CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GERARD HOGAN

apresentadas em 14 de janeiro de 2021 ( 1 )

Processo C‑790/19

Parchetul de pe lângă Tribunalul Braşov

contra

LG,

MH,

sendo intervenientes:

Agenţia Naţională de Administrare Fiscală — Direcţia Generală Regională a Finanţelor Publice Braşov

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Curtea de Apel Braşov (Tribunal de Recurso de Braşov, Roménia)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2005/60/CE — Diretiva (UE) 2015/849 — Prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo — Infrações de branqueamento de capitais — Autobranqueamento — Sujeito ativo da infração — Âmbito»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, que altera o Regulamento (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e que revoga a Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2006/70/CE da Comissão ( 2 ).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal contra LG e MH. Alega‑se que, em diversas datas compreendidas entre 2009 e 2013, cometeram e participaram no crime de branqueamento de capitais. A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio é a de saber se o autor de uma infração subjacente, da qual provêm os capitais branqueados, pode também ser o autor do crime de branqueamento de capitais, conforme definido no artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 2015/849.

3.

No entanto, tendo em conta a data dos factos controvertidos, há que observar que a questão deverá ser analisada à luz do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo ( 3 ). Com efeito, embora a Diretiva 2005/60 seja a precursora da versão atual desta diretiva — a saber, a Diretiva 2015/849 —, era a Diretiva 2005/60 que estava em vigor na data em que essas infrações foram aparentemente cometidas. É, por conseguinte, apenas a essa diretiva anterior que podemos recorrer para apreciar o presente pedido de decisão prejudicial.

4.

Além disso, importa salientar que resulta do pedido de decisão prejudicial que o recorrido no processo principal foi condenado pelo crime de branqueamento de capitais previsto no artigo 29.o, n.o 1, alínea a), da Lege nr. 656/2002 pentru prevenirea și sancționarea spălării banilor (Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais) ( 4 ), que transpôs a Diretiva 2005/60. Como acabei de observar, a Diretiva 2015/849 foi adotada posteriormente ao período em que as infrações em causa foram cometidas. O órgão jurisdicional de reenvio indica, além disso, que a lei nacional que transpõe a Diretiva 2015/849 não tinha sido publicada no momento em que o processo foi submetido ao Tribunal de Justiça.

5.

Contudo, segundo jurisprudência constante, com vista a dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional que submeteu a questão prejudicial, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não fez referência na sua questão ( 5 ). No contexto da definição de branqueamento de capitais, este aspeto não é, na realidade, determinante para o processo em apreço, uma vez que a definição de branqueamento de capitais é substancialmente semelhante na Diretiva 2005/60 e na Diretiva 2015/849. É à luz deste contexto geral que podemos agora passar ao exame das disposições legais pertinentes.

II. Quadro jurídico

A.   Direito internacional

6.

O artigo 6.o, n.os 1 e 2, da Convenção do Conselho da Europa relativa ao Branqueamento, Deteção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, assinada em Estrasburgo, em 8 de novembro de 1990 (Série de Tratados Europeus, n.o 141, a seguir «Convenção de Estrasburgo»), dispõe:

«1.   Cada uma das Partes adota as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para conferirem caráter de infração penal em conformidade com o seu direito interno, quando o ato tenha sido cometido intencionalmente à:

a)

Conversão e transferência de bens em relação aos quais aquele que as faz sabe que esses bens constituem produtos [de crime], com o fim de dissimular ou de ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na prática da infração principal a escapar às consequências jurídicas dos seus atos;

b)

Dissimulação ou ocultação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens ou de direitos a eles relativos, sabendo o autor que esses bens constituem produtos [de crime]; e, sob reserva dos seus princípios constitucionais e dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico:

[...]

2.   Para fins de execução ou de aplicação do n.o 1 do presente artigo:

a)

O facto de a infração principal ser ou não da competência das jurisdições penais da Parte não é tomado em consideração;

b)

Pode ser previsto que as infrações enumeradas no presente número [não] se aplicam aos autores da infração principal;

[...]»

7.

O artigo 9.o, n.os 1 e 2, da Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Deteção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo, assinada em Varsóvia, em 16 de maio de 2005 (Série de Tratados do Conselho da Europa, n.o 198) (a seguir «Convenção de Varsóvia»), dispõe:

«1   Cada uma das Partes adotará as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias com vista a qualificar como infração penal, em conformidade com o seu direito interno, quando praticada intencionalmente:

a)

A conversão ou transferência de bens, sabendo o seu autor que esses bens constituem produtos [de crime], com o objetivo de dissimular ou ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na prática da infração subjacente a furtar‑se às consequências jurídicas dos seus atos;

[...]

