ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

19 de dezembro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigos 56.o e 57.o TFUE — Livre prestação de serviços — Diretiva 96/71/CE — Aplicabilidade — Artigo 1.o, n.o 3, alínea a) — Destacamento de trabalhadores efetuado no âmbito de uma prestação de serviços — Prestação de serviços a bordo de comboios internacionais — Regulamentação nacional que impõe obrigações administrativas relacionadas com o destacamento de trabalhadores»

No processo C‑16/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria), por Decisão de 15 de dezembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de janeiro de 2018, no processo

Michael Dobersberger

contra

Magistrat der Stadt Wien,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, M. Vilaras, E. Regan, M. Safjan e S. Rodin, presidentes de secção, L. Bay Larsen (relator), T. von Danwitz, C. Toader, D. Šváby, C. Vajda, F. Biltgen, K. Jürimäe e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 12 de março de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Michael Dobersberger, por A. Werner, Rechtsanwältin,

em representação do Governo austríaco, por J. Schmoll e G. Hesse, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e J. Pavliš, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, inicialmente por T. Henze e D. Klebs, e em seguida por D. Klebs, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por R. Coesme e E. de Moustier, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, G. Koós e M. M. Tátrai, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por M. Kellerbauer e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de julho de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 56.o e 57.o TFUE, bem como da Diretiva 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 1996, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços (JO 1997, L 18, p. 1, e retificação no JO 2007, L 310, p. 22), nomeadamente do seu artigo 1.o, n.o 3, alínea a).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre Michael Dobersberger e o Magistrate der Stadt Wien (Município de Viena, Áustria) a respeito das sanções administrativas de natureza penal aplicadas a M. Dobersberger por vários incumprimentos de obrigações administrativas previstas nas disposições do direito social austríaco que regem o destacamento de trabalhadores no território desse Estado‑Membro.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Segundo o considerando 15 da Diretiva 96/71, «[…] em certos casos delimitados de trabalhos de montagem e/ou instalação de um bem, convém prever a não aplicação das disposições relativas ao salário mínimo e à duração mínima das férias anuais remuneradas».

4

O artigo 1.o desta diretiva, com a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe:

«1.   A presente diretiva é aplicável às empresas estabelecidas num Estado‑Membro que, no âmbito de uma prestação transnacional de serviços e nos termos do n.o 3, destaquem trabalhadores para o território de um Estado‑Membro.

2.   A presente diretiva não é aplicável às empresas da marinha mercante no que se refere ao pessoal navegante.

3.   A presente diretiva é aplicável sempre que as empresas mencionadas no n.o 1 tomem uma das seguintes medidas transnacionais:

a)

Destacar um trabalhador para o território de um Estado‑Membro, por sua conta e sob a sua direção, no âmbito de um contrato celebrado entre a empresa destacadora e o destinatário da prestação de serviços que trabalha nesse Estado‑Membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre a empresa destacadora e o trabalhador;

ou

b)

Destacar um trabalhador para um estabelecimento ou uma empresa do grupo situados num Estado‑Membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre a empresa destacadora e o trabalhador;

ou

c)

Destacar, na qualidade de empresa de trabalho temporário ou de empresa que põe um trabalhador à disposição, um trabalhador para uma empresa utilizadora estabelecida no território de um Estado‑Membro ou que nele exerça a sua atividade, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre o trabalhador e a empresa de trabalho temporário ou a empresa que põe o trabalhador à disposição.

[…]»

5

O artigo 2.o da referida diretiva, com a epígrafe «Definição», tem a seguinte redação:

«1.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “trabalhador destacado” qualquer trabalhador que, por um período limitado, trabalhe no território de um Estado‑Membro diferente do Estado onde habitualmente exerce a sua atividade.

2.   Para efeitos da presente diretiva, a noção de “trabalhador” é a que se aplica no direito do Estado‑Membro em cujo território o trabalhador está destacado.»

