CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 2 de abril de 2020 ( 1 )

Processo C‑3/19

Asmel societá consortile a r.l.

contra

A.N.A.C. — Autorità Nazionale Anticorruzione,

sendo interveniente:

A.N.A.C.A.P. — Associazione Nazionale Aziende Concessionarie Servizi entrate

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)]

«Reenvio prejudicial — Contratação pública — Centrais de compras — Pequenos municípios — Limitação a apenas dois modelos de organização públicos de central de compras — Proibição de intervenção de capital privado — Margem de apreciação dos Estados‑Membros — Limitação territorial das suas atividades»

1. 

O direito italiano em vigor à época dos factos, tal como interpretado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), aceita que as pequenas autoridades locais recorram a centrais de compras para a aquisição de obras, bens e serviços, sempre que sob modelos de organização exclusivamente públicos, como os consórcios entre municípios ou as uniões de municípios.

2. 

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à conformidade desta medida com o direito da União, na medida em que é suscetível de limitar a utilização das centrais de compras de uma forma incompatível com a Diretiva 2004/18/CE ( 2 ), aplicável ratione temporis às datas a que o seu pedido de decisão prejudicial diz respeito, e com os «princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos».

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União. Diretiva 2004/18

3.

Segundo o seu considerando 15:

«Foram desenvolvidas nos Estados‑Membros determinadas técnicas de centralização das compras. Várias entidades adjudicantes foram incumbidas de efetuar aquisições ou de adjudicar contratos públicos/celebrar acordos‑quadro destinados a outras entidades adjudicantes. Dado o grande volume de compras, estas técnicas permitem alargar a concorrência e aumentar a eficácia dos contratos públicos. Por conseguinte, deverá criar‑se uma definição comunitária de central de compras destinada às entidades adjudicantes. É ainda necessário definir as condições em que se pode considerar que, respeitando os princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento, as entidades adjudicantes que contratam empreitadas de obras, fornecimentos e/ou serviços recorrendo a uma central de compras observaram o disposto na presente diretiva».

4.

O considerando 16 enuncia:

«A fim de ter em conta a diversidade de circunstâncias verificada nos Estados‑Membros, convém permitir que estes prevejam a possibilidade de as entidades adjudicantes recorrerem a acordos‑quadro, a centrais de compras, a sistemas de aquisição dinâmicos, a leilões eletrónicos e ao diálogo concorrencial, tais como definidos e regulamentados na presente diretiva».

5.

O artigo 1.o («Definições») dispõe:

«[…]

9.   Por “entidades adjudicantes” entende‑se o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais organismos de direito público.

Por “organismo de direito público” entende‑se qualquer organismo:

a)

Criado para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com caráter não industrial ou comercial;

b)

Dotado de personalidade jurídica; e

c)

Cuja atividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público; ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte destes últimos; ou em cujos órgãos de administração, direção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.

As listas não exaustivas dos organismos e categorias de organismos de direito público que satisfazem os critérios referidos nas alíneas a), b) e c) do segundo parágrafo constam do anexo III. Os Estados‑Membros notificarão periodicamente a Comissão das alterações introduzidas nas suas listas.

10.   “Central de compras” é uma entidade adjudicante que:

adquire fornecimentos e/ou serviços destinados a entidades adjudicantes ou

procede à adjudicação de contratos públicos ou celebra acordos‑quadro de obras, de fornecimento ou de serviços destinados a entidades adjudicantes.

[…]»

6.

O artigo 11.o («Contratos públicos e acordos‑quadro celebrados por centrais de compras») prevê:

«1.   Os Estados‑Membros podem prever a possibilidade de as entidades adjudicantes contratarem empreitadas de obras, fornecimentos e/ou serviços recorrendo a uma central de compras.

2.   Considera‑se que as entidades adjudicantes que contratam empreitadas de obras, fornecimentos e/ou serviços recorrendo a uma central de compras nos casos referidos no n.o 10 do artigo 1.o cumpriram o disposto na presente diretiva sempre que a referida central de compras o tenha cumprido».

B.   Direito italiano

1. Testo unico degli enti locali (texto único das autoridades locais) ( 3 )

7.

Nos termos do artigo 30.o, n.o 1:

«A fim de executar de forma coordenada funções e serviços determinados, as autoridades locais podem celebrar entre si as convenções apropriadas».

8.

O artigo 31.o, n.o 1, dispõe:

«As autoridades locais, para a gestão conjunta de um ou mais serviços e para o exercício conjunto de funções, podem constituir um consórcio de acordo com as normas previstas para as empresas especiais a que se refere o artigo 114.o, na medida em que sejam compatíveis. No consórcio podem participar outras entidades públicas, quando sejam para tal autorizadas, ao abrigo da legislação a que estão sujeitas».

9.

O artigo 32.o, n.o 1, prevê:

«A união de municípios é a autoridade local constituída por dois ou mais municípios, em geral limítrofes, para o exercício conjunto de funções e serviços».

2. Codice dei contratti pubblici (Código dos contratos públicos) ( 4 )

10.

O artigo 3.o, n.o 25, qualifica de entidades adjudicantes:

«O Estado [a administração pública]; as autarquias locais e as Regiões Autónomas; as outras entidades públicas sem fins lucrativos; os organismos de direito público; as associações, uniões e consórcios, seja qual for a sua designação, constituídos pelos referidos sujeitos.»

11.

O artigo 3.o, n.o 34, considera central de compras:

«Uma entidade adjudicante que:

adquire fornecimentos ou serviços destinados a entidades adjudicantes, ou

procede à adjudicação de contratos públicos ou celebra acordos‑quadro de obras, fornecimentos ou serviços destinados a entidades adjudicantes.»

12.

Nos termos da versão inicial do artigo 33.o, n.o 3‑bis ( 5 ):

«Os municípios com uma população não superior a 5000 habitantes inseridos no território de cada província adjudicam obrigatoriamente a uma única central de compras a aquisição de obras, serviços e fornecimentos no âmbito das uniões dos municípios previstas no artigo 32.o do texto único a que se refere o Decreto Legislativo n.o 267, de 18 de agosto de 2000, caso existam, ou celebram um acordo de consórcio especial entre esses municípios, recorrendo aos serviços competentes».

