ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

11 de setembro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Setor do leite e dos produtos lácteos — Quotas — Imposição suplementar — Regulamento (CEE) n.o 3950/92 — Artigo 2.o — Cobrança da imposição pelo comprador — Entregas que excedem a quantidade de referência de que o produtor dispõe — Montante do preço do leite — Aplicação obrigatória de uma retenção — Restituição do montante da imposição cobrada em excesso — Regulamento (CE) n.o 1392/2001 — Artigo 9.o — Comprador — Incumprimento da obrigação de efetuar a imposição suplementar — Produtores — Incumprimento da obrigação de pagamento mensal — Proteção da confiança legítima»

No processo C‑46/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 21 de novembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de janeiro de 2018, no processo

Caseificio Sociale San Rocco Soc. coop. arl,

S.s. Franco e Maurizio Artuso,

Claudio Matteazzi,

Roberto Tellatin,

Sebastiano Bolzon

contra

Agenzia per le Erogazioni in Agricoltura (AGEA),

Regione Veneto,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator) e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 17 de janeiro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Caseificio Sociale San Rocco Soc. coop. arl, da S.s. Franco e de Maurizio Artuso, de C. Matteazzi e de R. Tellatin, por M. Aldegheri, avvocatessa,

em representação de S. Bolzon, por M. Aldegheri e E. Ermondi, avvocati,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por F. Moro e D. Bianchi, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de março de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92 do Conselho, de 28 de dezembro de 1992, que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos (JO 1992, L 405, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1256/1999 do Conselho, de 17 de maio de 1999 (JO 1999, L 160, p. 73) (a seguir «Regulamento n.o 3950/92»), e do artigo 9.o do Regulamento (CE) n.o 1392/2001 da Comissão, de 9 de julho de 2001, que estabelece normas de execução do Regulamento n.o 3950/92 (JO 2001, L 187, p. 19).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Caseificio Sociale San Rocco Soc. coop. arl (a seguir «primeiro comprador»), uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada de direito italiano, a S.s. Franco e Maurizio Artuso, Claudio Matteazzi, Roberto Tellatin e Sebastiano Bolzon, produtores de leite italianos, à Agenzia per le Erogazioni in Agricoltura (AGEA) [Agência para a concessão de auxílios no setor agrícola (AGEA), Itália] e à Regione Veneto (Região de Veneto, Itália), a propósito das quotas leiteiras e da imposição suplementar para o período de comercialização do leite e dos produtos lácteos entre 1 de abril de 2003 e 31 de março de 2004 (a seguir «período de referência»).

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento n.o 3950/92

3

O sexto e oitavo considerandos do Regulamento n.o 3950/92 enunciam:

«Considerando que […] a ultrapassagem de qualquer das quantidades globais garantidas implica o pagamento da imposição pelos produtores que para tal tenham contribuído; […]

[…]

Considerando que, a fim de evitar, tal como anteriormente, longos atrasos na cobrança e no pagamento da imposição, incompatíveis com o objetivo do regime, é conveniente determinar que o comprador, que se afigura ser a pessoa mais indicada para efetuar as operações necessárias, seja responsável pelo pagamento da imposição e atribuir‑lhe os meios para garantir a sua cobrança junto dos produtores, que dela são devedores».

4

O artigo 1.o do referido regulamento prevê:

«É instituída, durante oito novos períodos consecutivos de 12 meses, com início em 1 de abril de 2000, uma imposição suplementar, a cargo dos produtores de leite de vaca, sobre as quantidades de leite ou de equivalente‑leite entregues a um comprador ou vendidas diretamente para consumo durante o período de 12 meses em causa e que excedam uma quantidade a determinar.

[…]»

5

O artigo 2.o do referido regulamento dispõe:

«1.   A imposição é devida sobre todas as quantidades de leite ou de equivalente‑leite comercializadas durante o período de doze meses em causa que excedam uma ou outra das quantidades referidas no artigo 3.o A imposição é repartida entre os produtores que contribuíram para o excedente.