6

O artigo 3.o da Diretiva 96/71, com a epígrafe «Condições de trabalho e emprego», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros providenciarão no sentido de que, independentemente da lei aplicável à relação de trabalho, as empresas referidas no n.o 1 do artigo 1.o garantam aos trabalhadores destacados no seu território as condições de trabalho e de emprego relativas às matérias adiante referidas que, no território do Estado‑Membro onde o trabalho for executado, sejam fixadas:

por disposições legislativas, regulamentares ou administrativas

e/ou

por convenções coletivas ou decisões arbitrais declaradas de aplicação geral na aceção do n.o 8, na medida em que digam respeito às atividades referidas no anexo:

a)

Períodos máximos de trabalho e períodos mínimos de descanso;

b)

Duração mínima das férias anuais remuneradas;

c)

Remunerações salariais mínimas, incluindo as bonificações relativas a horas extraordinárias; a presente alínea não se aplica aos regimes complementares voluntários de reforma;

d)

Condições de disponibilização dos trabalhadores, nomeadamente por empresas de trabalho temporário;

e)

Saúde, segurança e higiene no trabalho;

f)

Medidas de proteção aplicáveis às condições de trabalho e emprego das mulheres grávidas e das puérperas, das crianças e dos jovens;

g)

Igualdade de tratamento entre homens e mulheres, bem como outras disposições em matéria de não discriminação.

[…]

2.   As alíneas b) e c) do segundo travessão do n.o 1 não são aplicáveis aos trabalhos de montagem inicial e/ou de primeira instalação de um bem, que sejam parte integrante de um contrato de fornecimento de bens, indispensáveis para a entrada em funcionamento do bem fornecido e executado pelos trabalhadores qualificados e/ou especializados da empresa fornecedora, quando a duração do destacamento não for superior a oito dias.

Esta disposição não é aplicável às atividades de construção referidas no anexo.

3.   Os Estados‑Membros podem, após consulta dos parceiros sociais e segundo os respetivos usos e costumes em vigor, decidir não aplicar o disposto na alínea c) do segundo travessão do n.o 1 aos casos referidos no n.o 3, alíneas a) e b), do artigo 1.o quando o período de destacamento não for superior a um mês.

4.   Os Estados‑Membros podem, segundo as legislações e/ou práticas nacionais, prever derrogações ao disposto na alínea c) do segundo travessão do n.o 1, nos casos previstos no n.o 3, alíneas a) e b), do artigo 1.o, bem como à decisão de um Estado‑Membro na aceção do n.o 3 do presente artigo, através de convenções coletivas na aceção do n.o 8 do presente artigo, respeitantes a um ou vários setores de atividade, quando a duração do destacamento não for superior a um mês.

5.   Os Estados‑Membros podem prever a concessão de uma derrogação ao disposto nas alíneas b) e c) do segundo travessão do n.o 1, nos casos previstos no n.o 3, alíneas a) e b), do artigo 1.o, em virtude do reduzido volume dos trabalhos a efetuar.

Os Estados‑Membros que recorram à faculdade prevista no primeiro parágrafo estabelecerão as normas que os trabalhos a efetuar devem respeitar para serem considerados “de reduzido volume”.

[…]

7.   O disposto nos n.os 1 a 6 não obsta à aplicação de condições de emprego e trabalho mais favoráveis aos trabalhadores.

[…]

10.   A presente diretiva não obsta a que, no respeito pelo Tratado, os Estados‑Membros imponham às empresas nacionais e de outros Estados, de forma igual:

condições de trabalho e emprego relativas a matérias que não as referidas no n.o 1, na medida em que se trate de disposições de ordem pública,

condições de trabalho e emprego fixadas nas convenções coletivas ou decisões arbitrais na aceção no n.o 8, relativas a atividades não previstas no anexo.»

Direito austríaco

7

O § 7b da Arbeitsvertragsrechts‑Anpassungsgesetz (Lei de Adaptação da Lei do Contrato de Trabalho, BGBl., 459/1993), na sua versão publicada no BGBl. I, 152/2015 (a seguir «AVRAG»), que foi adotada com vista à transposição da Diretiva 96/71 para o direito nacional, tinha a seguinte redação:

«Ação contra empregadores estrangeiros com sede num Estado‑Membro da União ou do Espaço Económico Europeu

(1)   Um trabalhador destacado para trabalhar na Áustria por um empregador com sede num Estado‑Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu diferente da Áustria, durante o período de destacamento e sem prejuízo das leis e regulamentos aplicáveis à relação de trabalho, tem automaticamente direito:

1.

pelo menos, à remuneração legal mínima, fixada por lei ou por uma convenção coletiva, que deve ser paga no local de trabalho a trabalhadores comparáveis por empregadores comparáveis […]

