CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 8 de outubro de 2020 ( 1 )

Processo C‑221/19

AV

sendo interveniente

Pomorski Wydział Zamiejscowy Departamentu Do Spraw Przestępczości Zorganizowanej i Korupcji Prokuratury Krajowej

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdansk, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2008/909/JAI — Artigo 8.o, n.os 2 a 4, artigo 17.o, n.o 1, e artigo 19.o — Tomada em consideração, por ocasião de um processo de sentença global, de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro e cuja execução foi transferida para o Estado‑Membro onde essa sentença será proferida — Decisão‑Quadro 2008/675/JAI — Âmbito de aplicação — Artigo 3.o, n.o 3 — Interferência da tomada em consideração de condenações anteriores nestas condenações»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal ( 2 ), bem como do artigo 8.o, n.os 2 a 4, do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia ( 3 ), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 ( 4 ).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo pendente no Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdańsk, Polónia) com vista à prolação, por este, de uma sentença global contra AV que abranja, nomeadamente, uma pena privativa de liberdade proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e em execução na Polónia.

3.

Um processo de sentença global permite aplicar uma pena única com base em diversas penas aplicadas em várias decisões de condenação. Quando tais decisões emanam de órgãos jurisdicionais de diferentes Estados‑Membros, a tramitação de um processo de sentença global suscita interrogações quanto à sua compatibilidade com as Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909.

4.

Este processo oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de esclarecer a articulação das regras estabelecidas por estas duas decisões‑quadro. Mais especificamente, trata‑se de determinar se a tomada em consideração de uma condenação anterior proferida num Estado‑Membro pode ocorrer no âmbito de um processo de sentença global, como o que está em causa no processo principal, quando a execução dessa condenação anterior tiver sido transferida para o Estado‑Membro no qual a sentença global deve ser proferida.

5.

Nas presentes conclusões, proporei ao Tribunal de Justiça que declare que o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, conjugado com o seu considerando 14, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe, em princípio, a que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro tome em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal que consiste num processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e cuja execução foi transferida para o Estado‑Membro em que decorre esse processo, em conformidade com as regras estabelecidas na Decisão‑Quadro 2008/909. No entanto, incumbe ao órgão jurisdicional em que decorre um processo de sentença global verificar, no termo de um exame casuístico, em função da situação concreta, que esse procedimento não tem por efeito interferir com essas condenações anteriores ou qualquer decisão relativa à sua execução no Estado‑Membro em que decorre o referido processo, nem as revogar ou reexaminar. Em especial, a tramitação de um processo de sentença global não deve conduzir à aplicação de uma pena global inferior à pena inicial resultante da decisão de condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro nem à anulação dos efeitos dessa decisão.

6.

Sugerirei igualmente ao Tribunal de Justiça que declare que o artigo 8.o, o artigo 17.o, n.o 1, e o artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado‑Membro aplique um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, desde que este respeite a obrigação de princípio, que impende sobre a autoridade competente do Estado‑Membro de execução, de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado‑Membro de emissão. A duração ou a natureza da condenação inicial objeto de um processo de sentença global só podem, sendo caso disso, ser adaptadas antes da prolação dessa sentença nos estritos limites previstos no artigo 8.o, n.os 2 a 4, desta mesma decisão‑quadro.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Decisão‑Quadro 2008/675

7.

Os considerandos 2, 3, 6, 7 e 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 enunciam:

«(2)

Em 29 de novembro de 2000 e em conformidade com as conclusões do Conselho Europeu de Tampere, o Conselho aprovou o Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais […] estabelecendo que a “aprovação de um ou mais instrumentos jurídicos que consignem o princípio segundo o qual o juiz de um Estado‑Membro deve estar em condições de tomar em consideração as decisões penais transitadas em julgado proferidas nos outros Estados‑Membros para apreciar os antecedentes criminais do delinquente, para ter em conta a reincidência e para determinar a natureza das penas e as regras de execução suscetíveis de serem aplicadas”.

(3)

A presente decisão‑quadro destina‑se a instituir a obrigação mínima de os Estados‑Membros tomarem em consideração condenações proferidas noutros Estados‑Membros. […]

[…]

(6)

Em contraste com outros instrumentos, a presente decisão‑quadro não se destina a executar num Estado‑Membro decisões judiciais tomadas noutros Estados‑Membros, mas sim a permitir que se tirem consequências de uma condenação anterior proferida num Estado‑Membro por ocasião de um novo procedimento penal noutro Estado‑Membro, na medida em que são tiradas as mesmas consequências de condenações nacionais anteriores nos termos da lei desse outro Estado‑Membro.

Por conseguinte, a presente decisão‑quadro não impõe a obrigação de ter em conta essas condenações anteriores, por exemplo, nos casos em que a informação obtida ao abrigo dos instrumentos aplicáveis não seja suficiente, em que não teria sido possível uma condenação nacional pelo facto que deu lugar à anterior condenação, ou em que a pena anteriormente aplicada não se encontre prevista no sistema jurídico nacional.

(7)

Os efeitos atribuídos às decisões de condenação proferidas noutro Estado‑Membro deverão ser equivalentes aos das decisões nacionais, quer se trate da fase que antecede o processo penal, quer do processo penal em si, quer ainda da fase de execução da pena.

[…]

(14)

A interferência com uma sentença ou a sua execução abrangem, nomeadamente, as situações em que, nos termos do direito nacional do segundo Estado‑Membro, a pena imposta por uma sentença anterior deva ser absorvida por outra pena ou nela incluída, devendo então ser efetivamente executada, na medida em que a primeira sentença não tenha ainda sido executada ou a sua execução não tenha sido transferida para o segundo Estado‑Membro.»

8.

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675, esta «tem por objetivo definir as condições em que, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro contra determinada pessoa, são tidas em consideração condenações anteriores contra ela proferidas noutro Estado‑Membro por factos diferentes».

9.

O artigo 3.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Tomada em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal, de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro», tem a seguinte redação:

«1.   Cada Estado‑Membro assegura que, por ocasião de um procedimento penal contra determinada pessoa, as condenações anteriores contra ela proferidas por factos diferentes noutros Estados‑Membros, sobre as quais tenha sido obtida informação ao abrigo dos instrumentos aplicáveis em matéria de auxílio judiciário mútuo ou por intercâmbio de informação extraída dos registos criminais, sejam tidas em consideração na medida em que são condenações nacionais anteriores e lhes sejam atribuídos efeitos jurídicos equivalentes aos destas últimas, de acordo com o direito nacional.

2.   O n.o 1 é aplicável na fase que antecede o processo penal, durante o processo penal propriamente dito ou na fase de execução da condenação, nomeadamente no que diz respeito às regras processuais aplicáveis, inclusive as que dizem respeito à prisão preventiva, à qualificação da infração, ao tipo e ao nível da pena aplicada, ou ainda às normas que regem a execução da decisão.

3.   A tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento.

4.   Em conformidade com o n.o 3, o n.o 1 não se aplica na medida em que, se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional proferida no Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento, a tomada em consideração dessa condenação teria tido por efeito, de acordo com o direito nacional desse Estado‑Membro, interferir com a condenação anterior ou com qualquer outra decisão relativa à sua execução, ou levar à sua revogação ou ao seu reexame.

5.   Se a infração que levou à instauração do novo procedimento tiver sido cometida antes de ser proferida ou integralmente executada a condenação anterior, o disposto nos n.os 1 e 2 não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais ao imporem sentenças, caso a aplicação dessas normas a condenações estrangeiras limite o juiz na imposição da pena no âmbito do novo procedimento.

Os Estados‑Membros asseguram, contudo, a possibilidade de, nesses casos, os seus tribunais tomarem em consideração as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros.»

2. Decisão‑Quadro 2008/909

10.

O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2008/909 dispõe:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

a)

“Sentença”, uma decisão transitada em julgado ou uma ordem de um tribunal do Estado de emissão que imponha uma condenação a uma pessoa singular;

b)

“Condenação”, qualquer pena ou medida de segurança privativa de liberdade, proferida por um período determinado ou indeterminado, em virtude da prática de uma infração penal, no âmbito de um processo penal;

c)

“Estado de emissão”, o Estado‑Membro no qual é proferida uma sentença, na aceção da presente decisão‑quadro;

d)

“Estado de execução”, o Estado‑Membro para o qual é transmitida uma sentença para efeitos do seu reconhecimento e execução.»

11.

O artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2008/909 tem a seguinte redação:

«1.   A presente decisão‑quadro tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado‑Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença e executa a condenação imposta.

[…]

3.   A presente decisão‑quadro aplica‑se apenas ao reconhecimento de sentenças e à execução de condenações, na aceção da presente decisão‑quadro. […]»

12.

Nos termos do artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2008/909, sob a epígrafe «Reconhecimento da sentença e execução da condenação»:

«1.   A autoridade competente do Estado de execução deve reconhecer a sentença enviada nos termos do artigo 4.o e segundo os procedimentos previstos no artigo 5.o e tomar imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação, exceto se a autoridade competente decidir invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento e da execução previstos no artigo 9.o

2.   Caso a duração da condenação seja incompatível com a legislação nacional do Estado de execução, a autoridade competente do Estado de execução só pode adaptá‑la se essa condenação exceder a pena máxima prevista na sua legislação nacional para infrações semelhantes. A condenação adaptada não pode ser inferior à pena máxima prevista na legislação nacional do Estado de execução para infrações semelhantes.

