ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

14 de janeiro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais — Direito a um recurso efetivo — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI — Perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime — Diretiva 2014/42/UE — Congelamento e perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia — Regulamentação nacional que prevê a perda a favor do Estado do bem utilizado na prática da infração de contrabando aduaneiro — Bem pertencente a um terceiro de boa‑fé»

No processo C‑393/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária), por Decisão de 16 de maio de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de maio de 2019, no processo penal contra

OM,

sendo intervenientes:

Okrazhna prokuratura — Haskovo,

Apelativna prokuratura — Plovdiv,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, L. Bay Larsen, C. Toader, M. Safjan (relator) e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

em representação da Okrazhna prokuratura — Haskovo, por V. Radeva‑Rancheva, na qualidade de agente,

em representação da Apelativna prokuratura — Plovdiv, por I. Perpelov, na qualidade de agente,

em representação do Governo helénico, por M. Tassopoulou, S. Charitaki e A. Magrippi, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por Y. Marinova e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de junho de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra OM a respeito da perda, na sequência da sua condenação por contrabando aduaneiro qualificado, de um bem utilizado na prática da referida infração, pertencente a um terceiro de boa‑fé.

Quadro jurídico

Direito da União

Decisão‑Quadro 2005/212/JAI

3

O considerando 3 da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime (JO 2005, L 68, p. 49), enuncia:

«Da alínea b) do ponto 50 do plano de ação de Viena decorre que, nos cinco anos subsequentes à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, as disposições nacionais em matéria de apreensão e perda dos produtos do crime devem ser melhoradas e aproximadas, quando necessário, tendo em conta os direitos de terceiros de boa‑fé.»

4

Nos termos do artigo 1.o, terceiro e quarto travessões, desta decisão‑quadro, que tem por epígrafe «Definições»:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

– […]

“instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais,

“perda”, uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem.»

5

O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Perda», prevê:

«1.   Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

2.   Quando se trate de infração fiscal, os Estados‑Membros podem utilizar processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta.»

6

Nos termos do artigo 4.o da mesma decisão‑quadro, que tem por epígrafe «Vias de recurso»:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas nos artigos 2.o e 3.o disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.»

Diretiva 2014/42/UE

7

Os considerandos 9, 33 e 41 da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (JO 2014, L 127, p. 39; retificação no JO 2014, L 138, p. 114), enunciam:

«(9)

A presente diretiva visa alterar e alargar as disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI [do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime (JO 2001, L 182, p. 1),] e 2005/212/JAI. Essas decisões‑quadro deverão ser parcialmente substituídas para os Estados‑Membros vinculados pela presente diretiva.

[…]

(33)

A presente diretiva afeta consideravelmente os direitos das pessoas, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos, mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais. Por conseguinte, importa estabelecer garantias específicas e vias de recurso judicial para assegurar que, ao executar a presente diretiva, se respeitem os direitos fundamentais das pessoas. Isso inclui o direito a ser ouvido que assiste a terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade (“direitos reais” ou “ius in re”), como o direito de usufruto. A decisão de congelamento deverá ser comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. No entanto, por imperativos da investigação, as autoridades competentes podem adiar a comunicação dessas decisões à pessoa em causa.

[…]

(41)

Atendendo a que o objetivo da presente diretiva, a saber, facilitar a perda de bens em matéria penal, não pode ser suficientemente alcançado pelos Estados‑Membros, mas pode ser mais bem alcançado ao nível da União, a União pode tomar medidas, em conformidade com o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 5.o do Tratado da União Europeia (TUE). Em conformidade com o princípio da proporcionalidade consagrado no mesmo artigo, a presente diretiva não excede o necessário para alcançar esse objetivo.»

