ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

16 de julho de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 1.o, n.o 1 — Âmbito de aplicação — Conceito de “matéria civil e comercial” — Ação inibitória de práticas comerciais desleais intentada por uma autoridade pública com vista à proteção dos interesses dos consumidores»

No processo C‑73/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), por Decisão de 24 de janeiro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 31 de janeiro de 2019, no processo

Belgische Staat, representado pelo Ministro van Werk, Economie en Consumenten, responsável pelo Buitenlandse handel, e pelo Directeur‑Generaal van de Algemene Directie Controle en Bemiddeling van de FOD Economie, K.M.O., Middenstand en Energie, atual Algemene Directie Economische Inspectie,

Directeur‑Generaal van de Algemene Directie Controle en Bemiddeling van de FOD Economie, K.M.O., Middenstand en Energie, atual Algemene Economische Inspectie

contra

Movic BV,

Events Belgium BV,

Leisure Tickets & Activities International BV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, M. Safjan, L. Bay Larsen, C. Toader (relatora) e N. Jääskinen, juízes,

Advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 29 de janeiro de 2020,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Movic BV, por L. Savelkoul e B. Schildermans, advocaten,

em representação da Events Belgium BV e Leisure Tickets & Activities International BV, por T. Baes, advocaat,

em representação do Governo belga, por P. Cottin, L. Van den Broeck e C. Pochet, na qualidade de agentes, assistidos por E. Vervaeke, advocaat,

em representação da Comissão Europeia, por M. Heller e G. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 23 de abril de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2

Esse pedido foi apresentado no contexto de um litígio entre o Belgische Staat (Estado Belga), representado pelo Minister van Werk, Economie en Consumenten (Ministro do Emprego, da Economia e dos Consumidores), responsável pelo Buitenlandse handel (Comércio Externo), e pelo Directeur‑Generaal van de Algemene Directie Controle en Bemiddeling van de FOD Economie, K.M.O, Middenstand en Energie (diretor‑geral da Direção‑Geral de Controlo e Mediação do Departamento Público Federal da Economia, das PME, da Classe Média e da Energia), atual Direção‑Geral da Inspeção Económica, e o diretor‑geral da Direção‑Geral de Controlo e Mediação do Departamento Público Federal da Economia, das PME, das classes médias e da energia, atual Direção‑Geral da Inspeção Económica (a seguir «autoridades belgas»), à Movic BV, à Events Belgium BV e à Leisure Tickets & Activities International BV, sociedades de direito neerlandês, a respeito, nomeadamente, da cessação por estas últimas das suas práticas comerciais de revenda de bilhetes de entrada em eventos organizados na Bélgica.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 7.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.

2.   Os meios a que se refere o n.o 1 incluirão disposições que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um caráter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas.

[…]»

4

Sob a epígrafe «Aplicação», o artigo 11.o da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho («diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO 2005, L 149, p. 22), tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar a existência de meios adequados e eficazes para lutar contra as práticas comerciais desleais, a fim de garantir o cumprimento das disposições da presente diretiva no interesse dos consumidores.

Estes meios devem incluir disposições legais nos termos das quais as pessoas ou organizações que, de acordo com a legislação nacional, tenham um interesse legítimo em combater as práticas comerciais desleais, incluindo os concorrentes, possam:

a)

Intentar uma ação judicial contra tais práticas comerciais desleais;

e/ou

b)

Submetê‑las a uma autoridade administrativa competente para decidir as queixas ou para mover os procedimentos legais adequados.

Compete a cada Estado‑Membro decidir qual destas vias estará disponível e se o tribunal ou autoridade administrativa terão poderes para exigir o recurso prévio a outras vias estabelecidas para a resolução de litígios, incluindo as referidas no artigo 10.o Estas vias devem estar disponíveis quer os consumidores afetados se encontrem no território do Estado‑Membro em que o profissional está estabelecido, quer se encontrem noutro Estado‑Membro.

