CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 27 de novembro de 2019 ( 1 )

Processo C‑640/18

Wagram Invest SA

contra

État belge

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d’appel de Mons (Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Quarta Diretiva 78/660/CEE — Contas anuais de certas formas de sociedades — Princípio da imagem fiel — Artigo 2.o, n.os 3 a 5 — Aquisição de uma imobilização financeira por uma sociedade anónima — Inscrição, como encargo, na conta de resultados, de um desconto relativo a uma dívida a mais de um ano, que não vence juros, e inscrição do preço de aquisição da imobilização no ativo do balanço, após dedução do desconto — Obrigação de fornecer informações complementares — Derrogação de uma disposição da diretiva em “casos excecionais”»

1.

O presente processo prende‑se com um pedido de decisão prejudicial submetido pela cour d’appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons, Bélgica) a respeito da interpretação da Quarta Diretiva 78/660/CEE ( 2 ) (a seguir «Diretiva 78/660)», relativa às contas anuais de certas formas de sociedades.

2.

Este pedido de decisão prejudicial visa, no essencial, verificar a conformidade com o princípio da imagem fiel, enunciado no artigo 2.o, n.os 3 a 5, da Diretiva 78/660 ( 3 ), lido à luz de outras disposições da mesma diretiva, de um método utilizado para contabilizar aquisições de ações efetuadas pela sociedade Wagram Invest SA.

3.

Um litígio de natureza fiscal que opõe a Wagram Invest às autoridades fiscais belgas está na origem deste processo que dará ao Tribunal de Justiça a ocasião de clarificar uma vez mais o alcance do princípio da imagem fiel das contas anuais, que constitui o objetivo primordial das disposições da União Europeia relativas às contas e às demonstrações financeiras das empresas ( 4 ). O Tribunal de Justiça é igualmente chamado a esclarecer a relação entre, por um lado, a obrigação de fornecer informações complementares, prevista no artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660, e, por outro, a possibilidade de, em casos excecionais, se derrogar uma disposição, em conformidade com o disposto no artigo 2.o, n.o 5, da referida diretiva.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

4.

Nos termos do artigo 2.o, n.os 3 a 5, da Diretiva 78/660:

«3.   As contas anuais devem dar uma imagem fiel do património, da situação financeira, assim como dos resultados da sociedade.

4.   Quando a aplicação da presente diretiva não for suficiente para dar a imagem fiel mencionada no n.o 3, devem ser fornecidas informações complementares.

5.   Se, em casos excecionais, a aplicação de uma disposição da presente diretiva se revelar contrária à obrigação prevista no n.o 3, deve derrogar‑se a disposição em causa de modo que seja dada uma imagem fiel na aceção do n.o 3. Uma tal derrogação deve ser mencionada no anexo e devidamente justificada, com indicação da sua influência sobre o património, a situação financeira e os resultados. Os Estados‑Membros podem especificar os casos excecionais e fixar o regime derrogatório correspondente.»

5.

O artigo 31.o, n.o 1, da Diretiva 78/660 dispõe:

«Os Estados‑Membros assegurarão que a valorimetria das rubricas que figuram nas contas anuais seja feita de acordo com os seguintes princípios gerais:

[…]

c)

O princípio de prudência deve em qualquer caso ser observado […]»

6.

Nos termos do artigo 32.o da Diretiva 78/660:

«A valorimetria das rubricas que figuram nas contas anuais faz‑se segundo as disposições dos artigos 34.o a 42.o, baseadas no princípio do preço de aquisição ou do custo de produção.»

7.

O artigo 35.o da Diretiva 78/660 prevê:

«1.   a) Os elementos do ativo imobilizado devem ser avaliados ao preço de aquisição ou ao custo de produção, sem prejuízo das alíneas b) e c).

[…]

2.   O preço de aquisição obtém‑se adicionando as despesas acessórias ao preço de compra. […]»

B.   Direito belga

8.

O artigo 24.o do arrêté royal portant exécution du code des sociétés ( 5 ) (Decreto Real que Dá Execução ao Código das Sociedades), de 30 de janeiro de 2001 (a seguir «Decreto Real»), dispõe, no seu primeiro parágrafo, que as contas anuais devem dar uma imagem fiel do património, da situação financeira, assim como dos resultados da sociedade e, no seu segundo parágrafo, que, se a aplicação das disposições deste decreto não for suficiente para dar cumprimento àquela obrigação, devem ser fornecidas informações complementares no anexo.

9.

O artigo 29.o, primeiro parágrafo, do Decreto Real precisa que, no caso excecional de a aplicação das regras de avaliação conduzir ao incumprimento do disposto no artigo 24.o, primeiro parágrafo, há que derrogar essas regras, em aplicação do referido artigo.

10.

Em conformidade com o disposto no artigo 35.o do referido Decreto Real, sem prejuízo da aplicação dos artigos 29.o, 67.o e 77.o, os elementos do ativo são avaliados pelo seu valor de aquisição e são inscritos no balanço por esse mesmo valor, após dedução das amortizações e das reduções de valores correspondentes. Por valor de aquisição entende‑se quer o preço de aquisição, quer o custo de produção, quer o valor da entrada ( 6 ).

11.

O artigo 67.o do Decreto Real diz respeito à inscrição dos créditos no balanço. Nos termos do seu n.o 1, «[s]em prejuízo do disposto no n.o 2 do presente artigo […], os créditos são inscritos no balanço pelo seu valor nominal».

12.

Todavia, o n.o 2, alínea c), do mesmo artigo 67.o prevê um regime contabilístico especial para determinados tipos de créditos. Mais concretamente, nos termos desta disposição, a inscrição no balanço dos créditos pelo seu valor nominal é acompanhada da inscrição em contas de regularização do passivo e da tomada em consideração de resultados pro rata temporis com base nos juros compostos do desconto de créditos que não vencem juros ou que vençam juros anormalmente baixos, quando esses créditos: 1) sejam reembolsáveis a mais de um ano, a partir da data da sua entrada no património da sociedade, e 2) sejam relativos a montantes inscritos como proveitos na conta de resultados ou a montantes relativos ao preço de alienação de imobilizações ou de segmentos de atividade.