13.

Nos termos da versão alterada ( 6 ) (em 2014) do referido artigo 33.o, n.o 3‑bis:

«Os municípios que não sejam capital de província procedem à aquisição de obras, bens e serviços no âmbito das uniões de municípios previstas no artigo 32.o do Decreto Legislativo n.o 267, de 18 de agosto de 2000, caso existam, ou celebram um acordo de consórcio especial entre esses municípios recorrendo aos serviços competentes, ou recorrendo a uma entidade agregadora ou à província, nos termos da Lei n.o 56, de 7 de abril de 2014. Em alternativa, os próprios municípios podem efetuar as suas aquisições através dos instrumentos eletrónicos de aquisição geridos pela CONSIP S.p.A. ou por outra entidade agregadora de referência».

II. Matéria de facto e questões prejudicais

14.

A Asmel società consortile a.r.l. (a seguir «Asmel s.c.a.r.l.») é uma sociedade consorciada de responsabilidade limitada, fundada em 23 de janeiro de 2013, em cujo capital participam o Consorcio Asmez (24 %) ( 7 ), a associação privada Asmel (25 %) ( 8 ) e o município de Caggiano (51 %).

Image

15.

A Asmel s.c.a.r.l. exerceu, ao longo dos anos, a atividade de central de compras a favor das autoridades locais ( 9 ).

16.

A relação entre a Asmel s.c.a.r.l. e os municípios não associados consistia em que os governos destes adotavam as decisões de contratar, em que:

por um lado, remetiam para uma decisão anterior pela qual tinham aprovado a adesão à associação Asmel e a constituição de um consórcio na aceção do artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP;

por outro, confiavam à Asmel s.c.a.r.l. a função de desenvolver os processos de adjudicação dos contratos públicos numa plataforma informática ( 10 ).

17.

Na sequência de várias denúncias, a Autorità Nazionale Anticorruzione (Autoridade Nacional Anticorrupção; a seguir «ANAC») procedeu a investigações em que constatou que nem a Asmel s.c.a.r.l., nem o Consorcio Asmez respeitavam os modelos de organização previstos para as centrais de compras no CCP.

18.

Segundo a ANAC, a Asmel s.c.a.r.l. era uma entidade de natureza privada, mais precisamente, uma sociedade de direito privado composta, por seu turno, por outras associações. Por conseguinte, não podia ser uma central de compras porque o ordenamento italiano exige formas públicas de atuação mediante entidades públicas ou associações entre autoridades locais, como as uniões de municípios e os consórcios entre os municípios resultantes de acordos nos termos do artigo 30.o do TUEL. Também precisou que, mesmo admitindo o recurso a entidades privadas, deve tratar‑se de organismos internos que exerçam uma atividade limitada ao território dos municípios fundadores, enquanto no presente caso era inexistente quer o requisito relativo ao controlo análogo, quer a delimitação territorial da atividade prestada.

19.

A ANAC considerou que a Asmel s.c.a.r.l. desenvolvia a sua atividade de aquisição de bens para as entidades aderentes, mas que estas participavam apenas indiretamente na central de compras. Explicava que as autoridades locais aderiam inicialmente à associação Asmel e só mais tarde, por deliberação da Câmara, confiavam as funções de compra à Asmel s.c.a.r.l.

20.

A ANAC, através da Deliberação n.o 32, de 30 de abril de 2015, excluiu que a sociedade Asmel s.c.a.r.l. pudesse ser qualificada de organismo de direito público, proferiu uma decisão que a proibia de exercer atividades de intermediação nas aquisições públicas e declarou ilegais os concursos por ela efetuados.

21.

A Asmel s.c.a.r.l. impugnou a deliberação da ANAC no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo e Regional do Lácio, Itália). Em seu entender, embora fosse uma entidade de direito comum, tinha personalidade jurídica, satisfazia exigências de interesse geral, não tinha caráter industrial ou comercial, era financiada pelas autoridades locais aderentes e operava sob a sua influência dominante. Por conseguinte, afirmava ser uma entidade adjudicante que preenchia os requisitos para ser considerada «central de compras».

22.

O tribunal de primeira instância negou provimento ao recurso da Asmel s.c.a.r.l. pela Sentença n.o 2339, de 22 de fevereiro de 2016. Tendo em conta o modo de financiamento e o controlo da sua gestão, excluiu que essa sociedade fosse um organismo de direito público. Observou a sua desconformidade com os modelos de organização das centrais de compras impostos pelo CCP e declarou que o seu âmbito de atuação se devia limitar ao território dos municípios fundadores.

23.

A Asmel s.c.a.r.l. interpôs recurso da referida sentença no Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) deduzindo diversos fundamentos, dos quais dois são considerados pertinentes, por esse órgão jurisdicional, para efeitos do caso em apreço:

que é errado declarar que o modelo de organização da sociedade em concórcio é incompatível com as disposições do CCP sobre as centrais de compras; e

que o CCP não impõe nenhum limite territorial operativo a essas centrais de compras.

24.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considera que as autarquias locais integram as entidades adjudicantes referidas no artigo 3.o, n.o 25, do CCP. Qualquer uma dessas entidades pode assumir, em princípio, a função de central de compras (artigo 3.o, n.o 34, do CCP). No entanto, os pequenos municípios têm de o fazer através de um «modelo de organização preciso» (artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP) que diverge do previsto, a título geral, para outras administrações.

25.

No que diz respeito a esse «modelo preciso», os pequenos municípios ( 11 ) só podem recorrer a centrais de compras configuradas de acordo com um destes dois modelos: a) as uniões de municípios previstas no artigo 32.o do TUEL e b) os consórcios entre autoridades locais referidos no artigo 31.o do TUEL ( 12 ).

26.

Na opinião do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), a referida obrigação imposta aos pequenos municípios parece colidir com a possibilidade de recorrer a centrais de compras sem limitações quanto às formas de cooperação.

27.

