ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

14 de fevereiro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigos 56.o e 63.o TFUE — Liberdade de prestação de serviços — Liberdade de circulação de capitais — Regulamentação nacional que prevê a nulidade dos contratos de crédito que apresentem aspetos internacionais celebrados com um mutuante não autorizado — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 17.o, n.o 1 — Contrato de crédito celebrado por uma pessoa singular com vista à prestação de serviços de alojamento turístico — Conceito de “consumidor” — Artigo 24, ponto 1 — Competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis — Ação de declaração de nulidade de um contrato de crédito e de cancelamento de uma garantia real no registo predial»

No processo C‑630/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Općinski sud u Rijeci — Stalna služba u Rabu (Tribunal Municipal de Rijeka — Secção permanente de Rab, Croácia), por Decisão de 6 de novembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de novembro de 2017, no processo

Anica Milivojević

contra

Raiffeisenbank St. Stefan‑Jagerberg‑Wolfsberg eGen,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de presidente da Segunda Secção, A. Prechal, C. Toader (relator), A. Rosas e M. Ilešič, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 5 de setembro de 2018,

considerando as observações apresentadas:

em representação da Raiffeisenbank St. Stefan‑Jagerberg‑Wolfsberg eGen, por D. Malnar, M. Mlinac, P. G. Baučić, P. Novak, M. Sabolek, E. Garankić e A. Đureta, odvjetnici, assistidos por T. Borić, profesor,

em representação do Governo croata, por T. Galli, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por M. Heller, L. Malferrari e M. Mataija, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de novembro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 56.o e 63.o TFUE e do artigo 4.o, n.o 1, do artigo 17.o, do artigo 24.o, ponto 1, e do artigo 25.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Anica Milivojević, com domicílio na Croácia, ao Raiffeisenbank St. Stefan‑Jagerberg‑Wolfsberg eGen (a seguir «Raiffeisenbank»), sociedade de direito austríaco, a respeito de uma ação, proposta por A. Milivojević, em que pede a nulidade de um contrato de crédito celebrado com o Raiffeisenbank e do ato notarial relativo à constituição de uma hipoteca constituída para garantia da dívida decorrente deste contrato, bem como o cancelamento da hipoteca do registo predial.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Segundo os considerandos 6, 15 e 18 do Regulamento n.o 1215/2012:

«(6)

Para alcançar o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento legal da União vinculativo e diretamente aplicável.

[…]

(15)

As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. […]

[…]

(18)

No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.»

4

O artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

5

O artigo 8.o, ponto 4, do referido regulamento tem a seguinte redação:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode também ser demandada:

[…]

4)

Em matéria contratual, se a ação puder ser apensada a uma ação em matéria de direitos reais sobre imóveis dirigida contra o mesmo requerido, no tribunal do Estado‑Membro em cujo território está situado o imóvel.»

6

Nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do mesmo regulamento:

«Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa, o consumidor, para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional, a competência é determinada pela presente secção […]»

7

O artigo 18.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1215/2012 preveem:

«1.   O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte.

2.   A outra parte no contrato só pode intentar uma ação contra o consumidor nos tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliado o consumidor.»

8

Segundo as disposições do artigo 19.o deste regulamento:

«As partes só podem derrogar ao disposto na presente secção por acordos que:

1.

Sejam posteriores ao surgimento do litígio;

2.

Permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção; ou

3.

Sejam celebrados entre o consumidor e o seu cocontratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado‑Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado‑Membro, salvo se a lei desse Estado‑Membro não permitir tais acordos.»

9

Nos termos do artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do referido regulamento:

«Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado‑Membro, independentemente do domicílio das partes:

1.

Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel.»

10

Nos termos do artigo 25.o, n.os 1 e 4, do mesmo regulamento:

«1.   Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. […]

[…]

4.   Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.o, 19.o ou 23.o, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.o»

11

O artigo 66.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, que rege a sua aplicação no tempo, estabelece:

«O presente regulamento aplica‑se apenas às ações judiciais intentadas, aos instrumentos autênticos formalmente redigidos ou registados e às transações judiciais aprovadas ou celebradas em 10 de janeiro de 2015 ou em data posterior.»

Direito croata

Lei relativa às relações obrigacionais

12

O artigo 322.o do Zakon o obveznim odnosima (Lei relativa às relações obrigacionais), na sua versão aplicável ao processo principal (Narodne novine, br. 78/2015) (a seguir «Lei relativa às relações obrigacionais») dispõe:

«(1)   Os acordos contrários à Constituição da República da Croácia, a normas imperativas ou aos bons costumes são nulos, salvo se a finalidade da norma violada estabelecer outra sanção ou que a lei dispuser de outro modo.

(2)   Se a celebração de um determinado contrato for apenas proibida para uma das partes, o contrato é válido, salvo se a lei dispuser de outra forma, devendo a parte que violou a proibição legal assumir as consequências correspondentes.»

13

Nos termos do artigo 323.o, n.o 1, desta lei:

«Quando um contrato é nulo, as partes ficam obrigadas a restituir o que tiverem recebido nos termos desse contrato ou, se tal não for possível ou se a natureza das prestações já cumpridas não permitir a sua restituição, a pagar uma indemnização pecuniária adequada, a fixar em função dos preços em vigor à data em que for proferida a sentença, salvo se a lei dispuser de outra forma.»

Lei do crédito ao consumo

14

A Zakon o potrošačkom kreditiranju (Lei do crédito ao consumo, Narodne novine, br. 75/2009, a seguir «Lei do crédito ao consumo») entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010. O artigo 29.o, n.o 1, desta lei precisa que, salvo algumas exceções, a lei não se aplica aos contratos de crédito celebrados antes da sua entrada em vigor.

15

Esta lei foi alterada pela Zakon o izmjeni i dopunama Zakona o potrošačkom kreditiranju (Lei que altera e completa a Lei do crédito ao consumo, Narodne novine, br. 102/2015) (a seguir «Lei do crédito ao consumo, conforme alterada»).

16

O artigo 19.o j da Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, sob a epígrafe «Nulidade dos contratos e efeitos da nulidade», diz o seguinte:

«1)   se o contrato tiver sido celebrado por um mutuante ou um intermediário de crédito que não seja titular da autorização necessária para a prestação de serviços de crédito ou para agir na qualidade de intermediário de crédito ao consumo, o contrato é nulo.

2)   Quando a prestação recebida deva ser devolvida nos termos do n.o 1 do presente artigo, o consumidor é obrigado a pagar juros sobre o montante recebido, contados a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declare a nulidade.»

