CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

EVGENI TANCHEV

apresentadas em 3 de junho de 2021 ( 1 )

Processo C‑825/19

Beeren‑, Wild‑, Feinfrucht GmbH

contra

Hauptzollamt Erfurt

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Thüringer Finanzgericht (Tribunal Tributário da Turíngia, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — União aduaneira — Regulamento (UE) n.o 952/2013 — Regime de destino especial — Autorização sucessiva com efeitos retroativos — Âmbito de aplicação temporal — Condições»

1.

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto dois problemas distintos. Em primeiro lugar, o âmbito de aplicação temporal do artigo 211.o do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União ( 2 ) (a seguir «CAU») e, em segundo lugar, a interpretação do artigo 294.o, n.o 2, do Regulamento (CEE) n.o 2454/93 da Comissão, de 2 de julho de 1993, que fixa determinadas disposições de aplicação do Regulamento (CEE) n.o 2913/92 ( 3 ) (a seguir «Regulamento de aplicação do Código Aduaneiro Comunitário» ou «RA CAC»), caso o artigo 211.o do Regulamento n.o 952/2013 seja considerado inaplicável ratione temporis.

2.

O Thüringer Finanzgericht (Tribunal Tributário da Turíngia, Alemanha) (a seguir «órgão jurisdicional de reenvio») submeteu ao Tribunal de Justiça quatro questões distintas, sendo que as três primeiras dizem respeito à aplicação temporal do artigo 211.o do CAU e a última à interpretação do artigo 294.o, n.o 2, do RA CAC. Conforme pedido pelo Tribunal de Justiça, limitar‑me‑ei, nas presentes conclusões, a analisar as primeiras três questões.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Regulamento n.o 952/2013

3.

O artigo 211.o do CAU, sob a epígrafe «Autorização», estabelece o seguinte:

«1.   É necessária uma autorização das autoridades aduaneiras para:

(a)

[…] [o regime de] destino especial;

(b)

[…]

As condições em que é autorizado o recurso a um ou mais dos regimes referidos no primeiro parágrafo […] são definidas na autorização.

2.   As autoridades aduaneiras devem conceder uma autorização com efeitos retroativos caso estejam preenchidas cumulativamente as seguintes condições:

(a)

Existe uma necessidade económica comprovada;

(b)

O pedido não está relacionado com uma tentativa de fraude;

(c)

O requerente demonstrou, com base na contabilidade ou em registos, que:

(i)

estão preenchidos todos os requisitos do regime;

(ii)

se for caso disso, é possível identificar as mercadorias para o período em causa;

(iii)

a contabilidade ou os registos permitem que o regime seja controlado;

(d)

Podem ser cumpridas todas as formalidades necessárias para a regularização da situação das mercadorias, incluindo, se for caso disso, a anulação das declarações aduaneiras em causa;

(e)

Não foi concedida ao requerente qualquer autorização com efeitos retroativos no período de três anos a contar da data em que o pedido foi aceite;

(f)

Não é exigida qualquer análise das condições económicas, exceto quando um pedido diga respeito à renovação de uma autorização para o mesmo tipo de operação e mercadorias;

(g)

O pedido não diz respeito à exploração de instalações de armazenamento para o entreposto aduaneiro de mercadorias;

(h)

Caso um pedido diga respeito à renovação de uma autorização para o mesmo tipo de operações e mercadorias, o pedido é apresentado no prazo de três anos após a data do fim de validade da autorização original.

As autoridades aduaneiras podem igualmente conceder uma autorização com efeitos retroativos caso as mercadorias que estavam sujeitas a um regime aduaneiro já não estejam disponíveis no momento em que o pedido referente a essa autorização tenha sido aceite.

[…]»

4.

O artigo 288.o do CAU ( 4 ) sob a epígrafe «Aplicação» estabelece:

«1.   Os artigos [lista de artigos que não incluem o artigo 211.o] são aplicáveis a partir de 30 de outubro de 2013.

2.   Os artigos não referidos no n.o 1 são aplicáveis a partir de 1 de maio de 2016.»

2. Regulamento Delegado (UE) 2015/2446

5.

O artigo 172.o do Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 ( 5 ), sob a epígrafe «Efeitos retroativos», estabelece:

«1.   Quando as autoridades aduaneiras concederem uma autorização com efeitos retroativos, em conformidade com o artigo 211.o, n.o 2, do Código, a autorização produz efeitos, o mais cedo, a partir da data de aceitação do pedido.