[…]

2.   No âmbito das disposições legais referidas no n.o 1, os Estados‑Membros devem conferir aos tribunais ou às autoridades administrativas as competências que os habilitem, no caso em que estes considerem que estas medidas são necessárias, tendo em conta todos os interesses em jogo e, em especial, o interesse geral:

a)

a ordenar a cessação de uma prática comercial desleal ou a mover os procedimentos legais adequados para que seja ordenada a cessação dessa prática comercial desleal;

ou

b)

a proibir uma prática comercial desleal ou a mover os procedimentos legais adequados para que seja ordenada a sua proibição nos casos em que esta prática não tenha ainda sido aplicada, mas essa aplicação esteja iminente;

mesmo na ausência de prova de ter havido uma perda ou prejuízo real, ou de uma intenção ou negligência da parte do profissional.

Os Estados‑Membros devem dispor, por outro lado, que as medidas referidas no primeiro parágrafo possam ser tomadas no âmbito de um processo simplificado:

seja com efeito provisório,

seja com efeito definitivo,

entendendo‑se que compete a cada Estado‑Membro determinar qual destas duas opções será adotada.

Além disso, para eliminar os efeitos persistentes de uma prática comercial desleal cuja cessação tenha sido ordenada por uma decisão definitiva, os Estados‑Membros podem conferir aos tribunais ou às autoridades administrativas competências que os habilitem:

a)

a exigir a publicação desta decisão, no todo ou em parte e da forma que considerem adequada;

b)

a exigir, além disso, a publicação de um comunicado retificativo

[…]»

5

Segundo o seu artigo 1.o, a Diretiva 2009/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores (JO 2009, L 110, p. 30), tem por objeto a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às ações inibitórias destinadas a proteger os interesses coletivos dos consumidores incluídos nas diretivas enumeradas no anexo I desta diretiva, a fim de garantir o bom funcionamento do mercado interno.

6

O anexo I da referida diretiva menciona as Diretivas 93/13 e 2005/29 de entre as que se destinam a proteger os interesses coletivos dos consumidores.

7

Os considerandos 10 e 34 do Regulamento n.o 1215/2012 enunciam:

«(10)

O âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias bem definidas, […]

[…]

(34)

Para assegurar a continuidade entre a Convenção [de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32, EE 01, F1, p. 186)], o Regulamento (CE) n.o 44/2001 [do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1)] e o presente regulamento, há que prever disposições transitórias. A mesma continuidade deverá ser assegurada no que diz respeito à interpretação, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, da [referida] Convenção e dos regulamentos que a substituem.»

8

O artigo 1.o do Regulamento n.o 1215/2012, que figura no capítulo I, intitulado «Âmbito de aplicação e definições», prevê no seu n.o 1:

«O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (“ata jure imperii”).»

Direito belga

Lei de 30 de julho de 2013

9

O artigo 5.o, n.o 1, da Wet betreffende de verkoop van toegangsbewijzen tot evenementen (Lei relativa à venda de bilhetes de entrada em eventos) de 30 de julho de 2013 (Belgisch Staatsblad, 6 de setembro de 2013, p. 63069, a seguir «Lei de 30 de julho de 2013») proíbe a exposição habitual de bilhetes de entrada em eventos com vista à sua revenda e o fornecimento dos meios que serão utilizados para tal revenda. O artigo 5.o, n.o 2, desta lei proíbe a revenda ocasional de bilhetes a um preço superior ao seu preço final.

10

De acordo com o artigo 14.o da Lei de 30 de julho de 2013, cabe ao presidente do rechtbank van koophandel (Tribunal de Comércio, Bélgica), posteriormente designado ondernemingsrechtbank (Tribunal das Empresas, Bélgica), declarar a existência de um ato constitutivo de uma infração ao artigo 5.o da referida lei e ordenar a sua cessação. Esta disposição prevê que a ação inibitória desse ato é intentada a pedido do ministro responsável pela pasta da Economia, ou do diretor‑geral da Direção Geral de Controlo e Mediação do Departamento Público Federal da Economia, das PME, da Classe Média e da Energia, ou ainda dos interessados.

CDE

11

O Livro VI do Wetboek economisch recht (Código do Direito Económico), de 28 de fevereiro de 2013, na sua versão aplicável aos litígios no processo principal (a seguir «CDE»), contém no seu título 4 um capítulo 1, intitulado «Práticas comerciais desleais para com os consumidores», cujos artigos VI.92 a VI.100 constituem uma aplicação da Diretiva 2005/29/CE. Neste contexto, os artigos VI.100, VI.97, VI.99 e VI.93 do referido código definem as práticas comerciais desleais.