17

Segundo o artigo 191.o da Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, sob a epígrafe «Competência judiciária»:

«1.   No âmbito dos litígios relativos a um contrato de crédito, a ação pode ser intentada pelo consumidor contra a outra parte no contrato quer perante os tribunais do Estado no território do qual a outra parte tem a sua sede, quer no tribunal do domicílio do consumidor, independentemente do lugar da sede da outra parte.

2)   A outra parte no contrato só pode intentar uma ação contra o consumidor nos tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliado o consumidor.

[…]»

Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais

18

O artigo 1.o, sob a epígrafe «Objeto da lei», da Zakon o ništetnosti ugovora o kreditu s međunarodnim obilježjima sklopljenih u Republici Hrvatske s neovlaštenim vjerovnikom (Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais celebrados na República da Croácia com um mutuante não autorizado, Narodne novine, br. 72/2017, a seguir, «Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais») dispõe:

«1)   A presente lei é aplicável aos contratos de crédito que apresentem aspetos internacionais, que foram celebrados na República da Croácia entre devedores e mutuantes não autorizados […]

2)   A presente lei aplica‑se igualmente aos outros atos jurídicos praticados na República da Croácia entre devedores e mutuantes não autorizados que tenham em vista um contrato de mútuo que apresente características internacionais na aceção do n.o 1 do presente artigo ou que se baseiem num contrato desse tipo.»

19

Nos termos do artigo 2.o desta lei, sob a epígrafe «Definições»:

«Na aceção da presente lei, entende‑se por

“devedor”: qualquer pessoa singular ou coletiva que tenha obtido um crédito mediante um contrato que apresente elementos internacionais, ou qualquer pessoa que beneficie do crédito concedido a outra pessoa na qualidade de codevedor, credor do devedor, credor do codevedor ou fiador.

“mutuante não autorizado”: qualquer pessoa coletiva que conceda um crédito a um devedor mediante um contrato de crédito com elementos internacionais e que, no momento da celebração desse contrato, se encontre sediada fora da República da Croácia e que proponha ou preste serviços de crédito na República da Croácia, embora não preencha os requisitos que a legislação específica exige para a prestação desses serviços e, mais precisamente, não dispuser das autorizações e/ou homologações das autoridades competentes da República da Croácia.

“Contrato de crédito que apresente aspetos internacionais” designa qualquer contrato de crédito, de mútuo ou outro contrato através do qual o mutuante não autorizado concede ao devedor uma determinada quantia em dinheiro e no qual o devedor se compromete a pagar os juros acordados e a reembolsar o montante utilizado no prazo e segundo as modalidades acordadas.»

20

Sob a epígrafe «Nulidade dos contratos de crédito», o artigo 3.o da referida lei prevê:

«1)   São nulos os contratos de mútuo que apresentem elementos internacionais e que tenham sido celebrados na República da Croácia entre devedores e mutuantes não autorizados.

2)   Em derrogação do disposto no n.o 1 do presente artigo, a nulidade não pode ser invocada quando o contrato tenha sido cumprido na íntegra.»

21

O artigo 4.o da mesma lei, sob a epígrafe «Nulidade de outros atos jurídicos», prevê:

«Todos os atos notariais praticados com base ou conexos com um contrato nulo nos termos do artigo 3.o da presente lei são nulos.»

22

O artigo 7.o da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, que regula os «[e]feitos da nulidade», dispõe:

«As partes são obrigadas a restituir tudo o que houverem recebido em virtude do contrato nulo ou, se tal não for possível ou se a natureza das prestações já cumpridas não permitir a sua restituição, a pagar uma indemnização pecuniária adequada, a fixar em função dos preços em vigor à data em que for proferida a sentença.»

23

O artigo 8.o da mesma lei estabelece as regras de competência da seguinte forma:

«1)   No quadro dos litígios relativos a contratos de crédito com elementos internacionais no sentido da presente lei, o devedor pode intentar uma ação contra o mutuante não autorizado quer nos tribunais do Estado em cujo território o mutuante não autorizado tem a sua sede quer no tribunal do lugar onde o devedor tem o seu domicílio ou sede, qualquer que seja o lugar da sede do mutuante não autorizado.

2)   O mutuante não autorizado, na aceção do n.o 1 do presente artigo, só pode propor ações contra o devedor nos tribunais do Estado em cujo território o devedor tenha o seu domicílio ou sede. Aos contratos nulos no sentido da presente lei é exclusivamente aplicável a lei croata, devendo o tribunal que conhece de uma ação relativa à nulidade de tal contrato aplicar a presente lei sem verificar se existem presunções de aplicabilidade da lei do lugar da celebração do contrato ao abrigo de outros instrumentos legislativos.»

24

O artigo 10.o da referida lei tem a seguinte redação:

«1)   Os contratos de crédito que apresentam elementos internacionais, na aceção da presente lei, celebrados na República da Croácia antes da entrada em vigor da presente lei entre devedores e mutuantes não autorizados são nulos a partir da data da sua celebração, com os efeitos referidos no artigo 7.o da presente lei.

2)   Quaisquer outros atos jurídicos praticados na República da Croácia antes da entrada em vigor da presente lei entre devedores e mutuantes não autorizados e que estejam associados a um contrato de crédito que apresenta elementos internacionais nas condições previstas no n.o 1 do artigo 1.o da presente lei ou que se baseiem num contrato desse tipo, são nulos a partir da data da sua celebração, sendo‑lhe aplicáveis os efeitos previstos no artigo 7.o»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

25

Em 23 de abril de 2015, A. Milivojević propôs no tribunal de reenvio, o Općinski sud u Rijeci — Stalna služba u Rabu (Tribunal Municipal de Rijeka — Secção Permanente de Rab, Croácia), uma ação contra o Raiffeisenbank pedindo a declaração de nulidade do contrato de crédito celebrado em 5 de janeiro de 2007, no valor de 47000 euros (a seguir «o contrato em causa»), e do ato notarial de constituição de hipoteca para garantia do crédito resultante do contrato e ainda o cancelamento dessa hipoteca no registo predial.

26

Em apoio da sua ação, A. Milivojević invocou o disposto no artigo 322.o, n.o 1, da Lei relativa às relações obrigacionais, segundo o qual são nulos os contratos contrários à Constituição da República da Croácia, às normas imperativas ou aos bons costumes.