[…]

3.   Se o pedido disser respeito à renovação de uma autorização para o mesmo tipo de operações e mercadorias da mesma natureza, os efeitos retroativos podem recuar até à data em que caduca a autorização original.

[…]»

6.

O artigo 256.o do Regulamento Delegado 2015/2446 dispõe:

«[…]

[Este regulamento] é aplicável a partir de 1 de maio de 2016.

[…]»

II. Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

7.

A Beeren‑, Wild‑, Feinfrucht GmbH (a seguir «BWF») importa, transforma e vende cogumelos conservados em salmoura. Até 31 de dezembro de 2012, a BWF dispunha de uma autorização válida para importar esses cogumelos de países terceiros e introduzi‑los em livre prática para uma utilização específica. A BWF utilizou essa autorização várias vezes antes da sua expiração. A sociedade não apresentou um pedido de prorrogação da autorização. Segundo o despacho de reenvio, esta omissão ocorreu «por desconhecimento». A BWF continuou a importar cogumelos provenientes de países terceiros após 31 de dezembro de 2012 tendo em vista a sua introdução em livre prática e não pediu um tratamento aduaneiro favorável para essas importações. A BWF pagou os respetivos direitos aduaneiros, cujo montante não pôde repercutir nos seus clientes.

8.

A expiração da autorização foi detetada durante uma inspeção fiscal. Em 9 de janeiro de 2015, a BWF pediu uma prorrogação da autorização original (uma «autorização de renovação»). Em 14 de janeiro de 2015, o Hauptzollamt Erfurt (Serviço Aduaneiro Principal de Erfurt, Alemanha) (a seguir «Hauptzollamt») concedeu uma autorização de renovação com efeitos retroativos desde 9 de janeiro de 2015 (ou seja, a partir da data em que o pedido foi apresentado), mas recusou conceder autorização com efeitos retroativos desde o momento da expiração da anterior autorização (ou seja, desde 1 de janeiro de 2013).

9.

A BWF, fazendo referência à sua situação económica crítica devido a uma reestruturação então em curso, pediu de novo que a autorização de renovação fosse concedida a partir de 1 de janeiro de 2013. Por Decisão de 13 de maio de 2015, o Hauptzollamt indeferiu este pedido, considerando que as condições de concessão de uma autorização retroativa nos termos do artigo 294.o, n.o 2, do RA CAC e/ou do artigo 294.o, n.o 3, do RA CAC não estavam preenchidas.

10.

A BWF interpôs recurso administrativo desta decisão. Por Decisão de 6 de abril de 2016, o Hauptzollamt negou provimento a este recurso administrativo e, em 3 de maio de 2016, a BWF interpôs recurso desta decisão no órgão jurisdicional de reenvio.

11.

No âmbito deste recurso, a BWF alegou que a concessão de uma autorização de renovação com efeitos retroativos devia ser regida pelo artigo 211.o do CAU e não pelo artigo 294.o do RA CAC, uma vez que o primeiro, enquanto regra processual, devia ser aplicado retroativamente a um processo pendente.

12.

Em 21 de março de 2019, ou seja, durante a pendência do processo principal, o Hauptzollamt adotou uma nova decisão com base no artigo 294.o do RA CAC, que substituiu a Decisão de 13 de maio de 2015 (sob a forma de decisão sobre o recurso administrativo de 6 de abril de 2016), e indeferiu novamente o pedido da BWF destinado a obter a prorrogação dos efeitos retroativos da sua autorização de renovação a partir de 1 de janeiro de 2013. Esta decisão baseava‑se num raciocínio diferente do raciocínio da decisão anterior. É esta última Decisão de 21 de março de 2019 que constitui o objeto do processo no órgão jurisdicional de reenvio.

13.

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 211.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União (a seguir “Código Aduaneiro da União”; JO 2013, L 269 p. 1), ser interpretado no sentido de que apenas é aplicável aos pedidos cujo período de autorização retroativa começaria em 1 de maio de 2016?