13.

O artigo 77.o do Decreto Real alarga às dívidas o regime relativo aos créditos, previsto no artigo 67.o do mesmo Decreto Real. Este artigo 77.o dispõe, nomeadamente, que o referido artigo 67.o é aplicável por analogia às dívidas de natureza e de duração correspondentes.

II. Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14.

Através de dois acordos, um de 10 de janeiro de 1997 e o outro de 10 de março de 1999, a Wagram Invest adquiriu por duas vezes ao seu gerente ações de uma sociedade. Através do primeiro acordo, a Wagram Invest adquiriu 2005 ações desta sociedade, por um preço equivalente a 594944,45 euros, pagável em 16 prestações semestrais, isentas de juros. Através do segundo acordo, a Wagram Invest adquiriu 1993 ações da referida sociedade, por um preço equivalente a 787319,75 euros, pagável em 12 prestações semestrais, isentas de juros ( 7 ).

15.

Para contabilizar as referidas operações de compra de ações, a Wagram Invest, em conformidade com o disposto no artigo 77.o do Decreto Real, procedeu às seguintes operações contabilísticas.

16.

Primeiro, no passivo do seu balanço, a Wagram Invest inscreveu pelo respetivo valor nominal as dívidas a mais de um ano, que tinha para com o seu gerente, a saber, um valor equivalente a 594944,45 euros, pela aquisição do ano de 1997, e a um valor equivalente a 787319,75 euros, pela aquisição do ano de 1999 ( 8 ).

17.

Segundo, a Wagram Invest inscreveu no ativo as 2005 ações adquiridas no ano de 1997, por um valor atualizado equivalente a 452004,76 euros, e as 1993 ações adquiridas no ano de 1999, por um valor atualizado equivalente a 641332,82 euros ( 9 ).

18.

A percentagem do desconto utilizada para a atualização foi a percentagem da taxa do mercado aplicável a estas dívidas no momento da sua entrada no património, ou seja, 8 %.

19.

Terceiro, a Wagram Invest inscreveu a regularização do desconto que consistia na diferença entre o valor nominal da dívida e o valor atualizado da imobilização, ou seja, um valor equivalente a 142939,69 euros, para a aquisição do ano de 1997, e um valor equivalente a 145986,93 euros, para a aquisição do ano de 1999 ( 10 ).

20.

Quarto, a Wagram Invest considerou como encargos financeiros, no encerramento de cada exercício, um pro rata de encargos diferidos correspondentes ao desconto da dívida.

21.

Assim, no encerramento do exercício fiscal de 2000, a Wagram Invest contabilizou um pro rata de encargos de um montante equivalente a 48843,41 euros, a saber, um montante equivalente a 24801,9 euros, para as ações adquiridas no ano de 1997, e a 24041,5 euros, para as adquiridas no ano de 1999 ( 11 ).

22.

No encerramento do exercício fiscal de 2001, a Wagram Invest contabilizou um pro rata de encargos de um montante equivalente a 66344,17 euros, a saber, a 20899,7 euros, para as ações adquiridas no ano de 1997, e a 45444,5 euros, para as adquiridas no ano de 1999 ( 12 ).

23.

Na sequência de uma inspeção, a Administração Fiscal belga considerou que havia que rejeitar os encargos relacionados com o desconto que haviam sido contabilizados e deduzidos a título dos exercícios de tributação dos anos de 2000 e de 2001 e, não obstante o desacordo da Wagram Invest, enviou‑lhe uma decisão de liquidação em 28 de outubro de 2002.

24.

A Administração Fiscal belga considerou, nomeadamente, que a contabilização de um desconto fictício através da redução do preço de aquisição da imobilização equivalia a declarar uma menos‑valia sobre títulos que não tinha justificação económica e cuja contabilização escalonada não era admitida em termos fiscais ( 13 ).

25.

Com este fundamento, a Administração Fiscal belga emitiu em nome da Wagram Invest duas liquidações adicionais a título do imposto das sociedades, relativas aos exercícios de tributação dos anos de 2000 e de 2001, respetivamente, em 20 de novembro de 2002 e em 18 de novembro de 2002.

26.

Depois de ter apresentado uma reclamação que não foi objeto de decisão no prazo previsto, a Wagram Invest interpôs, em 10 de março de 2005, um recurso de anulação da decisão da Administração Fiscal belga, no tribunal de première instance de Namur (Tribunal de Primeira Instância de Namur, Bélgica). Por Decisão de 20 de dezembro de 2007, este tribunal negou provimento ao recurso e confirmou o pagamento das liquidações controvertidas relativas aos exercícios de tributação dos anos de 2000 e de 2001.

27.

A Wagram Invest interpôs então recurso daquela decisão na cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège, Bélgica), que, por Acórdão de 14 de outubro de 2011, confirmou a decisão proferida em primeira instância.

28.

A Wagram Invest interpôs então recurso de cassação, em 2 de julho de 2014. A Cour de cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica), por Acórdão de 11 de março de 2016, anulou o acórdão da cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège) e remeteu o processo ao órgão jurisdicional de reenvio.

29.

O órgão jurisdicional de reenvio constata que o método de contabilização utilizado pela Wagram Invest é conforme com as disposições do direito contabilístico belga, mais especificamente com o artigo 77.o do Decreto Real. Porém, interroga‑se sobre se este método é conforme com as disposições da Diretiva 78/660.

30.

Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O conceito de imagem fiel, referido no artigo 2.o, n.o 3, da [Diretiva 78/660] permite, por ocasião da compra de uma imobilização financeira por uma sociedade anónima, a inscrição, como encargo, na conta de resultados de um desconto ligado a uma dívida a mais de um ano, que não [vence] juros, e a inscrição do preço de aquisição da imobilização no ativo do balanço após dedução do referido desconto, tendo em conta os princípios de valorimetria previstos no artigo 32.o da diretiva acima referida?

2)

Deve a expressão “em casos excecionais”, que condiciona a aplicação do artigo 2.o, n.o 5, da [Diretiva 78/660] e que permite afastar a aplicação de (outra) disposição da referida diretiva, ser interpretada no sentido de que esta disposição só pode ser aplicada se se constatar que o respeito do princípio da imagem fiel não pode ser alcançado pelo respeito das disposições dessa diretiva, completado, se for caso disso, por uma referência complementar nos anexos, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 4, da referida diretiva?

3)

Deve o artigo 2.o, n.o 4, da [Diretiva 78/660] ser aplicado com prioridade, de modo que só se uma menção complementar não permitir assegurar a aplicação efetiva do princípio da imagem fiel, consagrado no artigo 2.o, n.o 3, da referida diretiva, é que poderá ser usada a faculdade de afastar a aplicação de uma disposição desta diretiva, prevista no seu artigo 2.o, n.o 5, e isso unicamente em casos excecionais?»

III. Análise

A.   Observações preliminares

31.

Antes de analisar o mérito das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que abordar dois aspetos que revestem caráter preliminar.

32.

Desde logo, importa sublinhar que o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a conformidade com o princípio da imagem fiel, tal como previsto no artigo 2.o, n.os 3 a 5, da Diretiva 78/660, do método utilizado pela Wagram Invest para contabilizar as dívidas relacionadas com as duas aquisições de ações em causa. Assim, as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito à interpretação da Diretiva 78/660, a qual é relativa às contas anuais de certas formas de sociedades.

33.

Embora a decisão de reenvio só se concentre no aspeto contabilístico do caso, resulta porém explicitamente desta decisão que o litígio é, na realidade, de natureza fiscal.

34.

Resulta também da referida decisão que a interpretação das disposições pertinentes da Diretiva 78/660 pode ter repercussões fiscais, porquanto a contabilização, de um ponto de vista contabilístico, do desconto que consiste na diferença entre o valor nominal da dívida relativa às duas aquisições de ações em causa e o valor atualizado dessas ações, bem como a sua contabilização escalonada, se repercutem na tributação fiscal da Wagram Invest, a título do imposto sobre as sociedades, no que respeita ao exercícios de tributação dos anos de 2000 e de 2001.

35.

Nestas condições, quanto, em primeiro lugar, à inter‑relação entre os aspetos contabilístico e fiscal do processo, importa salientar que o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de precisar que a Diretiva 78/660 não visa fixar as condições em que as contas anuais das sociedades podem ou devem servir de base à determinação, pelas autoridades fiscais dos Estados‑Membros, da matéria coletável e do montante dos impostos, tais como o imposto sobre as sociedades em causa no processo principal ( 14 ).

36.

Todavia, o Tribunal de Justiça também reconheceu que os Estados‑Membros podem, para efeitos fiscais, utilizar as contas anuais como base de referência e que nenhuma disposição da Diretiva 78/660 proíbe os Estados‑Membros de corrigir, no plano fiscal, os efeitos das regras contabilísticas que figuram nesta diretiva, para determinar um lucro tributável mais próximo da realidade económica ( 15 ).

37.

À semelhança da Comissão Europeia, considero que resulta desta jurisprudência que, embora as regras contabilísticas decorrentes da Diretiva 78/660 não se destinem a regular os regimes fiscais dos Estados‑Membros, de modo que a interpretação das disposições desta diretiva não deve necessariamente ter consequências no domínio fiscal, os Estados‑Membros continuam, no entanto, a ter liberdade de, no exercício da sua competência para determinar, designadamente, o método de tributação dos créditos a longo prazo que não vencem juros, decidir da oportunidade de se basearem ou não nas referidas regras contabilísticas para definir o regime fiscal aplicável a estes créditos.

38.

No que respeita, em segundo lugar, à admissibilidade das questões prejudiciais, por um lado, a Wagram Invest, nas suas observações, contesta a respetiva pertinência, na medida em que a regularidade dos seus documentos contabilísticos foi validada pelo acórdão da cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège), referido no n.o 27 das presentes conclusões, que adquiriu força de caso julgado. Por outro lado, a admissibilidade das questões prejudiciais foi objeto de discussão na audiência, quanto à sua eventual natureza hipotética. Com efeito, foi referido que, por não ter sido contestada a conformidade dos documentos contabilísticos da Wagram Invest com o direito belga, o litígio no processo principal se prende exclusivamente com a aplicação das disposições fiscais belgas, disposições que não têm nenhuma relação com a Diretiva 78/660, pelo que a sua interpretação pode não ter impacto no litígio no processo principal.

39.

A este respeito, recordo que, segundo jurisprudência constante, compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se ( 16 ).

40.

Daqui resulta, segundo a jurisprudência, que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 17 ).

41.

Ora, em meu entender, nenhuma destas três situações se verifica no presente caso. Com efeito, por um lado, como resulta do n.o 34 das presentes conclusões, a interpretação das disposições pertinentes da Diretiva 78/660 pode ter repercussões fiscais, pelo que é inegável que a interpretação das referidas disposições, solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, apresenta uma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal e que o problema que as questões prejudiciais suscitam não reveste, assim, natureza hipotética. Por outro lado, no presente caso, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil ao pedido de decisão prejudicial que lhe é submetido pelo órgão jurisdicional de reenvio.

42.

Atendendo ao que precede, considero que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

B.   Quanto à primeira questão prejudicial

43.