2   Para fins de execução ou de aplicação do n.o 1 do presente artigo:

a)

O facto de as Partes poderem exercer ou não a sua jurisdição relativamente à infração subjacente não será tido em consideração;

b)

Poderá estabelecer‑se que as disposições que prevejam as infrações aí enumeradas não serão aplicáveis aos autores da infração subjacente;

[...]»

B.   Direito da União

1. Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho

8.

O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime ( 6 ) dispõe:

«A fim de reforçar as ações de combate à criminalidade organizada, os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que não sejam feitas ou mantidas quaisquer reservas aos seguintes artigos da [Convenção de Estrasburgo]:

[...]

b)

Artigo 6.o, na medida em que estejam em causa infrações graves. Essas infrações devem incluir sempre as infrações puníveis com uma pena privativa de liberdade ou com uma medida de segurança de uma duração máxima superior a um ano ou, nos Estados cujo sistema jurídico preveja sanções com um limite mínimo, as infrações puníveis com uma pena privativa de liberdade ou uma medida de segurança de uma duração mínima superior a seis meses.»

2. Diretiva 2005/60

9.

Os considerandos 1 e 5 da Diretiva 2005/60 têm a seguinte redação:

«(1)

Os fluxos maciços de dinheiro sujo podem prejudicar a estabilidade e a reputação do setor financeiro e ameaçar o mercado único e o terrorismo abala as próprias fundações da nossa sociedade. Para além de uma abordagem baseada no direito penal, os esforços em matéria de prevenção desenvolvidos ao nível do sistema financeiro podem produzir resultados.

[...]

(5)

O branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo ocorrem com frequência num contexto internacional. Quaisquer medidas adotadas ao nível exclusivamente nacional, ou mesmo comunitário, que não tomassem em consideração a coordenação e a cooperação internacionais, teriam efeitos muito limitados. As medidas adotadas pela Comunidade neste domínio devem assim coadunar‑se com as ações levadas a cabo noutras instâncias internacionais. A ação comunitária deve continuar a ter nomeadamente em conta as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (em seguida denominado “GAFI”), que constitui o principal organismo internacional de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Uma vez que as recomendações do GAFI foram profundamente revistas e alargadas em 2003, deve ser assegurado o alinhamento da presente diretiva com esses novos padrões internacionais.»

10.

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2005/60 dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar a proibição do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

2.   Para os efeitos da presente diretiva, entende‑se por branqueamento de capitais os comportamentos a seguir descritos, quando adotados intencionalmente:

a)

A conversão ou transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem‑se às consequências jurídicas dos seus atos;

b)

A dissimulação ou encobrimento da verdadeira natureza, origem, localização, utilização, circulação ou propriedade de determinados bens ou de direitos relativos a esses bens, com conhecimento de que tais bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza;

c)

A aquisição, detenção ou utilização de bens, com conhecimento, aquando da sua receção, de que provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza;

d)

A participação num dos atos referidos nas alíneas anteriores, a associação para praticar o referido ato, as tentativas de o perpetrar, o facto de ajudar, incitar ou aconselhar alguém a praticá‑lo ou o facto de facilitar a sua execução.»

3. Diretiva 2015/849

11.

Nos termos do considerando 1 da Diretiva 2015/849:

«Os fluxos de dinheiro ilícito podem prejudicar a integridade, a estabilidade e a reputação do setor financeiro e ameaçar o mercado interno da União e o desenvolvimento internacional. O branqueamento de capitais, o financiamento do terrorismo e o crime organizado permanecem problemas significativos que deverão ser tratados ao nível da União. A acrescer à intensificação do desenvolvimento de uma abordagem baseada no direito penal à escala da União, a prevenção orientada e proporcionada do uso do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo é indispensável e pode produzir resultados complementares.»

12.

O artigo 1.o da Diretiva 2015/849 dispõe:

«1.   A presente diretiva visa prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.