27

Embora seja facto assente no processo principal que o Raiffeisenbank era um «mutuante não autorizado» no sentido do artigo 2.o da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, ou seja, um mutuante estabelecido noutro Estado‑Membro não autorizado pelo Hrvatska narodna banka (Banco Central da Croácia) a conceder crédito na Croácia, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que as partes estão em desacordo quanto a determinadas circunstâncias factuais relativas, nomeadamente, ao lugar da celebração do contrato em causa. Enquanto o Raiffeisenbank sustenta que este contrato foi celebrado na Áustria, A. Milivojević afirma que foi celebrado na Croácia.

28

Como resulta da decisão de reenvio, A. Milivojević afirmou ter celebrado o contrato em causa através de um intermediário ao qual pagou uma comissão, com vista à ampliação e renovação da sua casa, para aí fazer apartamentos destinados a arrendamento. Resulta igualmente desta decisão que não se pode excluir que uma parte do empréstimo tenha sido utilizada para fins pessoais. A. Milivojević também referiu que tinha a intenção de reembolsar o empréstimo graças aos lucros dessa atividade.

29

Decorre igualmente dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o contrato em causa tinha uma cláusula atributiva de jurisdição alternativa, quer aos tribunais austríacos quer ao tribunal do domicílio do devedor.

30

Os debates foram encerrados em 3 de janeiro de 2017.

31

No entanto, na sequência da entrada em vigor, em 14 de julho de 2017, da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, por despacho de 10 de agosto de 2017, a fase oral foi reaberta.

32

O órgão jurisdicional de reenvio considera que, se o contrato em causa foi celebrado na Croácia, este poderá estar viciado de nulidade com base nas disposições desta lei, atendendo à sua aplicação retroativa.

33

Por conseguinte, este órgão jurisdicional interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a compatibilidade da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais com os artigos 56.o e 63.o TFUE, na medida em que considera que esta regulamentação pode afetar a liberdade de o Raiffeisenbank prestar serviços financeiros. Aquele órgão jurisdicional duvida que os objetivos invocados pelo Governo croata em apoio da aplicação retroativa da referida lei possam justificar tal violação.

34

O órgão jurisdicional de reenvio observa igualmente que a Lei do crédito ao consumo, tal como interpretada pelo Vrhovni sud (Supremo Tribunal, Croácia), não permite declarar a nulidade de contratos de crédito celebrados antes da entrada em vigor desta lei, conforme alterada, a saber, em 30 de setembro de 2015.

35

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que, na sequência de uma reunião entre o presidente da Secção Cível do Vrhovni sud (Supremo Tribunal) e os presidentes das secções cíveis dos Županijski sudovi (Tribunais Regionais da Croácia), que teve lugar em 11 e 12 de abril de 2016, o Vrhovni sud (Supremo Tribunal) decidiu, por um documento emitido em 12 de abril de 2016, o seguinte:

«3.1. (competência):

No âmbito dos litígios relativos à nulidade de contratos de crédito celebrados entre pessoas singulares croatas autores (consumidores) e pessoas coletivas estrangeiras (bancos) nos quais a questão da competência seja decidida após 1 de julho de 2013, o tribunal competente da República da Croácia é sempre o determinado pelas disposições do artigo 16.o do Regulamento [(CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1),] e pelo artigo 17.o do Regulamento [n.o 1215/2012].

3.2. (nulidade do contrato)

Embora a celebração de tais contratos estivesse proibida aos bancos estrangeiros não titulares da autorização exigida para prestar tais serviços na República da Croácia, esses contratos não são nulos, dado que esta consequência não estava prevista na Lei bancária nem na Lei das instituições de crédito até 30 de setembro de 2015, data em que essa sanção passou a existir [na sequência da entrada em vigor da Lei do crédito ao consumo, conforme alterada].»

36

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre diversos aspetos relacionados com a sua competência internacional para conhecer do processo principal, à luz das disposições do Regulamento n.o 1215/2012. A este respeito, o órgão jurisdicional afirma que, nos termos das disposições do Código de Processo Civil croata, pode verificar a sua competência nesta fase do processo.

37

Aquele órgão jurisdicional tem dúvidas sobre a compatibilidade do artigo 8.o da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais com as regras de competência estabelecidas pelo Regulamento n.o 1215/2012. Questiona‑se igualmente sobre se, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente os Acórdãos de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337), e de 20 de janeiro de 2005, Gruber (C‑464/01, EU:C:2005:32), o contrato em causa poderia ser qualificado de «contrato celebrado com um consumidor» e sobre a questão de saber se o litígio no processo principal está abrangido pelas regras de competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis previstas no artigo 24.o, ponto 1, daquele regulamento.

38

Nestas condições, o Općinski sud u Rijeci — Stalna služba u Rabu (Tribunal Municipal de Rijeka — Secção Permanente de Rab, Croácia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 56.o e 63.o [TFUE] ser interpretados no sentido de que se opõem às disposições da Zakon o ništetnosti ugovora o kreditu s međunarodnim obilježjima sklopljenih u Republici Hrvatskoj s neovlaštenim vjerovnikom (Lei relativa à nulidade dos contratos de mútuo que apresentam características internacionais celebrados [na Croácia] com um credor não autorizado […], designadamente ao disposto no artigo 10.o da referida lei, que prevê a nulidade dos contratos de mútuo e outros atos jurídicos que são consequência do contrato de mútuo celebrado entre o devedor (na aceção dos artigos 1.o e 2.o, primeiro travessão, da referida lei) e o credor não autorizado (na aceção do artigo 2.o, segundo travessão, da mesma lei) ou que nele se fundamentam, mesmo celebrado antes da entrada em vigor da referida lei e desde o momento da sua celebração, com a consequência de que cada uma das partes do contrato está obrigada a reembolsar à outra tudo o que tenha recebido com base no contrato nulo devendo, quando tal não for possível ou quando a natureza das obrigações cumpridas obste ao reembolso, ser paga uma indemnização pecuniária adequada em função dos preços à data da prolação da decisão judicial?

2)

Deve o Regulamento [n.o 1215/2012], designadamente os seus artigos 4.o, n.o 1, e 25.o, ser interpretado no sentido de que se opõe ao disposto no artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Zakon o ništetnosti ugovora o kreditu s međunarodnim obilježjima sklopljenih u Republici Hrvatskoj s neovlaštenim vjerovnikom (Narodne novine n.o 72/2017), em que se prevê que, nos litígios relacionados com contratos de mútuo que apresentem características internacionais [celebrados na Croácia] […], o devedor pode demandar o credor não autorizado nos tribunais do Estado em que este tiver domicílio ou, independentemente do domicílio do credor não autorizado, nos tribunais do lugar em que o devedor tenha o seu domicilio pessoal ou social, enquanto o credor não autorizado, na aceção da referida lei, apenas pode intentar uma ação contra o devedor nos tribunais do Estado em que este tenha domicílio pessoal ou social?