Consoante a decisão do Estado‑Membro, a contribuição dos produtores para o pagamento da imposição devida deve ser estabelecida, após eventual redistribuição das quantidades de referência não utilizadas, quer ao nível do comprador, em função do excedente subsistente depois de se terem repartido as quantidades de referência não utilizadas proporcionalmente às quantidades de referência de que dispõe cada um dos produtores, quer ao nível nacional, em função do excedente em relação à quantidade de referência de que cada um dos produtores dispõe.

2.   No que diz respeito às entregas, o comprador responsável pela imposição pagará o montante em dívida ao organismo competente do Estado‑Membro, antes de uma data e segundo regras a determinar; esse montante será deduzido pelo próprio comprador do preço do leite pago aos produtores devedores da imposição, e, se tal não for possível, será cobrado por qualquer outra forma adequada.

[…]

Sempre que as quantidades entregues por um produtor excedam a quantidade de referência de que dispõe, o comprador fica autorizado a reter, a título de provisão para a imposição devida, e de acordo com regras determinadas pelo Estado‑Membro, um montante do preço do leite em relação a todas as entregas efetuadas por esse produtor que excedam a quantidade de referência de que dispõe.

3.   No que diz respeito às vendas diretas, o produtor pagará a imposição devida ao organismo competente do Estado‑Membro antes de uma data e de acordo com regras a determinar.

4.   Quando a imposição for devida e o montante cobrado lhe for superior, o Estado‑Membro pode afetar o excedente cobrado ao financiamento das medidas referidas no primeiro travessão do artigo 8.o e/ou restituí‑lo aos produtores cujo excedente seja imputável a uma situação que o Estado‑Membro possa ter justificavelmente em conta em função de critérios objetivos a determinar e/ou de uma situação excecional resultante de uma disposição nacional que não tenha qualquer relação com esse regime.»

Regulamento n.o 1392/2001

6

Nos termos do considerando 6 do Regulamento n.o 1392/2001:

«Incumbe à Comissão, nos termos do n.o 4 do artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92, determinar os critérios de acordo com os quais as categorias prioritárias de produtores podem beneficiar de um reembolso da imposição se o Estado‑Membro decidir não proceder, no seu território, à redistribuição da totalidade das quantidades não utilizadas. Só no caso de tais critérios não serem integralmente aplicáveis num Estado‑Membro pode este ser autorizado a estabelecer outros critérios, após consulta da Comissão.»

7

O artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 tem a seguinte redação:

«1.   Se for o caso, os Estados‑Membros determinarão as categorias prioritárias de produtores nos termos do n.o 4 do artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92, em função de um ou mais dos seguintes critérios objetivos, por ordem de prioridade:

a)

O reconhecimento formal pela autoridade competente do Estado‑Membro de que a imposição foi, na totalidade ou em parte, indevidamente cobrada;

b)

A situação geográfica da exploração e, em primeiro lugar, as zonas de montanha […]

c)

A densidade máxima dos animais na exploração, que caracteriza a extensificação da produção animal;

d)

O montante da superação da quantidade de referência individual;

e)

A quantidade de referência de que o produtor dispõe.

2.   Se a aplicação dos critérios previstos no n.o 1 não esgotar os recursos financeiros disponíveis para um dado período, serão adotados pelo Estado‑Membro outros critérios objetivos, após consulta da Comissão.»

Direito italiano

8

Em conformidade com o artigo 5.o, n.os 1 e 2, do decreto‑legge n.o 49, recante riforma della normativa in tema di applicazione del prelievo supplementare nel settore del latte e dei prodotti lattiero‑caseari (Decreto‑Lei n.o 49, sobre a reforma da legislação em matéria de aplicação da imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos), de 28 de março de 2003, convertido em lei, com alterações, pela Lei n.o 119, de 30 de maio de 2003 (GURI n.o 124, de 30 de maio de 2003, a seguir «Lei n.o 119/2003»):