Constata, também, na legislação nacional um constrangimento adicional em relação aos consórcios de municípios, que exclui a participação de entidades privadas ( 13 ). A referida exclusão poderia ser contrária aos princípios do direito da União da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência, ao reservar apenas às entidades públicas italianas, taxativamente indicadas, o exercício de prestações de serviços qualificáveis de atividades empresariais e que, nesta perspetiva, poderiam ser melhor exercidas em regime de livre concorrência no mercado interno.

28.

Além disso, entende que, embora a legislação nacional não defina um âmbito de funcionamento para as centrais de compras, estabelece uma correspondência entre o território dos municípios que a elas recorrem e o seu âmbito de funcionamento. Este âmbito é, por isso, limitado ao território dos municípios incluídos na união dos municípios ou partes do consórcio. Em seu entender, também esta delimitação é contrária ao princípio da livre circulação de serviços e ao princípio da máxima abertura à concorrência, na medida em que institui zonas de exclusividade no funcionamento das centrais de compras.

29.

Neste contexto, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), submete ao Tribunal de Justiça estas questões prejudiciais:

«Uma disposição nacional, como o artigo 33.o, n.o 3‑bis, do Decreto Legislativo n.o 163, de 12 de abril de 2006, que limita a autonomia dos municípios para a adjudicação a uma central de compras a apenas dois modelos de organização, a união dos municípios, se já existir, ou o consórcio entre municípios que seja constituído, é contrária ao direito da União? E, em qualquer caso, uma disposição nacional, como o artigo 33.o, n.o 3‑bis, do Decreto Legislativo n.o 163, de 12 de abril de 2006 que, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 25, do Decreto Legislativo n.o 163, de 12 de abril de 2006, em relação ao modelo de organização dos consórcios de municípios, exclui a possibilidade de constituir entidades de direito privado como, por exemplo, o consórcio de direito comum com a participação também de entidades privadas, é contrária ao direito da União, em especial aos princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos de serviços? E, por último, uma disposição nacional, como o artigo 33, n.o 3‑bis, que, se for interpretada no sentido de que permite aos consórcios de municípios que constituem centrais de compras operar num território correspondente ao dos municípios aderentes unitariamente considerado, e, por conseguinte, no máximo, na área provincial, limita o âmbito de funcionamento dessas centrais de compras, é contrária ao direito da União, em especial aos princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos de serviços?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

30.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de janeiro de 2019.

31.

Apresentaram observações escritas a Asmel s.c.a.r.l., o Governo de Itália e a Comissão Europeia, que compareceram na audiência realizada em 29 de janeiro de 2020.

IV. Apreciação

A.   Admissibilidade das questões prejudiciais

32.

Tanto a Comissão como o Governo italiano colocam algumas objeções quando à admissibilidade das questões prejudiciais.

33.

Para o Governo italiano, essas questões são, no seu conjunto, inadmissíveis, por serem hipotéticas. Afirma que, fosse qual fosse a resposta do Tribunal de Justiça, não permitiria dar provimento ao recurso interposto no órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que nenhum serviço de compras foi confiado à Asmel s.c.a.r.l. na sequência de um processo concorrencial.

34.

A objeção não pode ser acolhida, uma vez que, cabendo ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a necessidade do pedido de decisão prejudicial para decidir o litígio em causa, o Tribunal de Justiça só poderia recusar pronunciar‑se se o contrário fosse demonstrado de forma manifesta (o que não acontece aqui).

35.

Essa objeção do Governo italiano diz mais respeito ao mérito do litígio do que à admissibilidade do próprio reenvio. Responder à questão de saber a que tipo de centrais de compras, públicas ou com participação privada, podem os pequenos municípios recorrer não é um problema hipotético, mas sim real, cuja resposta implica confrontar as limitações impostas pela disposição italiana com o direito da União.

36.

A Comissão garante, em primeiro lugar, que a disposição aplicada pela ANAC, cuja compatibilidade com o direito da União suscita dúvidas ao Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), parece ter sido revogada, pelo que teriam desaparecido os eventuais prejuízos para a Asmel s.c.a.r.l., sobre os quais incide o reenvio. Esta circunstância poderia determinar a extinção superveniente do objeto do litígio.

37.

A revogação a que se refere a Comissão é a que, em 2016, afetou o texto do artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP, após a sua alteração em 2014. Compete ao órgão de jurisdicional nacional verificar a incidência desta revogação no processo a quo, mas, na ótica que aqui nos interessa, não pode falar‑se de extinção do objeto do reenvio prejudicial, em particular se o litígio tiver de ser decidido em conformidade com a disposição em vigor à época dos factos ( 14 ).

38.

Quanto à exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão relativa à terceira questão prejudicial, tratá‑la‑ei no âmbito da análise desta última.

B.   Precisões preliminares

39.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) pretende saber, em substância, se é conforme com o direito da União um modelo de organização que, para as pequenas autoridades locais, só admite ( 15 ) o recurso a centrais de compras sob dois modelos (as uniões de municípios e os consórcios entre municípios).

40.

O despacho de reenvio menciona a livre prestação de serviços (artigo 56.o TFUE), como princípio que a legislação italiana poria em causa, referindo expressamente as disposições da Diretiva 2004/18 relativas às centrais de compras.

41.

Em matéria de contratos administrativos, a jurisprudência do Tribunal de Justiça recorre às liberdades fundamentais do TFUE quando a diretiva reguladora da matéria correspondente não é aplicável. Neste processo, a diretiva que regulava a adjudicação de contratos públicos ratione temporis (e, por conseguinte, o regime jurídico das centrais de compras no direito da União) era a Diretiva 2004/18.

42.

Aliás, o próprio CCP reproduz, no seu artigo 3.o, n.o 34, a definição de central de compras do artigo 1.o, n.o 10, da Diretiva 2004/18, o que deixa transparecer que a referida disposição nacional transpõe esta diretiva para o direito nacional.

43.

Por conseguinte, partilho da opinião da Comissão no sentido de que a resposta às questões prejudiciais deve ser dada no âmbito da Diretiva 2004/18.

44.