3)

Está em causa um contrato celebrado por um consumidor, na aceção do disposto no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 e no restante acervo jurídico da União, quando o beneficiário do mútuo é uma pessoa singular que celebrou um contrato de mútuo com o objetivo de investir em apartamentos de férias para realizar atividades de alojamento e disponibilizar um serviço de hospedagem privado a turistas?

4)

Deve o disposto no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012 ser interpretado no sentido de que os tribunais da República da Croácia são competentes para apreciar uma ação que pretende obter a declaração de nulidade de um contrato de mútuo e das declarações de garantia correspondentes e a anulação de um registo de hipoteca no Registo Predial, quando a referida hipoteca foi constituída sobre imóveis do devedor situados no território da República da Croácia com o objetivo de garantir o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à competência do Tribunal de Justiça para apreciar a primeira questão

39

O Governo croata sustenta que o Tribunal de Justiça não é competente para apreciar a primeira questão visto que o contrato em causa foi celebrado em 5 de janeiro de 2007, ou seja, antes da adesão da República da Croácia à União, em 1 de julho de 2013. O Tribunal de Justiça não é competente para responder a uma questão de interpretação do direito da União suscitada a título prejudicial por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, quando as circunstâncias de facto a que este direito seria aplicável são anteriores à adesão desse Estado‑Membro à União. Na audiência, aquele Governo sustentou igualmente que o contrato tinha sido rescindido durante o ano de 2012.

40

A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga, no âmbito da primeira questão, sobre a compatibilidade da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, aprovada após a adesão da República da Croácia à União, com as disposições dos artigos 56.o e 63.o TFUE. Devido ao seu efeito retroativo, aquela lei era suscetível de se aplicar ao litígio do processo principal e de regular os contratos de crédito celebrados antes da adesão, bem como outros atos jurídicos decorrentes desses contratos.

41

Em segundo lugar, embora o contrato de crédito em causa tenha sido celebrado antes da adesão e tenha alegadamente cessado antes dela, o que não é mencionado no pedido de decisão prejudicial, resulta daquele pedido que certos efeitos ligados a esses contratos e aos atos jurídicos deles decorrentes continuaram a produzir‑se, como a constituição da hipoteca cuja anulação é pedida por A. Milivojević.

42

Ora, como resulta do artigo 2.o do Ato relativo às condições de adesão da República da Croácia e às adaptações do Tratado da União Europeia, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2012, L 112, p. 21), as disposições dos Tratados originários, nomeadamente os artigos 56.o e 63.o TFUE, vinculam a República da Croácia a partir da data da sua adesão, sendo por isso aplicáveis aos efeitos futuros das situações surgidas antes da adesão (v., por analogia, Acórdão de 29 de janeiro de 2002, Pokrzeptowicz‑Meyer, C‑162/00, EU:C:2002:57, n.o 50).

43

Decorre do que precede que os argumentos avançados pelo Governo croata para contestar a competência do Tribunal de Justiça para conhecer da primeira questão devem ser rejeitados, pois, embora o contrato em causa, que está na origem do litígio no processo principal, tenha sido celebrado antes da adesão da República da Croácia à União, não é menos verdade que esta questão diz respeito, no caso em apreço, a uma questão de interpretação do direito da União cuja resposta é suscetível de pôr em causa a compatibilidade com este último de uma lei nacional aprovada pelo Estado‑Membro após aquela data, que produz efeitos jurídicos naquele contrato depois da referida adesão.

Quanto à admissibilidade das três primeiras questões

44

O Raiffeisenbank e o Governo croata invocam o caráter hipotético da primeira questão, afirmando que não ficou provado que a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais fosse aplicável no litígio do processo principal.

45

O Governo croata invoca igualmente a inadmissibilidade da segunda e terceira questões, por considerar que as normas jurídicas invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio nas suas questões, a saber, o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, já não podiam ser invocadas, uma vez que o Raiffeisenbank compareceu perante esse órgão jurisdicional. No que diz respeito ao artigo 25.o do mesmo regulamento, aquele Governo alega não resultar do pedido de decisão prejudicial que as partes tenham celebrado um pacto atributivo de jurisdição.

46

No que se refere à primeira questão, importa observar que, embora, na fase atual do processo pendente no tribunal de reenvio, o juiz de reenvio não tenha ainda decidido a questão, de ordem factual, relativa à determinação do lugar da celebração do contrato em causa, questão essa que é essencial para aplicação da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, nos termos do artigo 3.o dessa lei, esse facto não limita o seu poder de decidir em que fase do processo é necessário submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.o 41, e de 4 de junho de 2015, Kernkraftwerke Lippe‑Ems, C‑5/14, EU:C:2015:354, n.o 31), uma vez que a escolha do momento mais oportuno para o fazer é da sua exclusiva competência (v., neste sentido, Acórdão de 15 de março de 2012, Sibilio, C‑157/11, não publicado, EU:C:2012:148, n.o 31).

47

No que diz respeito à segunda e à terceira questão, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 42 e jurisprudência aí referida).

48

É igualmente jurisprudência constante que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência (Acórdão de 14 de junho de 2017, Online Games e o., C‑685/15, EU:C:2017:452 n.o 42 e jurisprudência aí referida). O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas e para compreender as razões pelas quais o tribunal nacional considera ter necessidade das respostas para decidir o litígio (Acórdão de 8 de setembro de 2016, Politanò, C‑225/15, EU:C:2016:645, n.o 22 e jurisprudência aí referida). Ora, contrariamente ao que defende o Governo croata, não se afigura que o problema levantado nas questões segunda e terceira sejam de natureza hipotética.

49

Nestas condições, há que concluir que as três primeiras questões são admissíveis.

Quanto à primeira questão

50

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 56.o e 63.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que tem nomeadamente por efeito que os contratos de crédito e os atos jurídicos baseados nesses contratos, celebrados no território desse Estado‑Membro entre devedores e mutuantes estabelecidos noutro Estado‑Membro, que não são titulares de uma autorização emitida pelas autoridades competentes do primeiro Estado‑Membro para exercer a sua atividade no território deste, são nulos desde a data da sua celebração, mesmo que tenham sido celebrados antes da entrada em vigor da referida regulamentação.

Quanto à liberdade de circulação aplicável

51

Tendo a questão prejudicial sido submetida tanto na ótica do artigo 56.o TFUE como do artigo 63.o TFUE, há que determinar, a título preliminar, se e em que medida uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal é suscetível de afetar o exercício da liberdade de prestação de serviços e/ou da livre circulação de capitais.