8

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“Instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais;

4)

“Perda”, a privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal;

[…]»

9

O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe:

«A presente diretiva é aplicável às infrações penais abrangidas pelos seguintes atos:

a)

Convenção estabelecida com base no artigo K.3, n.o 2, alínea c), do Tratado da União Europeia, relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados‑Membros da União Europeia […];

b)

Decisão‑Quadro 2000/383/JAI do Conselho, de 29 de maio de 2000, sobre o reforço da proteção contra a contrafação de moeda na perspetiva da introdução do euro [(JO 2000, L 140, p. 1)];

c)

Decisão‑Quadro 2001/413/JAI do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário [(JO 2001, L 149, p. 1)];

d)

Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime [(JO 2001, L 182, p. 1)];

e)

Decisão‑Quadro 2002/475/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo [(JO 2002, L 164, p. 3)];

f)

Decisão‑Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003, relativa ao combate à corrupção no setor privado [(JO 2003, L 192, p. 54)];

g)

Decisão‑Quadro 2004/757/JAI do Conselho, de 25 de outubro de 2004, que adota regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga [(JO 2004, L 335, p. 8)];

h)

Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada [(JO 2008, L 300, p. 42)];

i)

Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, e que substitui a Decisão‑Quadro 2002/629/JAI do Conselho [(JO 2011, L 101, p. 1)];

j)

Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão‑Quadro 2004/68/JAI do Conselho [(JO 2011, L 335, p. 1)];

k)

Diretiva 2013/40/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de agosto de 2013, relativa a ataques contra os sistemas de informação e que substitui a Decisão‑Quadro 2005/222/JAI do Conselho [(JO 2013, L 218, p. 8)];

bem como quaisquer outros atos jurídicos, se os mesmos previrem especificamente que a presente diretiva se aplica às infrações penais neles harmonizadas.»

10

O artigo 12.o da Diretiva 2014/42, sob a epígrafe «Transposição», dispõe, no n.o 1:

«Os Estados‑Membros põem em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva até 4 de outubro de 2016. Os Estados‑Membros transmitem imediatamente à Comissão o texto dessas disposições.»

11

O artigo 14.o desta diretiva, sob a epígrafe «Substituição da Ação Comum 98/699/JAI e de determinadas disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI e 2005/212/JAI», prevê:

«1.   São substituídos pela presente diretiva, para os Estados‑Membros que a ela estão vinculados, a Ação Comum 98/699/JAI[, de 3 de dezembro de 1998, adotada pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa ao branqueamento de capitais, identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda de instrumentos e produtos do crime (JO 1998, L 333, p. 1)], o artigo 1.o, alínea a), e os artigos 3.o e 4.o da Decisão‑Quadro 2001/500/JAI, assim como o artigo 1.o, primeiro ao quarto travessões, e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, sem prejuízo das obrigações desses Estados‑Membros quanto ao prazo de transposição destas decisões‑quadro para o direito nacional.

2.   Para os Estados‑Membros que estão vinculados à presente diretiva, as referências à Ação Comum 98/699/JAI e às disposições das Decisões‑Quadro 2001/500/JAI e 2005/212/JAI, que são referidas no n.o 1, devem ser entendidas como referências à presente diretiva.»

Direito búlgaro

12

Segundo o artigo 37.o, n.o 1, do Nakazatelen kodeks (Código Penal; a seguir «NK»):

«As penas são:

[…]

3.

A perda dos bens disponíveis;

[…]»

13

Resulta do artigo 242.o, n.o 1, do NK que o contrabando qualificado é punível com pena privativa da liberdade de três a dez anos e com multa de 20000 a 100000 levs búlgaros (BGN) (cerca de 10226 a 51130 euros).

14

O artigo 242.o, n.os 7 e 8, do NK dispõe:

«(7)   […] O objeto do contrabando é perdido a favor do Estado, seja quem for o proprietário; se já não existir ou tiver sido cedido, é determinado um montante correspondente ao seu valor a preços de retalho nacionais.

(8)   […] O meio de transporte ou de transmissão utilizado para transportar as mercadorias contrabandeadas é perdido a favor do Estado, mesmo que não seja propriedade do autor da infração penal, a menos que o seu valor não corresponda à gravidade da infração.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15

À data dos factos no processo principal, OM, empregado como motorista numa sociedade de transportes estabelecida na Turquia, efetuava transportes internacionais com um trator rodoviário e um semirreboque pertencente a essa sociedade.

16

Em 11 de junho de 2018, quando se preparava para efetuar um transporte entre Istambul (Turquia) e Delmenhorst (Alemanha), OM aceitou uma proposta de uma pessoa para transportar ilegalmente para a Alemanha, mediante remuneração, 2940 moedas antigas.