Por último, é irrelevante que o despacho de reenvio não especifique o valor de qualquer contrato público contestado no litígio de origem para saber se o mesmo atinge o limiar de aplicação da Diretiva 2004/18. A descrição que a entidade faz das atividades da Asmel s.c.a.r.l. constitui uma base para se considerar que se encontra acima do mínimo previsto no artigo 7.o da Diretiva 2004/18 ( 16 ), e é esta atividade, em geral, que é visada pelo reenvio prejudicial.

45.

Ainda que a resposta final que iremos dar às três questões prejudiciais seja única, parece‑me mais oportuno examiná‑las separadamente, pela ordem proposta pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional).

C.   Primeira questão prejudicial

46.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP «limita a autonomia dos municípios para a adjudicação a uma central de compras a apenas dois modelos de organização, a união dos municípios, se já existir, ou o consórcio entre municípios que seja constituído». A sua questão consiste em saber se essa disposição é contrária ao direito da União (sem precisões adicionais) ( 17 ).

47.

A maior ou menor extensão da autonomia das autoridades locais em cada Estado‑Membro, a que se refere o tribunal a quo, é algo que compete ao legislador constituinte, ou ao legislador ordinário, desses Estados, definir, sem que o direito da União imponha normas precisas a este respeito.

48.

Concentrar‑me‑ei, portanto, na Diretiva 2004/18, que introduziu as «centrais de compras» no direito da União, como reflexo de uma prática corrente em certos Estados‑Membros no sentido de as administrações públicas adquirirem bens ou serviços através deste sistema centralizado ( 18 ).

49.

Embora não seja aplicável ratione temporis, a Diretiva 2014/24/UE ( 19 ) optou por manter esta técnica de centralização de compras, até em termos mais categóricos do que a diretiva anterior ( 20 ).

50.

Nos termos da definição do artigo 1.o, n.o 10, da Diretiva 2004/18, «“[c]entral de compras” é uma entidade adjudicante que […] adquire fornecimentos e/ou serviços destinados a entidades adjudicantes ou […] procede à adjudicação de contratos públicos ou celebra acordos‑quadro de obras, de fornecimento ou de serviços destinados a entidades adjudicantes».

51.

Nos termos do artigo 11.o da Diretiva 2004/18, os Estados‑Membros podem prever a possibilidade de as entidades adjudicantes «contratarem empreitadas de obras, fornecimentos e/ou serviços recorrendo a uma central de compras» ( 21 ).

52.

O artigo 1.o, n.o 9, da Diretiva 2004/18 define os sujeitos que são considerados entidades adjudicantes: «o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais organismos de direito público».

53.

Nada obsta, na sistemática da Diretiva 2004/18, a que um organismo de direito público integre, em condições estritas, entidades privadas. Nos termos do artigo 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/18, a qualidade de organismo de direito público é constituída em função de determinados fatores relativos à sua origem e à sua personalidade jurídica ( 22 ), por um lado, e à sua dependência e controlo por parte do Estado, das autarquias locais ou regionais ou de outros organismos de direito público, por outro ( 23 ).

54.

Por conseguinte, um sujeito privado poderia, em princípio, fazer parte de um organismo público qualificado de entidade adjudicante, desde que esse organismo preenchesse as condições que acabo de referir ( 24 ).

55.

Segundo o despacho de reenvio, quando se trata de pequenas autoridades locais, estas devem ser constituídas sob formas de personificação exclusivamente públicas, como as uniões de municípios ou os consórcios entre municípios, com vista à criação de centrais de contratação de caráter local. Por conseguinte, essas centrais de compras, a que podem recorrer as pequenas autoridades locais para a aquisição de obras, bens e serviços não permitem a participação de sujeitos privados.

56.

A Diretiva 2004/18, embora exija que as centrais de compras sejam uma entidade adjudicante, não obriga os Estados‑Membros a garantirem que todos os organismos de direito público (com ou sem participação privada) que tenham a qualidade de entidade adjudicante recorram às referidas centrais.

57.

A Diretiva 2004/18 confere aos Estados‑Membros, nesta matéria, uma ampla margem de apreciação. O seu considerando 16, «[a] fim de ter em conta a diversidade de circunstâncias verificada nos Estados‑Membros», salienta a conveniência de «permitir que estes prevejam a possibilidade de as entidades adjudicantes recorrerem […] a centrais de compras, […], tais como definid[a]s e regulamentad[a]s na presente diretiva».

58.

O reflexo normativo deste considerando é concretizado no artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2004/18, acima referido. Em conformidade com essa disposição, os Estados‑Membros podem optar por permitir que as suas entidades adjudicantes (no caso em apreço, as autoridades locais) recorram a centrais de compras.

59.

Em meu entender, esta mesma opção estende‑se à escolha da regulamentação que melhor convém aos interesses públicos, uma vez que a Diretiva 2004/18 não estabelece regras específicas relativas à admissão de sujeitos privados nas centrais de compras. Por conseguinte, será suficiente que a disposição nacional não desvirtue os traços essenciais desta instituição e que exija que as referidas centrais cumpram, quanto ao seu funcionamento, as disposições da Diretiva 2004/18 (artigo 11.o, n.o 2, in fine).

60.

O recente Acórdão Irgita ( 25 ) oferece algumas orientações de interpretação que são igualmente válidas para este reenvio prejudicial. Embora tenha sido proferido num contexto diferente ( 26 ), ainda que no âmbito da adjudicação de contratos públicos, e relativamente a uma disposição (o artigo 12.o, n.o 1, da Diretiva 2014/24) alheia às centrais de compras, nele sublinha‑se que a referida disposição não priva os Estados‑Membros «da liberdade de privilegiar uma forma de prestação de serviços, de execução de obras ou de abastecimento de fornecimentos em detrimento de outras» ( 27 ).

61.

No Acórdão Irgita, o Tribunal de Justiça:

Afirma que «[a] liberdade dos Estados‑Membros quanto à escolha da forma de prestação de serviços através da qual as autoridades adjudicantes proverão às suas próprias necessidades decorre igualmente do considerando 5 da Diretiva 2014/24» ( 28 ).

Invoca, a título de argumento suplementar, a Diretiva 2014/23/UE ( 29 ) na medida em que sublinha a liberdade dos Estados‑Membros para decidir sobre a melhor forma de gerir a execução das obras ou a prestação de serviços ( 30 ). Refere, para corroborar esta posição, o artigo 2.o, n.o 1, da referida diretiva ( 31 ).

