ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

21 de maio de 2019 ( *1 )

Índice

 

I. Quadro jurídico

 

A. Direito da União

 

1. Carta

 

2. Ato de Adesão de 2003

 

B. Direito húngaro

 

II. Procedimento pré‑contencioso

 

III. Quanto ao objeto da ação

 

IV. Quanto à competência do Tribunal de Justiça

 

A. Argumentos das partes

 

B. Apreciação do Tribunal de Justiça

 

V. Quanto ao mérito

 

A. Argumentos das partes

 

B. Apreciação do Tribunal de Justiça

 

1. Quanto ao artigo 49.o TFUE

 

2. Quanto ao artigo 63.o TFUE e ao artigo 17.o da Carta

 

a) Quanto à aplicabilidade do artigo 63.o TFUE e à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

 

b) Quanto à justificação da restrição à livre circulação de capitais e à aplicabilidade do artigo 17.o da Carta

 

1) Quanto à existência de privação de propriedade na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta

 

2) Quanto às justificações e às razões de utilidade pública

 

i) Quanto à justificação baseada em objetivos de interesse geral ligados à exploração dos terrenos agrícolas

 

ii) Quanto à justificação relativa à violação da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios

 

iii) Quanto à justificação baseada na luta, levada a cabo a título da proteção da ordem pública, contra as práticas destinadas a contornar a lei nacional

 

iv) Quanto à inexistência de razões de utilidade pública e de regime de indemnização na aceção do artigo 17.o da Carta

 

c) Conclusão

 

Quanto às despesas

«Incumprimento de Estado — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Regulamentação nacional que extingue ex lege e sem indemnização os direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas e silvícolas anteriormente adquiridos por pessoas coletivas ou por pessoas singulares que não possam demonstrar um vínculo familiar próximo com o proprietário»

No processo C‑235/17,

que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.o TFUE, entrada em 5 de maio de 2017,

Comissão Europeia, representada por L. Malferrari e L. Havas, na qualidade de agentes,

demandante,

contra

Hungria, representada por M. Z. Fehér, na qualidade de agente,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Prechal (relatora), E. Regan e T. von Danwitz, presidentes de secção, A. Rosas, L. Bay Larsen, M. Safjan, D. Šváby, C. G. Fernlund, C. Vajda e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 9 de julho de 2018,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de novembro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, tendo especialmente em atenção as disposições em vigor desde 1 de janeiro de 2013 da termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény (Lei n.o LV, de 1994, relativa aos terrenos produtivos, a seguir «Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos»), as disposições pertinentes da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvény (Lei n.o CXXII, de 2013, relativa à venda de terrenos agrícolas e silvícolas, a seguir «Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas»), determinadas disposições da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei n.o CCXII, de 2013, que adota diversas disposições e medidas transitórias no que respeita à Lei n.o CXXII, de 2013, relativa à venda de terrenos agrícolas e silvícolas, a seguir «Lei de 2013 relativa às medidas transitórias») e o artigo 94.o, n.o 5, da ingatlan‑nyilvántartásról szóló 1997. évi CXLI. törvény (Lei n.o CXLI, de 1997, relativa ao registo predial, a seguir «Lei do registo predial»), ao restringir de modo manifestamente desproporcionado os direitos de usufruto sobre os terrenos agrícolas e silvícolas, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 49.o e 63.o TFUE e do artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

I. Quadro jurídico

A. Direito da União

1.   Carta

2

O artigo 17.o da Carta, sob a epígrafe «Direito de propriedade», enuncia, no seu n.o 1:

«Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral.»

3

O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. […]»

4

O artigo 52.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», enuncia, nos seus n.os 1 e 3:

«1.   Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[…]

3.   Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

2.   Ato de Adesão de 2003

5

O anexo X do Ato relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33, a seguir «Ato de Adesão de 2003») intitula‑se «Lista a que se refere o artigo 24.o do Ato de Adesão: Hungria». O capítulo 3 deste anexo, intitulado «Livre circulação de capitais», dispõe, no seu ponto 2:

«Sem prejuízo das obrigações resultantes dos Tratados em que se funda a União Europeia, a Hungria pode manter em vigor, durante sete anos a contar da data da adesão, as proibições previstas na legislação em vigor à data da assinatura do presente Ato, em matéria de aquisição de prédios rústicos por pessoas singulares não residentes na Hungria ou que não sejam nacionais húngaros e por pessoas coletivas. No que se refere à aquisição de prédios rústicos, os nacionais dos Estados‑Membros ou as pessoas coletivas constituídas nos termos da legislação de outro Estado‑Membro não podem, em caso algum, receber um tratamento menos favorável do que à data da assinatura do Tratado de Adesão […]

Os nacionais de outro Estado‑Membro que desejem estabelecer‑se como agricultores por conta própria e que tenham residido legalmente e exercido uma atividade agrícola na Hungria durante pelo menos três anos consecutivos não ficam sujeitos ao disposto no parágrafo anterior nem a quaisquer outras regras e procedimentos diferentes dos que se aplicam aos nacionais húngaros.