17

Em 12 de junho de 2018, depois de ter atravessado a fronteira entre a Turquia e a Bulgária, OM foi sujeito a um controlo aduaneiro por ocasião do qual foram descobertas as moedas, que tinham sido dissimuladas no trator rodoviário.

18

As moedas, cujo valor foi estimado num exame pericial arqueológico‑numismático em 73500 BGN (cerca de 37600 euros), o trator rodoviário, o semirreboque, a chave de contacto e os certificados de matrícula do referido trator foram apreendidos e recolhidos como provas materiais da presumível infração.

19

No decurso do inquérito, o diretor da sociedade turca empregador de OM pediu a restituição do trator rodoviário e do semirreboque, alegando que a referida sociedade não tinha nenhuma ligação com a infração penal e que a restituição dos referidos bens não criava entraves à investigação. Este pedido foi indeferido pelo procurador responsável pelo inquérito, com o fundamento de que, em conformidade com o direito búlgaro, as provas materiais eram conservadas até à conclusão do processo penal e de que a sua restituição criaria entraves à investigação. O diretor impugnou a decisão de indeferimento no Okrazhen sad Haskovo (Tribunal Regional de Haskovo, Bulgária), que a confirmou por Despacho de 19 de outubro de 2018, que é irrecorrível.

20

Por Sentença de 22 de março de 2019, OM foi condenado pelo Okrazhen sad Haskovo (Tribunal Regional de Haskovo), por contrabando aduaneiro qualificado, numa pena privativa da liberdade de três anos e numa multa de 20000 BGN (cerca de 10200 euros). As moedas e o trator rodoviário foram declarados perdidos a favor do Estado, em conformidade com o artigo 242.o, n.o 7, e com o artigo 242.o, n.o 8, do NK, respetivamente. No entanto, o semirreboque, que não estava diretamente associado à prática da infração, foi restituído à sociedade empregadora de OM.

21

OM interpôs recurso dessa sentença no Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária), na medida em que aquela decretava a perda do trator rodoviário, alegando que essa perda era contrária, designadamente, às disposições do Tratado FUE e da Carta.

22

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a perda a favor do Estado do veículo que serviu para transportar o objeto do contrabando, prevista no artigo 242.o, n.o 8, do NK, é, certo, uma perda obrigatória na sequência da prática da infração de contrabando, mas não constitui uma pena, contrariamente à perda dos bens do culpado, prevista no artigo 37.o, n.o 1, ponto 3, do NK.

23

Não obstante, esse órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à compatibilidade do artigo 242.o, n.o 8, do NK, que foi adotado antes da adesão da República da Bulgária à União Europeia, em 1 de janeiro de 2007, com as disposições do direito da União, nomeadamente com o artigo 17.o, n.o 1, e o artigo 47.o da Carta.

24

Mais especificamente, o referido órgão jurisdicional considera que a perda prevista nessa disposição, incluindo quando o meio de transporte que serviu para transportar o objeto do contrabando não pertence ao autor da infração, pode levar a um desequilíbrio entre o interesse do terceiro proprietário, que não participou e que não está de modo algum ligado à infração penal, e o interesse do Estado em declarar a perda desse bem pelo facto de ter sido utilizado na prática da infração.

25

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio remete para o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 13 de outubro de 2015, Ünsped Paket Servisi SaN. Ve TiC. A. Ș. c. Bulgária (CE:ECHR:2015:1013JUD000350308), no qual este declarou que a perda, com base no artigo 242.o, n.o 8, do NK, de um camião pertencente a uma sociedade estabelecida na Turquia era contrária ao artigo 1.o do Protocolo n.o 1 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, cujo conteúdo é idêntico ao do artigo 17.o, n.o 1, da Carta. Com efeito, esse órgão jurisdicional salientou que a sociedade proprietária do camião tinha sido privada do acesso à justiça, uma vez que o processo nacional não lhe permitiu expor o seu ponto de vista, pelo que não foi assegurado um equilíbrio entre todos os interesses.

26

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio expõe que, segundo o considerando 33 da Diretiva 2014/42, devido ao facto de esta afetar consideravelmente os direitos das pessoas, importa estabelecer garantias específicas e vias de recurso judicial para assegurar que se respeitem os direitos fundamentais das pessoas, ou seja, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais, e que isso inclui o direito de ser ouvido que assiste a terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa.