12

Nos termos do artigo XVII.1 do CDE, o presidente do rechtbank van koophandel (Tribunal de Comércio) declara a existência de um ato constitutivo de uma infração às disposições desse código, sem prejuízo de determinadas ações específicas, e ordena a sua cessação.

13

O artigo XVII.7 do CDE prevê que a ação fundada no artigo XVII.1 deste código é intentada a pedido, nomeadamente, dos interessados, do ministro responsável pela pasta da Economia, do diretor‑geral da Direção‑Geral de Controlo e Mediação do Departamento Público Federal da Economia, das PME, das Classes Médias e da Energia, de um grupo profissional ou interprofissional com personalidade jurídica ou ainda de uma associação que tenha por objeto a defesa dos interesses dos consumidores, quando atue em juízo na defesa dos interesses coletivos destes últimos, estatutariamente definidos.

14

Nos termos do artigo XV.2, n.o 2, do CDE, os autos redigidos pelos funcionários competentes na matéria fazem fé até prova em contrário.

15

De acordo com o artigo XV.3.1 desse código, os funcionários referidos no artigo XV.2 do referido Código podem lavrar um auto de advertência ou um auto ou intentar uma sanção administrativa apoiando‑se, nomeadamente, nas constatações efetuadas.

Código Judiciário

16

O Gerechtelijk Wetboek (Código Judiciário belga) contém um capítulo XXIII, intitulado «Da sanção pecuniária compulsória», no qual o artigo 1385.o‑A dispõe que o juiz pode, a pedido de uma das partes, condenar a outra parte, caso não seja cumprida a condenação principal, no pagamento de uma quantia em dinheiro, denominada sanção pecuniária compulsória, sem prejuízo de uma indemnização por perdas e danos, se for caso disso. Segundo o artigo 1385.o‑B deste código, o juiz pode fixar a sanção pecuniária compulsória, nomeadamente, numa quantia determinada por contravenção.

Litígios no processo principal e questão prejudicial

17

Em 2 de dezembro de 2016, as autoridades belgas demandaram a Movic, a Events Belgium e a Leisure Tickets & Activities International, perante o presidente do rechtbank van koophandel Antwerpen‑afdeling Antwerpen (Tribunal de Comércio, Divisão de Antuérpia, Bélgica), em processos de medidas provisórias, com vista a obter, a título principal, por um lado, a declaração de que essas empresas revendiam, na Bélgica, através de sítios Internet administrados por elas, bilhetes de entrada em eventos a um preço superior ao inicial, atividade que constitui uma infração às disposições da Lei de 30 de julho de 2013 e do CDE, e, por outro, a cessação dessas práticas comerciais.

18

A título acessório, as autoridades belgas pediram que fossem ordenadas, a expensas das empresas em causa, medidas de publicidade da decisão proferida, que fosse aplicada uma sanção pecuniária compulsória de 10000 euros por cada infração constatada a partir da data de notificação dessa decisão e que fosse declarado que as infrações futuras poderiam ser constatadas mediante simples auto lavrado por um funcionário ajuramentado da Direção‑Geral da Inspeção Económica, em conformidade com o CDE.

19

As três sociedades em causa deduziram uma exceção de incompetência internacional dos órgãos jurisdicionais belgas, sustentando que as autoridades belgas tinham agido no exercício da autoridade do Estado, pelo que as suas ações não se enquadravam no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012.

20

Por Decisão de 25 de outubro de 2017, o presidente do rechtbank van koophandel Antwerpen‑afdeling Antwerpen (Tribunal de Comércio, Divisão de Antuérpia) considerou que não tinha competência internacional para apreciar o processo principal. A este respeito, declarou que o Regulamento n.o 1215/2012 não era aplicável no caso em apreço, com o fundamento de que essas ações não podiam ser consideradas «matéria civil ou comercial» na aceção desse regulamento.

21

As autoridades belgas interpuseram recurso para o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica).

22

As partes no processo principal discordam entre si sobre a questão de saber se o exercício da competência de uma autoridade pública para intentar uma ação destinada a pôr termo a infrações à Lei de 30 de julho de 2013 e ao CDE é ou não a manifestação do exercício da autoridade do Estado.