[…]

Se existirem provas suficientes de que, no termo do período transitório, se verificarão perturbações ou ameaça de perturbações graves no mercado fundiário da Hungria, a Comissão, a pedido daquele país, decidirá da prorrogação do período transitório por um máximo de três anos.»

6

Pela Decisão 2010/792/UE da Comissão, de 20 de dezembro de 2010, que prorroga o período transitório respeitante à aquisição de prédios rústicos na Hungria (JO 2010, L 336, p. 60), o período transitório instituído no anexo X, capítulo 3, n.o 2, do Ato de Adesão de 2003 foi prorrogado até 30 de abril de 2014.

B. Direito húngaro

7

O artigo 38.o, n.o 1, da földről szóló 1987. évi I. törvény (Lei n.o I, de 1987, relativa à terra) previa que as pessoas singulares que não possuíssem nacionalidade húngara ou que a possuíssem, mas que residissem permanentemente fora da Hungria, bem como as pessoas coletivas com sede fora da Hungria ou com sede na Hungria, mas cujo capital fosse detido por pessoas singulares ou coletivas residentes fora da Hungria, só podiam adquirir a propriedade de terrenos produtivos por compra, permuta ou doação mediante autorização prévia do ministro das Finanças.

8

O artigo 1.o, n.o 5, do 171/1991 Korm. Rendelet (Decreto do Governo 171/1991), de 27 de dezembro de 1991, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1992, excluiu a possibilidade de as pessoas que não possuíssem nacionalidade húngara, com exceção das que possuíssem uma autorização de residência permanente e das pessoas a quem tivesse sido reconhecido o estatuto de refugiado, adquirirem terrenos produtivos.

9

A Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos manteve a referida proibição de aquisição e simultaneamente alargou‑a às pessoas coletivas, independentemente de estarem ou não estabelecidas na Hungria.

10

A referida lei foi alterada, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2002, pela termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény módosításáról szóló 2001. évi CXVII. törvény (Lei n.o CXVII, de 2001, que altera a Lei n.o LV, de 1994, relativa aos terrenos produtivos), para também impedir a possibilidade de se constituir contratualmente um direito de usufruto sobre terrenos produtivos a favor de pessoas singulares que não tivessem nacionalidade húngara ou de pessoas coletivas. No seguimento dessas alterações, o artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos dispunha que, «[p]ara a constituição contratual de um direito de usufruto e de um direito de uso, são aplicáveis as disposições do capítulo II relativas às restrições à aquisição de propriedades. […]».

11

O artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos foi, posteriormente, alterado pela egyes agrár tárgyú törvények módosításáról szóló 2012. évi CCXIII. törvény (Lei n.o CCXIII, de 2012, que modifica determinadas leis relativas à agricultura). Na sua nova versão que resulta da referida alteração e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2013, o referido artigo 11.o, n.o 1, dispunha que «[o] direito de usufruto constituído por contrato é nulo, exceto se constituído em benefício de parente próximo». A Lei n.o CCXIII, de 2012, introduziu igualmente na Lei de 1994 um novo artigo 91.o, n.o 1, nos termos do qual «[e]m 1 de janeiro de 2033 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto vigentes em 1 de janeiro de 2013 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado cujo termo ultrapasse a data de 30 de dezembro de 2032».

12

A Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas foi adotada em 21 de junho de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

13

O artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas mantém a regra segundo a qual é nulo o direito de usufruto ou de uso contratualmente constituído sobre esses terrenos, exceto se o tiver sido em benefício de um familiar próximo.

14

O artigo 5.o, ponto 13, da referida lei contém a seguinte definição:

«“Familiares próximos”: cônjuges, ascendentes e descendentes em linha reta, filhos adotivos, filhos do cônjuge, pais adotivos, sogros e irmãos e irmãs.»

15

A Lei de 2013 relativa às medidas transitórias foi adotada em 12 de dezembro de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

16

O artigo 108.o, n.o 1, desta lei, que revogou o artigo 91.o, n.o 1, da Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos, enuncia:

«Em 1 de maio de 2014 extinguem‑se ex lege os direitos de usufruto e de uso vigentes em 30 de abril de 2014 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado que ultrapasse a data de 30 de abril de 2014.»