2)

Em caso de resposta negativa à questão 1: Em caso de pedidos de autorização retroativa cujo período de autorização seja anterior a 1 de maio de 2016, deve o artigo 211.o do Código Aduaneiro da União ser aplicado apenas se a autorização retroativa tiver sido solicitada antes da entrada em vigor da nova legislação, mesmo quando as autoridades aduaneiras tenham indeferido pedidos como os indicados pela primeira vez após 1 de maio de 2016?

3)

Em caso de resposta negativa à questão 2: Deve o artigo 211.o do Código Aduaneiro da União ser aplicado aos pedidos de autorização retroativa cujo período de autorização seja anterior a 1 de maio de 2016, mesmo quando as autoridades aduaneiras tenham rejeitado pedidos como os descritos antes de 1 de maio de 2016 e também posteriormente (por outros motivos)?

4)

Em caso de resposta afirmativa às questões 1 e 2 e em caso de resposta negativa à questão 3: Deve o artigo 294.o, n.o 2, do Regulamento (CEE) n.o 2454/93 da Comissão, de 2 de julho de 1993, que fixa determinadas disposições de aplicação do Regulamento (CEE) n.o 2913/92 do Conselho que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (a seguir “Regulamento de execução do Código Aduaneiro Comunitário”), ser interpretado no sentido de que

a)

pode ser concedida uma autorização com efeitos retroativos à data em que a autorização anterior expirou, como prevê o n.o 3 da mesma disposição, por um período máximo de retroatividade de um ano antes da data da apresentação do pedido, e

b)

a existência de uma necessidade económica comprovada prevista no n.o 3 do artigo, bem como a inexistência de artifício ou de negligência manifesta deve ser demonstrada igualmente em caso de renovação da autorização ao abrigo do n.o 2?»

14.

A BWF e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Não foi solicitada audiência e esta não se realizou.

III. Análise

A.   Observações preliminares

15.

Com as suas primeiras três questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, qual é o âmbito de aplicação temporal do artigo 211.o, n.o 2, do CAU e, em particular, se esta disposição pode ser aplicável, ratione temporis, a uma situação como a que está em causa no processo principal.

16.

Conforme o Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado, importa recordar que uma norma jurídica nova é aplicável a partir da entrada em vigor do ato que a instaura e que, embora esta não seja aplicável às situações jurídicas criadas e definitivamente adquiridas ao abrigo da lei anterior, é aplicável aos efeitos futuros das mesmas e às situações jurídicas novas ( 6 ).

17.

Em especial, segundo jurisprudência constante, pressupõe‑se que as regras processuais são aplicáveis, geralmente, na data em que entram em vigor, ao passo que as regras substantivas são habitualmente interpretadas no sentido de que não são aplicáveis, em princípio, a situações existentes anteriormente à sua entrada em vigor, apenas na medida em que resulte claramente dos próprios termos, das suas finalidades ou da sua economia que esse efeito lhes deve ser atribuído ( 7 ).

18.

Por conseguinte, devo abordar, em primeiro lugar, a questão de saber se o artigo 211.o, n.o 2, do CAU deve ser interpretado como uma regra substantiva ou como uma regra processual. Na medida em que chego à conclusão de que o artigo 211.o, n.o 2, da CAU estabelece uma regra substantiva, abordarei, em segundo lugar, a questão de saber se decorre claramente dos termos, das finalidades ou da economia desta disposição que a mesma deve, não obstante, ser aplicada com efeitos retroativos.

B.   O artigo 211.o, n.o 2, do CAU constitui uma regra substantiva ou uma regra processual?

19.

O órgão jurisdicional de reenvio, no seu despacho de reenvio, afirma que considera que o artigo 211.o do CAU é, fundamentalmente, uma regra processual. Em apoio deste entendimento, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência à posição da disposição na estrutura do CAU e ao seu conteúdo principal. O recorrente no processo principal alega igualmente que o artigo 211.o do Regulamento n.o 952/2013 deve ser considerado uma regra processual.

20.

Não partilho desta análise.

1. Conteúdo do artigo 211.o, n.o 2, do CAU

21.

Embora o Tribunal de Justiça ainda não tenha abordado a questão de saber se o artigo 211.o, n.o 2, do CAU deve ser considerado uma regra substantiva ou uma regra processual ou se esta disposição deve ser interpretada no sentido de que produz efeitos retroativos, abordou, no entanto, a distinção entre regras substantivas e regras processuais no domínio do direito aduaneiro em vários processos. O Tribunal de Justiça tem declarado, em geral, que as disposições determinantes no que respeita à existência (ou ao montante) da dívida aduaneira eram «regras substantivas», que, normalmente, não podiam ser objeto de aplicação retroativa.