[…]

Uma entidade que tenha a sua sede num Estado‑Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu diferente da Áustria deve ser considerada, no que respeita aos n.os 3 a 5 e 8, [bem como] ao § 7d, n.o 1, […] um empregador relativamente aos trabalhadores colocados à sua disposição que são destacados para a Áustria para trabalhar. […]

[…]

(3)   Os empregadores na aceção do n.o 1 estão obrigados a declarar, pelo menos uma semana antes do início dos trabalhos em questão, a utilização de trabalhadores destacados para trabalhar na Áustria no Serviço Central de Coordenação para o Controlo do Trabalho Ilegal […]

(4)   A declaração referida no n.o 3 deve ser feita separadamente para cada destacamento e conter as seguintes informações:

1.

o nome, o endereço e a licença profissional ou o objeto da atividade profissional do empregador na aceção do n.o 1 […]

[…]

6.

o período total coberto pelo destacamento, bem como o início e a duração previsível da relação de trabalho dos diferentes trabalhadores na Áustria, as condições habituais em matéria de horário e de local de trabalho acordadas para os diferentes trabalhadores,

7.

o montante da remuneração devida a cada trabalhador ao abrigo da legislação austríaca e o início da relação de trabalho com o empregador,

8.

o local (endereço exato) de trabalho na Áustria (também outros locais de intervenção na Áustria),

9.

o tipo de atividade e posto do trabalhador, tendo em conta o contrato coletivo austríaco aplicável,

[…]

(5)   Os empregadores na aceção do n.o 1 devem, na medida em que os trabalhadores destacados não estão obrigados a aderir ao regime de segurança social na Áustria, manter à disposição no local de prestação do trabalho (ou intervenção no território nacional) os documentos relativos à declaração do trabalhador à segurança social (documento da segurança social E 101 nos termos do Regulamento (CEE) n.o 1408/71 [do Conselho, de 14 de junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO 1971, L 149, p. 2; EE 05 F1 p. 98)], documento da segurança social A 1 em conformidade com o Regulamento (CE) [n.o 883/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à coordenação dos sistemas de segurança social (JO 2004, L 166, p. 1)]), bem como uma cópia da declaração referida nos n.os 3 e 4, ou torná‑los diretamente acessíveis sob forma eletrónica aos serviços da autoridade responsável pela cobrança das contribuições […]»

8

No que diz respeito ao dever de disponibilizar documentos relativos aos salários, o § 7d da AVRAG, que visa igualmente transpor a Diretiva 96/71 para o direito nacional, prevê, designadamente, que, durante o período de destacamento, os empregadores devem manter disponíveis no local de prestação do trabalho, em alemão, o contrato de trabalho ou a folha de encargos dos serviços e a folha de vencimento, bem como conservar os comprovativos de pagamento dos salários ou das transferências bancárias, os recibos de salários, as folhas de presença, o registo das horas de trabalho e os documentos relativos à classificação na grelha salarial, para que seja possível verificar que o trabalhador destacado recebe, durante o período de emprego, os salários que lhe são devidos em conformidade com as disposições legais.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9

A Österreichische Bundesbahnen (Sociedade dos Caminhos de Ferro Federais Austríacos, a seguir «ÖBB») adjudicou, para o período de 2012‑2016, um contrato de prestação de serviços que consiste na exploração dos vagões‑restaurante ou do serviço de bordo de alguns dos seus comboios à D. GmbH, cuja sua sede se situa na Áustria. Contudo, a execução deste contrato foi assegurada pela Henry am Zug Hungary Kft. (a seguir «H. Kft.»), sociedade de direito húngaro com sede na Hungria, através de uma série de contratos de subcontratação com a H. GmbH, que também tem sede na Áustria.

10

A H. Kft. assegurou a prestação de serviços em alguns comboios da ÖBB que ligam Salzburgo (Áustria) ou Munique (Alemanha) a Budapeste (Hungria) como estação de partida ou de destino, com trabalhadores com domicílio na Hungria, cuja maior parte foi colocada à disposição da H. Kft. por outra empresa húngara, ao passo que os outros eram trabalhadores diretamente contratados pela H. Kft.