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, atentos os princípios de valorimetria que figuram no artigo 32.o da Diretiva 78/660, o artigo 2.o, n.o 3, desta diretiva, que enuncia o princípio da imagem fiel, deve ser interpretado no sentido de que, quando uma sociedade compra uma imobilização financeira, permite inscrever, como encargo, na conta de resultados, um desconto relativo a uma dívida a mais de um ano, que não vence juros, e inscrever o preço de aquisição da imobilização no ativo do balanço, após dedução do referido desconto.

44.

A este propósito, há que recordar, desde logo, que a Diretiva 78/660 visa assegurar a coordenação das disposições nacionais respeitantes à estrutura e ao conteúdo das contas anuais e do relatório de gestão e os métodos de avaliação para efeitos da proteção dos sócios e de terceiros. Para este efeito, de acordo com o seu terceiro considerando, a diretiva visa apenas estabelecer regras mínimas quanto à extensão das informações financeiras a divulgar junto do público ( 18 ).

45.

Como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito pelo princípio da «imagem fiel» constitui o objetivo primordial da Diretiva 78/660. Segundo este princípio, que figura no artigo 2.o, n.os 3 a 5, desta diretiva, as contas anuais devem dar uma imagem fiel do património, da situação financeira e dos resultados da sociedade ( 19 ).

46.

O princípio da imagem fiel exige, por um lado, que as contas anuais das sociedades reflitam as atividades e as operações que devem descrever e, por outro, que as informações contabilísticas sejam apresentadas na forma que seja considerada mais válida e mais adequada para satisfazer as necessidades de informação de terceiros, sem causar prejuízo aos interesses da sociedade ( 20 ).

47.

O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que a aplicação do princípio da imagem fiel se deve guiar, tanto quanto possível, pelos princípios gerais previstos no artigo 31.o da Diretiva 78/660, entre os quais reveste particular importância o princípio da prudência, enunciado no artigo 31.o, n.o 1, alínea c), desta diretiva ( 21 ).

48.

Nos termos das disposições do artigo 31.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 78/660, que enuncia o princípio da prudência, a tomada em consideração de todos os elementos — lucros realizados, encargos, proveitos, riscos e perdas — que dizem efetivamente respeito ao exercício em causa permite garantir o respeito pelo princípio da imagem fiel ( 22 ).

49.

Resulta também da jurisprudência que o princípio da imagem fiel deve igualmente ser compreendido à luz do princípio enunciado no artigo 32.o da Diretiva 78/660, nos termos do qual a valorimetria das rubricas que figuram nas contas anuais se baseia no princípio do preço de aquisição ou no custo de produção ( 23 ).

50.

O Tribunal de Justiça precisou que, ao abrigo desta disposição, a imagem fiel que as contas anuais de uma sociedade devem dar não se baseia no seu valor real, mas sim no do seu custo histórico ( 24 ).

51.

Nos termos do artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660, só se, em casos excecionais, a aplicação de uma disposição desta diretiva se revelar contrária ao princípio da imagem fiel previsto no n.o 3 do referido artigo, é que há que derrogar a disposição do artigo 32.o, de modo a ser dada uma imagem fiel, na aceção do referido n.o 3 ( 25 ).

52.

É à luz dos princípios da jurisprudência expostos nos números anteriores que se deve apreciar a conformidade, com o princípio da imagem fiel, de um método de contabilização que, quando uma sociedade compra uma imobilização financeira, como ações, permite inscrever, como encargo, na conta de resultados, um desconto relativo à dívida a mais de um ano, que não vence juros, relativa a essa compra, e inscrever no ativo do balanço o preço de aquisição da imobilização, após dedução do referido desconto.

53.

Das partes que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, a Wagram Invest, os Governos belga e austríaco e a Comissão consideram, no essencial, que tal método é compatível com o princípio da imagem fiel. Só o Governo alemão defende uma posição contrária.

54.

A este respeito, observo que resulta do artigo 32.o da Diretiva 78/660, à luz do qual, como referi no n.o 49 das presentes conclusões, deve ser compreendido o princípio da imagem fiel, que a valorimetria das rubricas que figuram nas contas anuais é feita de acordo com as disposições dos artigos 34.o a 42.o, baseadas no princípio do preço de aquisição ou do custo de produção.

55.

O artigo 35.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 78/660 especifica que os elementos do ativo imobilizado devem ser avaliados ao preço de aquisição ou ao custo de produção ( 26 ).

56.

Contudo, a Diretiva 78/660 não contém uma definição do conceito de preço de aquisição ( 27 ). No entanto, o Tribunal de Justiça precisou, conforme resulta do n.o 50 das presentes conclusões, que a avaliação dos ativos não se baseia no seu valor real, mas no do seu custo histórico.

57.

Ora, pode considerar‑se que, em regra, o custo histórico de uma imobilização financeira corresponde ao valor nominal do preço de aquisição, ou seja, o preço que a sociedade que adquiriu a imobilização pagou pela aquisição. A inscrição no ativo deste valor nominal permite assim, em princípio, dar uma imagem fiel do impacto deste elemento nas contas da sociedade.

58.

Todavia, quando o contrato de aquisição do elemento do ativo prevê o pagamento do preço de forma escalonada a longo prazo e sem juros, é possível que a operação de aquisição do referido elemento, embora única em termos formais, deva, na realidade, ser considerada uma operação complexa constituída por dois elementos: por um lado, a aquisição propriamente dita da imobilização financeira e, por outro, uma operação de mútuo implícita ( 28 ).

59.

Se assim for, pode considerar‑se que o valor nominal do preço pago pela aquisição da imobilização inclui, na realidade, dois elementos, a saber, por um lado, o verdadeiro preço de aquisição da imobilização, que corresponde ao valor atualizado deste preço — ou seja, o preço de compra ao qual foram deduzidos os juros implícitos do mútuo —, e, por outro, um montante correspondente a estes juros implícitos.

