções administrativas e adotarem pelo menos as seguintes medidas administrativas, no caso de uma infração referida no n.o 1, primeiro parágrafo, alínea a):

a)

Ordenar que a pessoa responsável pela violação cesse a conduta e se abstenha de a repetir;

b)

A restituição dos lucros obtidos ou das perdas evitadas em resultado da infração, na medida em que possam ser determinadas;

c)

Um aviso público que identifique a pessoa responsável pela infração e a natureza da infração;

d)

A revogação ou a suspensão da autorização para as empresas de investimento;

e)

A interdição temporária de exercer funções de administração em empresas de investimento contra qualquer dirigente de uma empresa de investimento ou qualquer outra pessoa singular responsável pela infração;

f)

Em caso de violações repetidas dos artigos 14.o ou 15.o, a inibição do exercício de funções de administração em empresas de investimento contra qualquer dirigente de uma empresa de investimento ou qualquer outra pessoa singular responsável pela infração;

g)

A interdição temporária de qualquer dirigente de uma empresa de investimento ou pessoa singular responsável pela infração de negociar por conta própria;

h)

Coimas máximas correspondentes, pelo menos, a três vezes o montante dos lucros obtidos ou das perdas evitadas em virtude da violação, caso possam ser determinadas;

i)

No caso das pessoas singulares, coimas máximas correspondentes, pelo menos, a:

i)

5000000 [de euros] ou, nos Estados‑Membros cuja moeda oficial não seja o euro, o valor correspondente em moeda nacional, em 2 de julho de 2014, por violações dos artigos 14.o e 15.o;

[…]

A referência à autoridade competente no presente número não prejudica a capacidade de a autoridade competente exercer as suas funções de qualquer uma das formas referidas no artigo 23.o, n.o 1.

[…]

3.   Os Estados‑Membros podem prever que as autoridades competentes disponham de outros poderes sancionatórios na legislação nacional para além dos previstos no n.o 2 e podem prever níveis de sanções mais elevados do que os estabelecidos nesse número.»

Direito italiano

10

A República Italiana transpôs a Diretiva 2003/6 através do artigo 9.o da legge n.o 62 — Disposizioni per l’adempimento di obblighi derivanti dall’appartenenza dell’Italia alle Comunità europee. Legge comunitaria 2004 (Lei n.o 62, que Estabelece Disposições para o Cumprimento das Obrigações Decorrentes do Facto de a Itália Ser Membro das Comunidades Europeias — Lei Comunitária de 2004), de 18 de abril de 2005 (suplemento ordinário do GURI n.o 76, de 27 de abril de 2005). Este artigo foi inserido no decreto legislativo n.o 58 — Testo unico delle disposizioni in materia di intermediazione finanziaria, ai sensi degli articoli 8 e 21 della legge 6 febbraio 1996, n.o 52 (Decreto Legislativo n.o 58, que Aprova o Texto Único das Disposições em Matéria de Intermediação Financeira, na Aceção dos Artigos 8.o e 21.o da Lei de 6 de fevereiro de 1996, n.o 52), de 24 de fevereiro de 1998 (a seguir «Texto Único»), de várias disposições, entre as quais o artigo 187.obis deste Texto Único, relativo à contraordenação de abuso de informação privilegiada, e o artigo 187.oquindecies, relativo às sanções aplicáveis por falta de cooperação no âmbito de uma investigação realizada pela Consob.

11

O artigo 187.obis do Texto Único, com a epígrafe «Abuso de informação privilegiada», tinha, na versão em vigor à data dos factos no processo principal, a seguinte redação:

«1.   Sem prejuízo da aplicação de sanções penais quando o facto constitua crime, é punida com coima compreendida entre vinte mil euros e três milhões de euros qualquer pessoa que, estando em poder de informação privilegiada em razão da sua qualidade de membro de órgãos de administração, direção ou fiscalização do emitente, da sua participação no capital do emitente ou do exercício de um trabalho, de uma profissão ou de uma função, incluindo pública, ou de um cargo:

a)

adquira, venda ou efetue outras operações, direta ou indiretamente, por conta própria ou por conta de um terceiro, relativas a instrumentos financeiros, utilizando a referida informação;

b)

comunique a informação a outras pessoas, fora do âmbito normal do exercício do seu emprego, da sua profissão, da sua função ou do seu cargo;

c)

recomende ou incite outras pessoas, com base nesta informação, a realizar uma das operações referidas na alínea a).