27

Nestas condições, o Apelativen sad Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 17.o, n.o 1, da [Carta] ser interpretado no sentido de que, por perturbar o equilíbrio entre o interesse geral e a necessidade de proteção do direito de propriedade, é ilegal uma disposição nacional como o artigo 242.o, n.o 8, do [NK], segundo a qual é perdido a favor do Estado um meio de transporte utilizado para contrabando agravado pertencente a um terceiro que não sabia, não devia nem podia saber que o seu empregado estava a cometer um crime?

2)

Deve o artigo 47.o da [Carta] ser interpretado no sentido de que é ilegal uma disposição nacional como o artigo 242.o, n.o 8, do NK, segundo a qual um meio de transporte, propriedade de uma pessoa diferente da pessoa que cometeu o crime, pode ser declarado perdido sem que seja garantido ao proprietário um acesso direto à justiça para apresentar a sua posição?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

28

A Apelativna prokuratura — Plovdiv (Ministério Público junto do Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária) e o Governo grego concluem pela incompetência do Tribunal de Justiça para responder às questões prejudiciais, uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal está fora do âmbito de aplicação do direito da União. Alegam, nomeadamente, que o juiz nacional não invoca nenhuma disposição do direito da União que permita estabelecer um elemento de conexão suficiente entre o litígio no processo principal e o direito da União.

29

A este respeito, há que salientar que as questões prejudiciais só referem expressamente disposições da Carta, a saber, o artigo 17.o, relativo ao direito de propriedade, e o artigo 47.o, relativo ao direito à ação e a um tribunal imparcial.

30

Há que recordar que o âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, é definido no artigo 51.o, n.o 1, da mesma, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando apliquem o direito da União (Acórdão de 6 de outubro de 2015, Delvigne, C‑650/13, EU:C:2015:648, n.o 25 e jurisprudência referida).

31

O artigo 51.o, n.o 1, da Carta confirma a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações (Acórdão de 6 de outubro de 2015, Delvigne, C‑650/13, EU:C:2015:648, n.o 26 e jurisprudência referida).

32

Assim, quando uma situação jurídica não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para dela conhecer, e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, só por si, fundamentar essa competência (Acórdão de 6 de outubro de 2015, Delvigne, C‑650/13, EU:C:2015:648, n.o 27 e jurisprudência referida).

33

Por conseguinte, há que determinar se uma situação como a que está em causa no processo principal, em que o bem de um terceiro é declarado perdido a favor do Estado‑Membro em causa pelo facto de ter sido utilizado no âmbito de uma infração penal, é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

34

No caso em apreço, no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência à Diretiva 2014/42, que impõe obrigações aos Estados‑Membros com vista, como especifica o seu considerando 41, a facilitar a perda de bens em matéria penal.

35

Todavia, a infração de contrabando, em causa no processo principal, não figura entre as infrações a que esta diretiva se aplica de acordo com o seu artigo 3.o, pelo que o objeto do litígio nacional em causa no processo principal escapa ao âmbito de aplicação material da referida diretiva.

36

A este respeito, importa observar que a Diretiva 2014/42 substituiu parcialmente a Decisão‑Quadro 2005/212, que, tal como esta diretiva, tem por objeto a perda dos instrumentos e produtos do crime. Com efeito, em conformidade com o considerando 9 da referida diretiva, esta visa, nomeadamente, alterar e alargar as disposições desta decisão‑quadro.

37

Mais precisamente, resulta do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2014/42 que esta substituiu unicamente os quatro primeiros travessões do artigo 1.o e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212 para os Estados‑Membros vinculados a esta diretiva, o que teve como consequência que os artigos 2.o, 4.o e 5.o desta decisão‑quadro se mantiveram em vigor após a adoção da referida diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 2020, Agro In 2001, C‑234/18, EU:C:2020:221, n.o 48).

38

A este respeito, há que salientar que a Decisão‑Quadro 2005/212 prevê, no seu artigo 2.o, n.o 1, em termos mais gerais do que os que figuram na Diretiva 2014/42, que «[c]ada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos».

39

No caso em apreço, a infração de contrabando qualificada, em causa no processo principal, é punível com pena privativa da liberdade de três a dez anos, à qual acresce a possibilidade de perda do meio de transporte utilizado para transportar a mercadoria objeto do contrabando, em conformidade com o artigo 242.o, n.o 8, do NK.