11

Todos os trabalhadores afetados à prestação dos referidos serviços tinham o domicílio, a segurança social e o seu centro de vida na Hungria e iniciavam e terminavam o seu serviço na Hungria. Em Budapeste, deviam receber as mercadorias, isto é, os alimentos e as bebidas aí armazenadas, e levá‑los para os comboios. Também em Budapeste, tinham de efetuar os controlos dos produtos restantes e o cálculo do montante faturado. Assim, todas as prestações de trabalho em causa no processo principal, com exceção das que deviam ser efetuadas nos comboios, eram realizadas na Hungria.

12

Na sequência de uma inspeção efetuada na estação de Viena (Áustria), em 28 de janeiro de 2016, M. Dobersberger, gerente da H. Kft., foi declarado culpado, na qualidade de empregador de trabalhadores de nacionalidade húngara destacados por essa sociedade no território austríaco para prestar o serviço de bordo em determinados comboios da ÖBB, pelo facto de a referida empresa:

«1) não ter, em violação do § 7b, n.o 3, da AVRAG, no prazo de uma semana antes da entrada ao serviço, feito uma declaração na Áustria, junto da autoridade austríaca competente, relativa ao referido trabalho dos trabalhadores destacados,

2) não ter, em violação do § 7b, n.o 5, da AVRAG, à disposição, nos locais de intervenção no território nacional, os documentos relativos à inscrição dos trabalhadores na segurança social, e

3) não ter, em violação do § 7d, n.o 1, da AVRAG, à disposição, nos referidos locais de intervenção, o contrato de trabalho, os comprovativos do pagamento dos salários e os documentos relativos à classificação na grelha salarial em língua alemã».

13

Por consequência, foram aplicadas a M. Dobersberger sanções administrativas de natureza penal por incumprimento de obrigações administrativas.

14

Este último contestou essas sanções no Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena, Áustria), que julgou o pedido improcedente. M. Dobersberger interpôs um recurso de «Revision» da sentença do Verwaltungsgericht Wien (Tribunal Administrativo de Viena) para o órgão jurisdicional de reenvio, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo, Áustria).

15

O órgão jurisdicional de reenvio considera que a solução do litígio que lhe foi submetido suscita questões de interpretação da Diretiva 96/71, em especial do seu artigo 1.o, n.o 3, alínea a), e dos artigos 56.o e 57.o TFUE.

16

Nestas circunstâncias, o Verwaltungsgerichtshof (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O âmbito de aplicação da Diretiva 96/71 […], especialmente o seu artigo 1.o, n.o 3, alínea a), abrange igualmente a prestação de serviços de fornecimento de refeições e bebidas a passageiros, serviços de bordo e serviços de limpeza, realizados por trabalhadores de uma empresa de prestação de serviços com sede no Estado‑Membro a partir do qual é feito o destacamento (Hungria), para cumprimento de um contrato com uma companhia de caminhos de ferro com sede no Estado‑Membro para onde é feito o destacamento (Áustria), quando as prestações de serviço são realizadas em comboios internacionais que também percorrem o Estado‑Membro para onde é feito o destacamento?

2)

O artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da [Diretiva 96/71] abrange igualmente o caso de a empresa prestadora de serviços com sede no Estado‑Membro a partir do qual é feito o destacamento fornecer as prestações de serviços mencionadas na [primeira questão] não em cumprimento de um contrato celebrado com a empresa de caminhos de ferro com sede no Estado‑Membro para onde é feito o destacamento e a favor da qual, em última análise, são feitas essas prestações (por ser destinatária das prestações), mas em cumprimento de um contrato celebrado com outra empresa com sede no Estado‑Membro para onde é feito o destacamento, que por sua vez se encontra numa relação contratual (através de uma cadeia de subcontratação) com a empresa de caminhos de ferro?

3)

O artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da [Diretiva 96/71] abrange igualmente o caso de a empresa de prestação de serviços com sede no Estado‑Membro a partir do qual é feito o destacamento, para realizar as prestações de serviços mencionadas na [primeira questão], não utilizar os seus próprios trabalhadores, mas trabalhadores de outra empresa que lhe foram cedidos ainda no Estado‑Membro a partir do qual foi feito o destacamento?