2.   A coima definida no n.o 1 é igualmente aplicável a qualquer pessoa que, estando em poder de informação privilegiada devido à preparação ou à prática de atos ilícitos, pratique uma das ações previstas no referido n.o 1.

3.   Para efeitos do presente artigo, por “instrumentos financeiros” entendem‑se igualmente os instrumentos financeiros a que se refere o artigo 1.o, n.o 2, cujo valor depende de um instrumento financeiro referido no artigo 180.o, n.o 1, alínea a).

4.   A coima prevista no n.o 1 é igualmente aplicável a qualquer pessoa que, estando em poder de informação privilegiada e conhecendo ou podendo conhecer, usando de normal diligência, o caráter privilegiado da mesma, pratique um dos factos descritos no referido número.

5.   As coimas previstas nos n.os 1, 2 e 4 são elevadas de até três vezes o seu montante ou até ao montante superior que corresponde a dez vezes o produto ou o lucro obtido em resultado da infração quando, em razão da personalidade do autor da infração ou da importância do produto ou do lucro obtido em resultado da infração, se afigurem insuficientes mesmo com a aplicação do montante máximo.

6.   Nos casos previstos no presente artigo, a tentativa é equiparada à consumação.»

12

Na sua versão em vigor à data dos factos no processo principal, o artigo 187.oquindecies do Texto Único, com a epígrafe «Proteção da atividade de supervisão da Consob», dispunha:

«1.   Fora dos casos previstos no artigo 2638.o do codice civile [(Código Civil)], qualquer pessoa que não der cumprimento, dentro do prazo, aos pedidos da Consob ou atrasar o exercício das suas funções é punida com uma coima compreendida entre dez mil euros e duzentos mil euros.»

13

Este artigo 187.oquindecies foi alterado pelo decreto legislativo n.o 129 del 2017 (Decreto Legislativo n.o 129, de 2017). Na sua versão atualmente em vigor, o referido artigo 187.oquindecies, com a epígrafe «Proteção da atividade de supervisão da Banca d’Italia [(Banco de Itália)] e da Consob», tem a seguinte redação:

«1.   Fora dos casos previstos no artigo 2638.o do Código Civil, é punido nos termos do presente artigo quem não der cumprimento, dentro do prazo, aos pedidos do Banco de Itália e da Consob, ou não cooperar com estas autoridades para efeitos do exercício das suas funções de supervisão, ou atrasar o seu exercício.

1‑bis.   Se a infração for cometida por uma pessoa singular, esta é punida com uma coima compreendida entre 10 mil euros e 5 milhões de euros.

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

Por Decisão de 2 de maio de 2012, a Consob, com base no artigo 187.obis do Texto Único, impôs a DB duas sanções pecuniárias no montante de 200000 euros e de 100000 euros, respetivamente, por uma contraordenação de abuso de informação privilegiada cometida entre 19 de fevereiro e 26 de fevereiro de 2009, e que compreende duas componentes, a saber, o abuso de informação privilegiada e a divulgação ilícita de informações privilegiadas.

15

Aplicou‑lhe igualmente uma sanção pecuniária no montante de 50000 euros pela contraordenação referida no artigo 187.oquindecies do Texto Único, com o fundamento de que o interessado, depois de ter pedido o adiamento por várias vezes da data da audição para a qual tinha sido convocado na sua qualidade de pessoa informada dos factos, recusou responder às questões que lhe foram dirigidas quando se apresentou nessa audição.

16

Além disso, a Consob aplicou a sanção de perda de honorabilidade temporária, prevista no artigo 187.oquater, n.o 1, do Texto Único, por um período de 18 meses e ordenou a apreensão por equivalente do lucro ou dos meios utilizados para o obter por força do artigo 187.osexies do Texto Único.

17

DB impugnou essas sanções na Corte d’appello di Roma (Tribunal de Recurso de Roma, Itália), que julgou improcedente a impugnação. Interpôs recurso de cassação da decisão desse órgão jurisdicional para a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália). Por Despacho de 16 de fevereiro de 2018, esse órgão jurisdicional submeteu à Corte costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália) duas questões incidentais de constitucionalidade, das quais apenas a primeira é pertinente no contexto do presente reenvio prejudicial.

