ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

18 de junho de 2020 ( *1 )

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Função pública — Funcionários — Diretor‑geral do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) — Imunidade de jurisdição — Decisão de levantamento — Ato lesivo — Direitos de defesa»

No processo C‑831/18 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 21 de dezembro de 2018,

Comissão Europeia, representada por J.‑P. Keppenne e J. Baquero Cruz, na qualidade de agentes,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

RQ, antigo funcionário da Comissão Europeia, representado por É. Boigelot, avocat,

recorrente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras (relator), presidente de secção, S. Rodin, D. Šváby, K. Jürimäe e N. Piçarra, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 5 de setembro de 2019,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 19 de dezembro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

No seu recurso, a Comissão Europeia pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 24 de outubro de 2018, RQ/Comissão (T‑29/17, a seguir acórdão recorrido, EU:T:2018:717), pelo qual este anulou a Decisão C(2016) 1449 final da Comissão, de 2 de março de 2016, relativa a um pedido de levantamento da imunidade de jurisdição de RQ (a seguir «decisão controvertida»).

Quadro jurídico

Protocolo n.o 7

2

Nos termos do artigo 11.o, alínea a), do Protocolo (n.o 7) relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia (JO 2010, C 83, p. 266, a seguir «Protocolo n.o 7»):

«No território de cada Estado‑Membro e independentemente da sua nacionalidade, os funcionários e outros agentes da União:

a)

Gozam de imunidade de jurisdição no que diz respeito aos atos por eles praticados na sua qualidade oficial, incluindo as suas palavras e escritos, sem prejuízo da aplicação das disposições dos Tratados relativas, por um lado, às normas sobre a responsabilidade dos funcionários e agentes perante a União e, por outro, à competência do Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir sobre os litígios entre a União e os seus funcionários e outros agentes. Continuarão a beneficiar desta imunidade após a cessação das suas funções […]»

3

O artigo 17.o do Protocolo n.o 7 prevê:

«Os privilégios, imunidades e facilidades são concedidos aos funcionários e outros agentes da União exclusivamente no interesse desta.

Cada instituição da União deve levantar a imunidade concedida a um funcionário ou outro agente, sempre que considere que tal levantamento não é contrário aos interesses da União.»

4

Nos termos do artigo 18.o do Protocolo n.o 7:

«Para efeitos da aplicação do presente Protocolo, as instituições da União cooperarão com as autoridades responsáveis dos Estados‑Membros interessados.»

Estatuto

5

O artigo 23.o do Estatuto dos Funcionários da União Europeia (a seguir «Estatuto») dispõe:

«Os privilégios e imunidades de que beneficiam os funcionários são conferidos unicamente no interesse da União. Sem prejuízo das disposições do Protocolo [n.o 7], os interessados não estão isentos do cumprimento das suas obrigações privadas, nem da observância das leis e regulamentos de polícia em vigor.

Sempre que estiverem em causa tais privilégios e imunidades, o funcionário em questão deverá imediatamente participar tal facto à entidade competente para proceder a nomeações.

[…]»

6

O artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto enuncia:

«Qualquer pessoa referida neste Estatuto pode apresentar à entidade competente para proceder a nomeações uma reclamação contra um ato que lhe cause prejuízo, quer porque a dita autoridade haja tomado uma decisão, quer porque se haja abstido de tomar uma medida imposta pelo Estatuto. A reclamação deve ser apresentada num prazo de três meses. […]

[…]

A entidade comunica a sua decisão fundamentada ao interessado num prazo de quatro meses, a partir do dia da apresentação da reclamação. No termo deste prazo, a falta de resposta à reclamação vale como decisão implícita de indeferimento, suscetível de ser objeto de recurso na aceção do artigo 91.o»

Antecedentes do litígio e decisão controvertida

7

Os antecedentes do litígio figuram nos n.os 1 a 18 do acórdão recorrido, podendo, para efeitos do presente processo, ser resumidos da seguinte forma.

8

Em 2012, um fabricante de produtos do tabaco apresentou à Comissão uma denúncia que continha alegações graves sobre o envolvimento de um membro da Comissão em tentativas de corrupção. O Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF), do qual RQ era então diretor‑geral, abriu um inquérito administrativo para efetuar as necessárias verificações e controlos.

9

Com base nos elementos recolhidos na primeira fase da investigação, o OLAF considerou que poderia ser oportuno pedir a uma testemunha que tivesse uma conversa telefónica, suscetível de fornecer elementos de prova adicionais, com uma pessoa pretensamente envolvida na alegada tentativa de corrupção.

10

A referida conversa telefónica ocorreu em 3 de julho de 2012. A testemunha fez uma chamada telefónica utilizando, com o acordo e na presença de RQ, um telemóvel nas instalações do OLAF. A conversa telefónica foi gravada pelo OLAF e transcrita no seu relatório final de investigação.

11

Após o encerramento dessa investigação administrativa, foi apresentada a um juiz belga uma queixa‑crime, na qual foi invocada, designadamente, a escuta telefónica ilegal. Para poder instruir essa queixa, o juiz de instrução belga competente pediu à Comissão o levantamento da imunidade de RQ, com vista à sua audição na qualidade de arguido. Como a Comissão queria mais esclarecimentos, o procurador federal belga comunicou‑lhe alguns elementos da investigação do OLAF que poderiam ser considerados indícios de uma escuta telefónica ilegal criminalmente repreensível.

12

Foi nessas circunstâncias que, em 2 de março de 2016, a Comissão deu seguimento ao pedido da justiça belga e adotou a decisão controvertida, pela qual, nos termos do artigo 17.o, segundo parágrafo, do Protocolo n.o 7, levantou a imunidade de jurisdição de RQ relativamente às alegações de facto referentes à escuta de uma conversa telefónica.

13

Resulta dos fundamentos da decisão controvertida que a Comissão entendeu que as autoridades nacionais competentes lhe tinham dado indicações muito claras e precisas, que permitiam considerar que as alegações formuladas contra RQ justificavam a prossecução da instrução a seu respeito, e que, por conseguinte, seria contrário ao princípio da cooperação leal para com as autoridades nacionais recusar o levantamento da imunidade.

14

A decisão controvertida foi comunicada a RQ em 11 de março de 2016. RQ apresentou reclamação contra a mesma, ao abrigo do artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto, que foi indeferida pela autoridade investida do poder de nomeação em 5 de outubro de 2016.

Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão recorrido

15

Por petição entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 17 de janeiro de 2017, RQ interpôs recurso de anulação da decisão controvertida e da Decisão de 5 de outubro de 2016.

16

No acórdão recorrido, o Tribunal Geral anulou a decisão controvertida.

17

O Tribunal Geral começou por julgar improcedente, no n.o 45 desse acórdão, a exceção de inadmissibilidade do recurso deduzida pela Comissão, fundada no facto de as decisões de levantamento da imunidade dos funcionários e agentes da União não alterarem a situação jurídica destes últimos, pelo que a decisão controvertida não constituía um ato lesivo.

18

A este respeito, no n.o 37 do referido acórdão, o Tribunal Geral observou, nomeadamente, que «[o] facto de os privilégios e imunidades [em causa no Protocolo n.o 7] serem previstos no interesse público da União justifica o poder dado às instituições de, se for caso disso, levantarem a imunidade, mas não significa que esses privilégios e imunidades sejam concedidos exclusivamente à União e não igualmente aos seus funcionários, outros agentes e membros do Parlamento. Assim, o [Protocolo n.o 7] cria um direito subjetivo em benefício das pessoas em causa, cujo respeito é garantido pelo sistema das vias de recurso previsto no Tratado».

19

No n.o 38 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral acrescentou que «uma decisão que levanta a imunidade de um funcionário ou agente modifica a situação jurídica deste, pelo mero efeito da supressão dessa proteção, restabelecendo o seu estatuto de pessoa sujeita ao direito comum dos Estados‑Membros, expondo‑o deste modo, sem que nenhuma regra intermédia seja necessária, a medidas, designadamente de detenção e procedimento judicial, instituídas por esse direito comum».

20

Quanto ao mérito do litígio, o Tribunal Geral examinou, em primeiro lugar, o quinto fundamento de recurso de RQ, relativo à violação dos direitos de defesa. O referido fundamento continha três partes, relativas, primeiro, à violação do direito de ser ouvido, segundo, à violação do respeito da presunção de inocência e do dever de imparcialidade e, terceiro, à violação do dever de diligência. Com base nos fundamentos expostos nos n.os 52 a 76 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral julgou procedente a primeira parte desse fundamento e, consequentemente, anulou a decisão controvertida, sem examinar as restantes partes do referido fundamento nem os demais fundamentos de recurso.

21

No n.o 52 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral recordou a jurisprudência constante segundo a qual «o respeito dos direitos de defesa, designadamente o direito de ser ouvido, em qualquer processo instaurado contra uma pessoa e suscetível de culminar na adoção de um ato lesivo dos interesses desta, constitui um princípio fundamental do direito da União e deve ser garantido mesmo na falta de regulamentação relativa ao processo em causa». Esclareceu, nos n.os 55 e 56 desse acórdão, que, segundo jurisprudência igualmente constante, os direitos fundamentais, como o respeito dos direitos de defesa, podem comportar restrições, na condição de estarem previstas por lei, respeitarem o conteúdo essencial do direito fundamental em causa, corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituírem, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável.

22

No n.o 57 do mesmo acórdão, o Tribunal Geral, após assinalar que era ponto assente que RQ não tinha sido ouvido antes da adoção da decisão controvertida, referiu que era necessário verificar se a limitação do direito de ser ouvido imposta no presente caso preenchia as condições acima referidas.

23

Após ter exposto, no n.o 58 do acórdão recorrido, que a Comissão tinha justificado essa limitação do direito de ser ouvido pela necessidade de respeitar o segredo de justiça no inquérito realizado pelas autoridades belgas, conforme exigido pelo direito belga invocado por estas autoridades, o Tribunal Geral, que constatou que o direito belga consagrava o princípio do segredo de justiça, considerou, no n.o 63 desse acórdão, que a não audição prévia da pessoa em causa pode, em princípio, ser objetivamente justificada pelo segredo de justiça, em conformidade com o disposto no artigo 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

24

Em seguida, o Tribunal Geral analisou se a não audição de RQ era necessária e proporcionada à salvaguarda do segredo de justiça e ao bom andamento do processo penal. Sublinhou, nos n.os 66 e 67 do acórdão recorrido, que, se uma autoridade nacional se opuser à comunicação ao interessado dos motivos precisos e completos que constituem o fundamento do pedido de levantamento de imunidade, invocando razões de segredo de justiça, a Comissão deve, em colaboração com as autoridades nacionais, de acordo com o princípio da cooperação leal, aplicar medidas destinadas a conciliar, por um lado, o respeito do direito da pessoa interessada de ser ouvida antes da adoção de um ato que lhe é lesivo e, por outro, as considerações legítimas relativas ao segredo de justiça.

25

O Tribunal Geral considerou, no n.o 69 do acórdão recorrido, que não resultava dos autos de que dispunha que a Comissão tivesse efetuado essa ponderação no momento da adoção da decisão controvertida. A este respeito, baseou‑se em três elementos, evocados nos n.os 70 a 72 do referido acórdão. Assim, em primeiro lugar, observou que a Comissão não perguntou às autoridades nacionais por que razão a audição prévia do recorrente comportava riscos para o respeito do segredo de justiça. Em segundo lugar, referiu que as autoridades belgas não invocaram qualquer risco sério de que a pessoa em causa pudesse prejudicar o bom andamento da instrução, o que poderia justificar que o pedido de levantamento da imunidade que lhe dizia respeito não lhe fosse comunicado. Em terceiro lugar, sublinhou as lacunas das respostas das autoridades belgas ao pedido da Comissão de audição de RQ sobre os pedidos de levantamento de imunidade e observou que, em qualquer caso, a Comissão não as tinha interrogado sobre a possibilidade de elaborar uma versão não confidencial desses pedidos, suscetível de ser comunicada a RQ.

26

Além disso, no n.o 76 do referido acórdão, o Tribunal Geral considerou que não era de excluir inteiramente que a decisão controvertida pudesse ter tido um conteúdo diferente se o direito de ser ouvido de RQ tivesse sido respeitado, uma vez que este poderia ter dado a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre o levantamento da sua imunidade e, mais particularmente, sobre o interesse da União e a preservação da sua necessária independência enquanto funcionário que assumia o cargo de diretor‑geral do OLAF.