60.

Nesta situação, considero, à semelhança da Wagram Invest, dos Governos belga e austríaco e da Comissão, que um método de contabilização que prevê, por um lado, a inscrição no ativo do valor atualizado do preço pago pela imobilização financeira (ou seja, o valor nominal ao qual foram deduzidos os juros implícitos) e, por outro, a contabilização de um desconto que representa os juros implícitos (de um montante que corresponde à diferença entre o valor nominal da dívida para a aquisição da imobilização e o valor atualizado desta dívida), permite dar uma justa representação da realidade económica da operação complexa em causa e é, por conseguinte, conforme com as exigências relativas ao respeito pelo princípio da imagem fiel previsto na Diretiva 78/660.

61.

Com efeito, neste caso, é o valor atualizado do preço acordado para a aquisição da imobilização, e não o seu valor nominal, que corresponde à contrapartida real desta aquisição, ao passo que os juros, ainda que implícitos, que correspondem ao montante do desconto, constituem um encargo de crédito. Nesta situação, inscrever no ativo o valor nominal do preço acordado para a aquisição da imobilização teria por efeito falsear o resultado da operação em causa e, por conseguinte, o resultado global afirmado ( 29 ).

62.

O método de contabilização indicado no n.o 60 das presentes conclusões é, aliás, conforme com o princípio da prudência enunciado no artigo 31.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 78/660 e mencionado nos n.os 47 e 48 das presentes conclusões. Com efeito, ao fazer prevalecer a substância sobre a forma ( 30 ), este método origina uma subavaliação do elemento do ativo em causa ( 31 ), com base numa avaliação que toma em consideração, como exigido pelo referido princípio ( 32 ), todos os fatores pertinentes, nomeadamente, no presente caso, os encargos financeiros, ainda que tais encargos, por serem implícitos, não decorram formalmente do valor nominal do preço de aquisição do dito elemento. Este método de contabilização permite, assim, dar aos credores da sociedade uma visão real e não demasiado otimista da situação patrimonial da sociedade em causa.

63.

A conclusão segundo a qual a utilização do referido método de contabilização é conforme com o princípio da imagem fiel não é, em meu entender, de modo nenhum contrariada pelo Acórdão GIMLE, de 3 de outubro de 2013, C‑322/12, EU:C:2013:632. Nesse acórdão, que fornece indicações de princípios importantes, a questão dizia respeito, com efeito, à compatibilidade, com o princípio da imagem fiel, de uma eventual inscrição no ativo de uma imobilização financeira por um valor superior ao seu preço de aquisição, ao passo que, no presente processo, a questão diz respeito a uma inscrição no ativo por um valor inferior ao valor nominal integral do preço acordado para a compra da imobilização financeira.

64.

As considerações que precedem e a conclusão segundo a qual a utilização do método de contabilização indicado no n.o 60 das presentes conclusões é conforme com o princípio da imagem fiel só são, no entanto, em meu entender, pertinentes se a operação de aquisição da imobilização financeira, para a qual está previsto o pagamento do preço de forma escalonada a longo prazo e sem juros, fosse efetivamente considerada, de um ponto de vista económico, como uma operação complexa constituída, por um lado, pela aquisição propriamente dita da imobilização financeira e, por outro, por uma operação de mútuo, eventualmente implícita.

65.

Compete ao órgão jurisdicional nacional verificar se é esse efetivamente o caso, procedendo a uma apreciação casuística das circunstâncias, tanto de facto como de direito ( 33 ), específicas do caso concreto que lhe foi submetido.

66.

No contexto desta apreciação, o referido órgão jurisdicional pode, designadamente, ser chamado a apreciar se a operação em questão ocorreu em condições normais de mercado. Com efeito, se o preço acordado para a aquisição da imobilização era manifestamente inferior ou superior ao preço de mercado, a configuração da operação de aquisição como uma operação complexa, conforme delineada no n.o 58 das presentes conclusões, poderá ser excluída. Como a Comissão referiu, esta circunstância pode ser pertinente no caso de uma operação realizada entre partes que estejam, de alguma forma, vinculadas entre si, como a operação que está em causa no litígio no processo principal ( 34 ).

67.

No âmbito da referida apreciação, o órgão jurisdicional de reenvio pode também ser chamado a verificar se a operação implícita de mútuo que decorre da previsão do pagamento do preço de forma escalonada a longo prazo e sem juros não constitui, na realidade, uma operação a título oneroso cuja remuneração acordada é uma vantagem em espécie a receber no decurso de exercícios posteriores ( 35 ).

68.

Face ao que precede, há que responder à primeira questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que, no caso de uma operação de aquisição, por uma sociedade anónima, de uma imobilização financeira, para qual o pagamento do preço foi previsto de forma escalonada a longo prazo e sem vencer juros, o princípio da imagem fiel enunciado no artigo 2.o, n.os 3 a 5, da Diretiva 78/660, atendendo aos princípios que figuram no artigo 31.o, n.o 1, alínea c), e no artigo 32.o desta diretiva, não se opõe à utilização de um método de contabilização que prevê a inscrição, como encargo, na conta de resultados, de um desconto ligado à dívida a mais de um ano, que não vence juros, respeitante a essa aquisição, e a inscrição do preço de aquisição da imobilização no ativo do balanço, após dedução do referido desconto, quando se deva considerar que, na realidade, a referida operação de aquisição é uma operação complexa constituída, por um lado, pela aquisição propriamente dita da imobilização financeira e, por outro, por uma operação de mútuo, ainda que implícita. Compete ao órgão jurisdicional nacional verificar se é esse efetivamente o caso, procedendo a uma apreciação casuística, com base numa análise das circunstâncias, tanto de facto como de direito, específicas do caso concreto que lhe foi submetido.

C.   Quanto à segunda e terceira questões prejudiciais

69.