18

Essa questão tem por objeto o artigo 187.oquindecies do Texto Único, na medida em que esta disposição pune a falta de cumprimento dentro do prazo dos pedidos da Consob ou o facto de atrasar o exercício das funções de supervisão desse organismo, incluindo no que respeita à pessoa à qual a Consob, no exercício dessas funções, imputa um abuso de informação privilegiada.

19

Na sua decisão de reenvio, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) observa que a questão da constitucionalidade do artigo 187.oquindecies do Texto Único se coloca relativamente a vários direitos e princípios, alguns dos quais decorrem do direito nacional, a saber, os direitos de defesa e o princípio da igualdade das partes no processo, previstos na Constituição italiana, e outros do direito internacional e do direito da União.

20

Para esse órgão jurisdicional, o direito ao silêncio e à não autoincriminação (a seguir «direito ao silêncio»), baseado nas disposições constitucionais, de direito da União e de direito internacional invocadas, não pode justificar a recusa da pessoa em causa de se apresentar na audição ordenada pela Consob, nem o atraso da referida pessoa em apresentar‑se nessa audição, desde que lhe seja garantido o direito de não responder às questões que lhe são dirigidas nessa audição. Ora, no presente processo, essa garantia não foi dada.

21

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, importa, por um lado, tomar em consideração o risco de que, por força do dever de cooperação com a autoridade competente, o presumível autor de uma contraordenação suscetível de ser objeto de uma sanção de natureza penal possa contribuir, de facto, para a dedução de uma acusação penal contra si. Esse órgão jurisdicional sublinha, a este respeito, que, no direito italiano, os abusos de informação privilegiada imputados a DB consubstanciam simultaneamente uma contraordenação e um crime, e que os processos conexos podem ser instaurados e tramitados paralelamente, na medida compatível com o princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta (Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.os 42 a 63).

22

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o direito ao silêncio, que decorre do artigo 6.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir designada «CEDH»), é violado quando as pessoas são punidas pelo direito nacional por não terem respondido às perguntas das autoridades administrativas no âmbito de processos de estabelecimento de contraordenações puníveis com sanções penais (TEDH, 3 de maio de 2001, J. B. c. Suíça, CE:ECHR:2001:0503JUD003182796, §§ 63 a 71; 4 de outubro de 2005, Shannon c. Reino Unido, CE:ECHR:2005:1004JUD000656303, §§ 38 a 41, e 5 de abril de 2012, Chambaz c. Suíça, CE:ECHR:2012:0405JUD001166304, §§ 50 a 58).

23

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que o artigo 187.oquindecies do Texto Único foi introduzido na ordem jurídica italiana em execução de uma obrigação específica imposta pelo artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 e que constitui atualmente a aplicação do artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014, uma eventual declaração de inconstitucionalidade do referido artigo 187.oquindecies poderia colidir com o direito da União, se essas disposições do direito derivado da União devessem ser entendidas no sentido de impor aos Estados‑Membros a obrigação de punir o silêncio mantido, numa audição pela autoridade competente, por uma pessoa suspeita de abuso de informação privilegiada. Todavia, é legítimo duvidar da compatibilidade destas disposições, assim compreendidas, com os artigos 47.o e 48.o da Carta, que parecem igualmente reconhecer o direito ao silêncio dentro dos mesmos limites que os que resultam do artigo 6.o da CEDH e da Constituição italiana.

24

O órgão jurisdicional de reenvio salienta ainda que a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual a pessoa visada por uma investigação no âmbito de um processo de infração às regras da União em matéria de concorrência é obrigada a responder a questões puramente factuais equivale, no entanto, a limitar significativamente o alcance do direito de o interessado não contribuir com as suas declarações, ainda que indiretamente, para a sua autoincriminação.

25

Ora, esta jurisprudência, que se formou em relação a pessoas coletivas e não a pessoas singulares, e em larga medida antes da adoção da Carta, parece dificilmente conciliável com o caráter penal que o Tribunal de Justiça reconheceu, no Acórdão de 20 de março de 2018, Di Puma e Zecca (C‑596/16 e C‑597/16, EU:C:2018:192), às sanções administrativas previstas na ordem jurídica italiana em matéria de abuso de informação privilegiada.