62.

Por conseguinte, apoiando‑me nesta liberdade de escolha dos Estados‑Membros, considero que a Diretiva 2004/18 não obsta a que um deles opte por exigir que as suas pequenas autoridades locais, quando pretendem utilizar uma central de compras própria, recorram a estruturas de colaboração, como as uniões de municípios e os consórcios entre municípios, exclusivamente públicas.

63.

Os Estados‑Membros são livres, repito, de estabelecer modelos ou técnicas de centralização de aquisições públicas (que tanto podem ser de nível [nacion]al, regional, provincial ou local) em função dos seus próprios interesses e das circunstâncias particulares de cada momento ( 32 ). Podem, também, como confirmaria posteriormente o artigo 37.o, n.o 1 in fine, da Diretiva 2014/24, «prever que determinados contratos públicos sejam adjudicados com recurso a centrais de compras ou a uma ou várias centrais de compras específicas».

64.

As uniões de municípios e os consórcios entre municípios são modelos de organização das autoridades locais que compartilham a sua natureza pública. Por conseguinte, não é de estranhar que a legislação nacional que regula esses modelos, estabelecidos para a gestão conjunta de serviços ou para o exercício conjunto de funções públicas, não preveja a participação, nos mesmos, de pessoas ou empresas privadas.

65.

O legislador nacional pode escolher tanto um sistema de aquisições públicas locais descentralizado (em que cada município contrata separadamente as suas aquisições de bens, obras ou serviços), como um sistema centralizado ou agregado (isto é, um modelo de compras conjuntas sob a responsabilidade de diversos municípios ou de centrais de compras, a que estes recorrem) ( 33 ).

66.

No que diz respeito a este segundo sistema, a Diretiva 2004/18 confere, insisto, liberdade ao legislador nacional para o definir. No âmbito dessa liberdade inclui‑se, ainda que a referida diretiva não o preveja expressamente (ao contrário da Diretiva 2014/24), a possibilidade de o impor de modo obrigatório a algumas entidades adjudicantes.

67.

Nada obstaria a que se previsse a participação de pessoas privadas nas centrais de compras. Mas não vejo porque seria contrário à Diretiva 2004/18, ou a qualquer outra disposição do direito da União, que o modelo de organização público, próprio das uniões de municípios e dos consórcios entre municípios, fosse transposto para as centrais de compras constituídas no âmbito dessas uniões ou desses consórcios, como meio para que os respetivos municípios adquiram obras, serviços e fornecimentos.

68.

No entanto, é verdade que a liberdade do legislador nacional não é ilimitada, como aliás salientou, noutro contexto próximo, o Acórdão Irgita, e que a escolha feita não deve contradizer as regras e os princípios do TFUE nem as liberdades nele proclamadas ( 34 ).

69.

A este respeito, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) limita‑se a afirmar que, como «as centrais de compras são empresas que disponibilizam o serviço de aquisição de bens e fornecimentos às administrações adjudicantes» ( 35 ), a restrição imposta pelo legislador italiano poderia violar a livre prestação de serviços, reconhecida pelo artigo 57.o TFUE.

70.

O facto de uma central de compras poder ser qualificada de operador económico, nas suas relações com terceiros ( 36 ), não é suficiente para determinar a aplicação dos artigos 56.o TFUE e 57.o TFUE quando aquele conceito não pode ser dissociado do de entidade adjudicante e este último, nos termos da Diretiva 2004/18, admite apenas como tais «o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais organismos de direito público».

71.

Estou, portanto, de acordo com o Governo italiano, quando alega que o estatuto das centrais de compras às quais é confiada, a título permanente, a função própria das entidades adjudicantes por conta das administrações públicas pode ser reservado, pelo legislador nacional, a pessoas de direito público ( 37 ).

72.

Essas centrais de compras não se encontravam em concorrência, ao abrigo da Diretiva 2004/18, num inexistente mercado de serviços de centrais de compras com sujeitos de natureza privada que disponibilizassem esses serviços às entidades públicas. Situação diferente consiste em que, no que diz respeito às atividades puramente auxiliares, de prestação de apoio às atividades de compra das entidades adjudicantes, empresas ou entidades privadas possam oferecer‑lhes, mediante remuneração, a sua colaboração (sob a forma de aconselhamento, por exemplo).

73.

A situação pode ter‑se alterado após a Diretiva 2014/24, cujo artigo 37.o, n.o 4, permite a adjudicação de um «contrato público de serviços para a prestação de atividades de compras centralizadas a uma central de compras».

74.

O facto de essa adjudicação poder ser completada «sem aplicar os procedimentos previstos na presente diretiva», como expressamente prevê essa disposição, poderia explicar‑se pelo facto de que é feita em benefício de centrais de compras de natureza pública (sendo o caso, com participação privada restringida e sob controlo público). Se assim não fosse, ou seja, se a adjudicação pudesse ser feita a favor de uma pessoa privada, é dificilmente compreensível que essa pessoa receba a adjudicação do contrato sem ter sido submetida, previamente, aos procedimentos previstos na Diretiva 2014/24.

75.

Com base nestas premissas, considero que não há que aplicar diretamente os artigos 56.o TFUE e 57.o TFUE ao caso em apreço. Independentemente do facto de todos os elementos do litígio estarem confinados ao território italiano, sem que sejam identificadas ligações transfronteiriças ( 38 ), o que importa é que a interpretação do direito da União, que deve ser considerada prevalecente (a Diretiva 2004/18), não exige que as centrais de compras construídas pelas pequenas autoridades locais integrem, necessariamente, sujeitos privados.

76.

Não considero que a disposição italiana, apreciada na perspetiva do direito da concorrência ( 39 ) no âmbito dos contratos públicos, o viole enquanto tal. A concorrência que o direito da União pretende proteger nesse âmbito é, essencialmente, a que ocorre entre os agentes económicos que disponibilizam obras, bens ou serviços às entidades adjudicantes. Na medida em que estes últimos (neste caso, as centrais de compras constituídas no âmbito das uniões de municípios e dos consórcios entre municípios) respeitem os procedimentos da Diretiva 2004/18 para acederem a estes fornecimentos, a concorrência entre os referidos agentes económicos é preservada.