23

As autoridades belgas alegam que, nos litígios no processo principal, não defendem um interesse público equiparável ao seu, mas um interesse geral, que consiste em assegurar o respeito da legislação nacional em matéria de práticas comerciais, ela própria destinada a proteger os interesses privados, tanto dos empresários como dos consumidores, sendo essas práticas reguladas por disposições de direito comum aplicáveis às relações entre particulares, de modo que esses litígios fazem parte da «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

24

As recorridas no processo principal alegam, ao invés, que as autoridades belgas atuam ao abrigo de um direito próprio da autoridade pública, com base no qual podem, ao contrário dos particulares ou das empresas, intentar uma ação inibitória sem dispor de um interesse próprio. As autoridades belgas atuam, portanto, no exercício da autoridade do Estado, uma vez que elas próprias não são afetadas pelas práticas comerciais das empresas em causa.

25

Nestas condições, o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Constitui [“]matéria civil ou comercial[”], na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o [1215/2012], uma ação inibitória destinada à declaração e cessação de práticas comerciais ou de mercado que violam os direitos dos consumidores, intentada pelas autoridades belgas, nos termos do artigo 14.o da [Lei de 30 de julho de 2013 […] e do artigo XVII.7 do [CDE], contra sociedades de direito neerlandês que, a partir dos Países Baixos e através dos seus sítios Internet, se dirigem a um público essencialmente belga para a revenda de bilhetes de entrada em eventos realizados na Bélgica, […] e pode a decisão proferida no âmbito dessa ação estar, por esse motivo, abrangida pelo âmbito de aplicação daquele regulamento?»

Quanto à questão prejudicial

26

A questão formulada pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito, em substância, à determinação do órgão jurisdicional competente para conhecer das ações intentadas pelas autoridades de um Estado‑Membro contra sociedades estabelecidas noutro Estado‑Membro, que visam obter a declaração e a cessação das práticas comerciais pretensamente ilícitas dessas sociedades, dirigidas a consumidores residentes no primeiro Estado‑Membro.

27

Importa salientar que o processo pendente naquele órgão jurisdicional inclui igualmente três pedidos formulados a título acessório, a saber, pedidos destinados a que sejam ordenadas medidas de publicidade, a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória e a que seja declarado que as infrações futuras poderão ser constatadas mediante simples auto lavrado por um funcionário ajuramentado de uma das referidas autoridades.

28

Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral no n.o 14 das suas conclusões, a fim de determinar se é competente, nos termos do Regulamento n.o 1215/2012, para conhecer dos litígios no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio tem de estabelecer que nenhum dos pedidos apresentados pelas autoridades belgas é suscetível de excluir esses litígios, no todo ou em parte, do âmbito de aplicação material deste regulamento.

29

Segundo jurisprudência constante, compete ao Tribunal de Justiça fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todos os elementos de interpretação do direito da União suscetíveis de lhe permitir resolver o litígio que lhe foi submetido (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2008, Gysbrechts e Santurel Inter, C‑205/07, EU:C:2008:730, n.o 31 e jurisprudência referida, e de 12 de fevereiro de 2015, Baczó e Vizsnyiczai, C‑567/13, EU:C:2015:88, n.o 32 e jurisprudência referida), reformulando, se for caso disso, a questão prejudicial.

30

Nestas circunstâncias, o pedido de decisão prejudicial será respondido tendo em conta não só os pedidos formulados a título principal no órgão jurisdicional de reenvio, mas também os formulados a título acessório nesse órgão jurisdicional.

31

Por conseguinte, deve considerar‑se que, com a sua questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», que figura nesta disposição, uma ação que opõe as autoridades de um Estado‑Membro a profissionais estabelecidos noutro Estado‑Membro, no âmbito da qual essas autoridades pedem, a título principal, que seja declarada a existência de infrações que constituem práticas comerciais desleais pretensamente ilícitas e ordenada a cessação das mesmas, bem como, a título acessório, que sejam ordenadas medidas de publicidade, que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória pelas infrações constatadas e que seja declarado que as futuras infrações poderão ser constatadas mediante simples auto lavrado por um funcionário ajuramentado de uma das referidas autoridades.