22.

Nos Acórdãos de 23 de fevereiro de 2006, Molenbergnatie (C‑201/04, EU:C:2006:136), e de 8 de setembro de 2005, Beemsterboer Coldstore Services (C‑293/04, EU:C:2006:162), o Tribunal de Justiça declarou, respetivamente, que as regras relativas à própria dívida aduaneira e as regras relativas às condições em que um devedor está isento da cobrança a posteriori de direitos de importação eram regras substantivas.

23.

Assim, no Acórdão Molenbergnatie, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 221.o, n.os 1 e 2, do Regulamento (CEE) n.o 2913/92 ( 8 ), relativo às comunicações do «montante dos direitos» ao devedor, estabelecia regras de natureza puramente processual ( 9 ). Estas regras não regulavam a existência da dívida aduaneira.

24.

Em contrapartida, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 221.o, n.o 3, do CAC estabelece uma regra «que regula a própria dívida aduaneira» ( 10 ). Este número dispõe que a «comunicação ao devedor não se poderá efetuar após o termo de um prazo de três anos a contar da data de constituição da dívida aduaneira». Uma vez que a dívida, segundo o Tribunal de Justiça, «prescreve e, portanto, fica extinta» no momento do termo deste prazo, o Tribunal de Justiça concluiu que a disposição estabelecia uma regra substantiva ( 11 ). Assim, o artigo 221.o, n.o 3, do CAC não podia ser aplicado à dívida aduaneira constituída antes de 1 de janeiro de 1994, data da entrada em vigor desta disposição ( 12 ).

25.

No Acórdão Beemsterboer Coldstore Services, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 220.o, n.o 2, alínea b), do CAC, estabelecia uma regra substantiva «na medida em que [este] reg[ia] as condições nas quais um devedor está isento da cobrança a posteriori dos direitos de importação na sequência de um erro das autoridades aduaneiras» ( 13 ). De acordo com a advogada‑geral J. Kokott, a disposição tinha um conteúdo substantivo, uma vez que «visa[va] […] determinar se um devedor aduaneiro ainda t[inha] ou não que pagar (liquidar a posteriori) um montante de direitos legalmente devidos» ( 14 ).

26.

No processo Mitsui & Co. Deutschland (C‑256/07, EU:C:2009:167), o Tribunal de Justiça absteve‑se de qualificar explicitamente como regra substantiva (por oposição a uma regra processual) uma disposição que estabelecia uma limitação do prazo de 12 meses para a tomada em consideração de certos ajustamentos de preço. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça recusou a aplicação retroativa da disposição em causa com base no facto de que a aplicação retroativa do novo prazo, mais curto, para tais ajustamentos «[punha] em causa a confiança legítima» ( 15 ). No entanto, o advogado‑geral J. Mazák, nas Conclusões que apresentou nesse processo, declarou expressamente que o caráter substantivo da regra em causa resultava do facto de essas disposições «definirem as condições para a aplicação do direito à alteração do valor transacional» ( 16 ). Importa acrescentar que esse valor foi determinante para o montante da dívida aduaneira.

27.

Uma distinção baseada no facto de as regras em causa serem determinantes para a existência ou para o montante da dívida aduaneira faz todo o sentido. Como sublinha a Comissão nas suas observações, a redução, a isenção ou a imposição de direitos aduaneiros para mercadorias idênticas importadas simultaneamente e nas mesmas circunstâncias factuais não podem depender da duração dos processos administrativos ou judiciais. O mesmo conjunto de circunstâncias de facto, ocorridas ao mesmo tempo, deve dar origem à mesma dívida aduaneira e ser tratado de acordo com as mesmas regras substantivas.

28.

Aplicando esta lógica às questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, considero que o artigo 211.o, n.o 2, do CAU é uma disposição substantiva.

29.

O artigo 211.o, n.o 2, do CAU na versão em língua inglesa ( 17 ) estabelece que «the customs authorities shall grant an authorisation with retroactive effect» quando todas as condições enumeradas estão preenchidas. Na falta de tal autorização para a importação das mercadorias em causa pela BWF durante o período compreendido entre 1 de janeiro de 2013 e 8 de janeiro de 2015, eram devidos direitos aduaneiros sobre a importação dessas mercadorias.