Pedidos das partes no Tribunal de Justiça

27

A Comissão conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que se digne:

anular o acórdão recorrido;

decidir definitivamente o litígio negando provimento ao recurso de RQ e condená‑lo nas despesas processuais tanto no Tribunal Geral como no presente processo; e,

a título subsidiário, se o litígio não estiver em condições de ser julgado pelo Tribunal de Justiça, devolver o processo ao Tribunal Geral para nova decisão sobre o recurso.

28

RQ conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que se digne:

negar provimento ao presente recurso na sua totalidade, por ser manifestamente inadmissível e, no mínimo, improcedente; e

condenar a Comissão nas despesas, incluindo as despesas efetuadas em primeira instância.

Quanto ao presente recurso

29

A Comissão invoca três fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo a um erro de direito cometido pelo Tribunal Geral ao declarar que a decisão controvertida constituía um ato lesivo. O segundo fundamento, invocado a título subsidiário, é relativo a um erro de direito do Tribunal Geral na interpretação e aplicação do artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta e do artigo 4.o, n.o 3, TUE. O terceiro fundamento, invocado a título ainda mais subsidiário, é relativo a um erro de direito do Tribunal Geral na qualificação da «conduta» da Comissão.

Quanto ao primeiro fundamento, relativo a um erro de direito cometido pelo Tribunal Geral ao qualificar a decisão controvertida de «ato lesivo»

Argumentos das partes

30

Com o primeiro fundamento, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que as decisões de levantamento de imunidade como a decisão controvertida são lesivas dos interesses dos funcionários da União e suscetíveis de recurso para os tribunais da União.

31

Em primeiro lugar, a Comissão alega que o Tribunal Geral considerou, incorretamente, que podia basear‑se em jurisprudência constante, quando essa questão de direito nunca foi submetida ao Tribunal de Justiça.

32

Mais especificamente, a Comissão sustenta, por um lado, que, no Acórdão de 16 de dezembro de 1960, Humblet/Estado belga (6/60‑IMM, EU:C:1960:48), o Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre a questão da natureza de ato lesivo de uma decisão de levantamento da imunidade, dado que baseou o seu raciocínio no artigo 16.o do Protocolo Relativo aos Privilégios e Imunidades da CECA. Ora, essa disposição não tem equivalente no Protocolo n.o 7.

33

Por outro lado, quanto aos Acórdãos de 15 de outubro de 2008, Mote/Parlamento (T‑345/05, EU:T:2008:440), e de 17 de janeiro de 2013, Gollnisch/Parlamento (T‑346/11 e T‑347/11, EU:T:2013:23), essa instituição sublinha que diziam respeito a membros do Parlamento Europeu, e não a funcionários da União. Ora, a imunidade dos membros do Parlamento não tem a mesma natureza nem o mesmo alcance que a imunidade dos funcionários e dos outros agentes da União.

34

Em segundo lugar, a Comissão considera que resulta da letra, do contexto e da finalidade do artigo 17.o do Protocolo n.o 7 que a decisão de levantamento da imunidade de um funcionário não causa prejuízo a este último, uma vez que não altera a sua situação jurídica, mas apenas a da União e do Estado‑Membro que requer o levantamento.

35

Com efeito, resulta deste artigo, o que é confirmado tanto pelo Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o. (C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.o 19), como pelo artigo 343.o TFUE, que a proteção da imunidade de jurisdição é conferida à própria União e que, regra geral, esta deve ser levantada, salvo se isso for contrário aos interesses da União. Do mesmo modo, o artigo 23.o do Estatuto, única disposição do Estatuto a fazer referência aos privilégios e imunidades dos funcionários, confirma, como resulta da sua própria letra, que esses privilégios e imunidades são «conferidos unicamente no interesse da União».

36

Além disso, a finalidade do artigo 17.o do Protocolo n.o 7 consiste na proteção da própria União em casos extremos, em que o cumprimento da sua missão é posto em perigo pela ação dos órgãos jurisdicionais nacionais.

37

A Comissão acusa, portanto, o Tribunal Geral de ter declarado que o Protocolo n.o 7 cria direitos subjetivos a favor das pessoas visadas. Ora, relativamente ao funcionário em causa, a decisão de levantamento da imunidade de jurisdição deve ser considerada um ato preparatório, que se limita a remover um obstáculo processual ao andamento normal de um processo judicial nacional. Apenas a decisão penal nacional transitada em julgado pode ter, em caso de condenação, verdadeira incidência na posição jurídica desse funcionário. Aliás, no âmbito do processo nacional, o referido funcionário pode sempre impugnar a validade da decisão de levantamento de imunidade, devendo, em caso de dúvida, o órgão jurisdicional nacional submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial. A Comissão considera que aquela decisão é análoga à decisão do OLAF que abre um inquérito contra um funcionário ou que transmite, após um inquérito, o seu relatório final às autoridades judiciais nacionais. Segundo jurisprudência constante, tais atos têm natureza preparatória, não sendo passíveis de recurso de anulação.

38

Consequentemente, a Comissão considera que o fundamento do Tribunal Geral, que figura no n.o 38 do acórdão recorrido, segundo o qual uma decisão que levanta a imunidade de um funcionário ou de um agente modifica a situação jurídica deste pelo mero efeito da supressão da proteção, de que beneficiava por força do artigo 11.o do Protocolo n.o 7, contra os procedimentos das autoridades dos Estados‑Membros, resulta de uma conceção incorreta da imunidade entendida como direito subjetivo.

39

RQ considera que o primeiro fundamento de recurso deve ser julgado inadmissível. Na sua opinião, a Comissão reitera os mesmos argumentos apresentados em primeira instância e procura assim, na realidade, obter uma mera reapreciação da petição apresentada no Tribunal Geral, o que escapa à competência do Tribunal de Justiça.

40

A título subsidiário, RQ considera que o Tribunal Geral não cometeu nenhum erro de direito ao qualificar a decisão controvertida de ato lesivo.

Apreciação do Tribunal de Justiça

41

A título preliminar, cabe salientar que, contrariamente às alegações de RQ, o primeiro fundamento é admissível.

42

Com efeito, quando um recorrente contesta a interpretação ou a aplicação do direito da União feita pelo Tribunal Geral, as questões de direito examinadas em primeira instância podem ser de novo discutidas em sede de recurso no Tribunal de Justiça. Efetivamente, se um recorrente não pudesse basear o seu recurso em fundamentos e argumentos já utilizados no Tribunal Geral, o processo de recurso ficaria privado de uma parte do seu sentido (Acórdão de 20 de setembro de 2016, Mallis e o./Comissão e BCE, C‑105/15 P a C‑109/15 P, EU:C:2016:702, n.o 36 e jurisprudência referida).