2.   Os Estados‑Membros devem assegurar a proibição do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

3.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por branqueamento de capitais os comportamentos a seguir descritos, quando praticados intencionalmente:

a)

A conversão ou transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem‑se às consequências jurídicas dos atos por elas praticados;

b)

O encobrimento ou a dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, utilização, circulação ou propriedade de determinados bens ou de direitos sobre esses bens, com conhecimento de que tais bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza;

c)

A aquisição, detenção ou utilização de bens, com conhecimento, no momento da sua receção, de que provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza;

d)

A participação num dos atos a que se referem as alíneas a), b) e c), a associação para praticar o referido ato, a tentativa e a cumplicidade na sua prática, bem como o facto de facilitar a sua execução ou de aconselhar alguém a praticá‑lo».

4. Diretiva 2018/1673

13.

Nos termos do considerando 11 da Diretiva (UE) 2018/1673 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal ( 7 ), «[o]s Estados‑Membros deverão assegurar que certos tipos de atividades de branqueamento de capitais também sejam puníveis quando cometidas pelo autor da atividade criminosa que gerou os bens (autobranqueamento). Em tais casos, se a atividade de branqueamento de capitais não se traduzir na mera posse ou utilização dos bens, mas envolver também a transferência, a conversão, o encobrimento ou a dissimulação dos bens, daí resultando mais danos do que os já causados pela atividade criminosa, por exemplo pondo em circulação bens provenientes de uma atividade criminosa e, desse modo, encobrindo a sua origem ilícita, essa atividade de branqueamento de capitais deverá ser punível».

14.

O artigo 3.o da Diretiva 2018/1673, sob a epígrafe «Infrações de branqueamento de capitais», dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que os seguintes comportamentos, quando cometidos intencionalmente, sejam puníveis como infrações penais:

a)

Conversão ou transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem‑se às consequências jurídicas dos atos por elas praticados;

b)

Encobrimento ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, utilização, circulação ou propriedade de determinados bens ou de direitos sobre esses bens, com conhecimento de que tais bens provêm de uma atividade criminosa;

c)

Aquisição, detenção ou utilização de bens, com conhecimento, no momento da sua receção, de que provêm de uma atividade criminosa.

2.   Os Estados‑Membros podem tomar as medidas necessárias para assegurar que os comportamentos referidos no n.o 1 sejam puníveis como infrações penais caso o autor da infração suspeitasse ou devesse ter sabido que os bens provinham de uma atividade criminosa.

[...]

5.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que os comportamentos referidos no n.o 1, alíneas a) e b), constituam infrações penais puníveis quando praticados por pessoas que tenham praticado ou participado na atividade criminosa da qual provêm os bens».

C.   Direito romeno

15.

À data dos factos pertinentes, o artigo 29.o, n.o 1, da Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais, conforme alterada, tinha a seguinte redação:

«1) Constituem crime de branqueamento de capitais e são punidos com uma pena privativa da liberdade de 3 a 12 anos:

a)

a conversão ou a transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm da prática de crimes, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou com o fim de auxiliar o autor do crime, do qual provêm os bens, a subtrair‑se ao exercício da ação penal, ao julgamento ou à execução da pena;

b)

o encobrimento ou a dissimulação da verdadeira natureza, da origem, da localização, da utilização, da circulação ou da propriedade de determinados bens ou de direitos sobre esses bens, com conhecimento de que tais bens provêm da prática de um crime;

c)

a aquisição, detenção ou utilização de bens, com conhecimento de que provêm da prática de um crime.»

III. Matéria de facto no processo principal

16.

Em 15 de novembro de 2018, o Tribunalul Braşov (Tribunal Regional de Braşov, Roménia) condenou o recorrido LG numa pena suspensa de um ano e nove meses de prisão, pelo crime de branqueamento de capitais previsto no artigo 29.o, n.o 1, alínea a), da Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais.

17.

Esse tribunal considerou que o recorrido LG, na qualidade de administrador de uma sociedade, tinha incorrido na prática do crime de evasão fiscal e tinha também branqueado o dinheiro daí resultante. Esse tribunal considerou igualmente que, durante o período compreendido entre 2009 e 2013, LG não tinha registado os documentos fiscais comprovativos do recebimento de receitas na contabilidade da sociedade de que era gerente. Esta omissão foi considerada constitutiva do crime de evasão fiscal.

18.

Os montantes provenientes da evasão fiscal foram posteriormente transferidos para a conta de outra sociedade, representada por MH, e depois levantados por LG e MH. Esta transferência foi feita com base num contrato de cessão de créditos celebrado entre LG, a sociedade de que era gerente e a sociedade de que MH era gerente. Nos termos desse contrato, os montantes devidos a LG pela sociedade de que era gerente foram pagos por clientes da referida sociedade na conta da sociedade gerida por MH.