3.   Caso a natureza da condenação seja incompatível com a legislação nacional do Estado de execução, a autoridade competente desse Estado pode adaptá‑la à pena ou medida prevista na sua legislação nacional para infrações semelhantes. Essa pena ou medida deve corresponder tão exatamente quanto possível à condenação imposta no Estado de emissão, o que significa, por conseguinte, que a condenação não pode ser convertida em sanção pecuniária.

4.   A condenação adaptada não pode agravar, pela sua natureza ou duração, a condenação imposta no Estado de emissão.»

13.

O artigo 17.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Lei aplicável à execução», dispõe, no seu n.o 1:

«A execução de uma condenação é regida pela legislação nacional do Estado de execução. As autoridades do Estado de execução têm competência exclusiva para, sob reserva do disposto nos n.os 2 e 3, decidir das regras de execução e estabelecer todas as medidas com ela relacionadas, nomeadamente no que se refere às condições aplicáveis à libertação antecipada ou à liberdade condicional.»

14.

Nos termos do artigo 19.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Amnistia, perdão e revisão da sentença»:

«1.   A amnistia e o perdão podem ser concedidos tanto pelo Estado de emissão como pelo Estado de execução.

2.   Apenas o Estado de emissão pode decidir de qualquer pedido de revisão da sentença que impõe a condenação a executar ao abrigo da presente decisão‑quadro.»

B.   Direito polaco

15.

O artigo 85.o, § 4, da ustawa — Kodeks karny (Lei que Aprova o Código Penal) ( 5 ), de 6 de junho de 1997, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, tem a seguinte redação:

«A pena única não abrange as penas fixadas nas sentenças a que se refere o artigo 114.oa.»

16.

O artigo 114.oa do Código Penal dispõe:

«§ 1.   Também se considera sentença de condenação a sentença, transitada em julgado, pela comissão de uma infração, proferida por um tribunal competente para conhecer de processos penais de um Estado‑Membro da União Europeia, salvo se, face à lei penal polaca, o ato não constituir crime, o autor não puder ser punido ou tiver sido aplicada uma pena não prevista na lei.

§ 2.   Nos casos de prolação da sentença de condenação a que se refere o § 1, nos processos:

1)

Em que se aplica uma nova lei, que entrou em vigor após a prolação da sentença condenatória,

2)

Em que a sentença é revogada,

aplica‑se a lei vigente no local em que a sentença foi proferida […]

§ 3.   Não se aplica o disposto no § 1, se a informação obtida no registo criminal ou proveniente do tribunal do Estado‑Membro da União […] não for suficiente para decretar uma sentença condenatória ou a pena fixada seja perdoada no Estado em que a sentença condenatória foi proferida.»

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

17.

Resulta da decisão de reenvio que AV foi condenado em quatro sentenças individuais, três das quais foram proferidas por órgãos jurisdicionais polacos e uma por um órgão jurisdicional alemão.

18.

Em 31 de julho de 2018, AV apresentou no órgão jurisdicional de reenvio um pedido de prolação de uma sentença global a seu respeito. Segundo esse órgão jurisdicional, duas condenações são executórias, a saber, por um lado, a condenação proferida pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo, Alemanha), por Sentença de 15 de fevereiro de 2017, que AV deve cumprir de 1 de setembro de 2016 a 29 de novembro de 2021, e, por outro, a condenação proferida pelo órgão jurisdicional de reenvio, por Sentença de 24 de fevereiro de 2010, que AV deve cumprir de 29 de novembro de 2021 a 30 de março de 2030. A sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo) foi reconhecida para efeitos da sua execução na Polónia por Despacho do órgão jurisdicional de reenvio de 12 de janeiro de 2018. Esse órgão jurisdicional esclarece que, nesse despacho, a qualificação jurídica dos atos foi considerada conforme com o direito polaco, que foi referido que a pena global de privação da liberdade de cinco anos e três meses era executória e que se trata de uma pena idêntica, quanto à sua duração, à pena aplicada pela sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo).

19.

No seu pedido de prolação de uma sentença global, AV alegou que, uma vez que a sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo) foi reconhecida para efeitos da sua execução na Polónia, estavam preenchidos os requisitos para que fosse proferida uma sentença global e que esta sentença devia ser proferida segundo o princípio da subsunção plena.

20.

Em apoio do seu pedido, AV salientou a existência de uma sentença global, proferida pelo órgão jurisdicional de reenvio em 29 de janeiro de 2014, que apensou uma condenação proferida por Sentença do Landgericht Göttingen (Tribunal Regional de Göttingen, Alemanha) de 13 de março de 2012, reconhecida para efeitos da sua execução na Polónia, a uma condenação proferida por sentença do órgão jurisdicional de reenvio. Esclarece que essa sentença global transitou em julgado.

21.

Tendo em conta estes elementos, o órgão jurisdicional de reenvio refere estar confrontado com o problema de saber se as disposições relevantes das Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909 se opõem a que uma sentença global proferida na Polónia possa abranger condenações proferidas neste Estado‑Membro e condenações proferidas noutro Estado‑Membro, reconhecidas para efeitos da sua execução na Polónia.

22.

Por outro lado, órgão jurisdicional de reenvio explica que, por força do artigo 85.o, § 4, do Código Penal, conjugado com o artigo 114.oa do mesmo código, no ordenamento jurídico polaco, a sentença global não abrange as condenações proferidas por um órgão jurisdicional competente em matéria penal noutro Estado‑Membro.

23.

No que respeita ao processo de sentença global previsto no direito polaco, o órgão jurisdicional de reenvio explica que a sentença que põe termo a esse processo se encontra na fronteira entre uma decisão de mérito e a execução da pena e que abrange condenações proferidas em sentenças transitadas em julgado, com o objetivo de «corrigir» a reação jurídica às infrações cometidas, que podiam ser objeto de um procedimento único, e, assim, «aplicar uma punição racional», sem que a sentença global constitua uma ingerência nas sentenças individuais em causa. Especificamente, a sentença global não prejudica a determinação da culpa do autor de uma determinada infração, tal como figura na decisão de mérito.

24.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a tomada em consideração, no âmbito de uma sentença global, por um lado, das condenações proferidas num Estado‑Membro, que são reconhecidas para execução noutro Estado‑Membro, e, por outro, das condenações proferidas nesse Estado‑Membro permite apreciar o conjunto da atividade delituosa da pessoa que foi alvo de várias condenações. Isso contribui para a construção de um «espaço de justiça comum».

25.

Por outro lado, na medida em que uma sentença proferida num Estado‑Membro é reconhecida para efeitos da sua execução noutro Estado‑Membro, em conformidade com o previsto na Decisão‑Quadro 2008/909, há que considerar, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que essa sentença se torna o fundamento de todas as decisões processuais e de execução que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro no qual deve ser executada devem adotar. Assim, uma sentença reconhecida para efeitos de execução noutro Estado‑Membro integra o ordenamento jurídico desse Estado‑Membro e deve ser executada em conformidade com as regras desse Estado‑Membro, o que, aliás, decorre claramente do n.o 1 do artigo 17.o da Decisão‑Quadro 2008/909.

26.

Por último, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a impossibilidade de proferir uma sentença global que tenha em conta condenações proferidas num Estado‑Membro e reconhecidas para efeitos da sua execução noutro Estado‑Membro significaria que um cidadão condenado várias vezes num único Estado‑Membro ficaria numa situação mais favorável do que um cidadão condenado em diferentes Estados‑Membros. Por conseguinte, trata‑se de garantir a nível da União uma igualdade de tratamento dos cidadãos que se encontram numa situação semelhante.

27.

Nestas condições, o Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdańsk) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro [2008/675] que dispõe que [“a] tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento[”], ser interpretado no sentido de que se considera uma interferência [com essas condenações], na aceção desse preceito, não só a prolação de uma sentença de condenação numa pena global que abrange uma pena fixada numa sentença de condenação proferida num Estado[‑Membro], mas também a prolação de uma sentença que fixa uma pena cuja execução foi transferida para outro Estado[‑Membro], e que nele é executada juntamente com uma sentença proferida nesse outro Estado, no contexto de uma sentença de condenação numa pena global? proferida nesse outro Estado, no contexto de uma sentença de condenação numa pena global?

2)

À luz do disposto na Decisão‑Quadro [2008/909] — no contexto do processo de exequatur — mais precisamente do [seu] artigo 8.o, n.os 2 a 4, e também do artigo 19.o […], que dispõe que [“a] amnistia e o perdão podem ser concedidos tanto pelo Estado de emissão como pelo Estado de execução[”] (n.o 1); [“a]penas o Estado de emissão pode decidir de qualquer pedido de revisão da sentença que impõe a condenação a executar ao abrigo da presente decisão‑quadro[”] (n.o 2), e do artigo 17.o, n.o 1, [primeiro] período, que estabelece que [“a] execução de uma condenação é regida pela legislação nacional do Estado de execução[”], é possível proferir uma sentença de condenação numa pena global que abranja penas fixadas numa sentença proferida num Estado[‑Membro], cuja execução foi transferida para outro Estado[‑Membro], e nele são executadas juntamente com uma sentença proferida nesse outro Estado, no contexto de uma sentença de condenação numa pena global?»

28.

Os Governos polaco, checo, espanhol e húngaro e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Os Governos polaco, checo e espanhol e a Comissão responderam no prazo fixado às questões para resposta escrita colocadas pelo Tribunal de Justiça.

IV. Análise

29.

O órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a interpretar, por um lado, o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 e, por outro, o artigo 8.o, n.os 2 a 4, o artigo 17.o, n.o 1, primeiro período, e o artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909.

30.