4)

Independentemente da resposta que seja dada [à primeira a terceira questões]: o direito da União, especialmente a liberdade de prestação de serviços (artigos 56.o e 57.o TFUE), opõe‑se a um regime nacional que obriga as empresas que destacam trabalhadores para o território de outro Estado‑Membro, para a realização de prestações de serviços, ao cumprimento das condições de trabalho e de emprego no sentido do artigo 3.o, n.o 1, da [Diretiva 96/71] e o cumprimento dos deveres acessórios (como especialmente o dever de comunicação do destacamento transfronteiriço de trabalhadores às autoridades do Estado‑Membro para onde são destacados os trabalhadores e de manutenção de documentos sobre o montante dos salários e sobre a inscrição desses trabalhadores na [s]egurança [s]ocial) imperativamente também para casos em que [a)] os trabalhadores objeto de destacamento transfronteiriço são pessoal tripulante de uma empresa de caminhos de ferro que faz trajetos transfronteiriços ou de uma empresa que presta serviços típicos de uma empresa de caminhos de ferro (fornecimento de comidas e bebidas aos passageiros e serviços de bordo) que presta esses serviços em comboios que passam as fronteiras desses Estados‑Membros, e em que [b)] o destacamento não tem por base qualquer contrato de prestação de serviços ou, pelo menos, um contrato de prestação de serviços entre a empresa destacante e a empresa destinatária das prestações de serviços com sede no outro Estado‑Membro, porque o dever de prestar da empresa destacante relativamente à empresa destinatária com sede no outro Estado‑Membro se baseia em subcontratos (numa cadeia de subcontratação), e em que [c)] os trabalhadores destacados não têm uma relação de trabalho com a empresa destacante, mas com uma terceira empresa que cedeu os seus trabalhadores à empresa destacante ainda no Estado‑Membro da sede da empresa destacante?»

Quanto à admissibilidade das três primeiras questões prejudiciais

17

O Governo francês tem dúvidas quanto à admissibilidade das três primeiras questões prejudiciais e invoca o Acórdão de 3 dezembro de 2014, De Clercq e o. (C‑315/13, EU:C:2014:2408), no qual o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 96/71 não é aplicável a litígios nacionais que não dizem diretamente respeito às condições de trabalho e de emprego de trabalhadores destacados, mas às medidas de controlo instituídas pelas autoridades nacionais para assegurar o respeito das condições de trabalho e de emprego. Ora, parece ser o que sucede no presente caso.

18

A este respeito, há que recordar que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 26 e jurisprudência referida).

19

Daqui resulta que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (v., designadamente, Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 27 e jurisprudência referida).

20

Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 17 das suas conclusões, o caso em apreço não corresponde a nenhuma das hipóteses em que o Tribunal de Justiça pode recusar responder a questões prejudiciais. Por outro lado, como defendeu acertadamente o Governo alemão na audiência no Tribunal de Justiça, o Acórdão de 3 de dezembro de 2014, De Clercq e o. (C‑315/13, EU:C:2014:2408), tinha por objeto medidas de controlo destinadas ao respeito de disposições nacionais de transposição da Diretiva 96/71, ao passo que as três primeiras questões prejudiciais no presente processo se referem à própria aplicabilidade desta diretiva à prestação de serviços como os que estão em causa no processo principal.

21

A este respeito, há ainda que sublinhar que, quando não resulte de forma manifesta que a interpretação de um ato de direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, a objeção relativa à inaplicabilidade desse ato ao processo principal não se refere à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, mas enquadra‑se na apreciação de mérito das questões (v., neste sentido, Acórdão de 4 de julho de 2019, Kirschstein, C‑393/17, EU:C:2019:563, n.o 28).

22

Daqui resulta que as três primeiras questões são admissíveis.

Quanto ao mérito

Quanto à primeira a terceira questões

23

Com as suas três primeiras questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71 deve ser interpretado no sentido de que se aplica à prestação, no âmbito de um contrato celebrado entre uma empresa estabelecida num Estado‑Membro e uma empresa estabelecida noutro Estado‑Membro e contratualmente ligada a um operador ferroviário estabelecido nesse mesmo Estado‑Membro, de serviços de bordo, de limpeza ou de restauração para os passageiros, efetuados por trabalhadores assalariados da primeira empresa, ou por trabalhadores cedidos a esta por uma empresa igualmente estabelecida no primeiro Estado‑Membro, em comboios internacionais que atravessam o segundo Estado‑Membro, quando executam uma parte importante do trabalho inerente a esses serviços no território do primeiro Estado‑Membro e aí iniciam ou terminam o seu serviço.