19.

O Tribunalul Braşov (Tribunal Regional de Braşov) ordenou igualmente o arquivamento do processo penal por evasão fiscal contra o recorrido LG, uma vez que este tinha ressarcido o dano em questão. Contudo, a outra recorrida, MH, foi absolvida por esse órgão jurisdicional. O referido órgão jurisdicional considerou que não tinha ficado provado que tivesse conhecimento da circunstância de o recorrido LG ter branqueado fundos provenientes de evasão fiscal.

20.

O Parchetul de pe lângă Tribunalul Brașov (Procuradoria junto do Tribunal Regional de Braşov, Roménia) (a seguir «Ministério Público»), o recorrido LG e a Agenția Națională de Administrare Fiscală, Direcția Generală Regională a Finanțelor Publice Brașov (Agência Nacional da Administração Fiscal, Direção Geral Regional das Finanças Públicas de Braşov, Roménia) (a seguir «parte civil») interpuseram recurso dessa sentença para a Curtea de Apel Brașov (Tribunal de Recurso de Braşov, Roménia).

21.

O Ministério Público discorda da sentença, alegando, em especial, que não existiam fundamentos para absolver a recorrida MH. A parte civil discorda da sentença por ter julgado parcialmente improcedentes os seus pedidos cíveis. LG desistiu posteriormente do seu recurso.

22.

O órgão jurisdicional de reenvio explica que solicita uma interpretação da Diretiva 2015/849 — apesar de esta não ter sido transposta para o direito romeno dentro do prazo fixado — uma vez que esta diretiva define a infração de branqueamento de capitais da mesma forma que a Diretiva 2005/60, que estava em vigor à data dos factos no processo principal e que foi transposta através da Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais.

23.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é necessário submeter um pedido de decisão prejudicial por existirem interpretações contraditórias do artigo 29.o, n.o 1, da Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais, na medida em que a prática judicial oferece soluções divergentes. Nestas circunstâncias, o presente litígio pode potencialmente ser resolvido de várias formas diametralmente opostas, consoante o Tribunal de Justiça considere verificado, ou não, o elemento essencial do tipo penal.

24.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o autor do branqueamento de capitais, em qualquer das suas formas, não pode ser simultaneamente autor da infração principal. O órgão jurisdicional de reenvio observa que tal interpretação decorre não só do preâmbulo como também de uma análise gramatical, semântica e teleológica do artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 2015/849. Além disso, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, considerar que o sujeito ativo da infração principal pode igualmente ser o sujeito ativo do crime de branqueamento de capitais violaria o princípio ne bis in idem.

IV. Pedido de decisão prejudicial e tramitação no Tribunal de Justiça

25.

Foi nestas circunstâncias que, por Decisão de 14 de outubro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de outubro de 2019, a Curtea de Apel Brașov (Tribunal de Recurso de Brașov) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da [Diretiva 2015/849] ser interpretado no sentido de que quem pratica o ato material que constitui o crime de branqueamento de capitais é sempre uma pessoa diferente da pessoa que comete [a infração principal] (o crime precedente, do qual provém o dinheiro objeto de branqueamento de capitais)?»

26.

Depois de o Tribunal de Justiça ter colocado uma questão relativa à eventual incidência da desistência do recurso de LG para o resto do processo, o órgão jurisdicional de reenvio confirmou, por carta que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de janeiro de 2020, que, tendo em conta os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela parte civil, essa desistência não tinha quaisquer consequências para a pertinência do pedido de decisão prejudicial. A análise desses recursos obrigaria o órgão jurisdicional de reenvio a pronunciar‑se sobre a existência dos elementos relativos à adequação entre os factos denunciados e os factos imputados a LG, bem como a MH, sobre a ilegalidade e a imputabilidade, no que respeita à infração de branqueamento de capitais, pelo que qualquer solução quanto ao mérito depende da resposta a dar pelo Tribunal de Justiça.

27.

Foram apresentadas observações escritas pelo Ministério Público, pelos Governos checo, polaco e romeno, bem como pela Comissão Europeia.

28.

Concluída a fase escrita do processo, o Tribunal de Justiça considerou que dispunha de informações suficientes para se pronunciar sem audiência de alegações, nos termos do artigo 76.o, n.o 2, do seu Regulamento de Processo.

V. Análise

A.   Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

29.