No essencial, esse órgão jurisdicional pretende saber se estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro no qual deve ser executada, em conformidade com a Decisão‑Quadro 2008/909, uma pena privativa de liberdade aplicada por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, profira uma sentença global que abrange penas aplicadas por órgãos jurisdicionais desses dois Estados‑Membros.

31.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende ser esclarecido sobre a interpretação das referidas disposições, precisando que o artigo 85.o, § 4, do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 114.oa do mesmo código, exclui a prolação de uma sentença global se esta abranger uma condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro.

32.

Antes de se pronunciar sobre a questão de saber se uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro deve ou não ser tomada em consideração por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ao qual foi submetido um pedido de cumulação de penas, importa apresentar algumas observações sobre este tipo de processo.

A.   Observações preliminares sobre a cumulação de penas

33.

De um modo geral, a cumulação de penas, sob a forma de um processo de sentença global na Polónia, é aplicável em caso de concurso real de infrações. O concurso real de infrações abrange a situação em que uma pessoa comete diversas infrações que não estão separadas por uma condenação transitada em julgado. A pessoa em causa pode ser julgada por estes diferentes factos no âmbito de processos distintos que podem, sendo caso disso, decorrer em órgãos jurisdicionais de diferentes Estados‑Membros. Nesse caso, a cumulação de penas permite assegurar a unidade de tratamento entre a hipótese em que as infrações em concurso são julgadas no decurso do mesmo processo e aquela em que são julgadas separadamente.

34.

A cumulação das penas iniciais consiste em aplicar uma pena única cujo quantum corresponde à pena inicial prevista para a infração punida mais gravemente, que vai assim «absorver» as penas iniciais previstas para as outras infrações, analisadas como estando incluídas na pena mais grave. A pessoa condenada só vai cumprir esta pena. Trata‑se de uma ficção jurídica que permite considerar que todas as penas são, assim, executadas concomitante e simultaneamente. A cumulação de penas permite, portanto, evitar o cúmulo puro e simples das penas iniciais, ou cúmulo material, que consiste em aplicar todas as penas relativas a cada uma das infrações em concurso, executando‑as então separadamente e de forma cumulativa. Esta cumulação pode ser proferida quando são julgadas diversas infrações quer no âmbito de um processo único, pela sentença de condenação, quer no âmbito de processos distintos, num processo como o da sentença global.

35.

Ao evitar a sua soma matemática, a cumulação de penas é um mecanismo que permite reduzir a duração das penas que uma pessoa que cometeu diversas infrações em concurso e que, consequentemente, foi condenada várias vezes deverá finalmente cumprir. Este mecanismo vem, assim, corrigir os efeitos potencialmente contrários ao princípio da proporcionalidade que um cúmulo das penas pode ter. Assenta na ideia de que um cúmulo puramente matemático é contrário a uma das principais funções da pena no sistema repressivo moderno, a saber, favorecer a reinserção social das pessoas condenadas. Trata‑se da aplicação do princípio da individualização da pena que, ao invés do simples cúmulo matemático das penas aplicadas, permite ter em consideração o comportamento da pessoa condenada, a sua personalidade, bem como a sua situação material, familiar e social ( 6 ).

36.

Por conseguinte, pode afigurar‑se necessário corrigir os efeitos negativos do cúmulo na fase da execução de penas. Os órgãos jurisdicionais penais devem conservar, a este respeito, a sua liberdade de apreciação para que, no âmbito da execução das penas proferidas em processos separados, se alcance o equilíbrio entre uma repressão eficaz e o objetivo de reinserção social das pessoas condenadas. Nesta fase, já não se trata de apreciar se o arguido é ou não culpado de ter cometido uma infração e, em caso afirmativo, qual é a pena adaptada ao comportamento reprovado. No âmbito de um processo de cumulação de penas que ocorre na fase da sua execução no território de um único Estado‑Membro, a função do juiz consiste em determinar uma pena unitária que não entrave o imperativo de uma repressão eficaz e, através da necessária individualização, respeite simultaneamente o princípio da proporcionalidade das penas e a função de reinserção social da pena. O juiz dispõe assim de uma amplitude de ação, uma vez que lhe compete determinar o quantum da pena global. A este propósito, a sua apreciação pode depender de diferentes critérios, entre os quais os factos dos processos que deram origem às diferentes condenações, a personalidade do autor e a natureza, o número e a gravidade das infrações.

37.

Quando o direito interno prevê um processo de cumulação de penas, o juiz deve cumprir a sua função, independentemente de os processos penais terem sido tramitados num único ou em vários Estados‑Membros, segundo as regras e os limites impostos pela Decisão‑Quadro 2008/675. O juiz ao qual foi submetido um pedido de cumulação de penas está, assim, sujeito a uma restrição especial enunciada no artigo 3.o, n.o 3, desta decisão‑quadro, a saber, que a decisão de condenação proferida noutro Estado‑Membro não deve ser afetada pela decisão que deve tomar.

B.   O processo de sentença global

38.

A aplicação de uma pena global constitui a técnica jurídica utilizada no ordenamento jurídico polaco para tratar uma situação de concurso real de crimes, delitos e delitos fiscais.

39.

A pena global apresenta‑se sob a forma de uma pena especial proferida na sequência de decisões relativas à culpabilidade de uma pessoa em relação a diversas infrações e às penas aplicadas a cada uma delas (penas iniciais). É decidida pelo órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em função das penas iniciais. A aplicação de uma pena global está sujeita à condição de as penas iniciais em causa serem exequíveis e ainda não terem sido integralmente executadas. Consequentemente, uma pena já executada na sua totalidade não pode ser junta a outras penas com vista à aplicação de uma pena global.

40.

Incumbe ao órgão jurisdicional chamado a decidir apreciar o quantum da pena global, dentro dos limites fixados pela legislação nacional e em função de circunstâncias como, nomeadamente, o estado de saúde e o comportamento do interessado, bem como a proximidade entre as infrações a nível material, temporal e pessoal.

41.

Quando várias infrações deram origem a uma pluralidade de processos, pode ser aplicada uma pena global no âmbito de um novo processo que culmina numa sentença global, com base nas penas iniciais aplicadas pelas diferentes decisões de condenação. Este procedimento justifica‑se pelo facto de o autor de várias infrações objeto de vários processos não dever ser prejudicado em relação àquele cujas infrações são julgadas no âmbito de um único processo. A prolação de uma sentença global permite, portanto, restabelecer uma igualdade de tratamento entre estas duas situações. Por outro lado, o objeto da sentença global incide apenas sobre a determinação de uma pena global e não sobre a culpabilidade da pessoa.

42.

O presente processo diz respeito à situação em que o processo de sentença global tem por objeto penas aplicadas, uma, por um órgão jurisdicional polaco e, outra, por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. Ora, como mencionei anteriormente, a aplicação combinada do artigo 85.o, § 4, e do artigo 114.oa do Código Penal parece excluir a possibilidade de aplicar disposições relativas à pena global às decisões proferidas pelos tribunais de outros Estados‑Membros. Daqui resulta que, por força apenas do direito polaco, as penas iniciais aplicadas pelos órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros devem ser executadas cumulativamente com as penas aplicadas pelos órgãos jurisdicionais polacos. Por conseguinte, apenas com base no direito polaco, uma pessoa condenada noutro Estado‑Membro, cuja execução da pena é transferida para a Polónia em conformidade com a Decisão‑Quadro 2008/909, não pode invocar as regras nacionais relativas à sentença global e à aplicação de uma pena global, mas deve executar cumulativamente essa pena com as que lhe foram aplicadas na Polónia e não concomitantemente através de uma pena global.

43.

O desafio das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio é saber se a abordagem assim adotada no direito polaco é compatível com as regras impostas tanto pela Decisão‑Quadro 2008/675 como pela Decisão‑Quadro 2008/909. Mais especificamente, quando a execução da condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro é transferida para o Estado‑Membro em que decorre o processo de sentença global, como é que se devem articular as regras impostas pela Decisão‑Quadro 2008/675 e pela Decisão‑Quadro 2008/909? O órgão jurisdicional que tem de conhecer do processo de sentença global deve, nos termos do direito da União, tomar em consideração a condenação proferida noutro Estado‑Membro para efeitos de fixação de uma pena global, como faria se se tratasse de uma condenação nacional?

44.

Recordo que, no âmbito do processo de sentença global submetido ao órgão jurisdicional de reenvio, ficou provado que a Sentença proferida em 15 de fevereiro de 2017 pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo), que condenou AV numa pena privativa de liberdade, foi reconhecida para efeitos da sua execução na Polónia, por Despacho do órgão jurisdicional de reenvio de 12 de janeiro de 2018 e está aí em execução até 29 de novembro de 2021. O processo de sentença global que abrange esta condenação foi instaurado a pedido de AV em 31 de julho de 2018. É também executória a condenação proferida pelo órgão jurisdicional de reenvio por Sentença de 24 de fevereiro de 2010, que AV deve cumprir entre 29 de novembro de 2021 a 30 de março de 2030. Por outro lado, esse órgão jurisdicional refere já ter proferido, em 2014, uma sentença global que abrange, nomeadamente, uma pena privativa de liberdade proferida por outro órgão jurisdicional alemão e executada na Polónia. Entretanto, esta sentença global transitou em julgado.

45.

Como já referi anteriormente, no que respeita ao processo de sentença global previsto pelo direito polaco, o órgão jurisdicional de reenvio explica que a sentença que põe termo a este processo se encontra na fronteira entre uma decisão de mérito e a execução da pena e que abrange penas aplicadas em sentenças transitadas em julgado, com o objetivo de «corrigir» a reação jurídica às infrações cometidas, que podiam ter sido objeto de um procedimento único, e de, assim, «aplicar uma punição racional», sem que a sentença global constitua uma ingerência nas sentenças individuais em causa. Em especial, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a sentença global não prejudica a determinação da culpabilidade do autor de uma determinada infração, tal como figura na decisão de mérito.