Com a sua segunda e a sua terceira questão prejudicial, que, em meu entender, há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio procura obter esclarecimentos sobre a articulação entre as disposições que figuram no artigo 2.o, n.os 4 e 5, da Diretiva 78/660 ( 36 ).

70.

Mais concretamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se a aplicação da disposição do artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660 pressupõe que um eventual fornecimento de informações complementares, ao abrigo do artigo 2.o, n.o 4 da mesma diretiva, não permite assegurar o respeito pelo princípio da imagem fiel.

71.

Para responder a esta questão, há que interpretar as duas disposições em causa, para verificar se existe uma relação de condicionalidade entre elas, no sentido de que a primeira deve ser aplicada prioritariamente em relação à segunda.

72.

A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, há que tomar em consideração não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte ( 37 ).

73.

Ora, o artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660 prevê que, quando a aplicação da referida diretiva não for suficiente para dar a imagem fiel mencionada no n.o 3 do mesmo artigo, devem ser fornecidas informações complementares.

74.

Resulta do teor desta disposição e do facto de estar inserida imediatamente após o n.o 3 do mesmo artigo 2.o, o qual consagra o princípio da imagem fiel, que a mesma desempenha uma função complementar relativamente à disposição que figura no n.o 3 ( 38 ), ao impor à sociedade interessada uma obrigação de fornecer informações adicionais, quando tal seja necessário para dar uma imagem fiel das suas contas.

75.

Assim, segundo o Tribunal de Justiça, por exemplo, uma sociedade que tenha a certeza de realizar um lucro importante devido a compromissos assumidos quanto à futura revenda de um ativo deve, nos termos do artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660, fornecer informações complementares a esse respeito ( 39 ).

76.

Em contrapartida, no que respeita ao artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660, este prevê que, se, em casos excecionais, a aplicação de uma disposição da referida diretiva se revelar contrária à obrigação de dar uma imagem fiel do património, da situação financeira, assim como dos resultados da sociedade, estabelecida no n.o 3 do mesmo artigo, deve derrogar‑se esta disposição para que seja dada a imagem fiel. Todavia, uma tal derrogação deve ser mencionada no anexo e devidamente justificada, com indicação da sua influência sobre o património, a situação financeira e os resultados.

77.

O artigo 2.o, n.o 5, terceiro período, da Diretiva 78/660 dispõe que compete aos Estados‑Membros — e, portanto, não às sociedades — especificar os casos excecionais e fixar o regime derrogatório correspondente. Esta disposição visa reduzir a margem de apreciação das sociedades para determinar, elas próprias, a existência desses casos excecionais.

78.

Resulta, assim, do teor do referido n.o 5 que este se refere a «casos excecionais» em que a aplicação de uma disposição da Diretiva 78/660 pela sociedade em causa conduziria a um resultado «contrário» ao princípio da imagem fiel, pelo que é necessário derrogar tal disposição e compete aos Estados‑Membros determinar esses casos excecionais e o respetivo regime.

79.

O Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de observar que, na medida em que a Diretiva 78/660 não precisa o que se deve entender por «casos excecionais», há que interpretar esta expressão à luz do objetivo visado por esta diretiva, segundo o qual as contas anuais das sociedades referidas devem dar uma imagem fiel do seu património, da sua situação financeira e dos seus resultados ( 40 ).

80.

Assim, o Tribunal de Justiça precisou que estes «casos excecionais» são aqueles em que a aplicação das disposições da Diretiva 78/660 não daria uma imagem tão fiel quanto possível da situação financeira real da sociedade em questão ( 41 ).

81.

Contudo, estes casos excecionais devem ser entendidos no sentido de que dizem unicamente respeito a transações muito inabituais e a situações inabituais e não deverão dizer respeito, por exemplo, a setores específicos na sua globalidade ( 42 ).

82.

A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que a subavaliação de ativos nas contas das sociedades não constitui, em si mesma, um «caso excecional», na aceção do artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660 ( 43 ).

83.

Em meu entender, resulta da análise das duas disposições em causa acima efetuada que nada indica que a aplicação do artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660 esteja subordinada à prévia aplicação da disposição constante do n.o 4 do mesmo artigo.

84.

Embora as disposições visem ambas garantir que as contas anuais deem efetivamente uma imagem fiel do património, da situação financeira, assim como dos resultados da sociedade, referem‑se a situações diferentes e não interdependentes. Não existe, deste modo, uma relação de subordinação.

85.

O artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660 completa e precisa o conteúdo do n.o 3 do mesmo artigo, ao dar à sociedade em causa a possibilidade de fornecer informações complementares, se tal for necessário, para que seja respeitado o princípio da imagem fiel.

86.

O artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660 prevê, em contrapartida, a possibilidade de derrogar a aplicação das regras da Diretiva 78/660. Aliás, esta última disposição não se refere, de modo nenhum, à disposição do n.o 4 do referido artigo.

87.

A constatação do caráter autónomo das duas disposições em causa é reforçada, em meu entender, pela circunstância, justamente realçada pela Comissão, de que não está de modo nenhum excluído que, em certas situações, as duas disposições se possam aplicar em simultâneo. Com efeito, é bem possível que, quando uma sociedade é obrigada a fornecer informações complementares, nos termos do artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660, a fim de dar uma imagem fiel das suas contas para atingir o mesmo objetivo, seja necessário derrogar uma disposição da referida diretiva em aplicação do artigo 2.o, n.o 5, independentemente das informações complementares fornecidas.

88.

A este respeito, há que salientar, à semelhança da Comissão, que, enquanto derrogação ao princípio da aplicação de todas as disposições da Diretiva 78/660, a disposição do artigo 2.o, n.o 5, desta diretiva deve ser aplicada casuisticamente e de forma estrita e limitada. Isto implica, pois, que a derrogação deve ser devidamente fundamentada, conforme especificado no segundo período deste número, indicando a razão por que tal derrogação é necessária para assegurar o respeito pela imagem fiel das contas da sociedade.