Nas suas observações escritas, o Governo romeno invoca três fundamentos de inadmissibilidade. Em primeiro lugar, há dúvidas quanto à admissibilidade do pedido devido à desistência do recurso de LG. Em segundo lugar, não se pode afirmar que o Tribunal de Justiça dispõe de todas as informações necessárias para responder à questão. Em terceiro lugar, não existem interpretações divergentes na jurisprudência nacional, pelo que o acórdão do Tribunal de Justiça não seria útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

30.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir. No âmbito desta cooperação, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se. Daqui resulta que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro factual e regulamentar que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido formulado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 8 ).

31.

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial e da resposta do órgão jurisdicional de reenvio à pergunta do Tribunal de Justiça que continua pendente um litígio no órgão jurisdicional de reenvio e que, para a resolução desse litígio, esse órgão jurisdicional terá de se pronunciar, em substância, sobre a questão de saber se o sujeito ativo do crime de branqueamento de capitais pode ser o da infração principal, à luz da Diretiva 2005/60. Por conseguinte, não se afigura que a interpretação do direito da União solicitada não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou que o problema seja de natureza hipotética.

32.

Importa salientar, além disso, que os factos apresentados no pedido do órgão jurisdicional de reenvio permitem compreender o que está em causa e, em qualquer caso, permitiram aos Governos dos Estados‑Membros e à Comissão apresentar observações nos termos do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Por último, pode igualmente acrescentar‑se que não cabe ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um reenvio prejudicial, pronunciar‑se sobre a realidade ou sobre o alcance das diferentes interpretações do direito nacional invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

33.

Nestas circunstâncias, considero que o pedido de decisão prejudicial deve ser considerado admissível.

B.   Análise da questão submetida

34.

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a pessoa que comete um ato que constitui branqueamento de capitais, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60, pode ser o autor da infração da qual provêm os capitais branqueados. Proponho‑me agora examinar esta problemática.

1. Observação preliminar sobre o âmbito de aplicação da Diretiva 2005/60

35.

Antes de mais, cumpre observar que, embora, é certo, a Diretiva 2005/60 assente numa dupla base jurídica [a saber, o artigo 47.o, n.o 2, CE (atual artigo 53.o, n.o 1, TFUE), e o artigo 95.o CE (atual artigo 114.o TFUE)], e vise igualmente assegurar o bom funcionamento do mercado interno, tem, porém, por objetivo principal a prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, como resulta tanto do seu título como do seu preâmbulo ( 9 ). Neste contexto, é manifesto que, embora o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2005/60 preveja que os Estados‑Membros devem assegurar a proibição do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, esta disposição não prevê a obrigação de aplicarem sanções penais pelos comportamentos definidos no artigo 1.o, n.o 2, da mesma diretiva.

36.

Com efeito, as disposições desta diretiva não são medidas de natureza penal, contrariamente à Diretiva 2018/1673. Pelo contrário, como foi acima referido, as disposições da Diretiva 2005/60 têm um caráter eminentemente preventivo, pois visam criar, a partir de uma perspetiva baseada no risco, um conjunto de medidas preventivas e dissuasivas para lutar eficazmente contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo e para preservar a solidez e integridade do sistema financeiro. Estas medidas destinam‑se a evitar ou, pelo menos, a entravar, o mais possível, essas atividades, estabelecendo, para esse efeito, barreiras em todos os estádios que essas atividades podem comportar, contra os branqueadores de capitais e os que financiam o terrorismo ( 10 ). Embora imponha a proibição de certos comportamentos que constituem branqueamento de capitais, a Diretiva 2005/60 permite, todavia, aos Estados‑Membros escolherem livremente os meios pelos quais essa proibição será posta em prática. Não exige, enquanto tal, que os Estados‑Membros criminalizem esses comportamentos, embora, evidentemente, estes sejam livres — pelo menos em princípio — de o fazerem.

37.

Nestas circunstâncias, é manifesto que a Diretiva 2005/60 não exige que os Estados‑Membros apliquem sanções penais ao autor do branqueamento de capitais, conforme definido no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60 — a saber, a conversão ou transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem‑se às consequências jurídicas dos seus atos — quando seja igualmente o autor da infração principal.

38.

Assim sendo, cumpre recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto, os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte e, sendo caso disso, a sua génese ( 11 ). Todavia, todos estes fatores de interpretação levam‑me a concluir que, embora o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60 não exija uma sanção penal nas circunstâncias descritas no número anterior, também não se opõe à adoção de tal legislação penal pelos Estados‑Membros.