46.

A este propósito, resulta do Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek ( 7 ), que o processo de sentença global não afeta a declaração de culpabilidade efetuada nas decisões anteriores, declaração essa que fica assim definitivamente adquirida ( 8 ). Em seguida, tal sentença altera o quantum da pena ou das penas aplicadas ( 9 ). Há, pois, que distinguir um processo deste tipo, relativo à determinação do nível de penas privativas de liberdade, de medidas relativas às modalidades de execução dessas penas ( 10 ).

47.

O Tribunal de Justiça salientou também que tal processo, que consiste designadamente em cumular uma ou várias penas decretadas anteriormente contra o interessado numa pena única, conduz necessariamente a um resultado mais favorável para este último. Com efeito, na sequência de várias condenações que tenham levado, cada uma delas, à aplicação de uma pena, as penas aplicadas podem ser cumuladas para obter uma pena global cujo quantum é inferior à soma das diferentes penas resultantes de decisões distintas anteriores ( 11 ). A sentença global prevista em direito polaco vai além de «um exercício puramente formal e aritmético» e reconhece ao órgão jurisdicional competente um poder de apreciação para a determinação do nível da pena global ( 12 ).

48.

Sublinho que o processo de sentença global é da competência dos Estados‑Membros. Todavia, como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, esses Estados‑Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União ( 13 ). Por conseguinte, os Estados‑Membros que decidem prever, na sua legislação nacional, tal processo devem respeitar o direito da União, nomeadamente os instrumentos adotados no domínio da cooperação judiciária em matéria penal, como as Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909. O próprio espírito do espaço de liberdade, segurança e justiça leva a duvidar da compatibilidade com o direito da União de uma legislação de um Estado‑Membro que limite a tomada em consideração de condenações anteriores, no âmbito de um processo de sentença global, apenas às condenações proferidas pelos órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro.

C.   Aplicabilidade da Decisão‑Quadro 2008/675

49.

A Decisão‑Quadro 2008/675, conforme resulta do seu artigo 1.o, n.o 1, e do seu artigo 3.o, n.o 1, estabelece uma obrigação mínima que impõe aos Estados‑Membros que tomem em consideração condenações penais proferidas noutros Estados‑Membros a fim de lhes atribuir efeitos equivalentes aos atribuídos às condenações nacionais anteriores por força do direito interno. O objetivo é permitir a apreciação dos antecedentes penais da pessoa em causa por ocasião de um novo procedimento penal instaurado contra si por factos diferentes.

50.

É certo que a Decisão‑Quadro 2008/675 não procura executar num Estado‑Membro decisões judiciais emitidas noutros Estados‑Membros, tal como referido no seu considerando 6.

51.

Assim sendo, é claro que a tomada em consideração das condenações anteriores pode ocorrer na fase da sua execução.

52.

É o que resulta do Acórdão de 21 de setembro de 2017, Beshkov ( 14 ).

53.

No processo que deu origem a esse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a Decisão‑Quadro 2008/675 devia ser interpretada no sentido de que é aplicável a um procedimento nacional que tem por objeto a aplicação, para efeitos de execução, de uma pena privativa da liberdade unitária que tome em consideração a pena aplicada a uma pessoa pelo juiz nacional, bem como a pena aplicada no quadro de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro contra a mesma pessoa por factos diferentes ( 15 ).

54.

Em apoio desta conclusão, o Tribunal de Justiça salientou que o artigo 1.o, n.o 1, desta decisão‑quadro prevê que esta tem por objeto definir as condições em que as condenações anteriores proferidas num Estado‑Membro contra uma pessoa são tomadas em consideração, por ocasião de um procedimento penal noutro Estado‑Membro, contra a mesma pessoa por factos diferentes ( 16 ).

55.

Para o efeito, o artigo 3.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, conjugado com o seu considerando 5, impõe aos Estados‑Membros a obrigação de assegurarem que, nessa ocasião, as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, sobre as quais tenha sido obtida informação ao abrigo dos instrumentos aplicáveis em matéria de auxílio judiciário mútuo ou de intercâmbio de informação extraída dos registos criminais, sejam, por um lado, tomadas em consideração na medida em que o são as condenações nacionais anteriores por força do direito nacional e, por outro, lhes sejam atribuídos efeitos equivalentes aos destas últimas condenações, em conformidade com esse direito, quer se tratem de efeitos factuais ou de efeitos de direito processual ou material ( 17 ).

56.

O Tribunal de Justiça declarou, em seguida, que o artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/675 especifica que essa obrigação se aplica durante a fase que antecede o processo penal, durante o processo penal em si e durante a fase de execução da pena, nomeadamente no que diz respeito às regras processuais aplicáveis, incluindo as relativas à qualificação da infração, ao tipo e nível da pena incorrida e às regras que regem a execução da decisão. Assim, os considerandos 2 e 7 desta decisão‑quadro enunciam que o juiz nacional deve estar em condições de tomar em consideração as condenações proferidas nos outros Estados‑Membros, inclusivamente para determinar as regras de execução suscetíveis de serem aplicadas, e que os efeitos atribuídos a essas condenações deverão ser equivalentes aos das decisões nacionais em cada uma das fases do processo ( 18 ).

57.

Por último, o Tribunal de Justiça deduziu daí que a Decisão‑Quadro 2008/675 se aplica não apenas aos processos ligados à determinação e ao estabelecimento da eventual culpabilidade do arguido, mas também aos relativos à execução da pena nos quais deve ser tomada em consideração a pena aplicada por uma decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro. O Tribunal considerou a este respeito que, no caso em apreço, o processo para a aplicação de uma pena unitária instaurado por Trayan Beshkov se enquadrava nesta segunda categoria, de modo que era abrangido pelo âmbito de aplicação dessa decisão‑quadro ( 19 ).

58.

Decorre do que precede, nomeadamente, que a referida decisão‑quadro visa, em princípio, situações em que foi instaurado um novo procedimento penal contra uma pessoa anteriormente condenada noutro Estado‑Membro. Este conceito de «novo procedimento penal» abrange a fase que antecede o processo penal, o processo penal em si mesmo e a execução da condenação ( 20 ).

59.

Para efeitos da aplicação da Decisão‑Quadro 2008/675, e à semelhança do que o Tribunal de Justiça declarou no seu Acórdão Beshkov, há que salientar que a determinação da pena global no âmbito de um processo de sentença global, como o que está em causa no processo principal, ocorre durante a fase relativa à execução das condenações, pelo que esta decisão‑quadro é aplicável no momento da instauração desse processo. É no âmbito deste processo nacional que tem por objeto a determinação, para efeitos de execução, do quantum de uma pena privativa de liberdade unitária que se coloca a questão de saber se a pena aplicada por uma decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro deve ser tomada em consideração.

60.

Por outro lado, embora, nos termos do seu considerando 6, a Decisão‑Quadro 2008/675 «não se destin[e] a executar num Estado‑Membro decisões judiciais tomadas noutros Estados‑Membros», não vislumbro qualquer indicação de que a tomada em consideração, pelos tribunais de um Estado‑Membro, das condenações proferidas noutros Estados‑Membros não se aplique a uma condenação cuja execução tenha sido transferida para esse Estado‑Membro, em conformidade com a Decisão‑Quadro 2008/909. Com efeito, se o legislador da União tivesse querido excluir esta situação do âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2008/675, tê‑lo‑ia referido de forma expressa. Ora, o considerando 14 desta decisão‑quadro, ao qual voltarei mais adiante, exprime, pelo contrário, a intenção deste legislador de incluir no âmbito de aplicação da referida decisão‑quadro a situação em que há transferência da execução de uma condenação para um Estado‑Membro diferente do Estado de condenação.

61.

Estando, na minha opinião, adquirida a aplicabilidade da Decisão‑Quadro 2008/675 a um processo como o que está em causa no processo principal, importa agora verificar se esta decisão‑quadro se opõe à tomada em consideração, no âmbito de um processo de sentença global instaurado na Polónia, de uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro e cuja execução foi transferida para a Polónia ou se, pelo contrário, impõe essa tomada em consideração.

D.   Compatibilidade do processo de sentença global com a Decisão‑Quadro 2008/675

62.

O considerando 2 da Decisão‑Quadro 2008/675 estabelece que esta se destina a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais em matéria penal, consagrado no artigo 82.o, n.o 1, TFUE, que substituiu o artigo 31.o UE com base no qual esta decisão‑quadro foi adotada. Como indica o seu considerando 3, a referida decisão‑quadro «destina‑se a instituir a obrigação mínima de os Estados‑Membros tomarem em consideração condenações proferidas noutros Estados‑Membros».

63.

No caso de terem sido instaurados diversos procedimentos penais em vários Estados‑Membros contra a mesma pessoa por factos diferentes, um dos princípios fundamentais da Decisão‑Quadro 2008/675 é, nos termos do seu considerando 8, «evitar, tanto quanto possível, que a pessoa em causa seja tratada de forma menos favorável do que se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional».

64.

Para o efeito, o princípio estabelecido por esta decisão‑quadro é o da tomada em consideração, no Estado‑Membro onde é instruído um novo procedimento penal, da condenação proferida noutro Estado‑Membro, no respeito do princípio da equivalência. Todavia, a referida decisão‑quadro não se destina a harmonizar as consequências que as diferentes legislações nacionais atribuem à existência de condenações anteriores.