«1.   Durante o mês subsequente ao de referência, os compradores transmitem às regiões e às províncias autónomas que os aprovaram os dados resultantes da atualização do registo mensal mantido nos termos do artigo 14.o, n.o 2 do Regulamento n.o 1392/2001, ainda que não tenham recebido leite. Os compradores devem reter a imposição suplementar, calculada em conformidade com o artigo 1.o do Regulamento n.o 3950/92, conforme alterado, relativa às quantidades de leite entregues que excedam a quantidade de referência individual atribuída a cada produtor, tomando em consideração as alterações ocorridas durante o período. […]

2.   Dentro dos 30 dias subsequentes ao termo do prazo previsto no n.o 1, sem prejuízo do disposto no artigo 10.o, n.os 27 a 32, os compradores devem transferir as quantias retidas para a conta corrente na instituição bancária da AGEA […]»

9

O artigo 9.o da Lei n.o 119/2003, relativo à restituição do excesso de imposição, dispõe:

«1.   No termo de cada período, a AGEA:

a)

contabiliza as entregas de leite efetuadas e o montante total das imposições pagas pelos compradores na sequência do cumprimento das obrigações previstas no artigo 5.o;

b)

procede ao cálculo do total da imposição nacional devida à União pelo excedente de produção nas entregas;

c)

calcula o montante do excesso de imposição pago.

[…]

3.   O montante previsto no n.o 1, alínea c), deduzido o montante a que se refere o n.o 2, será repartido entre os produtores titulares de quotas que tenham pagado a imposição, segundo os seguintes critérios e pela seguinte ordem:

a)

entre aqueles para os quais a imposição se revelou, na totalidade ou em parte, indevidamente cobrada ou já não devida;

b)

entre os proprietários de explorações localizadas nas zonas de montanha […]

c)

entre os proprietários das explorações localizadas nas zonas desfavorecidas […]

c bis) entre os que sofreram, com base numa medida adotada pela autoridade sanitária competente, o bloqueio à circulação dos animais, em zonas afetadas por doenças infecciosas generalizadas durante, pelo menos, 90 dias durante um período de comercialização e que, por essa razão, foram forçados a produzir uma quantidade superior, até um máximo de 20 %, à quantidade de referência atribuída. […]

4.   Se as referidas restituições não esgotarem os montantes disponíveis nos termos do n.o 3, o saldo será repartido entre os produtores titulares de quotas que tenham pagado a imposição, com exceção dos que tenham excedido as respetivas quantidades de referência individuais em mais de 100 por cento, segundo os seguintes critérios e pela seguinte ordem: […]»

10

O artigo 2.o, n.o 3, do decreto‑legge n.o 157, recante disposizioni urgenti per l’etichettatura di alcuni prodotti agroalimentari, nonché in materia di agricoltura e pesca (Decreto‑Lei n.o 157, sobre medidas urgentes relativas à rotulagem de determinados produtos agroalimentares, bem como em matéria de agricultura e pescas), de 24 de junho de 2004 (GURI n.o 147, de 25 de junho de 2004, a seguir «Decreto‑Lei n.o 157/2004»), prevê:

«Nos termos do artigo 9.o [da Lei n.o 119/2003], a imposição paga mensalmente em excesso pelos produtores com os pagamentos em dia será restituída a tais produtores. Após tal operação, se o saldo restante total da cobrança de imposições for superior ao montante das imposições devidas à União Europeia, acrescido de 5 %, a AGEA procede à anulação da imposição imputada em excesso aos produtores que não tenham ainda efetuado os pagamentos mensais, aplicando os critérios de prioridade estabelecidos nos n.os 3 e 4 do mesmo artigo 9.o, sem prejuízo das sanções previstas no artigo 5.o, n.o 5, do mesmo decreto‑lei.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

Durante o período de referência, os recorrentes no processo principal não cumpriram a regulamentação italiana aplicável, na medida em que, por um lado, o primeiro comprador não procedeu à retenção e às transferências mensais da imposição suplementar e, por outro, desse modo, os produtores não cumpriram a sua obrigação de pagamento, na aceção do artigo 9.o, n.o 3, da Lei n.o 119/2003 e do artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004.