32

Importa começar por recordar que, na medida em que o Regulamento n.o 1215/2012 revoga e substitui o Regulamento n.o 44/2001, que por seu turno substituiu a convenção referida no considerando 34 do Regulamento n.o 1215/2012, a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições destes instrumentos jurídicos também se aplica a este regulamento, como resulta desse considerando, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de «equivalentes».

33

Para garantir, na medida do possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e das obrigações que decorrem do Regulamento n.o 1215/2012 para os Estados‑Membros e as pessoas interessadas, não se deve interpretar o conceito de «matéria civil e comercial», constante do artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento, como uma simples remissão para o direito interno de um Estado‑Membro. Esse conceito deve ser considerado um conceito autónomo que tem de ser interpretado por referência, por um lado, aos objetivos e ao sistema daquele regulamento, e, por outro, aos princípios gerais resultantes das ordens jurídicas nacionais no seu conjunto (Acórdão de 7 de maio de 2020, Rina, C‑641/18, EU:C:2020:349, n.o 30 e jurisprudência referida).

34

Além disso, como resulta designadamente do considerando 10 do Regulamento n.o 1215/2012, a necessidade de garantir o bom funcionamento do mercado interno e de evitar, para o funcionamento harmonioso da justiça, que sejam proferidas decisões inconciliáveis nos Estados‑Membros exige uma interpretação ampla do referido conceito de «matéria civil e comercial» (Acórdão de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana, C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 47 e jurisprudência referida).

35

Por último, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que, embora determinados litígios que opõem uma autoridade pública a uma pessoa de direito privado possam estar abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, o mesmo já não acontece se essa autoridade pública atuar no exercício da autoridade do Estado (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de abril de 2013, Sapir e o., C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 33 e jurisprudência referida, e de 12 de setembro de 2013, Sunico e o., C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 34).

36

Com efeito, a manifestação de prerrogativas de autoridade do Estado por uma das partes no litígio, pelo facto de essa parte exercer poderes que exorbitam das regras de direito comum aplicáveis nas relações entre particulares, exclui esse litígio da «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de fevereiro de 2007, Lechouritou e o., C‑292/05, EU:C:2007:102, n.o 34 e jurisprudência referida, e de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana, C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 49 e jurisprudência referida).

37

Conclui‑se que, para determinar se uma matéria está ou não abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, e, consequentemente, pelo âmbito de aplicação deste regulamento, há que identificar a relação jurídica existente entre as partes no litígio e o objeto deste, ou, em alternativa, examinar o fundamento e as modalidades de exercício da ação intentada (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de outubro de 1976, LTU, 29/76, EU:C:1976:137, n.o 4, e de 28 de fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana, C‑579/17, EU:C:2019:162, n.o 48 e jurisprudência referida).

38

Quanto ao fundamento de um pedido como o formulado a título principal no processo principal, há que recordar que o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 estabelece que os Estados‑Membros devem prever ações inibitórias contra a utilização de cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.

39

Da mesma forma, a Diretiva 2005/29 prevê, no seu artigo 11.o, intitulado «Aplicação», várias modalidades destinadas a obter a declaração do caráter ilícito de práticas comerciais e a ordenar a sua cessação.

40

Por último, no seu anexo I, a Diretiva 2009/22 menciona as Diretivas 93/13 e 2005/29 de entre os instrumentos do direito da União que protegem os interesses coletivos dos consumidores.

41

Relativamente às ações inibitórias e ao conceito de «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, o Tribunal de Justiça já declarou que, na medida em que se destina a sujeitar à fiscalização jurisdicional relações de direito privado, a ação relativa à proibição de os comerciantes utilizarem cláusulas abusivas nos contratos com os consumidores está abrangida pelo conceito de «matéria civil» (v., neste sentido, Acórdão de 1 de outubro de 2002, Henkel, C‑167/00, EU:C:2002:555, n.o 30). Esta jurisprudência foi posteriormente reiterada e mais geralmente alargada às ações inibitórias visadas pela Diretiva 2009/22 (v., neste sentido, Acórdão de 28 de julho de 2016, Verein für Konsumenteninformation, C‑191/15, EU:C:2016:612, n.os 38 e 39).