43

Ora, com o primeiro fundamento, a Comissão contesta a interpretação e a aplicação do direito da União feita pelo Tribunal Geral, que o levou a considerar, contrariamente à argumentação nele desenvolvida pela Comissão, que a decisão controvertida constituía um ato lesivo dos interesses de RQ, suscetível de ser objeto de recurso de anulação.

44

Quanto à apreciação do mérito do primeiro fundamento da Comissão, há que recordar que só causam prejuízo, na aceção do artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto, os atos ou as medidas que produzem efeitos jurídicos vinculativos suscetíveis de afetar direta e imediatamente os interesses do recorrente, modificando de forma caracterizada a sua situação jurídica (Acórdão de 14 de setembro de 2006, Comissão/Fernández Gómez, C‑417/05 P, EU:C:2006:582, n.o 42; v., neste sentido, Acórdãos de 21 de janeiro de 1987, Stroghili/Tribunal de Contas, 204/85, EU:C:1987:21, n.os 6 e 9, e de 14 de fevereiro de 1989, Bossi/Comissão, 346/87, EU:C:1989:59, n.o 23).

45

Ora, como o Tribunal Geral observou no n.o 38 do acórdão recorrido, uma decisão que levanta a imunidade de um funcionário, como a decisão controvertida, modifica a situação jurídica deste pelo mero efeito da supressão da proteção que lhe é conferida pela imunidade de jurisdição prevista no artigo 11.o, alínea a), do Protocolo n.o 7, restabelecendo o seu estatuto de pessoa sujeita ao direito comum dos Estados‑Membros e expondo‑o, sem que nenhuma regra intermédia seja necessária, a medidas, designadamente, de detenção e de procedimento judicial, instituídas por esse direito comum.

46

Assim, visto que a imunidade de jurisdição de um funcionário da União conferida pelo artigo 11.o, alínea a), do Protocolo n.o 7 é levantada por uma decisão da autoridade investida do poder de nomeação da sua instituição, que altera, assim, a sua situação jurídica, a Comissão não tem razão ao sustentar que o Tribunal Geral não podia adotar uma solução análoga à adotada no Acórdão de 15 de outubro de 2008, Mote/Parlamento (T‑345/05, EU:T:2008:440).

47

É certo que os privilégios e imunidades reconhecidos à União pelo Protocolo n.o 7 revestem natureza funcional, uma vez que visam evitar entraves ao funcionamento e à independência da União, o que implica, em particular, que os privilégios, imunidades e facilidades concedidos aos funcionários e outros agentes da União o são exclusivamente no interesse da União (Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o., C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.os 19 e 20).

48

Contudo, não é menos certo que uma decisão de levantamento da imunidade de um funcionário da União altera de forma caracterizada a situação desse funcionário, privando‑o do benefício da imunidade e, consequentemente, constitui um ato lesivo dos seus interesses.

49

Além disso, resulta da jurisprudência recordada no n.o 44 do presente acórdão que uma medida é qualificada de «ato que causa prejuízo» a um funcionário não só quando viola ou afeta um direito subjetivo que lhe é conferido mas também, de modo mais geral, quando altera de forma caracterizada a sua situação jurídica.

50

Conclui‑se que a questão de saber se o artigo 11.o, alínea a), do Protocolo n.o 7 cria «um direito subjetivo […] das pessoas visadas», como o Tribunal Geral salientou no n.o 37 do acórdão recorrido, é irrelevante para a qualificação de ato lesivo de uma decisão de levantamento da imunidade de um funcionário. O mesmo se aplica à questão da interpretação que o Tribunal Geral faz do Acórdão de 16 de dezembro de 1960, Humblet/Estado belga (6/60‑IMM, EU:C:1960:48), no n.o 42 do acórdão recorrido.

51

Há também que rejeitar a argumentação da Comissão de que uma decisão de levantamento da imunidade de um funcionário deve ser qualificada de «ato preparatório», na medida em que, como salientou a advogada‑geral, em substância, no n.o 61 das suas conclusões, a alteração da situação jurídica do interessado resulta da adoção de uma decisão como a decisão controvertida. Esta decisão põe termo ao procedimento de levantamento da imunidade do funcionário em causa, sem que esteja prevista a adoção de um ato subsequente pela instituição a que o funcionário pertence e que ele pudesse impugnar.

52

O motivo, enunciado no n.o 38 do acórdão recorrido, pelo qual o Tribunal Geral considerou que uma decisão que levanta a imunidade de um funcionário ou agente da União modifica a sua situação jurídica é suficiente para justificar a qualificação da decisão controvertida de «ato que causa prejuízo», na aceção do artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto.

53

Consequentemente, há que considerar que os n.os 37 e 42 do acórdão recorrido enunciam fundamentos exaustivos, de forma que a parte da argumentação da Comissão que lhes diz respeito deve ser rejeitada como inoperante (v., neste sentido, Acórdãos de 29 de abril de 2004, Comissão/CAS Succhi di Frutta, C‑496/99 P, EU:C:2004:236, n.o 68, e de 29 de novembro de 2012, Reino Unido/Comissão, C‑416/11 P, não publicado, EU:C:2012:761, n.o 45).

54

Atendendo a todas as considerações expostas, o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente.

Quanto ao segundo fundamento, relativo a um erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta e do artigo 4.o, n.o 3, TUE

Argumentos das partes

55

Com o segundo fundamento, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral, ao considerar, nos n.os 66 e 67 do acórdão recorrido, que ela estava obrigada a proceder a uma ponderação entre, por um lado, o direito de ser ouvido do funcionário em causa e, por outro, o segredo de justiça, interpretou incorretamente o direito de ser ouvido. No essencial, alegou que a interpretação ampla do direito de ser ouvido feita pelo Tribunal Geral «conduz a uma ingerência sistemática e injustificada das instituições da União nas competências próprias das autoridades judiciais dos Estados‑Membros».

56

A este respeito, a Comissão sublinha ter sido a título excecional que trocou correspondência com as autoridades nacionais sobre RQ, tendo em conta o cargo de diretor‑geral do OLAF que ocupava no momento do pedido de levantamento de imunidade. Sublinha que, «na sua prática normal», não costuma corresponder‑se com as autoridades nacionais ou com o funcionário em causa, a fim de respeitar a condição estrita de confidencialidade, associada ao segredo de justiça. A ponderação dos interesses em presença, exigida no acórdão recorrido, põe em causa a prática constante de todas as instituições e órgãos da União.