65.

Aquando da adoção da Decisão‑Quadro 2008/675, o legislador da União partiu da constatação, expressa no considerando 4, de que «[a]lguns Estados‑Membros atribuem efeitos às condenações penais proferidas noutros Estados‑Membros, enquanto outros só tomam em consideração as decisões de condenação nacionais».

66.

É a razão por que o considerando 5 desta decisão‑quadro prossegue: «Importa estabelecer o princípio de que uma decisão de condenação proferida num Estado‑Membro deverá ter nos outros Estados‑Membros efeitos equivalentes aos das condenações proferidas de acordo com o direito nacional, independentemente de se tratar de elementos de facto ou de direito processual ou substantivo […]». O órgão jurisdicional que deve decidir no âmbito do novo procedimento penal tem, consequentemente, nos termos da Decisão‑Quadro 2008/675, a obrigação de atribuir à decisão proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro efeitos «equivalentes aos das decisões nacionais» e isto mesmo durante «a fase de execução da pena» ( 21 ).

67.

Esta decisão‑quadro estabelece, assim, um princípio de equiparação das condenações proferidas pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro no qual decorre um novo procedimento penal — no caso em apreço, um processo com vista à prolação de uma sentença global — às condenações proferidas pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro. Este princípio de equiparação leva a atribuir a essas condenações os mesmos efeitos jurídicos que decorrem das condenações nacionais. Assim, o juiz chamado a pronunciar‑se no âmbito de um novo procedimento penal é, em princípio, obrigado a tomar em consideração a decisão anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro da mesma forma que toma em consideração uma decisão proferida por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro ao qual pertence, para lhe atribuir os efeitos reconhecidos pela lei aos antecedentes criminais da pessoa condenada.

68.

Como salientou o advogado‑geral Y. Bot nas Conclusões que apresentou no processo Beshkov ( 22 ), esta exigência «está claramente relacionada com a realização do espaço de liberdade, segurança e justiça e, assim, com o reconhecimento mútuo, que impõe não apenas que se tome em consideração a decisão estrangeira, mas igualmente que esta seja respeitada» ( 23 ). A Decisão‑Quadro 2008/675 contribui assim, de acordo com o Tribunal de Justiça para «a promoção da confiança mútua no espaço europeu de justiça na medida em que promove uma cultura em que as condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro são, em princípio, tomadas em consideração» ( 24 ).

69.

À primeira vista, a legislação polaca parece ir contra a vontade assim manifestada pelo legislador da União e violar o princípio do reconhecimento mútuo. Todavia, importa verificar se, no contexto específico do processo principal, a exclusão da tomada em consideração das decisões de condenação penal proferidas por órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros está em conformidade com as regras enunciadas pela Decisão‑Quadro 2008/675.

70.

O legislador da União estabeleceu, no artigo 3.o, n.os 3 a 5, desta decisão‑quadro, limites à obrigação de tomada em consideração, no âmbito de um novo procedimento penal, de condenações anteriores proferidas noutro Estado‑Membro, em conformidade com o princípio da equivalência.

71.

Em especial, o artigo 3.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro dispõe que [a] tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento». Esta disposição contém, assim, uma reserva nos termos da qual a tomada em consideração de decisões de condenação proferidas noutro Estado‑Membro não deve prejudicar essas decisões. Exprime a necessidade de preservar a autoridade do caso julgado das decisões estrangeiras.

72.

Assim, quando, no âmbito de um novo procedimento penal, um órgão jurisdicional nacional toma em consideração uma decisão estrangeira anterior, não a pode modificar num sentido ou noutro. Em conformidade com este princípio de não ingerência, o órgão jurisdicional chamado a proferir uma nova decisão não pode alterar o que foi decidido pelo órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. Esse órgão jurisdicional chamado a proferir uma nova decisão deve simplesmente reconhecer à decisão estrangeira anterior os efeitos que seriam reconhecidos a uma decisão nacional anterior, em conformidade com o princípio da equivalência ( 25 ). Em suma, as decisões de condenação anteriormente proferidas noutros Estados‑Membros devem ser tomadas em consideração tal como foram proferidas ( 26 ).

73.

Foi em aplicação deste princípio de não ingerência que o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão Beshkov, declarou que «o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que o juiz nacional a que tenha sido submetido um pedido de aplicação, para efeitos de execução, de uma pena privativa da liberdade unitária, que toma, nomeadamente, em consideração a pena aplicada no quadro de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, altere, para esse efeito, as regras de execução desta última pena» ( 27 ).

74.

Em especial, o Tribunal de Justiça considerou que «o juiz nacional não pode, em virtude da mesma decisão‑quadro, reexaminar e alterar as regras de execução de uma decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro e já executada, nomeadamente revogando a suspensão a que [a] pena aplicada por essa decisão estava sujeita e transformando‑a numa pena de prisão efetiva. Também não pode ordenar, a esse título, uma nova execução dessa pena assim alterada» ( 28 ).

75.

Por outro lado, no seu Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada ( 29 ), o Tribunal de Justiça esclareceu que, «ainda que a Decisão‑Quadro 2008/675 se oponha a um reexame […] que pode conduzir a uma requalificação da infração penal e uma alteração da pena decretada noutro Estado‑Membro, há que constatar que esta decisão‑quadro não obsta a que o Estado‑Membro no qual decorre o novo processo penal possa determinar as modalidades de tomada em consideração das condenações anteriores proferidas nesse outro Estado‑Membro, tendo tal precisão por único objetivo determinar se é possível atribuir a estas condenações efeitos jurídicos equivalentes aos que são atribuídos às condenações nacionais anteriores em aplicação do direito interno» ( 30 ). De acordo com o Tribunal de Justiça, «a adoção de uma decisão que permita atribuir efeitos jurídicos equivalentes a uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro, como a prevista no considerando 13 da Decisão‑Quadro 2008/675, necessita de um exame caso a caso, à luz de uma situação concreta. Esta faculdade não pode justificar a tramitação de um procedimento especial de reconhecimento relativamente às condenações proferidas noutro Estado‑Membro que seja, por um lado, necessário para a tomada em consideração das referidas condenações aquando de um novo procedimento penal e, por outro, suscetível de conduzir a uma requalificação da infração cometida e da pena aplicada» ( 31 ).

76.

Feito este esclarecimento, considero que, contrariamente ao que sustentam os Governos polaco e checo, o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 não se opõe à instauração de um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal. Com efeito, é ainda necessário, para que assim seja, que se demonstre que a tomada em consideração, nesse contexto, de sentenças de condenação anteriores proferidas noutro Estado‑Membro teria por efeito «interferir com essas condenações ou com qualquer decisão relativa à sua execução». Por outro lado, observo que o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão Beshkov, não declarou que o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 se opunha, enquanto tal, ao processo nacional em causa, mas apenas na medida em que a sua aplicação, nas circunstâncias específicas do processo, tinha como consequência violar a integridade da sentença estrangeira ao revogar a suspensão dessa condenação.

77.

Importa precisar que o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser conjugado com o considerando 14 da mesma, nos termos do qual «[a] interferência com uma sentença ou a sua execução abrangem, nomeadamente, as situações em que, nos termos do direito nacional do segundo Estado‑Membro, a pena imposta por uma sentença anterior deva ser absorvida por outra pena ou nela incluída, devendo então ser efetivamente executada, na medida em que a primeira sentença não tenha ainda sido executada ou a sua execução não tenha sido transferida para o segundo Estado‑Membro».

78.

Considero, à semelhança do que a Comissão refere na sua resposta escrita às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça, que a leitura conjugada do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 e do seu considerando 14 não exclui categoricamente a tomada em consideração de condenações anteriores proferidas no estrangeiro em processos nacionais relativos à aplicação de penas globais, mas exige um exame individual para determinar se a aplicação de uma pena global constituiria uma interferência com a sentença anterior ou com a sua execução no caso em apreço.

79.

Como a Comissão salienta com razão na sua resposta escrita às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça, o considerando 14 da Decisão‑Quadro 2008/675 é pertinente sob dois aspetos. Em primeiro lugar, confirma que os casos em que é aplicada uma pena global não estão excluídos, enquanto tais, do âmbito de aplicação desta decisão‑quadro. Em segundo lugar, pode deduzir‑se deste considerando que a aplicação de uma pena global é suscetível de interferir com a sentença de condenação anterior ou com a sua execução em duas situações, a saber, por um lado, quando a primeira condenação ainda não foi executada ou, por outro, quando a execução da primeira condenação não foi transferida para o segundo Estado‑Membro. Com efeito, se uma pena continua a ser cumprida noutro Estado‑Membro, a prolação de uma decisão de cumulação de penas teria impacto na execução da condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional desse outro Estado‑Membro.

80.

Em contrapartida, não há, em princípio, interferência com uma condenação anterior ou com a sua execução quando esta condenação já foi executada. Com efeito, nesta situação, o direito do Estado‑Membro de condenação de executar a pena aplicada pelos seus próprios tribunais, nas condições estabelecidas pelo seu direito nacional, não é afetado, mesmo no caso de outro Estado‑Membro ser levado, por ocasião de um novo procedimento penal, a tomar em consideração essa condenação no exercício do seu próprio poder jurisdicional.

81.

Sem a condição segundo a qual a condenação proferida num Estado‑Membro deve ter sido integralmente executada, a cumulação decretada noutro Estado‑Membro poderia ser imposta às autoridades e aos órgãos jurisdicionais do Estado de condenação quanto à execução das penas nele proferidas e, portanto, violar o direito desse Estado de assegurar a execução no seu território das penas proferidas pelos seus órgãos jurisdicionais. A cumulação teria, assim, por efeito interferir com a execução dessas penas, ao que se opõe o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, conjugado com o seu considerando 14.