2. Quanto à possibilidade de os Estados‑Membros criminalizarem o branqueamento de capitais quando o autor desta infração seja igualmente o autor da infração principal

39.

Importa observar, em primeiro lugar, que a redação do artigo 1.o da Diretiva 2005/60 não proíbe expressamente os Estados‑Membros de adotarem uma legislação que criminalize a infração de branqueamento de capitais quando o seu autor seja igualmente o autor da infração principal.

40.

Com efeito, como já expliquei na minha observação preliminar, a única obrigação que incumbe aos Estados‑Membros por força do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2005/60 é a que [conjugada com o n.o 2, alínea a), do mesmo artigo] consiste em proibir «a conversão ou transferência de bens, com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa ou da participação numa atividade dessa natureza, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem‑se às consequências jurídicas dos seus atos». Embora a redação do artigo 1.o da Diretiva 2005/60 não exija, portanto, que os Estados‑Membros criminalizem os comportamentos descritos no n.o 2, alínea a), não os impede de o fazerem, independentemente de o autor desses comportamentos ser igualmente o autor da infração principal da qual provêm os capitais branqueados.

41.

Além disso, não se pode ignorar que o artigo 5.o da Diretiva 2005/60 admite expressamente a possibilidade de os Estados‑Membros aprovarem ou manterem em vigor, no domínio abrangido pela mesma diretiva, disposições mais rigorosas para impedir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Como o Tribunal de Justiça já declarou, esta disposição consta do respetivo capítulo I, sob a epígrafe «Objeto, âmbito e definições», e aplica‑se, portanto, a todas as disposições no domínio regulado pela Diretiva 2005/60 destinadas a prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo ( 12 ).

42.

Por último, contrariamente à opinião expressa pelo órgão jurisdicional de reenvio, não penso que a precisão feita no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60, segundo a qual o autor de branqueamento de capitais, conforme definido nesta disposição, deve ter «conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa», esteja necessariamente em contradição com esta interpretação. Com efeito, a natureza precisa desta proibição indica, em si mesma, que o legislador da União se esforçou por assegurar que só eram proibidos os atos intencionais, conforme especificados no primeiro período do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2005/60. Embora este requisito esteja necessariamente preenchido quando o autor é a mesma pessoa, é útil tê‑lo presente nos casos em que as duas infrações — a saber, a infração principal e o crime de branqueamento de capitais — são cometidas por duas pessoas distintas. Além disso, gostaria de observar, de passagem, que o legislador da União considerou adequado manter esta precisão no artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 2015/849 e no artigo 3.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2018/1673, apesar de, nesta última diretiva, os Estados‑Membros serem, pela primeira vez, expressamente obrigados a tipificar a infração penal de autobranqueamento de capitais.

43.

Em segundo lugar, a criminalização do autobranqueamento é igualmente conforme aos objetivos da Diretiva 2005/60. Com efeito, como já foi referido, esta diretiva baseia‑se, em particular, no artigo 95.o CE (atual artigo 114.o TFUE), que respeita ao bom funcionamento do mercado interno. Isto explica‑se facilmente pelo facto de o branqueamento de capitais ser suscetível de distorcer os mercados financeiros e a concorrência ( 13 ). Nesse contexto, o autobranqueamento pode, com efeito, ser considerado um comportamento anticoncorrencial e a sua criminalização pode proteger o funcionamento do mercado interno ( 14 ). Repito, portanto, que a Roménia era livre, em princípio, de prever essa infração no seu direito nacional.

44.

Em terceiro lugar, há que salientar que a Diretiva 2005/60 foi adotada num contexto internacional, para aplicar e tornar obrigatórias na União as recomendações do «Grupo de Ação Financeira Internacional» (GAFI), que é o principal organismo internacional de combate ao branqueamento de capitais ( 15 ). Como se indica expressamente no considerando 5 da Diretiva 2005/60, «as recomendações do GAFI foram profundamente revistas e alargadas em 2003 [e] deve ser assegurado o alinhamento da presente diretiva com esses novos padrões internacionais».

45.

Todavia, em conformidade com a primeira destas recomendações do GAFI, os países podem prever que a infração de branqueamento de capitais não se aplique às pessoas que tenham cometido a infração principal, quando os princípios fundamentais do seu direito interno o exijam. Atendendo à formulação desta possibilidade, a não criminalização do autobranqueamento deve ser considerada uma exceção. Nestas circunstâncias, a inexistência de uma referência expressa à proibição do autobranqueamento — como na Diretiva 2005/60 — deve ser considerada uma autorização (tácita) de criminalizar tais comportamentos ( 16 ).