26

Uma vez que a questão de saber se os artigos 47.o e 48.o da Carta exigem, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 6.o da CEDH, o respeito do direito ao silêncio no contexto de processos administrativos que possam conduzir à aplicação de sanções penais ainda não foi abordada pelo Tribunal de Justiça nem pelo legislador da União, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário, antes de se pronunciar sobre a questão da constitucionalidade que lhe foi submetida, submeter a questão ao Tribunal de Justiça para interpretação e, se for caso disso, para apreciação da validade, à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, do n.o 3 do artigo 14.o da Diretiva 2003/6 e do n.o 1, alínea b), do artigo 30.o do Regulamento n.o 596/2014.

27

Nestas circunstâncias, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva [2003/6], na medida em que é aplicável ratione temporis, e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento [n.o 596/2014] ser interpretados no sentido de que permitem aos Estados‑Membros não [punir] as pessoas que se recusam a responder a perguntas da autoridade competente das quais possa resultar a sua responsabilidade por uma infração punível com sanções administrativas de natureza “punitiva”?

2)

Em caso de resposta negativa à primeira questão, o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva [2003/6], na medida em que é aplicável ratione temporis, e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento [n.o 596/2014] são compatíveis com os artigos 47.o e 48.o da [Carta], também à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos [do Homem] no que respeita ao artigo 6.o [da] CEDH e das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, na medida em que impõem que as pessoas que se recusam a responder a perguntas da autoridade competente[,] das quais possa resultar a sua responsabilidade por uma infração punível com sanções administrativas de natureza “punitiva”[,] sejam [punidas]?»

Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

28

Nas suas observações escritas, o Conselho da União Europeia interroga‑se sobre a pertinência, para efeitos da adoção de uma decisão no litígio no processo principal, do Regulamento n.o 596/2014 que, tendo em conta a data da sua entrada em vigor, não é aplicável aos factos no processo principal.

29

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas e para compreender as razões pelas quais o tribunal nacional considera ter necessidade das respostas a essas questões para decidir o litígio de que é chamado a conhecer (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de novembro de 2009, Filipiak, C‑314/08, EU:C:2009:719, n.os 40 a 42, e de 12 de dezembro de 2019, Slovenské elktrárne, C‑376/18, EU:C:2019:1068, n.o 24).

30

No caso em apreço, a Corte costituzionale (Tribunal Constitucional) considera que deve pronunciar‑se sobre a constitucionalidade do artigo 187.oquindecies do Texto Único não só na sua versão em vigor à data dos factos no processo principal, que transpôs o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6, mas também na sua versão atualmente em vigor, que dá execução ao artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014. A este respeito, refere a coerência e a relação de continuidade existente entre as disposições da Diretiva 2003/6 e as do Regulamento n.o 596/2014, que justificam uma análise de conjunto das disposições análogas que constituem o artigo 14.o, n.o 3, desta diretiva e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento.

31

Por outro lado, como resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, uma declaração de inconstitucionalidade do artigo 187.oquindecies do Texto Único teria igualmente incidência na versão atualmente em vigor deste artigo, que dá execução ao artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014.

32

Neste contexto, não se afigura manifesto que a interpretação solicitada desta última disposição não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

33

Por conseguinte, as questões devem ser julgadas admissíveis tal como foram submetidas.

Quanto às questões prejudiciais

34

Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014, lidos à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que permitem aos Estados‑Membros não punir uma pessoa singular que, no âmbito de uma investigação efetuada a seu respeito pela autoridade competente ao abrigo desta diretiva ou desse regulamento, se recusa a dar a esta respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal.

35

A este respeito, importa recordar, a título preliminar, que, segundo o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, as suas disposições têm por destinatários as instituições da União e os Estados‑Membros quando estes aplicam o direito da União.

36

Por outro lado, embora as questões submetidas tenham por objeto os artigos 47.o e 48.o da Carta, que consagram, nomeadamente, o direito de que o seu processo seja julgado de forma equitativa e a presunção de inocência, o pedido de decisão prejudicial refere‑se igualmente aos direitos garantidos pelo artigo 6.o da CEDH. Ora, apesar de esta última não constituir um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União, enquanto a União não aderir à mesma, importa todavia recordar que, como confirma o artigo 6.o, n.o 3, TUE, os direitos fundamentais reconhecidos pela CEDH fazem parte do direito da União enquanto princípios gerais. Por outro lado, o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, que dispõe que os direitos nela contidos que correspondam aos direitos garantidos pela CEDH têm o mesmo sentido e o mesmo alcance que os que lhes são conferidos pela referida convenção, visa garantir a coerência necessária entre estes direitos respetivos, sem que tal atente contra a autonomia do direito da União e do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.os 24 e 25).