30.

No entanto, se fosse concedida a BWF uma autorização com efeitos retroativos, quer nos termos do artigo 211.o, n.o 2, do CAU quer nos termos do artigo 294.o do RA CAC, seria aplicável a isenção de utilização final e a BWF poderia solicitar o reembolso dos direitos aduaneiros pagos.

31.

Com efeito, o preenchimento de todas as condições enumeradas no artigo 211.o do CAU não é apenas uma condição para a concessão de uma autorização com efeitos retroativos, mas — não tendo em conta, por enquanto, a versão em língua francesa do artigo 211.o, n.o 2, do CAU — impõe efetivamente às autoridades aduaneiras a concessão dessa autorização mediante pedido. Por sua vez, esta autorização é determinante para a existência da dívida aduaneira no que respeita às mercadorias em causa.

32.

Tendo em conta a jurisprudência referida nos n.os 22 a 26 das presentes conclusões, entendo, por conseguinte, que se deve considerar que o artigo 211.o, n.o 2, do CAU estabelece uma regra substantiva.

33.

Um olhar mais atento às condições individuais constantes do artigo 211.o, n.o 2, alíneas a) a h), do CAU apenas confirma este ponto de vista.

34.

A alínea a) exige uma «necessidade económica comprovada» e a alínea b) exige que o pedido não esteja relacionado com uma tentativa de fraude. Nem a existência de uma necessidade económica nem a ausência de fraude dizem respeito a questões processuais. Pelo contrário, são requisitos substantivos que devem ser preenchidos para a obtenção de uma autorização com efeitos retroativos. Embora a alínea a) exija uma necessidade económica «comprovada», não aborda as questões processuais da apresentação de tal prova.

35.

A alínea c) exige que o requerente demonstre, com base na contabilidade ou em registos: que estão preenchidos todos os requisitos do regime; que, se for caso disso, é possível identificar as mercadorias para o período em causa; e que a contabilidade ou os registos permitem que o regime seja controlado. A alínea d) exige que possam ser cumpridas todas as formalidades necessárias para a regularização da situação das mercadorias, e a alínea f) prevê que «[n]ão é exigida qualquer análise das condições económicas». Embora essas disposições digam respeito a questões processuais, não abordam a forma como esses requisitos devem ser preenchidos ou o modo como tal prova deve ser apresentada, mas estabelecem condições para a concessão de uma autorização com efeitos retroativos.

36.

A alínea e) estabelece a condição de não ter sido concedida ao requerente qualquer autorização com efeitos retroativos no período de três anos a contar da data em que o pedido foi aceite, a alínea g) exclui pedidos que digam respeito à exploração de instalações de armazenamento para o entreposto aduaneiro de mercadorias, e a alínea h) impõe um limite de três anos aos pedidos que digam respeito ao mesmo tipo de operações e mercadorias.

37.

Todos estes requisitos constituem, em meu entender, total ou principalmente, condições substantivas.

2. Posição do artigo 211.o, n.o 2, na estrutura do CAU

38.

O artigo 211.o figura no capítulo 1, sob a epígrafe «Disposições gerais» do título VII do CAU, sob a epígrafe «Regimes especiais». O capítulo 1 abrange os artigos 210.o a 225.o do CAU.

39.

A organização das disposições do capítulo 1 obedece a um esquema em que uma ou duas disposições substantivas, total ou principalmente, relativas, respetivamente, à autorização (artigo 211.o), apuramento de um regime especial (artigo 215.o), ou circulação de mercadorias (artigo 219.o) e manipulações usuais (artigo 220.o) são seguidas de um artigo que tem por epígrafe «Delegação de poderes», que habilita a Comissão a adotar atos delegados que completam certas partes não essenciais de tais regras (artigos 212.o, 216.o e 221.o), e de um artigo que tem por epígrafe «Atribuição de competências de execução» (artigos 213.o, 217.o e 222.o), nos termos do qual a Comissão «específica, por meio de atos de execução, as regras processuais aplicáveis» relativamente a parte dessas regras substantivas ( 18 ).

40.