46.

Além disso, neste contexto internacional, não se pode ignorar a Convenção de Estrasburgo, que foi transposta para a ordem jurídica da União pela Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho. A este respeito, pode observar‑se que o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), da Convenção de Estrasburgo é redigido de forma análoga à do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60 e que — como as Recomendações do GAFI preveem — o artigo 6.o, n.o 2, alínea b), da Convenção de Estrasburgo não proíbe a criminalização do autobranqueamento, mas indica, pelo contrário, que pode ser previsto que as infrações enumeradas no artigo 6.o, n.o 1, da mesma convenção não se apliquem aos autores da infração principal ( 17 ). Contudo, o artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2001/500/JAI do Conselho prevê expressamente que os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que não sejam feitas ou mantidas quaisquer reservas ao artigo 6.o da Convenção de Estrasburgo, na medida em que estejam em causa infrações graves.

47.

Por conseguinte, à luz das considerações anteriores, concluo que, tendo em conta a redação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60, o objetivo prosseguido por esta diretiva e os contextos internacional e legislativo em que a mesma se insere, o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à adoção de uma legislação nacional que preveja que a pessoa que cometeu a infração principal possa igualmente ser condenada pelo branqueamento dos capitais que provêm dessa infração principal.

48.

Atendendo à redação do artigo 1.o da Diretiva 2005/60, e embora se trate, em última análise, de uma matéria da competência dos Estados‑Membros, não vejo por que razão um Estado‑Membro não deva optar por transpor a obrigação prevista nessa disposição através de normas nacionais que prevejam esse tipo de infrações penais.

49.

Resta verificar, contudo, se esta interpretação não viola o princípio ne bis in idem, como sustenta, em particular, o órgão jurisdicional de reenvio.

3. Considerações sobre o princípio ne bis in idem

50.

É pacífico que a Lei n.o 656/2002, relativa à Prevenção e à Punição do Branqueamento de Capitais, transpõe para o direito romeno a Diretiva 2005/60. O artigo 29.o, n.o 1, desta lei constitui, nomeadamente, a aplicação do artigo 1.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2005/60 e, por conseguinte, do direito da União, para efeitos do artigo 51.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Por conseguinte, o direito romeno tem de respeitar o direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta, que dispõe que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei» ( 18 ).

51.

Como o Tribunal de Justiça afirmou claramente, resulta da própria redação do artigo 50.o da Carta que este proíbe julgar ou punir penalmente a mesma pessoa mais de uma vez pelo mesmo delito. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, o critério relevante para apreciar a existência de uma mesma infração é o da identidade dos factos materiais, entendidos no sentido da existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si e que levaram à absolvição ou à condenação definitiva da pessoa em causa ( 19 ).

52.

Todavia, no que respeita à criminalização do branqueamento de capitais, não penso que o ato constitutivo do crime de branqueamento, conforme previsto no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60, e o facto material da infração principal — que é a sua condição prévia — sejam idênticos no sentido indicado no número anterior, ou seja, «um facto que é, em substância, o mesmo» ( 20 ). Com efeito, a partir do momento em que os factos constitutivos da infração diferem, mesmo que sejam cometidos por uma só pessoa sobre o mesmo objeto, ou a partir dele, nada obsta a que sejam alvo de procedimentos penais separados ( 21 ).

53.

Enquanto a mera detenção ou utilização de bens que provêm de uma atividade criminosa é referida no artigo 1.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva 2005/60, o branqueamento de capitais, contudo, conforme definido nas alíneas a) e b) desta disposição, diz respeito à conversão ou transferência de bens com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita e à dissimulação ou encobrimento da verdadeira natureza, origem, localização, utilização, circulação ou propriedade de tais bens. No que respeita ao artigo 1.o, n.o 2, alíneas a), e b), da Diretiva 2005/60, a atividade de branqueamento de capitais implica assim, com efeito, a conversão e a transferência de bens obtidos ilegalmente, bem como a sua dissimulação e o seu encobrimento através do sistema financeiro. Enquanto tais, estas atividades constituem, portanto, claramente um ato criminoso adicional distinguível da infração principal e que, além disso, causa danos adicionais ou de tipo diferente dos danos já causados pela infração principal.

54.