82.

Assim sendo, mesmo na situação em que uma decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro já tenha sido executada, o juiz de outro Estado‑Membro quando toma em consideração essa decisão de condenação «não pode […] reexaminar e alterar as regras de execução» dessa decisão ( 32 ). Por conseguinte, a presunção de não interferência com a condenação anterior ou com a sua execução pode ser revertida se a tomada em consideração dessa condenação levar, num caso concreto, a pôr em causa o que foi decidido no primeiro Estado‑Membro.

83.

Pelas mesmas razões que as que prevalecem na hipótese de uma tomada em consideração de uma condenação anterior já executada, não há, em princípio, interferência com a condenação anterior ou com a sua execução, na situação em que a execução dessa condenação foi transferida do Estado de condenação para outro Estado‑Membro em conformidade com as regras previstas pela Decisão‑Quadro 2008/909. Com efeito, nesta situação, foi o primeiro Estado‑Membro que decidiu transferir a execução da condenação para o segundo Estado‑Membro porque adquiriu, em conformidade com o previsto no artigo 4.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, a certeza de que a execução da condenação no segundo Estado‑Membro «contribuirá para alcançar o objetivo que consiste em facilitar a reinserção social da pessoa condenada». Na medida em que o Estado‑Membro de condenação consentiu na transferência da execução da pena, não é violado o direito deste último de mandar executar no seu território, nas condições fixadas pelo seu direito interno, a decisão de condenação dos seus órgãos jurisdicionais nacionais.

84.

Deduzo do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, conjugado com o seu considerando 14, que, no caso de uma condenação anterior já ter sido executada ou de a sua execução ter sido transferida para o Estado‑Membro em que um órgão jurisdicional pretende proferir uma pena global, a determinação dessa pena global não é, por si só, suscetível de afetar essa condenação anterior ou a sua execução. Por conseguinte, não se pode deduzir do artigo 3.o, n.o 3, desta decisão‑quadro uma proibição de princípio, para o juiz nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito de um novo procedimento penal, de proferir uma sentença global que tenha em consideração uma condenação anterior aplicada por um juiz de outro Estado‑Membro.

85.

Uma vez estabelecida esta premissa, a adoção de uma decisão que permita atribuir a uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro efeitos jurídicos equivalentes aos de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional do Estado‑Membro no qual essa decisão deve ser adotada, como a prevista no considerando 13 da Decisão‑Quadro 2008/675, necessita de um exame caso a caso, à luz de uma situação concreta ( 33 ).

86.

Uma vez que o juiz chamado a proferir uma nova decisão deve determinar, em conformidade com o seu direito nacional e com o princípio da equivalência previsto no artigo 3.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, qual a pena global que deve ser adotada a partir das condenações proferidas em diversos Estados‑Membros, deve verificar se a aplicação dessa pena global é ou não suscetível de interferir com uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro. Este exame deve ser efetuado caso a caso para respeitar o princípio de não ingerência enunciado no artigo 3.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro.

87.

Numa situação como a que está em causa no processo principal, não me parece que o processo destinado à aplicação de uma pena global afete a execução da pena inicial proferida na Alemanha.

88.

Recordo, a este respeito, que, como resulta da decisão de reenvio, a Sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo) de 15 de fevereiro de 2017 foi transferida para execução na Polónia por Despacho do Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdańsk) de 12 de janeiro de 2018. Nesse despacho, a qualificação jurídica dos atos foi considerada conforme com o direito polaco e foi declarado que a pena global de privação de liberdade de cinco anos e três meses era executória. Trata‑se de uma pena idêntica, quanto à sua duração, à pena aplicada pela sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo).

89.

Por conseguinte, é a pena privativa de liberdade, tal como foi aplicada pela sentença do Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo), que vai ser executada na Polónia. Como explicado pelo órgão jurisdicional de reenvio, o pedido de prolação de uma sentença global consiste em que essa sentença, que abrange a pena de privação de liberdade de cinco anos e três meses, seja proferida segundo o princípio da absorção plena. Essa absorção não afeta a sentença proferida pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo), devendo a pena aplicada ser integralmente executada na Polónia. A circunstância de esta pena ser executada concomitantemente com outra pena aplicada por um órgão jurisdicional polaco não afeta, por si só, o conteúdo e a eficácia da sentença proferida pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo).

90.

A prolação de uma sentença global que abrange a pena proferida pelo Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdańsk) em 24 de fevereiro de 2010 e a pena proferida pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo), na medida em que absorve esta última pena sem a prejudicar, não entra, portanto, em minha opinião, em contradição com as regras previstas pela Decisão‑Quadro 2008/675.

91.

Não obstante, para ser compatível com o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, importa que o processo de sentença global não tenha por efeito fazer desaparecer a condenação anterior para que a sua existência e a sua integridade sejam preservadas. Com efeito, a cumulação das penas deve ter como consequência não retirar às penas cumuladas a sua própria existência, a sua autonomia e as suas consequências legais, mas decidir que a sua execução decorrerá de forma simultânea com a da pena mais grave. Daqui resulta que, se a pena absorvente desaparecer, a pena absorvida ainda deve poder ser executada tal como foi proferida.

92.

Em suma, o processo de sentença global, para ser compatível com o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, deve respeitar a integridade da decisão estrangeira e preservar a soberania do órgão jurisdicional que a proferiu, sem que seja violada a força de caso julgado associada a essa decisão estrangeira ( 34 ). A este propósito, uma sentença global interfere com a decisão de condenação aplicada por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro se levar à aplicação de uma pena global inferior à pena inicial resultante dessa decisão, o que seria contrário ao previsto nessa decisão ( 35 ).

93.

O Governo checo alega que a prolação de uma sentença global que abrange uma condenação anterior aplicada noutro Estado‑Membro constitui necessariamente um ato que interfere com essa condenação. Com efeito, segundo este Estado‑Membro, essa sentença implica, por definição, a revogação da decisão inicial, a remissão dos efeitos resultantes de uma condenação anterior e a sua absorção pela nova pena global aplicada.

94.

Na mesma linha, o Governo polaco refere que a essência de uma sentença global reside no facto de a sua adoção ter por efeito anular as sentenças cumuladas no âmbito dessa sentença global. Segundo este Estado‑Membro, isto significa que as sentenças de condenação assim cumuladas no âmbito de uma sentença global deixam de existir no ordenamento jurídico, o que é expressamente proibido pelo artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675.

95.

Perante estas alegações, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a prolação de uma sentença global tem por efeito revogar a condenação anterior na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675.

96.

Deduzo das considerações que precedem que o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675, conjugado com o seu considerando 14, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe, em princípio, a que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro tome em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal que consiste num processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e cuja execução foi transferida para o Estado‑Membro em que decorre esse processo, em conformidade com as regras previstas pela Decisão‑Quadro 2008/909. No entanto, compete ao órgão jurisdicional perante o qual decorre um processo de sentença global verificar, no termo de um exame caso a caso, em função da situação concreta, que esse processo não tem por efeito interferir com essas condenações anteriores ou com qualquer decisão relativa à sua execução no Estado‑Membro em que decorre o referido processo, nem as revogar ou reexaminar. Especificamente, a tramitação de um processo de sentença global não deve conduzir à aplicação de uma pena global inferior à pena inicial resultante da decisão de condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro nem à anulação dos efeitos dessa decisão.

97.

A compatibilidade da tramitação desse processo de sentença global com o direito da União pressupõe, todavia, num contexto como o que está em causa no presente processo, a saber, uma transferência da execução de uma condenação para um Estado‑Membro diferente daquele em que foi proferida, verificar se esse processo não vai contra as regras estabelecidas pela Decisão‑Quadro 2008/909. Em especial, há que assegurar que as condições e os limites à adaptação dessa condenação, que figuram nesta decisão‑quadro, são respeitados.

E.   Compatibilidade do processo de sentença global com a Decisão‑Quadro 2008/909

98.

Nesta parte, serei levado a verificar se a Decisão‑Quadro 2008/909 não contém limites à tramitação de um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal.

99.

Com efeito, na medida em que a situação em causa no processo principal é a de uma transferência para um Estado‑Membro da execução de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro, efetuada em conformidade com esta decisão‑quadro, importa verificar se a sentença global é compatível com as regras previstas pela referida decisão‑quadro. É, aliás, o objeto da segunda questão prejudicial.

100.

Não vislumbro na Decisão‑Quadro 2008/909 nenhuma referência de que a tramitação, no Estado de execução, de um processo de sentença global, como o que está em causa no processo principal, está excluída para efeitos da execução de uma pena proferida no Estado de condenação. Bem pelo contrário, desde que as regras previstas por esta decisão‑quadro sejam respeitadas e na medida em que o direito do Estado de execução o preveja para as condenações nacionais, a transferência para esse Estado‑Membro da execução de uma pena proferida noutro Estado‑Membro deve ser acompanhada de uma aplicação plena e integral da obrigação de tomar em consideração essa pena no âmbito de um processo de sentença global no Estado de execução.

101.

Diferentemente da Decisão‑Quadro 2008/675, que não se destina, como indica o seu considerando 6, a executar num Estado‑Membro decisões judiciais tomadas noutros Estados‑Membros, a Decisão‑Quadro 2008/909 prevê que a competência relativa à execução de uma pena proferida num Estado‑Membro é transferida para outro Estado‑Membro.