57

A Comissão alega, de resto, que, embora exija essa ponderação, o Tribunal Geral não especifica as consequências daí decorrentes, nomeadamente quando a instituição em causa considera que o interesse do funcionário em ser ouvido prevalece sobre o respeito do segredo de justiça. Assim, o Tribunal Geral não precisou se a instituição em questão podia, em violação do direito nacional, decidir ouvir o interessado ou se devia recusar o levantamento da sua imunidade com esse fundamento.

58

A Comissão acrescenta que a exigência de ponderação de interesses, tal como foi entendida nos n.os 66 e 67 do acórdão recorrido, viola os princípios da confiança mútua e da cooperação leal. Perante a oposição das autoridades nacionais ao pedido da Comissão de ouvir o funcionário em causa, esta não pode fiscalizar ou substituir a apreciação das autoridades nacionais pela sua própria apreciação sobre uma questão de direito penal nacional. Esta argumentação é corroborada pelo Despacho de 13 de julho de 1990, Zwartveld e o. (C‑2/88‑IMM, EU:C:1990:315, n.o 18).

59

Por último, a Comissão invoca a inutilidade de uma audição prévia do funcionário em causa, uma vez que a instituição está obrigada a levantar a imunidade deste, salvo quando tal for contrário aos interesses da União exclusivamente. Ora, o funcionário não pode determinar ou influenciar os interesses da União à luz da sua situação individual.

60

RQ invoca, a título principal, a inadmissibilidade do segundo fundamento, porquanto, através dele, a Comissão se limita a reiterar os fundamentos apresentados em primeira instância.

61

A título subsidiário, RQ sustenta que este fundamento é improcedente.

Apreciação do Tribunal de Justiça

62

Pelos mesmos fundamentos que os expostos no n.o 42 do presente acórdão, há que julgar improcedente a exceção de inadmissibilidade do segundo fundamento suscitada por RQ.

63

Com efeito, com o segundo fundamento, a Comissão acusa o Tribunal Geral, em substância, de ter cometido um erro de direito, uma vez que, nos n.os 66 e 67 do acórdão recorrido, considerou que a Comissão estava obrigada a proceder à ponderação entre, por um lado, o direito de ser ouvido do funcionário visado por um pedido de levantamento de imunidade para efeitos de instrução penal e, por outro, o segredo de justiça. Neste contexto, a Comissão pode invocar no Tribunal de Justiça argumentos que já tinha apresentado no Tribunal Geral e que este rejeitou.

64

Quanto à apreciação do mérito do segundo fundamento, há que recordar que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o respeito dos direitos de defesa constitui um princípio fundamental do direito da União (Acórdão de 22 de novembro de 2012, M., C‑277/11, EU:C:2012:744, n.o 81 e jurisprudência referida).

65

No que respeita, mais especificamente, ao direito de ser ouvido em qualquer processo, este faz parte integrante do referido princípio fundamental e está atualmente consagrado não apenas nos artigos 47.o e 48.o da Carta, que garantem o respeito dos direitos de defesa e o direito a um processo equitativo no âmbito de qualquer processo judicial, como também no seu artigo 41.o, que assegura o direito a uma boa administração (Acórdão de 22 de novembro de 2012, M., C‑277/11, EU:C:2012:744, n.o 82 e jurisprudência referida).

66

Com efeito, o n.o 2 do referido artigo 41.o prevê que este direito a uma boa administração compreende, nomeadamente, o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de ser tomada contra ela uma medida individual que a afete desfavoravelmente.

67

Como resulta da sua própria redação, esta disposição é de aplicação geral. Daí decorre que o direito de ser ouvido deve ser respeitado em qualquer processo suscetível de conduzir a um ato lesivo, mesmo quando a regulamentação aplicável não preveja expressamente tal formalidade. Além disso, o referido direito garante que qualquer pessoa tenha a possibilidade de dar a conhecer, de maneira útil e efetiva, o seu ponto de vista no decurso do procedimento administrativo e antes da adoção de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os seus interesses (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2012, M., C‑277/11, EU:C:2012:744, n.os 84 a 87 e jurisprudência referida).

68

Do mesmo modo, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito quando, após concluir, acertadamente, que a decisão controvertida constituía um ato lesivo para o funcionário em causa, como decorre da improcedência do primeiro fundamento de recurso, declarou, nos n.os 52 a 54 do acórdão recorrido, que a Comissão estava obrigada a ouvir o referido funcionário, antes de adotar uma decisão de levantamento da sua imunidade.

69

É certo que, como recordado no n.o 47 do presente acórdão, a imunidade dos funcionários e agentes da União resultante do Protocolo n.o 7 reveste natureza funcional e serve exclusivamente para salvaguardar os interesses da União, evitando entraves ao seu funcionamento e à sua independência.

70

No entanto, embora essa circunstância seja suscetível de levar a limitar os argumentos que o funcionário em causa pode validamente apresentar para convencer a instituição a que pertence a não levantar a sua imunidade, não pode, contrariamente ao que a Comissão sustenta, justificar o facto de não ouvir esse funcionário antes de levantar a sua imunidade. Tal decisão contraria diretamente a jurisprudência constante, recordada no n.o 67 do presente acórdão.

71

Assim sendo, há também que salientar que o artigo 52.o, n.o 1, da Carta admite restrições ao exercício dos direitos nela consagrados, incluindo o direito de ser ouvido, consagrado no seu artigo 41.o O artigo 52.o, n.o 1, da Carta exige, todavia, que qualquer restrição seja prevista por lei e respeite o conteúdo essencial do direito fundamental em causa. Exige, além disso, que tal restrição seja necessária e corresponda efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, no respeito do princípio da proporcionalidade.

72

No caso em apreço, o Tribunal Geral constatou, no n.o 61 do acórdão recorrido, que as disposições do code d’instruction criminelle (Código de Processo Penal) belga consagram o princípio do segredo de justiça, ao mesmo tempo que precisa que a lei prevê exceções ao referido princípio.

73

Além disso, no n.o 59 desse acórdão, o Tribunal Geral salientou que, nos Estados‑Membros em que se encontra previsto, o segredo de justiça é um princípio de ordem pública que visa não só proteger as investigações, a fim de evitar concertações fraudulentas e tentativas de dissimulação de provas e indícios, mas também preservar as pessoas suspeitas ou acusadas cuja culpabilidade ainda não foi provada.