12

Em 28 de julho de 2004, a AGEA enviou ao primeiro comprador uma notificação respeitante às quotas leiteiras e à imposição suplementar para o período de referência.

13

Essa notificação esclarecia, nomeadamente, que a AGEA tinha aplicado o artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004, segundo o qual a imposição paga mensalmente em excesso pelos produtores que tivessem cumprido a sua obrigação de pagamento devia ser restituída a tais produtores e que, após tal operação, se o saldo restante total da cobrança de imposições fosse superior ao montante das imposições devidas à União, acrescido de 5 %, a AGEA não exigiria a imposição imputada em excesso aos produtores que não tivessem ainda efetuado os pagamentos mensais, aplicando os critérios de prioridade estabelecidos no artigo 9.o, n.os 3 e 4, da Lei n.o 119/2003.

14

Em anexo a essa notificação, a AGEA tinha juntado uma ficha que enumerava, para o período de referência, relativamente a cada produtor, os montantes da imposição já pagos e confirmados e os montantes a restituir calculados em aplicação do artigo 9.o, n.os 3 e 4, da Lei n.o 119/2003. A AGEA esclarecia, além disso, que a empresa compradora estava obrigada a pagar aos produtores em causa os montantes restituídos e a pagar, em substituição dos produtores, os montantes exigidos e enumerados na referida ficha.

15

Através de um recurso interposto no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália), os recorrentes no processo principal pediram a anulação da referida notificação, sustentando, nomeadamente, que a obrigação de retenção mensal, imposta ao comprador pelo artigo 5.o, n.o 1, da Lei n.o 119/2003, e o critério de prioridade na repartição do excesso de imposição, que favorece os produtores que tenham cumprido a sua obrigação de pagamento e que está previsto no artigo 9.o, n.o 3, da Lei n.o 119/2003 e no artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004, são contrários ao artigo 2.o, n.o 2, terceiro parágrafo, e n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92.

16

O Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio) negou provimento ao recurso.

17

Chamado a conhecer do recurso no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio, por um acórdão não definitivo proferido em 11 de dezembro de 2017, declarou as alegações formuladas em sede de recurso parcialmente procedentes, considerando, nomeadamente, que a obrigação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Lei n.o 119/2003 não se podia aplicar em relação aos meses de janeiro a março de 2004, devido à sua incompatibilidade com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92.

18

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre as consequências desta constatação de incompatibilidade entre a regulamentação nacional e o direito da União sobre os direitos e as obrigações dos produtores que não deram cumprimento a essa regulamentação nacional.

19

Nestas condições, o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, deve o direito da [União] ser interpretado no sentido de que a incompatibilidade de uma disposição legislativa de um Estado‑Membro com o artigo 2.o, n.o 2, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 3950/92 implica, como consequência, que os produtores já não estejam obrigados a pagar a imposição suplementar quando se verifiquem os requisitos previstos pelo mesmo regulamento?

2)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, deve o direito da [União], em particular o princípio geral da proteção da confiança legítima, ser interpretado no sentido de que não pode ser protegida a confiança das pessoas que tenham cumprido uma obrigação imposta por um Estado‑Membro e que tenham beneficiado dos efeitos decorrentes do cumprimento dessa obrigação, quando esta seja contrária ao direito da [União]?

3)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001, e o conceito de direito da União de “categoria prioritária”, opõem‑se a uma disposição de um Estado‑Membro, como o artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004 adotado pela República Italiana, que estabelece modalidades diferenciadas de restituição da imposição suplementar cobrada em excesso, distinguindo, quanto aos prazos e às modalidades de restituição, os produtores que tenham confiado no dever de respeitar uma disposição nacional que se considerou contrária ao direito da União dos produtores que não tenham cumprido essa disposição?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

20

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92 deve ser interpretado no sentido de que a constatação da incompatibilidade com a referida disposição da regulamentação nacional que rege as modalidades da cobrança da imposição suplementar pelo comprador junto dos produtores implica que os produtores sujeitos a essa regulamentação deixem de ser devedores dessa imposição.