24

A título preliminar, há que recordar que a livre circulação de serviços no domínio dos transportes é regulada não pelo artigo 56.o TFUE, que diz respeito, em geral, à livre prestação de serviços, mas pela disposição específica do artigo 58.o, n.o 1, TFUE, nos termos do qual «[a] livre prestação de serviços em matéria de transportes é regulada pelas disposições constantes do título relativo aos transportes» (Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Yellow Cab Verkehrsbetrieb, C‑338/09, EU:C:2010:814, n.o 29 e jurisprudência referida), ou seja, os artigos 90.o a 100.o TFUE.

25

Os serviços em matéria de transportes cobrem não só todo o ato físico de movimentar pessoas ou mercadorias de um local para outro graças a um meio de transporte mas também todo o serviço que, ainda que acessório a esse ato, está intrinsecamente ligado a tal ato [v., neste sentido, Acórdão de 15 de outubro de 2015, Grupo Itevelesa e o., C‑168/14, EU:C:2015:685, n.os 46 e 47, e Parecer 2/15 (Acordo de Comércio Livre com Singapura), de 16 de maio de 2017, EU:C:2017:376, n.o 61].

26

Ora, serviços como os serviços de bordo, de limpeza ou de restauração prestados em comboios, apesar de terem caráter acessório relativamente ao serviço de transporte de passageiros por caminho de ferro, não estão intrinsecamente ligados a este último. Com efeito, esse serviço de transporte pode realizar‑se independentemente dos referidos serviços acessórios.

27

Por conseguinte, esses serviços, que não estão abrangidos pelas disposições do título do Tratado FUE relativo aos transportes, inserem‑se no âmbito dos artigos 56.o a 62.o TFUE relativos aos serviços, com exceção do artigo 58.o, n.o 1, TFUE, e, portanto, são suscetíveis, enquanto tais, de ser cobertos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 96/71, que foi adotada com base no artigo 57.o, n.o 2, e no artigo 66.o CE, relativos aos serviços.

28

Todavia, importa verificar se esses serviços, quando prestados em circunstâncias como as do processo principal, entram no âmbito de aplicação desta diretiva, tal como definido no seu artigo 1.o

29

A este respeito, resulta do artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71, que é especificamente visado pelo órgão jurisdicional de reenvio nas suas três primeiras questões, que esta diretiva se aplica, nomeadamente, a uma situação na qual uma empresa estabelecida num Estado‑Membro destaca, no âmbito de uma prestação transnacional de serviços, trabalhadores para o território de outro Estado‑Membro, por sua conta e sob a sua direção, no âmbito de um contrato celebrado entre a empresa destacadora e o destinatário da prestação de serviços ativo neste último Estado‑Membro, desde que durante o período de destacamento exista uma relação de trabalho entre esta empresa e o trabalhador (Acórdão de 3 de abril de 2008, Rüffert, C‑346/06, EU:C:2008:189, n.o 19).

30

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da referida diretiva, «entende‑se por “trabalhador destacado” qualquer trabalhador que, por um período limitado, trabalhe no território de um Estado‑Membro diferente do Estado onde habitualmente exerce a sua atividade».

31

A este respeito, tendo em conta a Diretiva 96/71, um trabalhador não pode ser considerado destacado no território de um Estado‑Membro se a execução do seu trabalho não apresentar uma ligação suficiente com esse território. Esta interpretação decorre da sistemática da Diretiva 96/71 e, nomeadamente, do seu artigo 3.o, n.o 2, lido à luz do seu considerando 15, que, no caso de prestações de caráter muito limitado no território para o qual os trabalhadores em causa são enviados, prevê que as disposições desta diretiva relativas às remunerações salariais mínimas e à duração mínima das férias anuais remuneradas não são aplicáveis.

32

De resto, a mesma lógica está subjacente às derrogações facultativas previstas no artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 96/71.