37

Segundo as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta corresponde ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH e o artigo 48.o da Carta é «idêntico» ao artigo 6.o, n.os 2 e 3, da CEDH. Na interpretação que efetua a propósito dos direitos garantidos pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, e o artigo 48.o da Carta, o Tribunal de Justiça deve ter em conta os direitos correspondentes garantidos pelo artigo 6.o da CEDH, tal como interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, enquanto limiar de proteção mínima [v., neste sentido, Acórdãos de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 72; de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 124, e de 17 de dezembro de 2020, Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o., C‑336/19, EU:C:2020:1031, n.o 56].

38

A este respeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem salientou que, embora o artigo 6.o da CEDH não mencione expressamente o direito ao silêncio, este constitui uma norma internacional geralmente reconhecida, que está no cerne do conceito de processo equitativo. Ao proteger o arguido de coação indevida pelas autoridades, este direito contribui para evitar erros judiciais e assegurar o resultado pretendido pelo referido artigo 6.o (v., neste sentido, TEDH, 8 de fevereiro de 1996, John Murray c. Reino Unido, CE:ECHR:1996:0208JUD001873191, § 45).

39

Uma vez que a proteção do direito ao silêncio visa assegurar que, num processo penal, a acusação fundamente a sua argumentação sem recorrer a elementos de prova obtidos por coação ou pressão, ignorando a vontade do acusado (v., neste sentido, TEDH, 17 de dezembro de 1996, Saunders c. Reino Unido, EC:ECHR:1996:1217JUD001918791, § 68), este direito é violado, designadamente, na situação de um suspeito que, ameaçado com sanções se não prestar declarações, ou presta declarações ou é punido por se recusar a fazê‑lo (v., neste sentido, TEDH, 13 de setembro de 2016, Ibrahim e outros c. Reino Unido, CE:ECHR:2016:0913JUD005054108, § 267).

40

O direito ao silêncio não pode razoavelmente limitar‑se a confissões de factos delituosos ou a observações que impliquem diretamente a pessoa interrogada, mas abrange também informações sobre questões de facto que possam posteriormente ser utilizadas em apoio da acusação e, portanto, ter um impacto na condenação ou na pena aplicada a essa pessoa (v., neste sentido, TEDH, 17 de dezembro de 1996, Saunders c. Reino Unido, CE:ECHR:1996:1217JUD001918791, § 71, e 19 de março de 2015, Corbet e outros c. França, CE:ECHR:2015:0319JUD000749411, § 34).

41

Assim, o direito ao silêncio não pode justificar a falta de cooperação com as autoridades competentes, como uma recusa em se apresentar a uma audição prevista por estas ou manobras dilatórias destinadas a adiar a sua realização.

42

Quanto à questão de saber em que condições deve o referido direito ser igualmente respeitado no âmbito de processos de contraordenação, importa sublinhar que este mesmo direito é aplicável no contexto de procedimentos suscetíveis de conduzir à aplicação de sanções administrativas de natureza penal. São pertinentes três critérios para apreciar a referida natureza. O primeiro é a qualificação jurídica da infração no direito interno, o segundo diz respeito à própria natureza da infração e o terceiro é relativo ao grau de severidade da sanção suscetível de ser aplicada ao interessado (Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.o 28).

43

Embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz destes critérios, se as sanções administrativas em causa no processo principal têm natureza penal, esse órgão jurisdicional recorda, todavia, com razão, que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, algumas das sanções administrativas aplicadas pela Consob parecem prosseguir uma finalidade repressiva e apresentar um grau de severidade elevado que é suscetível de reforçar a análise de que esta sanção tem natureza penal (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de março de 2018, Di Puma e Zecca, C‑596/16 e C‑597/16, EU:C:2018:192, n.o 38, e de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.os 34 e 35). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem chegou, em substância, à mesma conclusão (TEDH, 4 de março de 2014, Grande Stevens e outros c. Itália, CE:ECHR:2014:0304JUD001864010, § 101).