102.

Esta decisão‑quadro, como resulta do seu considerando 2, destina‑se a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal. Nos termos deste princípio, quando uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária em conformidade com o direito do Estado‑Membro a que pertence, tem um efeito pleno e direto em toda a União, pelo que as autoridades competentes de qualquer outro Estado‑Membro devem prestar o seu contributo à sua execução como se fosse proveniente de uma autoridade judiciária do seu próprio Estado.

103.

Resulta do artigo 3.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro que esta estabelece regras que permitem a um Estado‑Membro reconhecer uma sentença e executar uma condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, com o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa condenada.

104.

Nesta ótica, e como esclarece o artigo 8.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, a autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença que lhe foi transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e toma imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado de emissão ( 36 ). Por conseguinte, o princípio do reconhecimento mútuo opõe‑se, por regra, a que a autoridade judiciária de execução proceda a uma adaptação da condenação proferida pela autoridade judiciária de emissão, e isto ainda que a aplicação do direito do Estado de execução tivesse levado à adoção de uma pena de duração ou natureza diferente. Como a Comissão salientou no seu relatório sobre a aplicação da Decisão‑Quadro 2008/909, «[n]a medida em que as decisões‑quadro assentam na confiança mútua nos sistemas jurídicos dos outros Estados‑Membros, a decisão do juiz do Estado de emissão deve ser respeitada e, em princípio, não deve ser revista ou adaptada» ( 37 ).

105.

No entanto, esta regra não é absoluta. Com efeito, o artigo 8.o, n.os 2 a 4, da Decisão‑Quadro 2008/909 prevê condições estritas para a adaptação, pela autoridade competente do Estado de execução, da condenação proferida no Estado de emissão. Estas condições constituem as únicas exceções à obrigação de princípio que compete a essa autoridade nos termos do artigo 8.o, n.o 1, desta decisão‑quadro ( 38 ).

106.

Especificamente, o artigo 8.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/909 permite, em determinadas condições, à autoridade competente do Estado de execução adaptar a condenação proferida no Estado de emissão se a sua duração for incompatível com o direito do Estado de execução. Com efeito, essa autoridade só pode decidir adaptar essa condenação quando esta for superior à pena máxima prevista pelo seu direito nacional para infrações da mesma natureza que aquela pela qual a pessoa foi condenada. A duração da condenação adaptada não pode ser inferior à de pena máxima prevista na legislação nacional do Estado de execução para infrações da mesma natureza. Por outro lado, na hipótese de a natureza da condenação proferida no Estado de emissão ser incompatível com o direito do Estado de execução, o artigo 8.o, n.o 3, desta decisão‑quadro permite também que a autoridade competente deste último adapte a condenação à pena ou medida prevista no seu próprio direito para delitos semelhantes, desde que a condenação adaptada corresponda, tanto quanto possível, à condenação proferida no Estado de emissão. Esta não pode ser comutada numa sanção pecuniária. Em todo o caso, o artigo 8.o, n.o 4, da referida decisão‑quadro esclarece que a condenação adaptada não pode agravar, pela sua natureza ou duração, a condenação aplicada no Estado de emissão. Por último, nos termos do artigo 12.o, n.o 1, e do artigo 21.o, alínea e), da Decisão‑Quadro 2008/909, qualquer decisão de adaptação da condenação tomada em conformidade com o seu artigo 8.o, n.os 2 e 3, deve ser comunicada por escrito à autoridade competente do Estado de emissão.

107.

No caso em apreço, como já referi anteriormente, é efetivamente a pena privativa de liberdade de cinco anos e três meses, tal como foi proferida pelo Landgericht Lüneburg (Tribunal Regional de Luneburgo) na sua sentença, que vai ser executada na Polónia. Não resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a condenação proferida nessa sentença deva ser adaptada em conformidade com o artigo 8.o, n.os 2 ou 3, da Decisão‑Quadro 2008/909 para poder ser executada na Polónia.

108.

Na minha opinião, a prolação de uma sentença global não pode ser equiparada a uma «adaptação» pela autoridade competente do Estado de execução da condenação proferida no Estado de emissão, na aceção do artigo 8.o, n.os 2 a 4, da Decisão‑Quadro 2008/909. Com efeito, a «adaptação», na aceção desta disposição, tem um objeto bem preciso, que é permitir a execução desta condenação no território do Estado de execução, tornando‑a compatível com o direito nacional deste último. Em contrapartida, o processo de sentença global, num contexto como o que está em causa no processo principal, tem um outro objeto, a saber, determinar se, para efeitos da execução de diversas condenações que são o resultado de processos distintos, essas condenações serão executadas cumulativa ou concomitantemente, assegurando o respeito dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena na fase da sua execução.

109.

Por conseguinte, não se pode sustentar que, uma vez que o artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2008/909 não contém nenhuma exceção relativa à tramitação de um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, se deduz daí que a tramitação desse processo é contrária a esta disposição.

110.

Feita esta precisão, a tramitação de um processo de sentença global numa situação em que a execução de uma condenação é transferida para outro Estado‑Membro em conformidade com as disposições desta decisão‑quadro está sujeita ao cumprimento da «obrigação de princípio que impende sobre [a autoridade competente do Estado de execução] de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida [no] Estado de emissão» ( 39 ). Por conseguinte, só dentro dos limites estritos previstos no artigo 8.o, n.os 2 a 4, desta decisão‑quadro é que a duração ou a natureza da condenação inicial, objeto de um processo de sentença global, podem, sendo caso disso, ser adaptadas. Saliento, a este respeito, que, embora não seja esse o objeto de um processo de sentença global, é possível que, antes da prolação dessa sentença, a duração ou a natureza da condenação inicial proferida noutro Estado‑Membro devam ser objeto de adaptação, em conformidade com o artigo 8.o, n.os 2 a 4, da mesma decisão‑quadro, para poder ser efetivamente executada no Estado de execução. Nessa situação, é a condenação que foi objeto de tal adaptação que deverá em seguida, no termo de um processo de sentença global, ser executada de forma concomitante e simultânea com outra no âmbito de uma pena global.

111.

Não me parece que o artigo 17.o da Decisão‑Quadro 2008/909 tenha interferência com a compatibilidade de um processo de sentença global com esta decisão‑quadro. Com efeito, este artigo, cujo n.o 1 esclarece que a execução de uma condenação é regida pela legislação nacional do Estado de execução, estabelece os princípios aplicáveis à execução da condenação quando a pessoa condenada tenha sido transferida para a autoridade competente desse Estado ( 40 ). Trata‑se de medidas que devem permitir garantir a execução material da pena e assegurar a reinserção social da pessoa condenada ( 41 ). Como referi anteriormente e como resulta do Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek ( 42 ), estas medidas que dizem respeito às modalidades de execução das penas devem ser distinguidas das que, ao alterarem o quantum da ou das penas aplicadas, são relativas à determinação do nível das penas. Na medida em que o processo de sentença global pertence a esta última categoria, não é abrangido pelo artigo 17.o da Decisão‑Quadro 2008/909, que visa as medidas relativas às modalidades de execução das penas. A este respeito, a circunstância de o processo de sentença global ser tramitado durante a fase relativa à execução das penas não altera o próprio objeto desse processo, que é conduzir a uma nova determinação do nível das penas privativas de liberdade proferidas anteriormente ( 43 ).

112.

O artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909 também não me parece ter interferência com a compatibilidade de um processo de sentença global com esta decisão‑quadro. Com efeito, resulta do artigo 19.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro que «[a] amnistia e o perdão podem ser concedidos tanto pelo Estado de emissão como pelo Estado de execução». Ora, a amnistia e o perdão põem termo à execução de uma pena ( 44 ), o que não constitui nem o objeto nem a finalidade do processo de sentença global. Além disso, no que respeita ao artigo 19.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2008/909, segundo o qual «[a]penas o Estado de emissão pode decidir de qualquer pedido de revisão da sentença que impõe a condenação a executar ao abrigo [d]esta decisão‑quadro», decorre daqui que o Estado de execução não pode decidir rever essa sentença nem tomar medidas que pudessem ser suscetíveis de impedir a revisão dessa sentença no Estado‑Membro de emissão. Mais uma vez, o processo de sentença global não tem por objeto nem por efeito proceder à revisão da decisão que conduziu à condenação que é tomada em consideração no âmbito desse processo. Por conseguinte, na minha opinião, não se pode retirar do artigo 19.o da referida decisão‑quadro nenhum ensinamento por analogia quanto à compatibilidade do processo de sentença global com esta mesma decisão‑quadro.

113.

Deduzo das considerações que precedem que o artigo 8.o, o artigo 17.o, n.o 1, e o artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909 devem, na minha opinião, ser interpretados no sentido de que não se opõem a que um Estado‑Membro aplique um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, desde que este respeite a obrigação de princípio, que impende sobre a autoridade competente do Estado de execução, de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado de emissão. A duração ou a natureza da condenação inicial objeto de um processo de sentença global só podem, sendo caso disso, ser adaptadas antes da prolação dessa sentença, nos estritos limites previstos no artigo 8.o, n.os 2 a 4, desta decisão‑quadro.

114.

No termo destes desenvolvimentos relativos às Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909, chego à conclusão de que, sem prejuízo das condições e dos limites anteriormente referidos, estas decisões‑quadro não se opõem, em princípio, à tramitação num Estado‑Membro de um processo de sentença global numa situação de transferência de execução para esse Estado‑Membro de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro.

115.