52

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais diz respeito a serviços financeiros prestados por instituições de crédito cuja sede social se situa fora do território da Croácia e que não dispõem de autorizações ou de homologações das autoridades competentes croatas previstas para o efeito pelo direito nacional.

53

A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que essas operações de concessão de créditos a título profissional dizem respeitam, em princípio, quer à liberdade de prestação de serviços, na aceção dos artigos 56.o TFUE e seguintes, quer à liberdade de circulação de capitais, na aceção dos artigos 63.o TFUE e seguintes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Vorarlberger Landes‑ und Hypothekenbank, C‑625/17, EU:C:2018:939, n.o 23 e jurisprudência aí referida).

54

Com efeito, quando uma medida nacional diz simultaneamente respeito à livre prestação de serviços e à livre circulação de capitais, há que apreciar em que medida o exercício destas liberdades fundamentais é afetado e se, nas circunstâncias concretas do processo principal, uma delas prevalece sobre a outra. O Tribunal de Justiça aprecia a medida em causa, em princípio, à luz de apenas uma dessas duas liberdades se se revelar que, nas circunstâncias do caso, uma delas é totalmente secundária relativamente à outra e pode ser‑lhe subordinada (Acórdão de 12 de julho de 2012, SC Volksbank România, C‑602/10, EU:C:2012:443, n.o 70 e jurisprudência aí referida).

55

Uma vez que, no processo principal, a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais prevê a nulidade de qualquer contrato celebrado na Croácia por um mutuante não autorizado cuja sede se situe fora desse Estado‑Membro, esse regime jurídico tem por efeito afetar o acesso aos serviços financeiros no mercado croata dos operadores económicos estabelecidos noutros Estados‑Membros que não preencham as condições exigidas por essa regulamentação e afeta de forma preponderante a livre prestação de serviços. Sendo os efeitos restritivos dessa regulamentação sobre a livre circulação de capitais apenas uma consequência inelutável da restrição imposta relativamente à livre prestação de serviços (Acórdão de 3 de outubro de 2006, Fidium Finanz, C‑452/04, EU:C:2006:631, n.o 48 e jurisprudência aí referida), não há que examinar a sua compatibilidade à luz dos artigos 63.o TFUE e seguintes.

56

Por conseguinte, há que apreciar a questão colocada apenas à luz dos artigos 56.o TFUE e seguintes do relativos à livre prestação de serviços, à luz da premissa de que o contrato em causa foi celebrado na Croácia, aspeto factual que, no entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto ao artigo 56.o TFUE

57

A este respeito, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que a livre circulação de serviços prevista no artigo 56.o TFUE exige não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços estabelecido noutro Estado‑Membro em razão da sua nacionalidade mas também a supressão de qualquer restrição, ainda que indistintamente aplicada aos prestadores nacionais e de outros Estados‑Membros, quando a mesma seja suscetível de impedir, perturbar ou tornar menos atrativas as atividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde presta legalmente serviços análogos (Acórdão de 18 de julho de 2013, Citroën Belux, C‑265/12, EU:C:2013:498, n.o 35 e jurisprudência aí referida).

58

Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a atividade de uma instituição de crédito que consiste em conceder créditos constitui um serviço na aceção do artigo 56.o TFUE (Acórdão de 12 de julho de 2012, SC Volksbank România, C‑602/10, EU:C:2012:443, n.o 72 e jurisprudência aí referida).

59

Resulta do pedido de decisão prejudicial que, na ordem jurídica croata, a nulidade dos contratos de crédito celebrados com um mutuante não autorizado está prevista, simultaneamente, na Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, e na Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais. No entanto, o âmbito de aplicação destas duas leis não é o mesmo, uma vez que o da segunda é mais amplo, dado que ela se aplica, como resulta do seu artigo 1.o, n.o 1, a todos os contratos de crédito, incluindo os celebrados para fins profissionais. Em contrapartida, a Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, visa apenas os contratos celebrados pelos consumidores.

60

Como resulta igualmente do pedido de decisão prejudicial, no período compreendido entre 1 de julho de 2013, data da adesão da República da Croácia à União, e 30 de setembro de 2015, data da entrada em vigor da Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, essa nulidade opera apenas para os contratos de crédito celebrados pelos mutuantes não autorizados com sede fora da Croácia, em virtude da aplicação retroativa da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais.

61

Com efeito, resulta da interpretação da Lei do crédito ao consumo, conforme alterada, exposta pelo Vrhovni sud (Supremo Tribunal), que a nulidade dos contratos de crédito ao consumo celebrados com um mutuante não autorizado não é aplicável, com base nesta lei, a situações anteriores à sua entrada em vigor, ou seja, anteriores a 30 de setembro de 2015.

62

Por conseguinte, uma vez que a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais institui um regime de exceção para determinados serviços financeiros em função da circunstância de o prestador ter a sua sede num Estado‑Membro diferente daquele em que o serviço é prestado, há que concluir que o direito croata procedeu a uma discriminação direta contra os mutuantes estabelecidos fora da Croácia até 30 de setembro de 2015, data a partir da qual a nulidade dos contratos de crédito celebrados com um mutuante não autorizado foi alargada aos contratos com mutuantes estabelecidos nesse Estado‑Membro.

63

A partir dessa data, sendo o regime de nulidade indistintamente aplicável a todos os mutuantes não autorizados, a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais implica, relativamente a esse período, uma restrição ao exercício da livre prestação de serviços.

64

Com efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conceito de restrição abrange as medidas adotadas por um Estado‑Membro que, embora indistintamente aplicáveis, afetam o acesso ao mercado dos operadores de outros Estados‑Membros (Acórdão de 12 de julho de 2012, SC Volksbank România, C‑602/10, EU:C:2012:443, n.o 75 e jurisprudência aí referida). Ora, no caso em apreço, a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais condiciona o acesso ao mercado dos serviços financeiros croata dos mutuantes com sede fora da Croácia à obtenção de uma autorização emitida pelo Banco Central da Croácia e torna menos atrativo o acesso ao mercado, de modo que tal compromete a liberdade garantida pelo artigo 56.o TFUE.

65

Assim, importa analisar, em primeiro lugar, se os objetivos que levaram à aprovação desta lei podem justificar uma derrogação ao abrigo do artigo 52.o TFUE e, em segundo lugar, se essa lei corresponde a razões imperiosas de interesse geral, por forma a garantir, nesse caso, a realização dos objetivos prosseguidos e não vai para além do que é necessário para os alcançar (v., neste sentido, Acórdão de 18 de julho de 2013, Citroën Belux, C‑265/12, EU:C:2013:498, n.o 37 e jurisprudência aí referida).