Isto é ilustrado no contexto da evasão fiscal. Pode ser cometida uma infração através do encobrimento ilícito do rendimento tributável. Pode ser cometida outra infração — e, sobretudo, diferente — quando o mesmo contribuinte tenta branquear o produto dessa infração através do sistema financeiro.

55.

É esta, aliás, a opção restritiva seguida pelo legislador da União em matéria de criminalização do autobranqueamento. Com efeito, pode observar‑se de passagem que, embora a mera aquisição, detenção ou utilização de bens provenientes de uma atividade criminosa deva agora ser punida como infração penal, por força do artigo 3.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2018/1673, esses atos estão excluídos da obrigação de criminalização do autobranqueamento prevista no artigo 3.o, n.o 5, da mesma diretiva ( 22 ).

56.

Por conseguinte, à luz das considerações precedentes, confirmo a conclusão de que, sem violar o princípio ne bis in idem, o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que a pessoa que comete o ato constitutivo da infração de branqueamento de capitais seja a mesma pessoa que comete a infração principal.

VI. Conclusão

57.

Assim, à luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pela Curtea de Apel Brașov (Tribunal de Recurso de Brașov, Roménia) do seguinte modo:

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê que a pessoa que comete o ato constitutivo do crime de branqueamento de capitais pode ser a mesma pessoa que comete a infração principal.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO 2015, L 141, p. 73.

( 3 ) JO 2005, L 309, p. 15.

( 4 ) Publicada no Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 904, de 12 de dezembro de 2002.

( 5 ) V., neste sentido, Acórdão de 25 de abril de 2013, Jyske Bank Gibraltar (C‑212/11, EU:C:2013:270, n.o 38).

( 6 ) JO 2001, L 182, p. 1.

( 7 ) JO 2018, L 284, p. 22.

( 8 ) V., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 18 a 20), e de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, EU:C:2019:53, n.os 48 a 50).

( 9 ) V., neste sentido, Acórdão de 25 de abril de 2013, Jyske Bank Gibraltar (C‑212/11, EU:C:2013:270, n.o 46).

( 10 ) V., neste sentido, Acórdão de 17 de janeiro de 2018, Corporate Companies (C‑676/16, EU:C:2018:13, n.o 26).

( 11 ) V., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság Dél‑alföldi Regionális Igazgatóság, (C‑924/19 PPU e C‑925/19 PPU, EU:C:2020:367, n.o 113).

( 12 ) V., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2016, Safe Interenvios (C‑235/14, EU:C:2016:154, n.o 78).

( 13 ) V., neste sentido, Hyttinen, T., «A European Money Laundering Curiosity: Self‑Laundering in Finland», vol. 8, EuCLR, Nomos, 2018, pp. 268‑293, em especial p. 273.

( 14 ) Quanto a esta questão, v. Maugeri, A.‑M., «Self‑laundering of the proceeds of tax evasion in comparative law: Between effectiveness and safeguards», vol. 9(1), New Journal of European Criminal Law, SAGE Journals, 2018, pp. 83‑108, em especial p. 84 e referências na nota 5.

( 15 ) V., neste sentido, Acórdão de 25 de abril de 2013, Jyske Bank Gibraltar (C‑212/11, EU:C:2013:270, n.o 46), e considerando 5 da Diretiva 2005/60.

( 16 ) V., neste sentido, Hyttinen, T., «A European Money Laundering Curiosity: Self‑Laundering in Finland», vol. 8, EuCLR, 2018, pp. 268‑293, em especial p. 277.

( 17 ) O mesmo foi previsto no artigo 9.o, n.os 1 e 2, da Convenção de Varsóvia em 2005.

( 18 ) V., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 21).

( 19 ) V., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.os 34 e 35).

( 20 ) Tradução livre (na língua original «un fait en substance le même»). V. Michiels, O., «Le cumul de sanctions: le principe non bis in idem à l’aune de la jurisprudence de la Cour de justice et de la Cour européenne des droits de l’homme», in L’Europe au présent ! Liber amicorum Melchior Wathelet, Bruylant, 2018, pp. 555‑578, em especial p. 565.

( 21 ) V., neste sentido, Beaussonie, G., «Quelques observations à partir de (et non sur) l’“auto‑blanchiment”», n.o 4, Actualité Juridique Pénale, 2016, p. 192.

( 22 ) V., igualmente, considerando 11 da Diretiva 2018/1673 e Explicação do artigo 3.o da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal [COM(2016) 826 final].