77.

Por outras palavras, o acesso obrigatório das pequenas autoridades locais às suas próprias centrais de compras (através das uniões de municípios e dos consórcios entre municípios) não significa o encerramento do mercado concorrencial para que os agentes económicos interessados forneçam a essas administrações públicas os bens, obras ou serviços de que necessitam.

D.   Segunda questão prejudicial

78.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) pretende saber se é contrária ao direito da União («em especial aos princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos de serviços») uma disposição nacional que «exclui a possibilidade de constituir entidades de direito privado como, por exemplo, o consórcio de direito comum com a participação também de entidades privadas».

79.

Começo por referir que, apesar da sua redação, a segunda questão prejudicial não diz respeito à obrigatoriedade de os consórcios entre municípios permitirem, em geral, a participação de entidades privadas. A dúvida do órgão jurisdicional de reenvio, entendida no seu contexto, incide antes sobre a questão de saber se a proibição dessa participação do setor privado nas centrais de compras resultantes dos referidos consórcios é conforme com o direito da União.

80.

Interpretada desta forma, a resposta a esta dúvida decorre, na minha opinião, da resposta dada à primeira questão prejudicial, pelo que nada mais haveria a acrescentar.

81.

No entanto, a Comissão alega ( 40 ) que a deliberação da ANAC que está na origem do litígio excede o adequado ao impedir, de modo absoluto, que a Asmel s.c.a.r.l. exerça a atividade de «sujeito agregador» em quaisquer circunstâncias, recusando‑lhe a qualidade de entidade adjudicante ( 41 ).

82.

Segundo a Comissão, uma disposição nacional que, como a deste processo, exclui as entidades constituídas de acordo com uma determinada forma jurídica e com a participação de sujeitos privados é compatível com o direito da União sempre que, para as atribuições distintas ( 42 ) das que são objeto da referida disposição, as referidas entidades possam ser qualificadas de organismos de direito público, na aceção do artigo 1.o, n.o 9, da Diretiva 2004/18.

83.

Na audiência, a Comissão matizou a sua posição: após confirmar que o artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2004/18 é compatível com uma disposição nacional como a controvertida, que limita a dois os modelos de organização de centrais de compras a que as autoridades locais de menores dimensões podem recorrer, esclareceu que a sua objeção se limitava apenas a outros métodos de adjudicação de contratos públicos diferentes dos que implicam a utilização dessas centrais.

84.

Não creio, pela minha parte, que o Tribunal de Justiça tenha de se pronunciar sobre esta observação da Comissão, quando a questão do órgão jurisdicional de reenvio diz apenas respeito às atribuições específicas das uniões de municípios e dos consórcios entre municípios para constituir centrais de compras permanentes, e não a atribuições distintas. A possibilidade de as autoridades locais poderem contratar, elas próprias, num regime não centralizado de aquisições, é algo que excede o âmbito do reenvio prejudicial.

E.   Terceira questão prejudicial

85.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) toma como premissa a interpretação da disposição nacional em causa «no sentido de que permite aos consórcios de municípios que constituem centrais de compras operar num território correspondente ao dos municípios aderentes unitariamente considerado, e, por conseguinte, no máximo, na área provincial».

86.

Com base nessa interpretação, o tribunal a quo pretende saber se essa disposição nacional é contrária aos princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos de serviços.

87.

Tanto o Governo italiano como a Comissão fazem alguns reparos à forma como esta dúvida é apresentada:

O Governo italiano afirma que os fundamentos invocados pelo órgão jurisdicional de reenvio não se entendem com clareza, o que o impede de adotar uma posição a seu respeito. Na sua opinião, o referido tribunal defende posições contraditórias quando, por um lado ( 43 ), afirma que a norma instituiria «zonas de exclusividade no funcionamento das centrais de compras que operam a favor dos pequenos municípios» (o que, segundo o Governo italiano, pareceria supor que implica uma vantagem para os consórcios entre municípios); e, por outro, afirma que a limitação territorial implica uma desvantagem para as centrais de compras.

A Comissão entende que a questão é hipotética, uma vez que a limitação geográfica beneficiaria, em vez de prejudicar, centrais de compras como a Asmel s.c.a.r.l., na medida em que ampliaria (e não reduziria) o seu campo de atuação, distinto do das uniões de municípios e dos consórcios entre municípios.

88.

Em meu entender, a questão não é hipotética. O problema que suscita, que ultrapassa a expressão literal do despacho de reenvio, consiste em saber se é contrária ao direito da União (isto é, aos princípios já referidos) a limitação do âmbito territorial de atuação de determinadas centrais de compras, designadamente, as criadas pelas uniões de municípios e pelos consórcios entre municípios.

89.

É certo que essa dúvida faria todo o sentido para decidir um potencial litígio futuro relativo à constituição de um consórcio (público) de municípios como central de compras, situação que não constitui o objeto direto do litígio no processo principal. Limitando‑se este à deliberação da ANAC sobre a atuação da Asmel s.c.a.r.l. como central de compras ao serviço de qualquer município, sem limitações geográficas enquanto tal, as objeções suscitadas pela Comissão têm um certo peso.

90.

No entanto, deve prevalecer, novamente, a presunção de pertinência da questão prejudicial, tal como é submetida pelo juiz a quo. Se este considera ser necessária uma resposta do Tribunal de Justiça sobre uma questão de direito, que, em seu entender, exige a interpretação de uma norma da União, o Tribunal de Justiça deve fornecê‑la, exceto se for claro que não é necessária para o litígio de origem, o que não acontece no caso em apreço.

91.

Quanto ao mérito, não encontro na Diretiva 2004/18 nenhuma disposição que imponha aos Estados‑Membros regras de cumprimento obrigatório na identificação dos âmbitos de influência territorial das centrais de compras constituídas pelas uniões de municípios e pelos consórcios entre municípios.

92.