44

Além disso, mesmo admitindo que, no processo em apreço, as sanções aplicadas a DB pela autoridade de supervisão em causa no processo principal não tinham natureza penal, a necessidade de respeitar o direito ao silêncio no âmbito de um processo de investigação levado a cabo por esta poderia igualmente resultar da circunstância, salientada pelo órgão jurisdicional de reenvio, de, em conformidade com a legislação nacional, os elementos de prova obtidos no âmbito desse processo poderem ser utilizados, no âmbito de um processo penal instaurado contra essa mesma pessoa, para demonstrar a prática de um ilícito penal.

45

Tendo em conta os desenvolvimentos que figuram nos n.os 35 a 44 do presente acórdão, deve considerar‑se que, entre as garantias que decorrem do artigo 47.o, segundo parágrafo, e do artigo 48.o da Carta, e cujo respeito se impõe tanto às instituições da União como aos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União, figura, nomeadamente, o direito ao silêncio de uma pessoa singular «acusada», na aceção da segunda destas disposições. Este direito opõe‑se, nomeadamente, a que essa pessoa seja punida pela sua recusa em dar à autoridade competente ao abrigo da Diretiva 2003/6 ou do Regulamento n.o 596/2014 respostas que a possam fazer incorrer em responsabilidade por um ilícito passível de sanções administrativas de caráter penal ou em responsabilidade penal.

46

Esta análise não é posta em causa pela jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa às regras da União em matéria de concorrência, da qual resulta, em substância, que, no âmbito de um processo tendente ao estabelecimento de uma infração a essas regras, a empresa em causa pode ser obrigada a fornecer todas as informações necessárias relativas a factos de que possa ter conhecimento e a comunicar, se necessário, os documentos correspondentes que a referida empresa possua, ainda que estes possam servir para comprovar, nomeadamente a seu respeito, a existência de um comportamento anticoncorrencial (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de outubro de 1989, Orkem/Comissão, 374/87, EU:C:1989:387, n.o 34; de 29 de junho de 2006, Comissão/SGL Carbon, C‑301/04 P, EU:C:2006:432, n.o 41, e de 25 de janeiro de 2007, Dalmine/Comissão, C‑407/04 P, EU:C:2007:53, n.o 34).

47

Com efeito, por um lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente, nesse contexto, que não podia ser imposta a essa empresa a obrigação de dar respostas através das quais fosse levada a admitir a existência de tal infração (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de outubro de 1989, Orkem/Comissão, 374/87, EU:C:1989:387, n.o 35, e de 29 de junho de 2006, Comissão/SGL Carbon, C‑301/04 P, EU:C:2006:432, n.o 42).

48

Por outro lado, como indica o próprio órgão jurisdicional de reenvio, a jurisprudência recordada nos dois números anteriores do presente acórdão diz respeito a processos suscetíveis de conduzir à aplicação de sanções a empresas e a associações de empresas. Não pode aplicar‑se por analogia quando se trata de determinar o alcance do direito ao silêncio de pessoas singulares que, como DB, são sujeitas a um processo por abuso de informação privilegiada.

49

Tendo em conta as dúvidas manifestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto à validade, à luz do direito ao silêncio consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, e no artigo 48.o da Carta, do artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 e do artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014, há ainda que verificar se essas disposições de direito derivado da União se prestam a uma interpretação conforme a esse direito ao silêncio, na medida em que não impõem que uma pessoa singular seja punida pela sua recusa em dar à autoridade competente ao abrigo dessa diretiva ou desse regulamento, respostas que a possam fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal.

50

A este respeito, importa começar por recordar que, segundo um princípio geral de interpretação, um diploma de direito derivado da União deve ser interpretado, tanto quanto possível, de forma a não pôr em causa a sua validade e em conformidade com o direito primário no seu conjunto, nomeadamente com as disposições da Carta. Assim, quando tal diploma seja suscetível de mais do que uma interpretação, há que dar preferência àquela que torna a disposição compatível com o direito primário em vez da interpretação que leva a declarar a sua incompatibilidade com este [Acórdão de 14 de maio de 2019, M e o. (Revogação do estatuto de refugiado), C‑391/16, C‑77/17 e C‑78/17, EU:C:2019:403, n.o 77]. Tanto o considerando 44 da Diretiva 2003/6 como o considerando 77 do Regulamento n.o 596/2014 sublinham, aliás, que estes dois atos respeitam os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta.