40

Daqui resulta que as disposições da Decisão‑Quadro 2005/212 fazem necessariamente parte dos elementos de direito da União que, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal e as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, devem ser tomados em consideração pelo Tribunal de Justiça para que este responda, de forma útil, às questões que lhe são submetidas. Assim, a situação jurídica no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, em especial desta decisão‑quadro.

41

Por outro lado, esta última prevê regras relativas à perda dos «instrumentos e produtos de infrações penais» e às vias de recurso de que devem dispor as pessoas afetadas por uma medida de perda, respetivamente, nos seus artigos 2.o e 4.o Daqui resulta que, com as suas questões, atinentes à legalidade da perda dos bens pertencentes a um terceiro de boa‑fé e às vias de recurso que devem ser oferecidas a terceiros afetados por uma medida de perda, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, na realidade, obter uma interpretação destas disposições da Decisão‑Quadro 2005/212, lidas à luz dos artigos 17.o e 47.o da Carta.

42

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para responder ao pedido de decisão prejudicial.

Quanto à primeira questão

43

Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212, lido à luz do artigo 17.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que permite a declaração de perda de um instrumento utilizado na prática de uma infração de contrabando qualificada, quando este pertence a um terceiro de boa‑fé.

44

A este respeito, há que salientar, antes de mais, que o conceito de «perda» é definido no artigo 1.o, quarto travessão, da Decisão‑Quadro 2005/212.

45

Todavia, como resulta do n.o 37 do presente acórdão, o quarto travessão deste artigo 1.o foi substituído pela Diretiva 2014/42 para os Estados‑Membros vinculado a esta diretiva.

46

Ora, no presente caso, uma vez que os factos no processo principal são posteriores ao prazo de transposição da Diretiva 2014/42, fixado para 4 de outubro de 2016 em conformidade com o artigo 12.o, n.o 1, da mesma, importa, numa causa como a do processo principal, remeter para a referida diretiva para efeitos da definição do conceito de «perda».

47

Nos termos do artigo 2.o, ponto 4, desta diretiva, este conceito de «perda» é definido como sendo a «privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal».

48

Resulta da redação desta disposição que, neste âmbito, pouco importa que a perda constitua uma pena em direito penal. Assim, integra o referido conceito de «perda» uma medida, como a que está em causa no processo principal, que dá lugar a uma privação definitiva do bem apreendido, decretada por um órgão jurisdicional relativamente a uma infração penal.

49

Em seguida, o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 prevê que cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

50

A este respeito, é verdade que esta disposição não designa expressamente a pessoa cujos bens podem ser objeto de uma medida de perda. Refere‑se apenas aos «instrumentos» associados a uma infração penal, sem que seja necessário determinar quem os detém ou o respetivo proprietário.

51

Todavia, o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 deve ser lido à luz do considerando 3 desta decisão‑quadro, do qual decorre que há que ter em conta os direitos de terceiros de boa‑fé. Daqui resulta que, em princípio, as disposições da referida decisão‑quadro se aplicam igualmente à perda de bens pertencentes a terceiros, exigindo também, nomeadamente, que os direitos destes últimos sejam protegidos quando estejam de boa‑fé.

52

Neste contexto, há que ter em conta o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, que prevê, nomeadamente, que todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar e de dispor deles.

53

É certo que o direito de propriedade garantido por esta disposição não constitui uma prerrogativa absoluta. Com efeito, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, podem ser introduzidas restrições ao exercício dos direitos e liberdades nela consagrados, na condição de essas restrições corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela União e não constituírem, relativamente à finalidade prosseguida, uma intervenção excessiva e intolerável que atente contra a própria substância do direito assim garantido (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e Federconsumatori, C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 85 e jurisprudência referida).

54

No caso em apreço, o Ministério Público junto do Tribunal de Recurso de Plovdiv indicou, nas suas observações escritas, que a finalidade prosseguida pela regulamentação nacional em causa no processo principal consiste em impedir, no interesse geral, a importação ilícita de mercadorias para o país.