Além disso, parece‑me coerente com a conceção destes modelos de cooperação entre autoridades locais que as centrais de compras por elas criadas estejam limitadas aos seus respetivos territórios, tomados no seu conjunto. Do ponto de vista dos municípios que recebem os serviços da central de compras, os efeitos da relação que os liga a esta só se podem refletir nos seus próprios territórios.

93.

Como já referi, as eventuais dificuldades em validar esses modelos poderiam decorrer da obrigação de respeitar as liberdades fundamentais dos Tratados. Todavia, pelas razões que expus a propósito da primeira questão, considero que nem o artigo 56.o TFUE nem as regras do direito da concorrência são violadas. Em todo o caso, não resulta claramente da redação do despacho de reenvio em que medida alguma dessas liberdades poderia ver‑se limitada.

94.

Acrescento que, para quem fornece obras, bens ou serviços aos municípios por intermédio das centrais de compras por eles constituídas, nada indica que estas obras, serviços ou fornecimentos devam provir de empresas implantadas no território correspondente aos municípios aderentes. Por outras palavras, não há razões para pensar que o mercado está fechado às empresas exteriores a esse território, quer sejam italianas, quer sejam de qualquer outro Estado‑Membro.

V. Conclusão

95.

Atendendo ao exposto, sugiro que o Tribunal de Justiça responda ao Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) da seguinte forma:

«O direito da União e, em especial, o artigo 11.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não se opõe a uma disposição nacional nos termos da qual, segundo a interpretação do órgão jurisdicional de reenvio, as autoridades locais de pequena dimensão devem adquirir obras, bens e serviços através de centrais de compras constituídas segundo dois modelos de organização precisos, como a união de municípios ou o consórcio entre municípios, cujo âmbito de atuação se limita ao território dos referidos municípios, considerado no seu conjunto.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114).

( 3 ) Decreto Legislativo n.o 267, de 18 de agosto de 2000 (a seguir «TUEL»).

( 4 ) Decreto Legislativo n.o 163 de 12 de abril de 2006 (a seguir «CCP»).

( 5 ) Introduzido pelo artigo 23.o, n.o 4, do Decreto‑Lei n.o 201, de 6 de dezembro de 2011, ratificado pela Lei n.o 214, de 22 de dezembro de 2011.

( 6 ) Artigo 9.o, n.o 4, do Decreto‑Lei n.o 66, de 24 de abril de 2014, ratificado pela Lei n.o 89, de 23 de junho de 2014. O artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP seria posteriormente revogado por força do artigo 217.o do Decreto Legislativo n.o 50, de 18 de abril de 2016.

( 7 ) O Consorcio Asmez foi constituído em Nápoles, em 25 de março de 1994, por empresas privadas. Ficou operacional com a integração da Selene service s.r.l., sociedade concertada com a Associazione Nazionale Comuni Italiani (Associação Nacional de Municípios Italianos). Posteriormente, aderiram ao consórcio os municípios da Basilicata e da Calábria.

( 8 ) A associação Asmel foi constituída em 26 de maio de 2010, pela Asmenet Campania e pela Asmenet Calabria, ambas sociedades consorciadas de responsabilidade limitada, e pelo Consorzio Asmez e a Associazione Nazionale Piccoli Comuni Italiani (Associação Nacional de Pequenos Municípios Italianos).

( 9 ) Concretamente, segundo o despacho de reenvio, organizou um concurso público para a celebração de acordos‑quadro a fim de adjudicar o serviço de liquidação e de fiscalização da tributação municipal sobre bens imóveis e a cobrança coerciva de dívidas fiscais, bem como 152 processos de concurso telemático de natureza diversa para municípios ligados à Asmel s.c.a.r.l.

( 10 ) A contrapartida por estes serviços era quantificada em 1,5 % do montante do contrato e era suportado pelo adjudicatário de cada um dos contratos celebrados através da referida plataforma.

( 11 ) Inicialmente, de acordo com a primeira versão da disposição, os municípios com uma população inferior a 5000 habitantes, depois, à luz da formulação de 2014, todos os municípios que não sejam capital de província.

( 12 ) No entanto, há que acrescentar, como salienta o Governo italiano, que a disposição controvertida admite, desde a sua alteração em 2014, que, «em alternativa, os próprios Municípios poderão efetuar as suas aquisições através dos instrumentos eletrónicos de aquisição geridos pela CONSIP S.p.A. ou por outra entidade agregadora de referência». A decisão da ANAC, de 30 de abril de 2015, fazia referência a estas duas possibilidades, sublinhando que os pequenos municípios também podiam recorrer à central de compras criada a nível nacional para as aquisições das administrações públicas (Consip) ou a outros «sujeitos agregadores de referência», entre os quais, as centrais de compras de nível regional.

( 13 ) Nos termos da definição de «entidade adjudicante» do artigo 3.o, n.o 25, do CCP, os consórcios com esse caráter são constituídos apenas entre entidades públicas.

( 14 ) Na audiência, o Governo italiano afirmou que a nova regulamentação das centrais de compras (artigo 37.o, n.o 4 do Decreto Legislativo n.o 50, de 18 de abril de 2016), que deveria substituir a do revogado artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP, não entraria em vigor até 31 de dezembro de 2020, por força do artigo 1.o da Lei n.o 55 de 2019. Com este dado, a Comissão reconheceu a utilidade da resposta prejudicial para a solução do litígio, apesar da reforma legislativa de 2016.

( 15 ) O despacho de reenvio parte dessa asserção. V., no entanto, a matização do Governo italiano quanto à possibilidade de os pequenos municípios recorrerem, também, às centrais de compras de nível estatal ou regional (cfr. nota 12).

( 16 ) O n.o 1.4 do despacho de reenvio, a que a Comissão se refere no n.o 34 das suas observações, indica que a Asmel s.c.a.r.l. tratou de, pelo menos, 152 processos de adjudicação em nome de diferentes autoridades locais (v. nota 9 destas conclusões).

( 17 ) V. nota 12, sobre outras possibilidades disponíveis para os municípios.

( 18 ) Considerando 15 da Diretiva 2004/18.

( 19 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65).