89.

Neste contexto, embora, em determinados casos, o fornecimento de informações complementares ao abrigo do artigo 2.o, n.o 4, da Diretiva 78/660 permita dar uma imagem fiel, sem que seja necessário recorrer à derrogação de uma regra da mesma diretiva, nos termos do seu artigo 2.o, n.o 5, tal circunstância não implica de modo algum que, em todos os casos, a aplicação da segunda disposição esteja subordinada à aplicação da primeira.

90.

Por último, há ainda que salientar que não há nenhuma indicação de que, no presente caso, o Reino da Bélgica tenha feito uso da possibilidade que lhe é conferida pelo terceiro período do referido n.o 5, de especificar quais são os casos excecionais e de fixar o correspondente regime derrogatório ( 44 ).

91.

À luz do que precede, há que, em meu entender, responder à segunda e terceira questões prejudiciais que o artigo 2.o, n.os 4 e 5, da Diretiva 78/660 deve ser interpretado no sentido de que não existe uma relação de condicionalidade entre estes n.os 4 e 5, no sentido de que a disposição prevista no referido n.o 4 deve ser necessariamente aplicada antes da disposição prevista no referido n.o 5. Seja como for, incumbe aos Estados‑Membros, e não às sociedades, especificar os «casos excecionais» em que, nos termos do mesmo n.o 5, é possível derrogar uma disposição da Diretiva 78/660, bem como fixar o correspondente regime derrogatório.

IV. Conclusão

92.

Atendendo às considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões colocadas pela cour d’appel de Mons (Tribunal de Recurso de Mons, Bélgica), do seguinte modo:

1)

No caso de uma operação de aquisição, por uma sociedade anónima, de uma imobilização financeira, para a qual o pagamento do preço foi previsto de forma escalonada a longo prazo e sem vencer juros, o princípio da imagem fiel enunciado no artigo 2.o, n.os 3 a 5, da Quarta Diretiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1978, baseada [no artigo 50.o, n.o 2, alínea g), TFUE] e relativa às contas anuais de certas formas de sociedades, atendendo aos princípios que figuram no artigo 31.o, n.o 1, alínea c), e no artigo 32.o desta diretiva, não se opõe à utilização de um método de contabilização que prevê a inscrição, como encargo, na conta de resultados, de um desconto ligado à dívida a mais de um ano, que não vence juros, respeitante a essa aquisição, e a inscrição do preço de aquisição da imobilização no ativo do balanço, após dedução do referido desconto, quando se deva considerar que, na realidade, a referida operação de aquisição é uma operação complexa constituída, por um lado, pela aquisição propriamente dita da imobilização financeira e, por outro, por uma operação de mútuo, ainda que implícita. Compete ao órgão jurisdicional nacional verificar se é esse efetivamente o caso, procedendo a uma apreciação casuística, com base numa análise das circunstâncias, tanto de facto como de direito, específicas do caso concreto que lhe foi submetido.

2)

O artigo 2.o, n.os 4 e 5, da Diretiva 78/660 deve ser interpretado no sentido de que não existe uma relação de condicionalidade entre estes n.os 4 e 5, no sentido de que a disposição prevista no referido n.o 4 deve ser necessariamente aplicada antes da disposição prevista no referido n.o 5. Seja como for, incumbe aos Estados‑Membros, e não às sociedades, especificar os «casos excecionais» em que, nos termos do mesmo n.o 5, é possível derrogar uma disposição da Diretiva 78/660, bem como fixar o correspondente regime derrogatório.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Quarta Diretiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1978, baseada [no artigo 50.o, n.o 2, alínea g), TFUE] e relativa às contas anuais de certas formas de sociedades (JO 1978, L 222, p. 11; EE 17 F1 p. 55). A Diretiva 78/660, aplicável à época dos factos pertinentes no processo que se encontra pendente no órgão jurisdicional de reenvio, foi revogada pela Diretiva 2013/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações financeiras consolidadas e aos relatórios conexos de certas formas de empresas, que altera a Diretiva 2006/43/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga as Diretivas 78/660/CEE e 83/349/CEE do Conselho (JO 2013, L 182, p. 19).

( 3 ) Estas disposições foram retomadas no artigo 4.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2013/34.

( 4 ) V. n.o 45 das presentes conclusões.

( 5 ) Moniteur belge de 6 de fevereiro de 2001, p. 3008.

( 6 ) Conforme definidos, respetivamente, nos artigos 36.o, 37.o e 39.o do mesmo Decreto Real.

( 7 ) Mais concretamente, o preço da primeira aquisição foi de 24000000 francos belgas (BEF) e o preço da segunda aquisição foi de 31760400 BEF. Resulta dos autos que o preço que serviu de base aos dois acordos de cessão das ações corresponde ao preço pago pelos acionistas desta sociedade quando, pouco tempo antes, subscreveram o aumento de capital.

( 8 ) Mais concretamente, um valor nominal de, respetivamente, 24000000 BEF, para a primeira aquisição, e de 31760400 BEF, para a segunda aquisição.

( 9 ) Mais concretamente, um valor atualizado de, respetivamente, 18233,827 BEF e 25871302 BEF.

( 10 ) Mais concretamente, um desconto de, respetivamente, 5766173 BEF e 5889098 BEF.

( 11 ) Mais concretamente, um pro rata de 1970339 BEF correspondente, respetivamente, a 1000506 BEF, para a primeira aquisição, e a 969833 BEF, para a segunda aquisição.

( 12 ) Mais concretamente, um pro rata de 2676318 BEF correspondente, respetivamente, a 843090 BEF, para a primeira aquisição, e a 1833228 BEF, para a segunda aquisição.