42

Daqui resulta que as ações destinadas a obter a declaração e a cessação de práticas comerciais desleais, na aceção da Diretiva 2005/29, estão igualmente abrangidas pelo conceito de «matéria civil e comercial», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

43

No caso em apreço, as ações pendentes no órgão jurisdicional de reenvio destinam‑se a fazer respeitar a proibição, imposta pela legislação nacional em causa no processo principal, de revenda habitual de bilhetes de entrada em eventos ou de revenda ocasional desses bilhetes a um preço superior ao seu preço final, uma vez que tais revendas podem ser consideradas uma prática comercial desleal à luz dessa legislação.

44

No entanto, no que respeita à forma como a ação foi intentada, importa observar que as ações em causa no processo principal não foram intentadas por pessoas de direito privado, como os consumidores ou os organismos de proteção dos consumidores, mas pelas autoridades belgas encarregadas pelo Estado‑Membro em causa de assegurar, nomeadamente, a proteção dos consumidores.

45

No caso vertente, as recorridas no processo principal contestam que as ações possam enquadrar‑se no conceito de «matéria civil e comercial», alegando, desde logo, que as autoridades belgas não são obrigadas a demonstrar que têm um interesse próprio para intentar processos como o processo principal.

46

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que a lista das pessoas habilitadas a intentar essa ação, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 1, da Lei de 30 de julho de 2013 e com o artigo XVII.7 do CDE, foi determinada pelo legislador nacional.

47

A este propósito, o Tribunal de Justiça já declarou que o facto de uma lei ter atribuído uma competência ou um poder não é, em si mesmo, determinante para se concluir que uma autoridade estadual atuou no exercício da autoridade do Estado [v., por analogia, relativamente ao conceito de «matéria civil e comercial», na aceção do Regulamento (CE) n.o 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados‑Membros, e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1348/2000 do Conselho (JO 2007, L 324, p. 79), Acórdão de 11 de junho de 2015, Fahnenbrock e o., C‑226/13, C‑245/13 e C‑247/13, EU:C:2015:383, n.o 56].

48

No caso em apreço, decorre da redação do artigo 14.o, n.o 1, da Lei de 30 de julho de 2013 e do artigo XVII.7 do CDE que as autoridades belgas têm, da mesma forma que os interessados e as associações de proteção dos consumidores, o direito de pedir ao presidente do rechtbank van koophandel (Tribunal de Comércio), atual ondernemingsrechtbank (Tribunal das Empresas), que declare a existência de uma infração à legislação nacional na matéria e emita uma injunção de cessação.

49

Daqui resulta que a situação processual das autoridades belgas é, a este respeito, comparável à de um organismo de proteção dos consumidores.

50

Em segundo lugar, a legislação nacional em causa no processo principal não parece reservar às autoridades belgas nela mencionadas normas de reconhecimento do interesse em agir que lhes confiram condições exorbitantes para o seu exercício em maior medida do que as previstas para os outros demandantes.

51

Em especial, e sem prejuízo das verificações que incumbem ao órgão jurisdicional de reenvio, as autoridades públicas não são, mais do que as outras duas categorias de demandantes mencionadas no artigo XVII.7 do CDE, dispensadas de justificar um interesse em agir.

52

Assim, embora seja verdade que, nos litígios no processo principal, as autoridades belgas não parecem ter tido de fazer prova de um interesse em agir, essa circunstância é necessariamente inerente ao facto de só poderem agir com base numa competência que lhes é conferida pela lei em matéria de combate a certas práticas comerciais desleais.

53

Além disso, como o advogado‑geral salientou no n.o 29 das suas conclusões, a defesa do interesse geral não pode ser confundida com o exercício de prerrogativas de autoridade do Estado.

54

Assim, nos litígios no processo principal, os requisitos estabelecidos para as autoridades belgas terem interesse em agir não parecem constituir, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, o exercício de prerrogativas de autoridade do Estado.

55

Seguidamente, as recorridas no processo principal salientam que as autoridades belgas utilizam as suas próprias conclusões e declarações como elementos de prova em tribunal, de modo que os documentos cruciais dos autos consistem numa série de relatórios e de constatações procedentes de inspetores do Estado, o que constitui o exercício de prerrogativas de autoridade do Estado.