55

Ora, tendo em conta a lesão sensível dos direitos das pessoas causada pela perda de um bem, a saber, o desapossamento definitivo do direito de propriedade sobre esse bem, há que salientar que, tratando‑se de um terceiro de boa‑fé, que não sabia nem podia saber que o seu bem tinha sido utilizado na prática de uma infração, tal perda constitui, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção excessiva e intolerável que atenta contra a própria substância do seu direito de propriedade.

56

Por conseguinte, há que concluir que uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não respeita o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta, porquanto prevê que os bens de um terceiro de boa‑fé utilizados na prática de uma infração de contrabando qualificada podem ser objeto de uma medida de perda.

57

Nestas condições, há que considerar que, no âmbito do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212, a perda não é extensível aos bens de terceiros de boa‑fé.

58

Atendendo às considerações expostas, há que responder à primeira questão que o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212, lido à luz do artigo 17.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que permite a declaração de perda de um instrumento utilizado na prática de uma infração de contrabando qualificada, quando este pertence a um terceiro de boa‑fé.

Quanto à segunda questão

59

Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/212, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, no âmbito de um processo penal, permite a declaração de perda de um bem pertencente a uma pessoa diferente da que praticou a infração penal, sem que a primeira pessoa disponha de uma via de recurso efetiva.

60

Importa salientar que o artigo 4.o desta decisão‑quadro impõe a cada Estado‑Membro a obrigação de tomar as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas designadamente no artigo 2.o da referida decisão‑quadro disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.

61

Tendo em conta o caráter geral da redação do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/212, as pessoas a quem os Estados‑Membros devem garantir vias de recurso eficazes são não só as consideradas culpadas por uma infração mas também as demais pessoas afetadas pelas medidas previstas no artigo 2.o desta decisão‑quadro, incluindo, portanto, os terceiros.

62

A este respeito, importa igualmente salientar que, nos termos do artigo 47.o, primeiro e segundo parágrafos, da Carta, toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos neste artigo e, nomeadamente, a que a sua causa seja julgada de forma equitativa.

63

Em especial, o direito a um recurso efetivo significa que um terceiro cujo bem seja objeto de uma medida de perda deve poder contestar a legalidade dessa medida para recuperar esse bem quando a perda não se justifique.

64

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio sublinhou na sua decisão de reenvio que um terceiro cujos bens foram objeto de uma medida de perda não tem acesso direto à justiça nos termos da regulamentação nacional, pelo que não está em condições de invocar validamente os seus direitos.

65

Nestas condições, há que concluir que, numa causa como a do processo principal, um terceiro cujo bem seja declarado perdido está privado do direito a um recurso efetivo.

66

Por outro lado, pelo fundamento exposto no n.o 63 do presente acórdão, esta conclusão não pode ser infirmada pelo argumento invocado pelo Ministério Público junto do Tribunal de Recurso de Plovdiv segundo o qual, numa situação como a que está em causa no processo principal, a Zakon za zadalzheniata i dogovorite (Lei Relativa às Obrigações e aos Contratos) permite ao proprietário do bem declarado perdido agir contra a pessoa condenada pelos prejuízos resultantes dessa perda.

67

Além disso, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu, em substância, que, numa situação em que o Estado está na origem da perda e em que a regulamentação e a prática nacionais não preveem um processo através do qual o proprietário possa defender os seus direitos, esse Estado não pode cumprir a obrigação que lhe incumbe por força da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de estabelecer esse processo pedindo à pessoa que não foi julgada pela infração penal que deu lugar à perda que procure recuperar o seu bem junto de um terceiro (TEDH, de 13 de outubro de 2015, Ünsped Paket Servisi SaN. Ve TiC. A. Ș. c. Bulgária, CE:ECHR:2015:1013JUD000350308, § 32).

68

Atendendo às considerações expostas, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/212, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, no âmbito de um processo penal, permite a declaração de perda de um bem pertencente a uma pessoa diferente da que praticou a infração penal, sem que a primeira pessoa disponha de uma via de recurso efetiva.

Quanto às despesas

69

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime, lido à luz do artigo 17.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que permite a declaração de perda de um instrumento utilizado na prática de uma infração de contrabando qualificada, quando este pertence a um terceiro de boa‑fé.

 

2)

O artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/212, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, no âmbito de um processo penal, permite a declaração de perda de um bem pertencente a uma pessoa diferente da que praticou a infração penal, sem que a primeira pessoa disponha de uma via de recurso efetiva.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.