Por conseguinte, em meu entender a estrutura da CAU não permite considerar que o artigo 211.o, n.o 2, constitui uma regra processual. Pelo contrário, a posição do artigo 211.o, n.o 2, no capítulo 1 do título VII corresponde ao lugar onde se espera encontrar uma regra substantiva, e não uma regra processual.

C.   Pode, não obstante, aplicar‑se o artigo 211.o, n.o 2, retroativamente?

41.

As normas de direito da União de direito material podem, excecionalmente, ser interpretadas no sentido de que visam situações adquiridas anteriormente à sua entrada em vigor na medida em que resulte claramente dos seus termos, finalidade ou economia que tal efeito lhes deve ser atribuído ( 19 ).

42.

No Acórdão Beemsterboer Coldstore Services, o Tribunal de Justiça declarou, a este respeito, que era adequado aplicar a nova versão alterada de uma regra substantiva a situações existentes anteriormente à sua entrada em vigor, uma vez que a nova versão «revest[ia] caráter essencialmente interpretativo» ( 20 ). Neste processo, a versão alterada da disposição em causa tinha sido adotada com o objetivo de melhorar a segurança jurídica e, uma vez que o novo texto reforçava a proteção da confiança legítima do operador económico em questão, os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima não se opõem à aplicação da versão alterada a situações existentes anteriormente à sua entrada em vigor ( 21 ).

43.

Em contrapartida, o artigo 221.o, n.o 2, do CAU introduz alterações materiais relativamente à lei anterior. Enquanto o artigo 294.o do RA CAC utilizou a redação que estabelece que as autoridades aduaneiras «podem emitir uma autorização com efeitos retroativos», o artigo 221.o, n.o 2, do CAU estabelece que estas autoridades «devem conceder uma autorização com efeitos retroativos» quando todas as condições enumeradas (sejam de caráter total ou principalmente substantivo) estão preenchidas. É evidente que não se trata de uma mera alteração interpretativa.

44.

Não encontrei nenhum indício nem preâmbulo, nem história legislativa de que se pretendia aplicar retroativamente o artigo 211.o, n.o 2, do CAU.

45.

Importa também salientar que a questão do órgão jurisdicional de reenvio visa saber se as regras relativas ao regime de destino especial podem ser aplicadas retroativamente. A autorização relativa ao regime de destino especial apenas pode ser concedida em determinadas condições e, assim, este regime constitui uma exceção às regras aduaneiras gerais. Deste modo, as regras relativas a este regime devem ser interpretadas em sentido estrito ( 22 ). A concessão de uma autorização com efeitos retroativos nos termos do artigo 211.o, n.o 2, do CAU e do artigo 172.o, n.o 1, do RD CAU constitui igualmente uma exceção à regra geral de concessão de autorizações, que está sujeita a condições específicas. A concessão de uma autorização com efeitos retroativos a partir da data em que a autorização original expirou, nos termos do artigo 211.o, n.o 2, alínea h), do CAU e do artigo 172.o, n.o 3, do RD CAU, constitui uma outra exceção às regras gerais das autorizações com efeitos retroativos, que está sujeita a condições adicionais. Por conseguinte, uma interpretação extensiva da aplicação, ratione temporis, de tais regras não se afigura justificada.

D.   Segunda e terceira questões

46.

Um requisito distinto para a aplicação das regras processuais a uma situação de facto anterior à data de entrada em vigor destas regras é que o processo esteja «pendente» no momento da entrada em vigor das regras processuais. A resposta à primeira questão deixa sem objeto a segunda e a terceira questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, não é necessário abordar a questão de saber se o processo estava «pendente» no momento em que o artigo 211.o, n.o 2, do CAU se tornou aplicável (1 de maio de 2016).

IV. Conclusão

47.

Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça responda o seguinte às três primeiras questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio:

O artigo 211.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União, enquanto regra substantiva, apenas é aplicável aos pedidos cujo período de autorização retroativa começaria em 1 de maio de 2016.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO 2013, L 269, p. 1.

( 3 ) JO 1993, L 253, p. 1.

( 4 ) Conforme retificação do Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União (JO 2013, L 287, p. 90).

( 5 ) Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 da Comissão, de 28 de julho de 2015, que completa o Regulamento (UE) n.o 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, com regras pormenorizadas relativamente a determinadas disposições do Código Aduaneiro da União (JO 2015, L 343, p. 1) (a seguir «RD CAU»).