( 20 ) Considerando 59 da Diretiva 2014/24: «Os mercados dos contratos públicos da União têm vindo a registar uma forte tendência para a agregação da procura pelos adquirentes públicos, a fim de obter economias de escala, incluindo a redução dos preços e dos custos das transações, e de melhorar e profissionalizar a gestão dos contratos públicos».

( 21 ) Nos termos da versão inglesa do artigo, «contracting authorities may purchase works, suplies and/or services from or through a central purchasing body» (o sublinhado é meu). A utilização da dupla expressão (from or through) parece antecipar a dualidade de categorias e de funções das centrais de compras, que precisa mais claramente a posterior Diretiva 2014/24, podem atuar quer como grossistas, que compram, armazenam e revendem, quer como intermediários das entidades adjudicantes, para os quais adjudicam contratos, gerem sistemas de adquisição dinâmicos ou celebram acordos‑quadro que as referidas entidades adjudicantes vão utilizar (v. o considerando 69 da Diretiva 2014/24).

( 22 ) Devem ser organismos criados para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com caráter não industrial ou comercial, e dotados de personalidade jurídica.

( 23 ) Devem ser organismos «[c]uja atividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público; ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte destes últimos; ou em cujos órgãos de administração, direção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público».

( 24 ) No que diz respeito à Asmel s.c.a.r.l, a recusa em reconhecer‑lhe o status de organismo de direito público baseou‑se no seu modo de financiamento e na presença, no seu âmbito, de empresas e outras entidades privadas, relativamente a cuja gestão ou direção o Estado, as autarquias locais ou regionais ou os outros organismos de direito público não podem exercer o controlo exigido pela disposição. Competirá ao órgão jurisdicional de reenvio confirmar, ou não, esta apreciação do órgão jurisdicional de primeira instância.

( 25 ) Acórdão de 3 de outubro de 2019 (C‑285/18, EU:C:2019:829) (a seguir «Acórdão Irgita»).

( 26 ) Nesse processo estava em causa a questão de saber se as restrições nacionais excediam «[…] as condições que uma autoridade adjudicante deve cumprir quando deseja celebrar uma transação interna».

( 27 ) Acórdão Irgita, n.o 44.

( 28 ) Ibidem, n.o 45. Embora as referências sejam relativas à Diretiva 2014/24, que não é ratione temporis aplicável a este processo, esse mesmo n.o 45 salienta que o considerando 5 «[consagra] […] a jurisprudência do Tribunal de Justiça anterior à referida diretiva». Segundo o considerando referido, «nada na presente diretiva obriga os Estados‑Membros a confiar a terceiros, mediante contrato, ou a externalizar a prestação de serviços que pretendam eles próprios prestar ou organizar por meios diferentes dos contratos públicos na aceção da presente diretiva».

( 29 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO 2014, L 94, p. 1).

( 30 ) Acórdão Irgita, n.o 47.

( 31 ) «A presente diretiva reconhece o princípio da livre administração das autoridades nacionais, regionais e locais, em conformidade com a legislação nacional e da União em vigor. Estas autoridades têm a liberdade de decidir sobre a melhor forma de gerir a execução das obras ou a prestação de serviços, de modo a garantir um elevado nível de qualidade, de segurança e de acessibilidade de preços, a igualdade de tratamento e a promoção do acesso universal e dos direitos dos utilizadores dos serviços públicos. Estas autoridades podem optar por prosseguir as suas missões de interesse público, utilizando os respetivos recursos, ou em cooperação com outras autoridades ou confiando a sua execução a operadores económicos».

( 32 ) O Governo italiano, ao transcrever parte da decisão da ANAC, de 30 de abril de 2015, destaca que a disposição em causa foi introduzida para prevenir o risco de infiltrações mafiosas (artigo 13.o da Lei n.o 136/2010, «plano extraordinário contra as máfias»). O posterior Decreto «Salva‑Italia» (artigo 23.o, n.o 4, do Decreto‑Lei n.o 201, de 6 de dezembro de 2011, ratificado pela Lei n.o 214, de 22 de dezembro de 2011), ao redigir a nova versão do artigo 33.o, n.o 3‑bis, do CCP, levou a que a centralização das aquisições dos municípios mais pequenos se tornasse numa obrigação e num instrumento de controlo de despesas.

( 33 ) Os limites que a Constituição de cada Estado pode impor ao poder legislativo no que diz respeito à autonomia local das autarquias locais e regionais (isto é, a sua capacidade de auto‑organização) não são relevantes para as questões suscitadas no caso em apreço.

( 34 ) Acórdão Irgita, n.o 48: «Todavia, a liberdade de que os Estados‑Membros dispõem quanto à escolha da melhor forma de gerir a execução das obras ou a prestação de serviços não pode ser ilimitada. Deve, pelo contrário, ser exercida no respeito das regras fundamentais do Tratado FUE, designadamente as regras fundamentais da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, bem como [dos] princípios delas decorrentes, como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência».

( 35 ) N.o 10.3 do despacho de reenvio.

( 36 ) É o caso da Asmel s.c.a.r.l., cujas prestações são remuneradas pelos seus clientes.

( 37 ) Observações do Governo italiano, n.os 70 e segs.

( 38 ) Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 47), citando a jurisprudência anterior: «as disposições do Tratado FUE em matéria de […] livre prestação de serviços […] não são aplicáveis a uma situação em que todos os elementos estejam confinados a um único Estado‑Membro».

( 39 ) Nessa perspetiva, o risco de distorção da concorrência pode antes decorrer da agregação e da centralização das compras que, como refere o considerando 59 da Diretiva 2014/24, poderiam gerar uma «concentração excessiva do poder de compra e situações de conluio».

( 40 ) N.os 60 a 63 das suas observações escritas.

( 41 ) A Comissão reconhece que compete exclusivamente ao órgão de jurisdição nacional pronunciar‑se sobre a qualificação de organismo de direito público da Asmel s.c.a.r.l., para cujo efeito terá que ponderar, entre outros fatores, se os poderes públicos exercem, nessa sociedade, uma influência dominante. A Asmel s.c.a.r.l concorda com esta premissa.

( 42 ) Sublinhado no original.

( 43 ) N.o 11.3 do despacho de reenvio.