21

A este respeito, há que recordar que o mecanismo de cobrança da imposição suplementar, instituído pelo Regulamento n.o 3950/92, assenta na distinção entre as vendas diretas de leite para consumo e as entregas de leite a um comprador (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2004, Penycoed, C‑230/01, EU:C:2004:20, n.o 28).

22

Assim, na hipótese de vendas diretas, o produtor está obrigado a pagar a imposição devida diretamente ao organismo competente do Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 3, desse regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2004, Penycoed, C‑230/01, EU:C:2004:20, n.o 29).

23

Em contrapartida, no que diz respeito às entregas, incumbe ao comprador, que é, como resulta do oitavo considerando do referido regulamento, a pessoa mais indicada para garantir a cobrança junto dos produtores, pagar essa imposição àquele organismo (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2004, Penycoed, C‑230/01, EU:C:2004:20, n.o 29).

24

Para esse efeito, resulta do artigo 2.o, n.o 2, primeiro e terceiro parágrafos, do mesmo regulamento que o comprador dispõe da faculdade de deduzir do preço do leite pago ao produtor o montante por este devido a título de imposição suplementar e que, se não for possível fazer uso dessa faculdade, pode cobrar por qualquer outra forma adequada (v., neste sentido, Acórdão de 29 de abril de 1999, Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago, C‑288/97, EU:C:1999:214, n.o 32).

25

Assim sendo, independentemente destas regras específicas, relativas às modalidades de cobrança da imposição pelo comprador junto dos produtores, o produtor continua, em todo o caso, devedor dessa imposição.

26

Assim, o artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 3950/92 prevê que a imposição suplementar estabelecida no artigo 1.o deste regulamento é repartida entre os produtores que contribuíram para o excedente das quantidades de referência. Da mesma forma, o sexto considerando deste regulamento especifica que a ultrapassagem de qualquer das quantidades globais implica o pagamento da imposição por esses produtores.

27

Resulta desse artigo 2.o, n.o 1, lido em conjugação com o oitavo considerando do referido regulamento, que é o produtor que é devedor da imposição devida sobre toda a quantidade de leite comercializada, na medida em que ultrapasse ou a quantidade de referência concedida para a venda direta, ou a atribuída para a entrega (v., neste sentido, Acórdão de 29 de abril de 1999, Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago, C‑288/97, EU:C:1999:214, n.o 19).

28

Esta imputação da imposição ao produtor está ademais intrinsecamente ligada à finalidade da imposição suplementar, que consiste nomeadamente em obrigar os produtores de leite a respeitar as quantidades de referência que lhes foram atribuídas (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de março de 2004, Cooperativa Lattepiù e o., C‑231/00, C‑303/00 e C‑451/00, EU:C:2004:178, n.o 75, e de 24 de janeiro de 2018, Comissão/Itália, C‑433/15, EU:C:2018:31, n.o 62).

29

Por conseguinte, embora, no que diz respeito às entregas, o comprador seja responsável pelo pagamento da imposição, não é menos verdade que, tanto neste caso como no das vendas diretas, a imposição está a cargo dos produtores e pode, além disso, em determinadas condições, ser cobrada diretamente a estes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2004, Penycoed, C‑230/01, EU:C:2004:20, n.os 29, 38 e 39).

30

Daqui resulta que a incompatibilidade, constatada pelo órgão jurisdicional de reenvio, com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 da regulamentação nacional que rege as modalidades de cobrança da imposição suplementar pelo comprador junto dos produtores não pode exonerar estes da obrigação dessa imposição que lhes é, em todos os casos, imposta pelo artigo 2.o, n.o 1, deste regulamento.

31

Pelo contrário, esta incompatibilidade implica apenas, como salientou o advogado‑geral no n.o 50 das suas conclusões, que a regulamentação nacional em causa não deve ser aplicada e que o comprador deve poder cobrar os montantes aos produtores «por qualquer outra forma adequada», em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, primeiro parágrafo, do referido regulamento.