( 6 ) Acórdão de 26 de março de 2015, Comissão/Moravia Gas Storage (C‑596/13 P, EU:C:2015:203, n.o 32 e jurisprudência aí referida).

( 7 ) Acórdãos de 12 de novembro de 1981, Meridionale Industria Salumi e o. (212/80 a 217/80, EU:C:1981:270, n.o 9); de 23 de fevereiro de 2006, Molenbergnatie (C‑201/04, EU:C:2006:136, n.o 31); de 11 de dezembro de 2008, Comissão/Freistaat Sachsen (C‑334/07 P, EU:C:2008:709, n.o 44); e de 26 de março de 2015, Comissão/Moravia Gas Storage (C‑596/13 P, EU:C:2015:203, n.o 33). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, no Acórdão Meridionale Industria Salumi e o., n.os 11 e 12, que não se podiam conceder efeitos retroativos às regras processuais e substantivas de um regulamento que constituíam um todo indivisível e cujas disposições individuais não podem ser consideradas isoladamente «exceto se houver indicações suficientemente claras que conduzam a [esta] conclusão».

( 8 ) Regulamento (CEE) n.o 2913/92 do Conselho, de 12 de outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (JO 1992, L 302, p. 1) (a seguir «CAC»).

( 9 ) Acórdão de 23 de fevereiro de 2006, Molenbergnatie (C‑201/04, EU:C:2006:136, n.o 36).

( 10 ) Idem, n.o 39).

( 11 ) Idem, n.o 41.

( 12 ) Idem, n.o 42. V., para uma perspetiva crítica da análise do Tribunal de Justiça no Acórdão Molenbergnatie, Conclusões apresentadas pela advogada‑geral E. Sharpston nos processos apensos Josef Vosding Schlacht‑, Kühl‑ und Zerlegebetrieb (C‑278/07 a C‑280/07, EU:C:2008:521, n.os 31 e 32). Contudo, a crítica formulada nas Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston dizia respeito à questão de saber se o termo de um prazo de prescrição extingue efetivamente a dívida aduaneira (conforme declarou o Tribunal de Justiça no Acórdão Molenbergnatie), e, assim, se o prazo de prescrição regulava efetivamente a própria dívida. Não pôs em causa que uma regra que regula a dívida seja considerada uma regra substantiva.

( 13 ) Acórdão de 9 de março de 2006, Beemsterboer Coldstore Services (C‑293/04, EU:C:2006:162, n.o 20).

( 14 ) Conclusões apresentadas pela advogada‑geral J. Kokott no processo Beemsterboer Coldstore Services (C‑293/04, EU:C:2005:527, n.o 24).

( 15 ) Acórdão de 19 de março de 2009, Mitsui & Co. Deutschland (C‑256/07, EU:C:2009:167, n.o 36).

( 16 ) N.o 47 das referidas conclusões.

( 17 ) Saliento que a versão em língua francesa difere da versão inglesa: «Les autorités douanières peuvent accorder une autorisation avec effet rétroactif […]» (o sublinhado é meu). As versões em línguas búlgara, dinamarquesa, alemã, italiana, polaca, eslovaca e sueca parecem estar em conformidade com a versão inglesa. A diferença não é determinante para a análise das presentes conclusões.

( 18 ) Não existem artigos específicos que habilitem a Comissão a adotar atos delegados ou que a obriguem a especificar regras processuais associadas ao artigo 210.o, que diz respeito ao âmbito de aplicação dos regimes especiais, ao artigo 214.o, que é relativo os requisitos em matéria de registos, ou ao artigo 218.o, que se refere à transferência de direitos e obrigações.

( 19 ) Acórdão de 9 de março de 2006, Beemsterboer Coldstore Services (C‑293/04, EU:C:2006:162, n.o 21).

( 20 ) Idem, n.os 22 e 23.

( 21 ) Idem, n.os 25 e 26.

( 22 ) V., por analogia, Acórdãos de 11 de novembro de 1999, Söhl & Söhlke (C‑48/98, EU:C:1999:548, n.o 52); de 29 de julho de 2010, Isaac International (C‑371/09, EU:C:2010:458, n.o 42); e de 14 de janeiro de 2010, Terex Equipment e o. (C‑430/08 e C‑431/08, EU:C:2010:15, n.o 42).