74

À luz destes elementos, o Tribunal Geral considerou, no n.o 63 do acórdão recorrido, que a não audição prévia de um funcionário visado por um pedido de levantamento da sua imunidade com vista a uma instrução penal a seu respeito «pode, em princípio, ser […] justificada pelo segredo de justiça, em conformidade com o artigo 52.o da Carta», visto que, como o Tribunal Geral salientou no n.o 65 desse acórdão, «regra geral, o facto de não ouvir a pessoa interessada antes do levantamento da sua imunidade é suscetível de garantir o segredo de justiça».

75

Na análise da proporcionalidade e da necessidade de uma medida dessa natureza, o Tribunal Geral sublinhou, no n.o 66 do referido acórdão, que, se, «em casos devidamente justificados, uma autoridade nacional se opuser à comunicação ao interessado dos motivos precisos e completos que constituem o fundamento do pedido de levantamento de imunidade, invocando razões de segredo de justiça, a Comissão deve, em colaboração com as autoridades nacionais, […] aplicar medidas destinadas a conciliar, por um lado, as considerações legítimas do segredo de justiça e, por outro, a necessidade de garantir de forma suficiente ao interessado o respeito dos seus direitos fundamentais, como o direito a ser ouvido».

76

O Tribunal Geral considerou, assim, no n.o 67 do acórdão recorrido, que a Comissão devia conciliar o respeito do direito de ser ouvido do funcionário visado pelo pedido de levantamento da imunidade e as considerações invocadas pelas autoridades nacionais, de forma a assegurar simultaneamente a proteção dos direitos do funcionário em causa e os interesses da União, em conformidade com o Protocolo n.o 7, bem como o desenrolar eficaz e sereno do processo penal nacional.

77

Ao contrário do que a Comissão alega, estes fundamentos do Tribunal Geral não padecem de um erro de direito.

78

Embora seja verdade que, como resulta do acórdão recorrido, o Tribunal Geral não excluiu a possibilidade de uma instituição adotar uma decisão de levantamento da imunidade sem ouvir a pessoa em causa, não é menos verdade que tal possibilidade deve ser reservada a casos excecionais, devidamente justificados.

79

Com efeito, não se pode presumir que todas as instruções penais impliquem sistematicamente o risco de tentativas de dissimulação de provas e indícios por parte das pessoas visadas, ou concertações fraudulentas entre si, que justifiquem não as informar previamente da existência de uma instrução contra elas.

80

Conclui‑se que o Tribunal Geral considerou acertadamente, no n.o 66 do acórdão recorrido, que, antes de concluir pela existência de um caso excecional que justifica o levantamento da imunidade da pessoa visada sem a ouvir previamente, a Comissão deve, no respeito do princípio da cooperação leal para com as autoridades nacionais em causa, aplicar medidas que permitam, simultaneamente, respeitar o direito do interessado de ser ouvido sem fazer perigar os interesses que o segredo de justiça pretende preservar.

81

Ao contrário do que a Comissão alega, a obrigação de proceder a essa ponderação não infringe os princípios da confiança mútua e da cooperação leal entre a Comissão e as autoridades nacionais.

82

Com efeito, a ponderação evocada no n.o 66 do acórdão recorrido permite que a Comissão respeite tanto as exigências processuais suscetíveis de se imporem às autoridades nacionais em causa como, na medida do possível, o direito do interessado de ser ouvido. Em casos excecionais, permite também que a Comissão justifique a impossibilidade de ouvir o interessado antes do levantamento da sua imunidade, tendo em conta os interesses que tal audição poria em causa.

83

Além disso, no que respeita ao argumento da Comissão, exposto no n.o 57 do presente acórdão, de que o Tribunal Geral não especificou qual deveria ser a resposta a um pedido de levantamento da imunidade no caso de a ponderação contemplada no n.o 67 do acórdão recorrido levar a Comissão a considerar que o direito do interessado de ser ouvido prevalece sobre o segredo de justiça, basta salientar que, visto ter considerado que a ponderação exigida não tinha sido efetuada no caso vertente, o Tribunal Geral não tinha de se pronunciar sobre essa hipótese.

84

Decorre do conjunto das considerações expostas que o segundo fundamento deve ser julgado improcedente.

Quanto ao terceiro fundamento, relativo a uma apreciação incorreta, pelo Tribunal Geral, do procedimento seguido pela Comissão na adoção da decisão controvertida

Argumentos das partes

85

Com o terceiro fundamento, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao apreciar incorretamente o procedimento seguido pela Comissão na adoção da decisão controvertida, uma vez que considerou que a mesma não tinha respeitado a ponderação dos interesses em presença, conforme exigida nos n.os 66 e 67 do acórdão recorrido.

86

Em especial, a Comissão entende que, admitindo que a exigência dessa ponderação seja fundada, devia considerar‑se que ela tinha, em todo o caso, procedido à fiscalização exigida, no caso em apreço. Sustenta que só adotou a decisão controvertida depois de ter trocado correspondência com as autoridades belgas, obtido explicações detalhadas por parte do procurador belga, examinado in loco os autos do processo penal e, por último, consultado um perito em direito penal belga.

87

Além disso, a Comissão critica o Tribunal Geral por ter estabelecido, no n.o 71 do acórdão recorrido, exigências desproporcionadas em relação às medidas que a Comissão deveria ter previsto a fim de respeitar o direito de RQ de ser ouvido. Tais medidas levariam sistematicamente a uma ingerência indevida das instituições da União no funcionamento da justiça penal nacional.

88

Por último, a Comissão contesta o fundamento, enunciado no n.o 76 do acórdão recorrido, segundo o qual não se pode excluir inteiramente que a decisão da Comissão tivesse tido um conteúdo diferente se tivesse sido dada a RQ a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre o interesse da União e sobre a preservação da sua necessária independência enquanto diretor‑geral do OLAF. Com efeito, segundo a Comissão, por um lado, a qualidade de diretor‑geral do OLAF de RQ era irrelevante, dado que RQ tinha interposto o seu recurso a título pessoal, e, por outro, a posição do funcionário em causa não pode determinar ou influenciar a avaliação do interesse da União, que é da competência exclusiva das instituições.

89

RQ considera que o presente fundamento visa as apreciações factuais do Tribunal Geral, devendo, portanto, ser julgado inadmissível. A título subsidiário, RQ sustenta que esse fundamento é improcedente.