66

No que diz respeito, em primeiro lugar, ao perído entre a data da adesão da República da Croácia à União e 30 de setembro de 2015, resulta da jursprudência do Tribunal de Justiça que, sendo a lei restritiva em causa no processo principal diretamente discriminatória, só pode ser justificada por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública, previstas no artigo 52.o TFUE, para o qual remete o artigo 62.o TFUE (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 9 de setembro de 2010, Engelmann, C‑64/08, EU:C:2010:506, n.o 34; de 22 de outubro de 2014, Blanco e Fabretti, C‑344/13 e C‑367/13, EU:C:2014:2311, n.o 38; e de 28 de janeiro de 2016, Laezza, C‑375/14, EU:C:2016:60, n.o 26).

67

O recurso a semelhante justificação pressupõe a existência de uma ameaça real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade (Acórdão de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha, C‑546/07, EU:C:2010:25, n.o 49 e jurisprudência aí referida).

68

Como resulta das observações escritas e orais apresentadas pelo Governo croata, a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais foi criada para proteger um grande número de cidadãos croatas que celebraram contratos de crédito com os mutuantes que exerciam a sua atividade sem ter sido devidamente autorizados pelo Banco Central da Croácia. A este respeito, o Governo croata alegou que, durante os anos de 2000 a 2010, foram celebrados cerca de 3000 contratos de crédito por mutuantes não autorizados, num montante total aproximado de 360 milhões de euros. Esta lei foi aprovada em último recurso, após vários diplomas legislativos terem tentado em vão fazer face às consequências desses contratos, o que justifica a sua aplicação retroativa. A referida lei visa, assim, preservar a ordem pública, a reputação e o bom funcionamento do setor financeiro, a proteção da parte mais fraca no contrato e nomeadamente, os direitos dos consumidores.

69

Tendo em conta os objetivos prosseguidos pela lei nacional em causa no processo principal, importa observar que, embora o Governo croata invoque o conceito de ordem pública, não adianta nenhum elemento convincente que possa enquadrar‑se nesse conceito, o qual, como já observado no n.o 67 do presente acórdão, pressupõe a existência de uma ameaça real e suficientemente grave de um interesse fundamental da sociedade, sendo que as considerações de natureza económica não podem justificar uma derrogação do artigo 52.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha, C‑546/07, EU:C:2010:25, n.o 51).

70

Seguidamente, há que examinar em que medida as restrições resultantes do regime de nulidade em causa são suscetíveis de ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral, na aceção da jurisprudência referida no n.o 64 do presente acórdão, no período a partir de 30 de setembro de 2015.

71

A este respeito, há que declarar que entre as razões imperiosas de interesse geral invocadas pela República da Croácia constam as já reconhecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, a saber, as regras profissionais destinadas a proteger os destinatários do serviço (Acórdão de 25 de julho de 1991, Collectieve Antennevoorziening Gouda, C‑288/89, EU:C:1991:323, n.o 14), a boa reputação do setor financeiro (Acórdão de 10 de maio de 1995, Alpine Investments, C‑384/93, EU:C:1995:126, n.o 44), e a proteção dos consumidores (Acórdão de 18 de julho de 2013, Citroën Belux, C‑265/12, EU:C:2013:498, n.o 38).

72

Mas, há que recordar ainda que as razões justificativas suscetíveis de ser invocadas por um Estado‑Membro devem ser acompanhadas das provas apropriadas ou da análise da oportunidade e da proporcionalidade da medida restritiva adotada por esse Estado, bem como de elementos precisos que permitam demonstrar a sua argumentação. Assim, se um Estado‑Membro tencionar invocar um objetivo adequado para legitimar o entrave à livre circulação de capitais resultante de uma medida nacional restritiva, cabe‑lhe apresentar ao tribunal que vai julgar essa questão todos os elementos que permitam a esse tribunal assegurar‑se de que a referida medida satisfaz efetivamente as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade (v., por analogia, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 85).

73

Ora, na falta de tais elementos de prova, há que declarar que a Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais vai manifestamente para além do que é necessário para alcançar os objetivos que pretende prosseguir, na medida em que, mediante uma norma retroativa geral e automática, prevê a nulidade de todos os contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais celebrados com credores não autorizados, exceto os que tenham sido integralmente cumpridos.

74

Além disso, há que observar, na esteira da Comissão Europeia, que outras medidas menos atentatórias da liberdade de prestação de serviços podiam ter sido adotadas para permitir o controlo da legalidade dos contratos de crédito e a proteção da parte mais fraca, como, por exemplo, legislação que habilitasse as autoridades a intervir com base em notificação ou oficiosamente, em caso de práticas comerciais desleais ou de violação dos direitos dos consumidores.

75

Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à primeira questão que o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que tem nomeadamente por efeito que os contratos de crédito e os atos jurídicos baseados nesses contratos, celebrados no território desse Estado‑Membro entre devedores e mutuantes estabelecidos noutro Estado‑Membro, que não são titulares de uma autorização emitida pelas autoridades competentes do primeiro Estado‑Membro para exercer a sua atividade no território deste, são nulos desde a data da sua celebração, mesmo que tenham sido celebrados antes da entrada em vigor da referida regulamentação.

Quanto à segunda questão

76

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012 se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, no âmbito de litígios relativos aos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais abrangidos por esse regulamento, permite aos devedores propor uma ação contra os mutuantes não autorizados, quer nos tribunais do Estado em cujo território estes mutuantes têm a sua sede quer nos tribunais do lugar do domicílio ou sede estatutária do devedor, e atribui a competência exclusiva para conhecer da ação dos referidos mutuantes contra os seus devedores aos tribunais do Estado em cujo território se situa o domicílio dos devedores, quer sejam consumidores ou profissionais.

77

A título liminar, importa salientar que o Regulamento n.o 1215/2012 é aplicável às ações intentadas a partir de 10 de janeiro de 2015. Tendo a ação em causa no processo principal sido proposta em 23 de abril de 2015 e dizendo respeito à relação jurídica existente entre as partes no litígio no processo principal e ao fundamento e às modalidades do seu exercício, à matéria civil e comercial, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, daquele regulamento, as suas disposições são aplicáveis no caso em apreço.