51

No que respeita, antes de mais, ao artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6, este dispõe que os Estados‑Membros devem determinar as sanções aplicáveis em caso de falta de cooperação no âmbito de uma investigação abrangida pelo artigo 12.o desta diretiva. Este último precisa que, neste âmbito, a autoridade competente deve poder solicitar informações a qualquer pessoa e, se necessário, convocar uma pessoa e colher o seu depoimento.

52

Embora os termos destas duas disposições não excluam expressamente que a obrigação imposta aos Estados‑Membros de determinar as sanções aplicáveis nesse caso se aplica igualmente à hipótese da recusa, por parte de uma pessoa assim ouvida, de dar à referida autoridade respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal, nada na redação do artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 se opõe a uma interpretação desta disposição segundo a qual esta obrigação não se aplica nessa hipótese.

53

No que respeita, em seguida, ao artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014, esta disposição impõe a determinação de sanções administrativas para a falta de cooperação ou incumprimento numa investigação ou inspeção ou incumprimento de pedido abrangidos pelo artigo 23.o, n.o 2, deste regulamento, cuja alínea b) precisa que isso inclui intimar uma pessoa e colher o seu depoimento com vista a obter informações.

54

No entanto, há que observar que, embora o artigo 30.o, n.o 1, do Regulamento n.o 596/2014 exija que os Estados‑Membros assegurem que as autoridades competentes tenham o poder de adotar sanções e outras medidas adequadas, nomeadamente nas hipóteses referidas na alínea b) desta disposição, não impõe a esses Estados‑Membros que prevejam a aplicação de tais sanções ou medidas às pessoas singulares que, no âmbito de uma investigação relativa a uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal, se recusem a dar à autoridade competente respostas suscetíveis de as fazer incorrer em responsabilidade penal.

55

Daqui resulta que tanto o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 como o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o596/2014 se prestam a uma interpretação conforme com os artigos 47.o e 48.o da Carta, segundo a qual não exigem que uma pessoa singular seja punida pela sua recusa em dar à autoridade competente respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal.

56

Assim interpretadas, estas disposições de direito derivado da União não veem a sua validade ser afetada, à luz dos artigos 48.o e 47.o da Carta, pelo facto de não excluírem expressamente a aplicação de uma sanção por essa recusa.

57

Por último, importa recordar, nesse contexto, que os Estados‑Membros devem utilizar o poder de apreciação que um texto de direito derivado da União lhes confere em conformidade com os direitos fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2019, E., C‑635/17, EU:C:2019:192, n.os 53 e 54). No âmbito da execução de obrigações resultantes da Diretiva 2003/6 ou do Regulamento n.o 596/2014, incumbe‑lhes portanto assegurar, como foi sublinhado no n.o 45 do presente acórdão, que, em conformidade com o direito ao silêncio garantido pelos artigos 47.o e 48.o da Carta, a autoridade competente não possa punir uma pessoa singular pela sua recusa em dar a essa autoridade respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal.

58

Tendo em conta o exposto, há que responder às questões submetidas que o artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6 e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 596/2014, lidos à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que permitem aos Estados‑Membros não punir uma pessoa singular que, no âmbito de uma investigação efetuada a seu respeito pela autoridade competente ao abrigo desta diretiva ou desse regulamento, se recusa a dar a esta respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal.

Quanto às despesas

59

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 14.o, n.o 3, da Diretiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), e o artigo 30.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento (UE) n.o 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso de mercado (regulamento abuso de mercado) e que revoga a Diretiva 2003/6 e as Diretivas 2003/124/CE, 2003/125/CE e 2004/72/CE da Comissão, lidos à luz dos artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que permitem aos Estados‑Membros não punir uma pessoa singular que, no âmbito de uma investigação efetuada a seu respeito pela autoridade competente ao abrigo desta diretiva ou desse regulamento, se recusa a dar a esta respostas suscetíveis de a fazer incorrer em responsabilidade por uma infração passível de sanções administrativas de natureza penal ou em responsabilidade penal.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.