Apreciação do Tribunal de Justiça

90

A argumentação apresentada pela Comissão em apoio do terceiro fundamento de recurso comporta, em substância, duas partes.

91

Na primeira parte desse fundamento, a Comissão alega que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 74 do acórdão recorrido, que a não audição de RQ antes da adoção da decisão controvertida ia além do necessário para alcançar o objetivo de garantir o segredo de justiça e, consequentemente, não respeitava o conteúdo essencial do direito de ser ouvido, consagrado no artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta.

92

Cumpre salientar que, com essa argumentação, a Comissão não põe em causa a apreciação dos factos pelo Tribunal Geral, mas sim a qualificação jurídica dos mesmos. Em particular, alega que, no n.o 74 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou incorretamente, com base nos autos de que dispunha, que ela tinha violado o direito de RQ de ser ouvido, cometendo a esse respeito um erro de direito.

93

Consequentemente, ao contrário das alegações de RQ, a primeira parte do terceiro fundamento é admissível. Com efeito, quando o Tribunal Geral tiver apurado ou apreciado os factos, o Tribunal de Justiça é competente para fiscalizar a qualificação jurídica desses factos e as consequências jurídicas daí retiradas pelo Tribunal Geral (Acórdão de 6 de abril de 2006, General Motors/Comissão, C‑551/03 P, EU:C:2006:229, n.o 51 e jurisprudência referida).

94

Quanto à apreciação do mérito dessa primeira parte, há que salientar que, no n.o 69 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que a Comissão não tinha efetuado, no caso em apreço, uma ponderação conforme com a mencionada nos n.os 67 e 68 desse acórdão.

95

Baseou a sua apreciação nas constatações expostas nos n.os 70 a 72 do acórdão recorrido, segundo as quais, em primeiro lugar, a Comissão não solicitou às autoridades belgas competentes que indicassem as razões pelas quais a audição de RQ antes do eventual levantamento da sua imunidade implicaria riscos para o segredo de justiça ou que elaborassem uma versão não confidencial do pedido de levantamento de imunidade que pudesse ser comunicada a RQ. Em segundo lugar, as referidas autoridades não evocaram nenhuma circunstância, como um risco de RQ fugir ou destruir elementos de prova, que pudesse justificar a não comunicação do pedido de levantamento da sua imunidade. Por último, em terceiro lugar, as respostas das autoridades belgas aos pedidos da Comissão eram incompletas e não permitiam compreender a sua recusa em permitir que a Comissão ouvisse RQ sobre o pedido de levantamento da sua imunidade.

96

Tendo em conta estas constatações de natureza factual, insuscetíveis de ser postas em causa na fase do recurso no Tribunal de Justiça, salvo em caso de desvirtuação dos factos e dos elementos de prova, que não foi alegada, de forma alguma, pela Comissão no presente caso (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Trubowest Handel e Makarov/Conselho e Comissão, C‑419/08 P, EU:C:2010:147, n.os 30, 31 e jurisprudência referida), o Tribunal Geral pôde, no n.o 74 do acórdão recorrido, sem cometer um erro de direito, declarar que o facto de não ouvir o recorrente antes da adoção da decisão controvertida ia além do necessário para alcançar o objetivo visado e, portanto, infringia o direito de ser ouvido consagrado no artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta.

97

Neste contexto, a Comissão não pode acusar o Tribunal Geral de ter ignorado o facto de ela ter trocado correspondência com as autoridades belgas competentes. Com efeito, essa troca de correspondência foi tida em consideração, mas o Tribunal Geral considerou, no âmbito da sua apreciação soberana dos factos, que, contrariamente ao que a Comissão alega, as explicações por ela obtidas na sequência dessa correspondência eram incompletas e insuficientemente detalhadas.

98

Do mesmo modo, a Comissão não pode, para pôr em causa a justeza da apreciação do Tribunal Geral, invocar o facto de ter examinado in loco os autos do processo penal e de ter consultado um perito em direito penal belga. Ora, admitindo que se verificaram, esses factos não podem, em todo o caso, bastar para demonstrar que o direito de RQ de ser ouvido tenha sido respeitado. Com efeito, a Comissão não alega que invocou no Tribunal Geral elementos decorrentes do exame dos autos do processo penal nacional ou da consulta do perito belga e que poderiam justificar a não audição prévia de RQ.

99

Por último, a Comissão também não pode invocar o argumento, exposto no n.o 87 do presente acórdão, de que, em substância, no n.o 71 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral impôs exigências desproporcionadas para o levantamento da imunidade de um funcionário sem o ouvir previamente, dado que conduziriam a uma ingerência das instituições da União no funcionamento da justiça penal de um Estado‑Membro.

100

A este respeito, importa sublinhar que, no n.o 71 do acórdão recorrido, apesar de ter referido, a título exemplificativo, várias circunstâncias em que se pode admitir o levantamento da imunidade de um funcionário sem o ouvir previamente, o Tribunal Geral constatou, no essencial, que, no procedimento que conduziu à adoção da decisão controvertida, as autoridades belgas não apresentaram elementos de prova suficientes para justificar tal procedimento.

101

Ora, não se pode considerar que a obrigação imposta à Comissão de obter das autoridades nacionais elementos suficientemente probatórios para justificar uma violação grave do direito de ser ouvido, como os evocados pelo Tribunal Geral a título exemplificativo, seja desproporcionada. Tanto mais que, contrariamente ao alegado pela Comissão, o fornecimento desses elementos não implica, pela sua própria natureza, uma ingerência no procedimento do Estado‑Membro em causa, o qual está sujeito, tal como a Comissão, à obrigação de cooperação leal prevista no artigo 4.o, n.o 3, TUE, nos termos do qual a União e os Estados‑Membros se respeitam e se assistem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.

102

Consequentemente, há que julgar improcedente a primeira parte do terceiro fundamento.

103

Quanto à segunda parte desse fundamento, há que começar por sublinhar que, nesta parte, a Comissão não põe em causa a apreciação dos factos feita pelo Tribunal Geral, mas sustenta que o mesmo cometeu, em substância, um erro de direito ao considerar, no n.o 76 do acórdão recorrido, que não se pode excluir que, se tivesse sido dada a RQ a possibilidade de dar a conhecer o seu ponto de vista sobre o levantamento da sua imunidade, a decisão controvertida teria tido um conteúdo diferente.

104

Assim, pelos mesmos fundamentos que os indicados em relação à primeira parte do terceiro fundamento, a segunda parte deste fundamento é admissível.