32

Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92 deve ser interpretado no sentido de que a constatação da incompatibilidade com a referida disposição da regulamentação nacional que rege as modalidades de cobrança da imposição suplementar pelo comprador junto dos produtores não implica que os produtores sujeitos a esta regulamentação deixem de ser devedores dessa imposição.

Quanto à terceira questão

33

Com a sua terceira questão, que importa examinar em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92, lido em conjugação com o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que a restituição do excedente cobrado da imposição suplementar deve beneficiar prioritariamente os produtores que, em aplicação de uma disposição de direito nacional incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, tenham cumprido a sua obrigação de pagamento mensal.

34

Resulta do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92 que um Estado‑Membro pode, quando a imposição for devida e o montante cobrado lhe for superior, decidir restituir o excedente cobrado da imposição aos produtores cujo excedente seja imputável a uma situação que o Estado‑Membro possa ter justificavelmente em conta em função de critérios objetivos a determinar e/ou de uma situação excecional resultante de uma disposição nacional que não tenha qualquer relação com o regime da imposição suplementar no setor do leite.

35

As condições de aplicação desta disposição são especificadas no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001, que prevê que, se for o caso, os Estados‑Membros determinarão as categorias prioritárias nos termos do n.o 4 do artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92, em função de um ou mais dos cinco critérios objetivos que a referida disposição enumera, por ordem de prioridade.

36

Além disso, o artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1392/2001 enuncia que, se a aplicação desses critérios não esgotar os recursos financeiros disponíveis, serão adotados pelo Estado‑Membro outros critérios objetivos, após consulta da Comissão.

37

O considerando 6 deste regulamento especifica, além disso, que só no caso de os critérios enunciados no artigo 9.o, n.o 1, do referido regulamento não serem integralmente aplicáveis num Estado‑Membro pode este ser autorizado a estabelecer outros critérios.

38

Daqui resulta que, como salientou o advogado‑geral no n.o 71 das suas conclusões, os critérios previstos no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001 são exaustivos e que os Estados‑Membros só podem adicionar critérios suplementares se a aplicação desses critérios, por ordem de prioridade, não esgotar os recursos financeiros disponíveis para um dado período.

39

Ora, nenhum dos critérios enumerados no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001 menciona o cumprimento de uma obrigação de pagamento mensal pelo produtor em causa.

40

Nestas condições, um Estado‑Membro não pode validamente proceder à restituição do excedente cobrado ao reembolsar prioritariamente os produtores que tenham cumprido essa obrigação.

41

Com efeito, essa prática equivale a elevar os produtores que tenham cumprido a sua obrigação de pagamento mensal a uma categoria prioritária, na aceção do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92, com base num critério aplicado em substituição dos previstos no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001 e sem que um critério suplementar possa ter sido validamente instituído em aplicação do artigo 9.o, n.o 2, deste regulamento.

42

Nessa situação, um produtor que pertença a uma categoria prioritária em aplicação de um dos critérios estabelecidos no artigo 9.o, n.o 1, do referido regulamento sem, contudo, ter cumprido a obrigação de pagamento mensal apenas pode, portanto, obter uma redução da imposição devida após a restituição aos produtores que tenham cumprido essa obrigação, e isto admitindo que ainda estejam disponíveis fundos após a restituição a estes últimos.

43

Por outro lado, como alega em substância a Comissão, o pagamento da imposição, diretamente ou através do comprador responsável, constitui, é certo, em princípio, um pressuposto lógico da restituição do excedente cobrado. No entanto, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não se limita a exigir esse pagamento, mas estabelece uma ordem de prioridade na restituição com base, além do mais, no cumprimento de uma regulamentação nacional que rege as modalidades de cobrança da imposição incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92.