Uma solução contrária, como referiram com razão o órgão jurisdicional de reenvio e o Governo húngaro, implicaria uma diferença de tratamento injustificada entre as pessoas que foram condenadas em várias penas num único Estado‑Membro e as que o foram em diversos Estados‑Membros quando, em ambos os casos, as penas são executadas no mesmo Estado‑Membro.

116.

Com efeito, as pessoas condenadas em penas privativas de liberdade na Polónia podem beneficiar do processo de sentença global, ao passo que as pessoas condenadas em tais penas não só na Polónia mas também noutros Estados‑Membros estão sujeitas à regra do cúmulo puro e simples das penas.

117.

Excluir a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena apenas com fundamento no local onde foi proferida uma sentença parece‑me ir contra a construção de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça baseado no princípio do reconhecimento e da confiança mútuos entre os Estados‑Membros.

118.

Pelo contrário, uma vez que o direito polaco prevê um processo de sentença global, a tramitação desse procedimento a fim de incluir numa pena global uma condenação proferida noutro Estado‑Membro inscreve‑se plenamente nos objetivos prosseguidos pelas Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909. Com efeito, o exercício pelo juiz, chamado a pronunciar‑se uma segunda vez no âmbito de um processo de sentença global, do seu poder de apreciação leva a uma melhor individualização da pena na fase da sua execução, aliando simultaneamente a tomada em consideração dos antecedentes criminais da pessoa condenada e a função de reinserção social da pena. Seria antinómico com estes objetivos e com o princípio do reconhecimento mútuo que as pessoas condenadas que, para favorecer a sua reinserção social, cumprem a sua pena no seu Estado de origem não pudessem beneficiar de um processo que permite a execução concomitante e simultânea de várias penas pela simples razão de estas últimas terem sido proferidas por órgãos jurisdicionais penais de diversos Estados‑Membros.

119.

Por conseguinte, quando as salvaguardas para a execução destas duas decisões‑quadro são respeitadas, a saber, preservar a integridade da decisão estrangeira e a soberania do órgão jurisdicional que a proferiu ( 45 ), deve ser privilegiada uma solução que consista em dar pleno efeito à função moderna da pena, tendo em conta, na fase da execução desta, os antecedentes criminais da pessoa condenada, de forma a assegurar uma repressão eficaz, respeitando simultaneamente o princípio da proporcionalidade e o da individualização da pena.

120.

Como já referi, parece resultar dos elementos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o direito polaco obsta à tomada em consideração, no âmbito de um processo de sentença global, de uma condenação proferida noutro Estado‑Membro. Se o tribunal nacional confirmar essa conclusão, deve neutralizar esse obstáculo seguindo as orientações dadas pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski ( 46 ), ou seja, fazendo tudo o que estiver ao seu alcance para interpretar o seu direito nacional de acordo com as regras estabelecidas nas Decisões‑Quadro 2008/675 e 2008/909.

V. Conclusão

121.

Tendo em conta todas as considerações que precedem, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Sąd Okręgowy w Gdańsku (Tribunal Regional de Gdańsk, Polónia), do seguinte modo:

1)

O artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal, conjugado com o seu considerando 14, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe, em princípio, a que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro tome em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal que consiste num processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e cuja execução foi transferida para o Estado‑Membro em que decorre esse processo, em conformidade com as regras previstas pela Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009. No entanto, compete ao órgão jurisdicional perante o qual decorre um processo de sentença global verificar, no termo de um exame caso a caso, em função da situação concreta, que esse processo não tem por efeito interferir com essas condenações anteriores ou com qualquer decisão relativa à sua execução no Estado‑Membro em que decorre o referido processo, nem as revogar ou reexaminar. Especificamente, a tramitação de um processo de sentença global não deve conduzir à aplicação de uma pena global inferior à pena inicial resultante da decisão de condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro nem à anulação dos efeitos dessa decisão.

2)

O artigo 8.o, o artigo 17.o, n.o 1, e o artigo 19.o da Decisão‑Quadro 2008/909, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem à tramitação por um Estado‑Membro de um processo de sentença global como o que está em causa no processo principal, desde que este respeite a obrigação de princípio, que impende sobre a autoridade competente do Estado‑Membro de execução, de reconhecer a sentença que lhe foi transmitida e de executar a condenação cuja duração e natureza correspondem às previstas na sentença proferida no Estado de emissão. A duração ou a natureza da condenação inicial objeto de um processo de sentença global só podem, sendo caso disso, ser adaptadas antes da prolação dessa sentença nos estritos limites previstos nesse artigo 8.o, n.os 2 a 4.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2008, L 220, p. 32.

( 3 ) JO 2008, L 327, p. 27; retificação no JO 2018, L 243, p. 21.

( 4 ) JO 2009, L 81, p. 24; a seguir «Decisão‑Quadro 2008/909».

( 5 ) Dz. U. n.o 88, posição 553; a seguir «Código Penal».

( 6 ) V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386), nas quais este indica que «[a] adição matemática de todas as penas aplicadas por atos praticados durante um período no qual não se tenha verificado qualquer admoestação ou medida de tutela poderá, na maior parte dos casos, afigurar‑se desproporcionada em relação à personalidade do infrator e às circunstâncias da prática dos atos e, por conseguinte, injusta. Sendo injusta, é mais provável que a pena suscite a revolta e, portanto, a reincidência do que a alteração do comportamento. Daí que se justifique o poder atribuído ao juiz, no seu domínio de apreciação da individualização necessária, e de acordo com os limites da lei, de combinar o melhor possível as sanções aplicáveis aos crimes cometidos durante esse período da vida do infrator» (n.o 49).

( 7 ) C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629.

( 8 ) Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 84).

( 9 ) Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 85).

( 10 ) Idem.

( 11 ) Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 86).

( 12 ) Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 88).

( 13 ) V., nomeadamente, neste sentido, Acórdão de 24 de novembro de 1998, Bickel e Franz (C‑274/96, EU:C:1998:563, n.o 17). V., também, Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 48 e jurisprudência referida).

( 14 ) C‑171/16, a seguir «Acórdão Beshkov, EU:C:2017:710.

( 15 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 29).

( 16 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 25).

( 17 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 26).

( 18 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 27).

( 19 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 28).

( 20 ) V. Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 30).

( 21 ) V. considerando 7 da Decisão‑Quadro 2008/675.

( 22 ) C‑171/16, EU:C:2017:386.

( 23 ) Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386, n.o 54), e Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Lada (C‑390/16, EU:C:2018:65, n.o 77).

( 24 ) V. Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 36).

( 25 ) V. Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386, n.os 55 e 56).

( 26 ) V. Acórdãos Beshkov (n.os 37 e 44) e de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 39).

( 27 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 47).

( 28 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 46).

( 29 ) C‑390/16, EU:C:2018:532.

( 30 ) V. Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 40).

( 31 ) V. Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 45).

( 32 ) V. Acórdão Beshkov (n.o 46). O juiz nacional do segundo Estado‑Membro não pode, assim, revogar a suspensão da pena aplicada pela decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro e já executada, transformando‑a numa pena de prisão efetiva.

( 33 ) V. Acórdão de 5 de julho de 2018, Lada (C‑390/16, EU:C:2018:532, n.o 45).

( 34 ) V. Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386, n.o 70).

( 35 ) Dado que a repressão de determinadas infrações é mais ou menos severa consoante os Estados‑Membros, o processo de sentença global não deve levar à substituição da política penal do Estado‑Membro onde a condenação anterior foi proferida pela que é seguida no Estado‑Membro em que esse processo é tramitado.

( 36 ) V., neste sentido, Acórdãos de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 36), e de 11 de janeiro de 2017, Grundza (C‑289/15, EU:C:2017:4, n.o 42).

( 37 ) Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 5 de fevereiro de 2014, sobre a aplicação pelos Estados‑Membros das Decisões‑Quadro 2008/909/JAI, 2008/947/JAI e 2009/829/JAI relativas à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade, às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional e a sanções alternativas e às medidas de controlo, em alternativa à prisão preventiva [COM(2014) 57 final, p. 8].

( 38 ) Como a Comissão indica no seu relatório referido na nota anterior, «[é] importante encontrar o justo equilíbrio entre o respeito da condenação originalmente imposta e as tradições jurídicas dos Estados‑Membros, para que não surjam conflitos que possam prejudicar o funcionamento das decisões‑quadro» (p. 8).

( 39 ) V. Acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 36).

( 40 ) V. Acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 39).

( 41 ) No n.o 72 das suas Conclusões no processo Ognyanov (C‑554/14, EU:C:2016:319), o advogado‑geral Y. Bot precisou que, neste âmbito, as autoridades judiciárias competentes são incumbidas de estabelecer as regras relativas à evolução da pena e à sua adaptação, decidindo, por exemplo, da colocação no exterior, das autorizações de saída, do regime de semidetenção, do fracionamento e da suspensão da pena, das medidas de libertação antecipada ou de liberdade condicional do detido ou da colocação em regime de vigilância eletrónica. Referiu também que o direito da execução das penas também abrange as medidas que podem ser adotadas após a libertação da pessoa condenada, tais como a sua colocação em regime de controlo judiciário ou ainda a sua participação em programas de reabilitação, ou as medidas de indemnização a favor das vítimas.

( 42 ) C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629.

( 43 ) Acórdão de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek (C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 90).

( 44 ) V., a este respeito, artigo 21.o, alínea f), da Decisão‑Quadro 2008/909, que evoca «qualquer decisão de não execução da condenação, pelos motivos referidos no artigo 19.o, n.o 1 [desta decisão‑quadro]».

( 45 ) V. Conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Beshkov (C‑171/16, EU:C:2017:386, n.o 70).

( 46 ) C‑573/17, EU:C:2019:530.