78

Como resulta da decisão de reenvio, o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais concedem ao devedor o direito de escolher entre os tribunais do Estado em cujo território o mutuante não autorizado tem a sua sede e os do seu domicílio, ao passo que o mutuante deve dirigir‑se aos tribunais do domicílio do devedor.

79

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, a lei aplica‑se a esse tipo de contratos celebrados na Croácia entre devedores e mutuantes não autorizados, independentemente da qualidade de consumidor ou profissional do devedor.

80

Uma vez que o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da referida lei também se aplica aos litígios entre profissionais, importa referir que se afastam da regra de competência geral estabelecida no artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, a saber, a do domicílio do demandado, por tornar extensível a todos os devedores o âmbito de aplicação das regras de competência mais protetoras estabelecidas, a título de exceção, no artigo 18.o, n.o 1, deste regulamento apenas para os consumidores.

81

Ora, importa lembrar que, no sistema do Regulamento n.o 1215/2012, a competência dos tribunais do Estado‑Membro em cujo território o requerido tem o seu domicílio constitui o princípio geral. É em derrogação a este princípio que essa disposição prevê casos, taxativamente enumerados, em que o requerido pode ou deve ser demandado perante um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 27). Assim, o facto de um Estado‑Membro prever, na sua legislação nacional, regras de competência derrogatórias a esse princípio geral, que não são previstas por outra disposição desse regulamento viola o sistema instituído pelo referido regulamento e, mais especificamente, o seu artigo 4.o

82

No que diz respeito ao artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012, este reconhece, sob certas condições, a legitimidade dos pactos atributivos de jurisdição celebrados pelas partes para determinar o órgão jurisdicional competente de um Estado‑Membro para decidir litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica. A este respeito, importa observar que decorre dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012 que a competência para conhecer de um litígio relativo a um contrato celebrado por um consumidor é determinada, em princípio, por essas mesmas disposições, e, em conformidade com o artigo 25.o, n.o 4, deste regulamento, uma cláusula atributiva de jurisdição só pode ser aplicável a este contrato na medida em que não seja contrária às disposições do artigo 19.o do mesmo regulamento.

83

Ora, parece resultar do teor do artigo 8.o da Lei relativa à nulidade dos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais, o que incumbe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, que as regras de competência nele previstas se aplicam independentemente do facto de os pactos atributivos de jurisdição que preenchem as exigências do artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012 terem sido livremente convencionados.

84

Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012 opõem‑se a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, no âmbito dos litígios relativos aos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais abrangidos por esse regulamento, permite aos devedores propor uma ação contra os mutuantes não autorizados, quer nos tribunais do Estado em cujo território estes têm a sua sede quer nos tribunais do lugar do domicílio ou sede estatutária do devedor, e atribui a competência exclusiva para conhecer da ação proposta pelos mutuantes contra os seus devedores aos tribunais do Estado em cujo território se situa o domicílio dos devedores, quer sejam consumidores ou profissionais.

Quanto à terceira questão

85

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que um devedor que celebrou um contrato de crédito para efetuar obras de renovação num bem imóvel que é a sua residência, com o objetivo de, nomeadamente, aí prestar serviços de alojamento turístico, pode ser qualificado de «consumidor» na aceção desta disposição.

86

Importa antes de mais lembrar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os conceitos utilizados no Regulamento n.o 1215/2012, e, nomeadamente, os constantes do seu artigo 17.o, n.o 1, devem ser interpretados de forma autónoma, por referência principalmente ao sistema e aos objetivos do regulamento, a fim de garantir a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 28).

87

O conceito de «consumidor», na aceção dos artigos 17.o e 18.o do Regulamento n.o 1215/2012, deve ser interpretado restritivamente, atendendo à posição que uma pessoa ocupa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e a finalidade desse contrato, e não à situação subjetiva dessa mesma pessoa, pois uma única e mesma pessoa pode ser considerada consumidor no âmbito de determinadas operações e operador económico no âmbito de outras (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 29 e jurisprudência aí referida).

88

Por conseguinte, apenas os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, com o único objetivo de satisfazer necessidades próprias de consumo privado de um indivíduo, são abrangidos pelo regime especial previsto no regulamento em matéria de proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca, ao passo que tal proteção não é justificada no caso de um contrato que tem como objetivo uma atividade profissional (Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 30 e jurisprudência aí referida).

89

Esta proteção especial também não é justificada no caso de contratos que têm como objetivo uma atividade profissional, mesmo prevista para o futuro, dado que o caráter futuro de uma atividade nada retira ao seu caráter profissional (Acórdão de 3 de julho de 1997, Benincasa, C‑269/95, EU:C:1997:337, n.o 17).

90

Daqui resulta que as regras de competência específicas dos artigos 17.o a 19.o do Regulamento n.o 1215/2012 só são aplicáveis, em princípio, no caso de a finalidade do contrato celebrado pelas partes ter por objeto uma utilização não profissional do bem ou de serviço em causa (v., neste sentido, Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

91

No que se refere mais concretamente a uma pessoa que celebra um contrato com uma dupla finalidade, para uma utilização em parte relacionada com a sua atividade profissional e em parte para fins pessoais, o Tribunal de Justiça considerou que essa pessoa só podia beneficiar das referidas disposições na hipótese de a ligação do contrato com a atividade profissional dessa pessoa ser tão ténue que se tornasse marginal e, portanto, tivesse uma importância negligenciável no contexto da operação, considerada na sua globalidade, em que foi celebrado (Acórdão de 25 de janeiro de 2018, Schrems, C‑498/16, EU:C:2018:37, n.o 32 e jurisprudência aí referida).

92

É à luz destes princípios que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, no âmbito do processo que lhe foi submetido, A. Milivojević pode ser qualificada de «consumidor», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012. Para o efeito, o órgão jurisdicional nacional deve tomar em consideração não só o conteúdo, a natureza e a finalidade do contrato, mas também as circunstâncias objetivas que rodearam a sua celebração (Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 47).

93

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio poderá ter em conta o facto de A. Milivojević ter celebrado o contrato de crédito em causa com vista à renovação da sua casa para aí instalar apartamentos destinados ao arrendamento, sem, no entanto, excluir o facto de uma parte da quantia emprestada ter sido utilizada para fins pessoais. Em tais circunstâncias, resulta da jurisprudência recordada no n.o 91 do presente acórdão que só poderia concluir‑se que A. Milivojević celebrou o contrato em causa como consumidora se a relação entre o contrato e a atividade profissional que constitui uma prestação de serviços de alojamento turístico for de tal modo marginal e insignificante que fosse evidente que esse contrato foi celebrado essencialmente para fins pessoais.