44

Além disso, como salientou o advogado‑geral no n.o 75 das suas conclusões, não se pode considerar que os produtores que cumpriram a sua obrigação de pagamento mensal, por esse simples facto, se encontram numa situação excecional resultante de uma disposição nacional que não tem qualquer relação com o regime da imposição suplementar no setor do leite, na aceção do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92.

45

À luz das considerações expostas, há que responder à terceira questão que o artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92, lido em conjugação com o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que a restituição do excedente cobrado da imposição suplementar deve beneficiar prioritariamente os produtores que, em aplicação de uma disposição de direito nacional incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, tenham cumprido a sua obrigação de pagamento mensal.

Quanto à segunda questão

46

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da proteção da confiança legítima deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o montante da imposição suplementar devida por produtores que não tenham cumprido a obrigação, prevista pela regulamentação nacional aplicável, de pagamento numa base mensal dessa imposição seja recalculado.

47

Resulta da decisão de reenvio que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a proteção da confiança legítima que importa conferir aos produtores que tenham cumprido a obrigação de pagamento, numa base mensal, da imposição suplementar. Nesta perspetiva, pretende determinar as consequências que há, eventualmente, que extrair, no processo principal, da circunstância de a colocação em causa das regras que estabelecem a ordem de pagamento para efeitos da restituição do excedente cobrado da imposição suplementar implicar, em definitivo, a recuperação da totalidade ou parte das restituições de que esses produtores beneficiaram.

48

A este respeito, e independentemente da questão de saber se os produtores que tenham cumprido a obrigação de pagamento mensal podem invocar o princípio da proteção da confiança legítima para contestarem uma eventual recuperação da restituição da imposição de que beneficiaram, há que constatar que, em todo o caso, esse princípio não pode, numa situação como a que está em causa no processo principal, ter como efeito permitir que as autoridades italianas competentes não corrijam as decisões incompatíveis com o direito da União que adotaram, ao recusarem proceder a uma nova apreciação dos direitos dos produtores que não tenham cumprido essa obrigação.

49

Uma vez que resulta da resposta dada à terceira questão que o tratamento desfavorável sofrido por esses produtores assenta na aplicação, pela República Italiana, de um critério acrescentado aos critérios objetivos enumerados, de forma exaustiva, no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001, sem que este possa corresponder manifestamente à hipótese prevista no artigo 9.o, n.o 2, deste regulamento, cabe, pelo contrário, às referidas autoridades recalcular o montante da imposição suplementar devida pelos referidos produtores, afastando as disposições nacionais incompatíveis com os Regulamentos n.os 3950/92 e 1392/2001.

50

À luz das considerações expostas, há que responder à segunda questão que o princípio da proteção da confiança legítima deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o montante da imposição suplementar devida por produtores que não tenham cumprido a obrigação, prevista pela regulamentação nacional aplicável, de pagamento numa base mensal dessa imposição seja recalculado.

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92 do Conselho, de 28 de dezembro de 1992, que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1256/1999 do Conselho, de 17 de maio de 1999, deve ser interpretado no sentido de que a constatação da incompatibilidade com a referida disposição da regulamentação nacional que rege as modalidades de cobrança da imposição suplementar pelo comprador junto dos produtores não implica que os produtores sujeitos a esta regulamentação deixem de ser devedores dessa imposição.

 

2)

O artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92, conforme alterado pelo Regulamento n.o 1256/1999, lido em conjugação com o artigo 9.o do Regulamento (CE) n.o 1392/2001 da Comissão, de 9 de julho de 2001, que estabelece normas de execução do Regulamento n.o 3950/92, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que a restituição do excedente cobrado da imposição suplementar deve beneficiar prioritariamente os produtores que, em aplicação de uma disposição de direito nacional incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, conforme alterado pelo Regulamento n.o 1256/1999, tenham cumprido a sua obrigação de pagamento mensal.

 

3)

O princípio da proteção da confiança legítima deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o montante da imposição suplementar devida por produtores que não tenham cumprido a obrigação, prevista pela regulamentação nacional aplicável, de pagamento numa base mensal dessa imposição seja recalculado.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.