( 13 ) Resulta da decisão de reenvio que a disposição fiscal pertinente no presente caso, em que se baseia o litígio de natureza fiscal entre a Wagram Invest e a Administração Fiscal belga, é o artigo 198.o, 7°, do code des impôs sur les revenus de 1992 (Código dos Impostos sobre o Rendimento de 1992).

( 14 ) Acórdão de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 31 e jurisprudência referida).

( 15 ) Acórdãos de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 28), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 33).

( 16 ) Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 24), e de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 26 e jurisprudência referida).

( 17 ) Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25), e de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 26 e jurisprudência referida).

( 18 ) Acórdãos de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 29 e jurisprudência referida), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 39).

( 19 ) Acórdãos de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 30 e jurisprudência referida), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 40).

( 20 ) Acórdãos de 7 de janeiro de 2003, BIAO (C‑306/99, EU:C:2003:3, n.o 72 e jurisprudência referida), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 41).

( 21 ) Acórdãos de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 32 e jurisprudência referida), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 42).

( 22 ) Acórdãos de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 33 e jurisprudência referida), e de 15 de junho de 2017, Immo Chiaradia e Docteur De Bruyne (C‑444/16 e C‑445/16, EU:C:2017:465, n.o 43).

( 23 ) Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 34).

( 24 ) Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 35).

( 25 ) V., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 36). Quanto ao âmbito do artigo 2.o, n.o 5, da Diretiva 78/660, v. n.os 76 e segs. das presentes conclusões.

( 26 ) O artigo 35.o, n.o 1, da Diretiva 78/660 aplica‑se sem prejuízo das alíneas b) e c) do mesmo número, que preveem, de acordo com o princípio da prudência, as condições em que podem ou devem ser efetuadas correções de valor das imobilizações financeiras.

( 27 ) A Diretiva 78/660 contém a indicação, no artigo 35.o, n.o 2, de que o preço de aquisição se obtém adicionando as despesas acessórias ao preço de compra.

( 28 ) O Governo austríaco utiliza a expressão «mútuo oculto».

( 29 ) V., neste sentido, igualmente, rapport au roi de l’arrêté royal du 6 novembre 1987 modifiant l’arrêté royal du 8 octobre aux comptes annuels des entreprises (Relatório ao Rei do Decreto Real de 6 de novembro de 1987 que Altera o Decreto Real de 8 de outubro Relativo às Contas Anuais das Empresas (Moniteur belge de 24 de novembro de 1987, p. 17309), referente ao artigo 27bis do Decreto Real de 8 de outubro de 1976, disposição que corresponde ao artigo 67.o do Decreto Real (de 30 de janeiro de 2001). Tanto o Governo belga como a Wagram Invest referiram este relatório nas suas observações.

( 30 ) Nas suas observações, a Comissão referiu‑se ao princípio da substância, que foi incorporado na Diretiva 78/660 pela Diretiva 2003/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de junho de 2003, que altera as Diretivas 78/660/CEE, 83/349/CEE, 86/635/CEE e 91/674/CEE do Conselho relativas às contas anuais e às contas consolidadas de certas formas de sociedades, bancos e outras instituições financeiras e empresas de seguros (JO 2003, L 178, p. 16), a qual não é aplicável ratione temporis, por ter sido adotada depois de terem ocorrido os factos do litígio no processo principal. Contudo, este princípio é pertinente na análise.

( 31 ) V., por analogia, Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 40, primeiro período).

( 32 ) V. n.o 48 das presentes conclusões e jurisprudência referida.

( 33 ) Nesta análise, pode ser necessário tomar em consideração o âmbito de disposições de direito nacional pertinentes ou a jurisprudência de órgãos jurisdicionais nacionais.

( 34 ) Conforme resulta do n.o 14 das presentes conclusões, a Wagram Invest adquiriu as ações em causa ao seu gerente.

( 35 ) Nas observações que submeteu ao Tribunal de Justiça, o Governo belga apresentou diferentes exemplos de situações deste género, nomeadamente o mútuo a um cliente em contrapartida de um compromisso de adquirir bens que são produzidos pelo mutuante.

( 36 ) No âmbito do litígio no processo principal, a resposta a estas questões parece só ser pertinente se o órgão jurisdicional de reenvio constatasse, após a análise casuística mencionada na resposta à primeira questão prejudicial, que o método de contabilização utilizado não era conforme com o princípio da imagem fiel. Só nestas condições se colocaria uma eventual derrogação das disposições da Diretiva 78/660. A decisão de reenvio não especifica, no entanto, qual a disposição que pode ser objeto de derrogação.

( 37 ) V., designadamente, Acórdão de 7 de novembro de 2019, Kanyeba e o. (C‑349/18 a C‑351/18, EU:C:2019:936, n.o 35).

( 38 ) Esta interpretação é confirmada pela constatação de que, na nova Diretiva 2013/34, as disposições correspondentes ao artigo 2.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 78/660 estão reunidas no mesmo número, a saber, no artigo 4.o, n.o 3.

( 39 ) Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 41).

( 40 ) V. Acórdão de 14 de setembro de 1999, DE + ES Bauunternehmung (C‑275/97, EU:C:1999:406, n.o 31).

( 41 ) V., neste sentido e por analogia, Acórdão de 14 de setembro de 1999, DE + ES Bauunternehmung (C‑275/97, EU:C:1999:406, n.o 32), à luz do conceito «casos excecionais» visado no artigo 31.o, n.o 2, da Diretiva 78/660.

( 42 ) V. considerando 9 da Diretiva 2013/34, a qual, como já referi, não se aplica ratione temporis aos factos do litígio no processo principal, embora possa, todavia, fornecer elementos para a interpretação das disposições da Diretiva 78/660 que correspondem às da Diretiva 2013/34.

( 43 ) Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 38).

( 44 ) A este respeito, v., igualmente, Acórdão de 3 de outubro de 2013, GIMLE (C‑322/12, EU:C:2013:632, n.o 41).