33

Ora, os trabalhadores, como os que estão em causa no processo principal, que executam uma parte importante do seu trabalho no Estado‑Membro onde está estabelecida a empresa que os afetou à prestação de serviços em comboios internacionais, a saber, o conjunto das atividades incluídas nesse trabalho, com exceção da atividade de serviço de bordo efetuada quando o comboio circula, e que iniciam ou terminam o seu serviço nesse Estado‑Membro não mantêm uma ligação suficiente com o território do ou dos Estados‑Membros que esses comboios atravessam para poderem ser considerados «destacados», na aceção da Diretiva 96/71.

34

É indiferente, a este respeito, que a prestação dos serviços em causa decorra de um contrato celebrado entre a referida empresa e uma empresa estabelecida no mesmo Estado‑Membro do operador ferroviário e que, por sua vez, celebrou um contrato com este último, e que a empresa de serviços afete a essa prestação não os seus próprios trabalhadores, mas os trabalhadores postos à sua disposição por uma empresa estabelecida no mesmo Estado‑Membro que o seu.

35

Em face do exposto, há que responder às três primeiras questões que o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71 deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável à prestação, no âmbito de um contrato celebrado por uma empresa estabelecida num Estado‑Membro e uma empresa estabelecida noutro Estado‑Membro e contratualmente ligada a um operador ferroviário estabelecido nesse mesmo Estado‑Membro, de serviços de bordo, de limpeza ou de restauração para os passageiros, efetuados por trabalhadores assalariados da primeira empresa, ou por trabalhadores colocados à disposição desta por uma empresa igualmente estabelecida no primeiro Estado‑Membro, em comboios internacionais que atravessam o segundo Estado‑Membro, quando esses trabalhadores executam uma parte importante do trabalho inerente a esses serviços no território do primeiro Estado‑Membro e aí iniciam ou terminam o seu serviço.

Quanto à quarta questão

36

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, sob pena de sanções administrativas de natureza penal, impõe a uma empresa estabelecida num Estado‑Membro, que afeta os seus próprios trabalhadores ou trabalhadores colocados à disposição por outra empresa estabelecida nesse mesmo Estado‑Membro à prestação de serviços de bordo, de limpeza ou de restauração para os passageiros em comboios internacionais que atravessem o território de outro Estado‑Membro, e que, no âmbito de um contrato celebrado por essa primeira empresa com uma empresa estabelecida nesse outro Estado‑Membro, age na qualidade de subcontratante de um operador ferroviário igualmente estabelecido nesse outro Estado‑Membro, a obrigação de respeitar as condições de trabalho e de emprego, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 96/71, em vigor neste último Estado‑Membro, de fazer junto da autoridade competente uma declaração relativa ao emprego dos trabalhadores em causa, pelo menos uma semana antes da sua entrada ao serviço, e de manter, nos locais de intervenção no território desse mesmo outro Estado‑Membro, por um lado, os documentos relativos à inscrição dos trabalhadores no regime de segurança social do primeiro Estado‑Membro e, por outro, os contratos de trabalho, os comprovativos do pagamento dos salários e os documentos relativos à classificação na grelha salarial, na língua oficial do outro Estado‑Membro.

37

A este respeito, resulta do n.o 35 do presente acórdão que o artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71 deve ser interpretado no sentido de que não abrange serviços como os descritos no número anterior.

38

Nestas circunstâncias, e uma vez que, como resulta da decisão de reenvio, a regulamentação nacional a que se refere esta quarta questão tem por objetivo específico transpor esta diretiva e prever uma série de obrigações acessórias destinadas a controlar o respeito das suas disposições, nomeadamente em matéria de salário mínimo, não há que responder a esta questão.

Quanto às despesas

39

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 1.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 96/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 1996, relativa ao destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação de serviços, deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável à prestação, no âmbito de um contrato celebrado por uma empresa estabelecida num Estado‑Membro e uma empresa estabelecida noutro Estado‑Membro e contratualmente ligada a um operador ferroviário estabelecido nesse mesmo Estado‑Membro, de serviços de bordo, de limpeza ou de restauração para os passageiros, efetuados por trabalhadores assalariados da primeira empresa, ou por trabalhadores colocados à disposição desta por uma empresa igualmente estabelecida no primeiro Estado‑Membro, em comboios internacionais que atravessam o segundo Estado‑Membro, quando esses trabalhadores executam uma parte importante do trabalho inerente a esses serviços no território do primeiro Estado‑Membro e aí iniciam ou terminam o seu serviço.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.