56

Como o advogado‑geral salientou no n.o 59 das suas conclusões, considerar que uma ação intentada por uma autoridade pública está excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 pelo simples facto de essa autoridade utilizar elementos de prova reunidos graças às suas prerrogativas enfraqueceria a eficácia prática dos meios de execução da proteção dos consumidores reconhecidos pelo legislador da União. Com efeito, diversamente do modelo em que é a própria autoridade administrativa que decide sobre as consequências de uma infração, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, a autoridade pública é responsável pela defesa do interesse dos consumidores perante os órgãos jurisdicionais.

57

Só se deve considerar que uma autoridade pública utilizou, no caso em apreço, prerrogativas de autoridade do Estado se tal autoridade, devido ao uso que fez de certos elementos de prova, não estiver concretamente na mesma situação que uma pessoa de direito privado no contexto de um litígio semelhante.

58

Cabe precisar que a mera recolha e compilação de acusações ou provas, como um coletivo de profissionais ou consumidores pode fazer, não pode ser equiparada ao exercício de prerrogativas dessa natureza.

59

A este respeito, não resulta das informações de que o Tribunal de Justiça dispõe que, no âmbito do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, as autoridades belgas tenham utilizado elementos de prova obtidos através das suas prerrogativas de autoridade do Estado, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, se necessário.

60

Daqui resulta que uma ação que opõe as autoridades de um Estado‑Membro a profissionais estabelecidos noutro Estado‑Membro no âmbito da qual essas autoridades pedem, a título principal, que seja declarada a existência de infrações que constituem práticas comerciais desleais alegadamente ilícitas e ordenada a cessação das mesmas está abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», na aceção do n.o 1 do artigo 1.o do Regulamento n.o 1215/2012.

61

No que respeita aos pedidos formulados a título acessório nos litígios no processo principal, importa salientar que os pedidos destinados a que sejam ordenadas medidas de publicidade e a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória constituem, como salientou o advogado‑geral nos n.os 71 e 72 das suas conclusões, medidas convencionais do processo cível destinadas a assegurar a execução da decisão judicial a ser proferida.

62

Em contrapartida, no que respeita ao pedido formulado no órgão jurisdicional de reenvio pelas autoridades belgas no sentido de lhes ser reconhecida a competência para declarar a existência de infrações futuras mediante simples auto lavrado por um funcionário ajuramentado da Direção‑Geral da Inspeção Económica, não se pode considerar, como salientou o advogado geral nos n.os 75 a 77 das suas conclusões, que tal pedido se enquadra no conceito de «matéria civil e comercial», uma vez que, na realidade, esse pedido diz respeito a poderes exorbitantes relativamente às regras de direito comum aplicáveis nas relações entre particulares.

63

No entanto, o sistema geral do Regulamento n.o 1215/2012 não exige que o desfecho de um pedido acessório esteja necessariamente vinculado ao do pedido principal (v., neste sentido, Acórdão de 22 de outubro de 2015, Aannemingsbedrijf Aertssen e Aertssen Terrassements, C‑523/14, EU:C:2015:722, n.o 33 e jurisprudência referida), pelo que a competência internacional de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para conhecer de um pedido principal pode fundar‑se nesse regulamento sem que tal tenha forçosamente de ser o caso relativamente aos pedidos acessórios, e vice‑versa.

64

Tendo em conta as considerações anteriores, há que responder à questão submetida que o artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», que figura nesta disposição, uma ação que opõe as autoridades de um Estado‑Membro a profissionais estabelecidos noutro Estado‑Membro, no âmbito da qual essas autoridades pedem, a título principal, que seja declarada a existência de infrações que constituem práticas comerciais desleais pretensamente ilícitas e ordenada a cessação das mesmas, bem como, a título acessório, que sejam ordenadas medidas de publicidade e que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória.

Quanto às despesas

65

Revestindo o processo, quanto às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», que figura nesta disposição, uma ação que opõe as autoridades de um Estado‑Membro a profissionais estabelecidos noutro Estado‑Membro, no âmbito da qual essas autoridades pedem, a título principal, que seja declarada a existência de infrações que constituem práticas comerciais desleais pretensamente ilícitas e ordenada a cessação das mesmas, bem como, a título acessório, que sejam ordenadas medidas de publicidade e que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.