105

Quanto à apreciação do mérito desta segunda parte, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma violação dos direitos de defesa, em particular do direito de ser ouvido, apenas acarreta a anulação da decisão tomada no termo do procedimento administrativo em causa se, não se verificando tal irregularidade, esse procedimento pudesse conduzir a um resultado diferente (Acórdãos de 3 de julho de 2014, Kamino International Logistics e Datema Hellmann Worldwide Logistics, C‑129/13 e C‑130/13, EU:C:2014:2041, n.o 79 e jurisprudência referida, e de 14 de junho de 2018, Makhlouf/Conselho, C‑458/17 P, não publicado, EU:C:2018:441, n.o 42 e jurisprudência referida).

106

A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que não se pode impor a um recorrente que invoca a violação dos seus direitos de defesa que demonstre que a decisão da instituição da União em causa teria tido um conteúdo diferente, mas apenas que tal hipótese não está inteiramente excluída (Acórdão de 1 de outubro de 2009, Foshan Shunde Yongjian Housewares & Hardware/Conselho, C‑141/08 P, EU:C:2009:598, n.o 94 e jurisprudência referida).

107

A apreciação desta questão deve, além disso, ser efetuada em função das circunstâncias de facto e de direito específicas de cada caso concreto (v., neste sentido, Acórdão de 10 de setembro de 2013, G. e R., C‑383/13 PPU, EU:C:2013:533, n.o 40).

108

A este respeito, importa recordar que, como enunciam o artigo 17.o do Protocolo n.o 7 e o artigo 23.o do Estatuto, os privilégios e imunidades de que beneficiam os funcionários e os agentes da União são conferidos exclusivamente no interesse desta última.

109

Ora, a finalidade da imunidade concedida a um funcionário da União, conforme resulta dessas disposições, deve ser tida em consideração na apreciação da incidência de uma eventual violação do direito de ser ouvido na legalidade de uma decisão de levantamento dessa imunidade.

110

Aliás, foi neste sentido que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também salientou, num acórdão relativo à imunidade parlamentar, que é à luz das exigências de preservação da finalidade institucional dessa imunidade que se deve apreciar a incidência da sua aplicação nos direitos do interessado (TEDH, 3 de dezembro de 2009, Kart c. Turquia, CE:ECHR:2009:1203JUD000891705, § 95).

111

Daqui resulta que as considerações relacionadas com a situação pessoal do funcionário visado por um pedido de levantamento de imunidade, considerações que esse funcionário estaria em melhor posição para invocar se fosse ouvido sobre esse pedido, são irrelevantes para o seguimento a dar ao referido pedido. A este respeito, apenas importam as considerações relacionadas com o interesse do serviço.

112

Assim, um funcionário que tenha recorrido de uma decisão de levantamento da sua imunidade não pode limitar‑se a invocar, de forma abstrata, a violação do direito de ser ouvido como fundamento do seu pedido de anulação de tal decisão. Cabe ao funcionário demonstrar que não se pode excluir inteiramente que a decisão da instituição da União em causa teria tido um conteúdo diferente se pudesse ter apresentado argumentos e elementos relativos ao interesse do serviço.

113

Ora, não resulta do acórdão recorrido que o Tribunal Geral tenha verificado se RQ apresentou argumentos para efeitos dessa demonstração.

114

Com efeito, decorre da leitura dos autos do processo em primeira instância, transmitidos ao Tribunal de Justiça em conformidade com o disposto no artigo 167.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, que o Tribunal Geral se limitou a reproduzir, no n.o 76 do acórdão recorrido, quase nos mesmos termos, uma afirmação vaga que figurava na petição de RQ, relativa à argumentação que este poderia ter apresentado se tivesse sido ouvido antes da adoção da decisão controvertida.

115

Além dessa afirmação, RQ não deu, nos seus articulados perante o Tribunal Geral, nenhuma indicação relativa ao interesse do serviço que pudesse justificar a manutenção da sua imunidade, que poderia ter invocado se tivesse sido ouvido antes da adoção da decisão controvertida.

116

Nestas circunstâncias, deve concluir‑se que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao declarar que a violação do direito de RQ de ser ouvido justificava a anulação da decisão controvertida, quando este não demonstrou que não estava inteiramente excluído que a decisão da Comissão teria tido um conteúdo diferente se lhe tivesse sido dada a possibilidade de exercer o direito de ser ouvido.

117

Assim, há que julgar procedente a segunda parte do terceiro fundamento e anular o acórdão recorrido.

Quanto ao recurso no Tribunal Geral

118

Em conformidade com o disposto no artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça pode decidir definitivamente o litígio se este estiver em condições de ser julgado, ou remeter o processo ao Tribunal Geral para julgamento.

119

No presente caso, o litígio está em condições de ser julgado no que respeita à primeira parte do quinto fundamento de recurso de RQ, relativa à violação do direito de ser ouvido.

120

Com efeito, resulta dos fundamentos expostos no âmbito da análise do segundo e terceiro fundamentos de recurso que, embora a Comissão não tenha respeitado o direito de RQ de ser ouvido antes da adoção da decisão controvertida, essa violação não justifica a anulação dessa decisão, uma vez que RQ não demonstrou que não estava inteiramente excluído que, na inexistência dessa violação, a referida decisão teria tido um conteúdo diferente.

121

Assim, há que julgar improcedente a primeira parte do quinto fundamento de recurso de RQ, relativa à violação do direito de ser ouvido.

122

Quanto ao restante, o litígio não está em condições de ser julgado, uma vez que os demais fundamentos e alegações invocados por RQ em apoio do seu recurso não foram examinados pelo Tribunal Geral.

123

Consequentemente, há que remeter o processo ao Tribunal Geral.

Quanto às despesas

124

Sendo o processo remetido ao Tribunal Geral, reserva‑se para final a decisão quanto às despesas relativas ao presente recurso.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

 

1)

O Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 24 de outubro de 2018, RQ/Comissão (T‑29/17, EU:T:2018:717), é anulado.

 

2)

A primeira parte do quinto fundamento de recurso no Tribunal Geral da União Europeia é julgada improcedente.

 

3)

O processo é remetido ao Tribunal Geral da União Europeia para decisão sobre o primeiro a quarto fundamentos de recurso e sobre a segunda e terceira partes do quinto fundamento de recurso.

 

4)

Reserva‑se para final a decisão quanto às despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.