94

Atendendo a estas considerações, há que responder à terceira questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que um devedor que celebrou um contrato de crédito para efetuar obras de renovação num bem imóvel que é a sua residência, com o objetivo de, nomeadamente, aí prestar serviços de alojamento turístico, não pode ser qualificado de «consumidor», na aceção daquela disposição, a menos que, tendo em conta o contexto da operação, considerada na sua globalidade, em que o contrato foi celebrado, este tenha um nexo tão ténue com a atividade profissional que seja evidente que o contrato tem essencialmente fins privados, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto à quarta questão

95

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma ação em que se pede a declaração de nulidade de um contrato de crédito e de um ato notarial relativo à constituição de uma hipoteca constituída para garantia da dívida decorrente desse contrato, bem como o cancelamento do registo predial de uma hipoteca sobre um imóvel, constitui uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção desta disposição.

96

Resulta do teor do artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 que os tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel têm competência exclusiva para conhecer das ações em matéria de direitos reais sobre imóveis, independentemente do domicílio das partes.

97

Como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o sentido da expressão «em matéria de direitos reais sobre imóveis» deve ser interpretada de forma autónoma com vista a assegurar a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de abril de 2014, Weber, C‑438/12, EU:C:2014:212, n.o 40, e de 17 dezembro de 2015, Komu e o., C‑605/14, EU:C:2015:833, n.o 23).

98

O Tribunal de Justiça declarou igualmente que as disposições do artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 não devem ser interpretadas em termos mais amplos do que o exigido pelo seu objetivo. Com efeito, essas disposições têm por efeito privar as partes da escolha do foro que de outra forma seria o seu e, em certos casos, fazê‑las comparecer perante um órgão jurisdicional que não é o do domicílio de nenhuma delas (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 28).

99

Além disso, o Tribunal de Justiça precisou que a competência exclusiva dos tribunais do Estado contratante onde o imóvel se situa não abrange a totalidade das ações sobre direitos reais sobre imóveis, mas apenas aquelas que, ao mesmo tempo, estão no âmbito de aplicação do referido regulamento e se destinam, por um lado, a determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses imóveis e, por outro, a garantir aos titulares desses direitos a proteção das prerrogativas associadas ao seu direito (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 30 e jurisprudência aí referida).

100

Há também que recordar que, nos termos da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a diferença entre um direito real e um direito pessoal reside no facto de o primeiro, incidindo sobre um bem corpóreo, produzir os seus efeitos erga omnes, enquanto o segundo só pode ser invocado contra o devedor (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

101

No caso em apreço, no tocante aos pedidos destinados a obter a declaração da nulidade do contrato em causa e do ato notarial relativo à constituição de uma hipoteca, é forçoso observar que se baseiam num direito pessoal que só pode ser invocado contra o devedor. Por conseguinte, esses pedidos não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da regra de competência exclusiva prevista no artigo 24.o, ponto 1, do Regulamento n.o 1215/2012.

102

Em contrapartida, no que respeita ao pedido de cancelamento da inscrição de uma hipoteca no registo predial, deve observar‑se que a hipoteca, depois de devidamente constituída segundo as regras de forma e de fundo impostas pela regulamentação nacional na matéria, é um direito real que produz efeitos erga omnes.

103

Tal pedido, que visa a salvaguarda das prerrogativas relativas a um direito real, está abrangido pela competência exclusiva dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel, nos termos do artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 (Acórdão de 16 de novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.o 41).

104

A este respeito, importa acrescentar que, à luz desta competência exclusiva do tribunal do Estado‑Membro da situação do imóvel no que respeita ao pedido de cancelamento da inscrição no registo predial de uma hipoteca, esse tribunal tem também uma competência não exclusiva baseada na conexão, nos termos do artigo 8.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1215/2012, para conhecer dos pedidos destinados a obter a declaração de nulidade do contrato de crédito e do ato notarial relativo à constituição da hipoteca, na medida em que esses pedidos são dirigidos contra o mesmo demandado e podem, como resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, ser apensados.

105

Atendendo a estas considerações, há que responder à quarta questão que o artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma ação com vista ao cancelamento da inscrição no registo predial de uma hipoteca sobre um imóvel constitui uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção daquela disposição, mas que não cabe neste conceito uma ação para declaração da nulidade de um contrato de crédito e de um ato notarial relativo à constituição de uma hipoteca constituída para garantia da dívida decorrente desse contrato.

Quanto às despesas

106

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que tem nomeadamente por efeito que os contratos de crédito e os atos jurídicos baseados nesses contratos, celebrados no território desse Estado‑Membro entre devedores e mutuantes estabelecidos noutro Estado‑Membro, que não são titulares de uma autorização emitida pelas autoridades competentes do primeiro Estado‑Membro para exercer a sua atividade no território deste, são nulos desde a data da sua celebração, mesmo que tenham sido celebrados antes da entrada em vigor da referida regulamentação.

 

2)

O artigo 4.o, n.o 1, e o artigo 25.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, opõem‑se a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, no âmbito dos litígios relativos aos contratos de crédito que apresentam aspetos internacionais abrangidos por esse regulamento, permite aos devedores propor uma ação contra os mutuantes que não são titulares de uma autorização de exercício da sua atividade emitida pelas autoridades competentes desse Estado‑Membro para exercer a sua atividade no território deste, quer nos tribunais do Estado em cujo território estes têm a sua sede quer nos tribunais do lugar do domicílio ou sede estatutária do devedor, e atribui a competência exclusiva para conhecer da ação proposta pelos mutuantes contra os seus devedores aos tribunais do Estado em cujo território se situa o domicílio dos devedores, quer sejam consumidores ou profissionais.

 

3)

O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que um devedor que celebrou um contrato de crédito para efetuar obras de renovação num bem imóvel que é a sua residência, com o objetivo de, nomeadamente, aí prestar serviços de alojamento turístico, não pode ser qualificado de «consumidor», na aceção daquela disposição, a menos que, tendo em conta o contexto da operação, considerada na sua globalidade, em que o contrato foi celebrado, este tenha um nexo tão ténue com a atividade profissional que seja evidente que o contrato tem essencialmente fins pessoais, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

4)

O artigo 24.o, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma ação com vista ao cancelamento da inscrição no registo predial de uma hipoteca sobre um imóvel constitui uma ação «em matéria de direitos reais sobre imóveis», na aceção daquela disposição, mas que não cabe neste conceito uma ação para declaração da nulidade de um contrato de crédito e de um ato notarial relativo à constituição de uma hipoteca constituída para garantia da dívida decorrente desse contrato.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: croata.