17

O artigo 94.o da Lei do registo predial dispõe:

«1.   A fim de proceder ao cancelamento no registo predial da inscrição dos direitos de usufruto e de uso que se extingam por força do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 relativa às medidas transitórias] (a seguir, para efeitos deste artigo, conjuntamente “direitos de usufruto”), até 31 de outubro de 2014, a autoridade responsável pelo registo predial notifica a pessoa singular titular do direito de usufruto para declarar, no prazo de 15 dias a partir da receção da notificação, em formulário aprovado por decisão ministerial, que tem um vínculo familiar próximo com a pessoa que figura como proprietário do imóvel identificado nos documentos com base nos quais foi feito. Na falta de declaração dentro do prazo após 31 de dezembro de 2014 não serão admitidos quaisquer pedidos de certificação.

[…]

3.   Quando da declaração resultar que não existe qualquer vínculo familiar próximo ou o titular não apresentar a declaração dentro do prazo, a autoridade responsável pelo registo predial cancela oficiosamente, dentro dos seis meses seguintes ao termo do prazo indicado para apresentar a declaração e até 31 de julho de 2015, a inscrição do direito de usufruto no registo predial.

[…]

5.   A administração dos processos fundiários cancela oficiosamente do registo predial até 31 de dezembro de 2014, os direitos de usufruto inscritos em benefício de pessoas coletivas ou de entidades sem personalidade jurídica, mas com capacidade para adquirir direitos registáveis, e que tenham sido extintos por aplicação do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 relativa às medidas transitórias].»

II. Procedimento pré‑contencioso

18

Em 17 de outubro de 2014, a Comissão, considerando que, ao adotar as restrições relativas ao direito de usufruto sobre os terrenos agrícolas que constam de certas disposições da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, entre as quais o artigo 108.o, n.o 1, dessa lei, a Hungria tinha infringido os artigos 49.o e 63.o TFUE, bem como o artigo 17.o da Carta, dirigiu‑lhe uma notificação para cumprir. Esse Estado‑Membro respondeu por ofício de 18 de dezembro de 2014, no qual contestava as referidas infrações.

19

Em 19 de junho de 2015, a Comissão emitiu um parecer fundamentado no qual manteve que, ao extinguir determinados direitos de usufruto, com efeitos a 1 de maio de 2014, através do artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias, a Hungria tinha infringido as disposições do direito da União referidas no número anterior. Esse Estado‑Membro respondeu por ofícios datados de 9 de outubro de 2015 e de 18 de abril de 2016, nos quais concluía pela inexistência dos incumprimentos alegados.

20

Nestas condições, a Comissão decidiu intentar a presente ação.

III. Quanto ao objeto da ação

21

No petitum da sua petição, a Comissão acusa a Hungria de ter «restringido» os direitos de usufruto sobre os terrenos agrícolas e silvícolas (a seguir «terrenos agrícolas»), em violação do direito da União, atendendo às diversas disposições nacionais que refere nesse petitum. Todavia, resulta tanto do parecer fundamentado como do conteúdo da própria petição e é, de resto, pacífico entre as partes, tal como confirmou a discussão na audiência, de que o advogado‑geral fez eco no n.o 39 das suas conclusões, que a restrição dos direitos de usufruto denunciada pela Comissão no caso vertente é, mais especificamente, resultante da extinção desses direitos pelo artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias. As outras disposições nacionais a que se refere o petitum da petição apenas são mencionadas neste e na própria petição enquanto elementos do contexto normativo nacional em que se inscreve o referido artigo 108.o, n.o 1, elementos esses que se revelam indispensáveis para a plena compreensão do alcance dessa disposição.

22

Assim, a ação da Comissão tem por objeto obter a declaração de que, ao adotar o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 relativa às medidas transitórias (a seguir «regulamentação controvertida») e ao extinguir dessa forma, ex lege, os direitos de usufruto anteriormente constituídos, entre pessoas que não sejam familiares próximos, sobre terrenos agrícolas sitos na Hungria, este Estado‑Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 49.o e 63.o TFUE, bem como do artigo 17.o da Carta.

IV. Quanto à competência do Tribunal de Justiça

A. Argumentos das partes

23

A Hungria sustenta, a título preliminar, que, uma vez que os contratos de usufruto extintos pela regulamentação controvertida contornaram as proibições de aquisição da propriedade de terrenos agrícolas vigentes antes da sua adesão à União e que, por esse facto, eram nulos ab initio já antes dessa adesão, nem as proibições assim infringidas nem os seus efeitos nem, portanto, a extinção posterior, pela regulamentação controvertida, dos direitos de usufruto em causa, podem ser apreciados à luz do direito da União. Com efeito, segundo esse Estado‑Membro, o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar esse direito quando os factos do litígio são anteriores à adesão do Estado‑Membro em causa à União.

24

Por seu turno, a Comissão alega que o direito da União é de aplicação imediata nos novos Estados‑Membros e que, no caso vertente, o objeto do litígio é relativo a uma regulamentação nacional adotada no decorrer de 2013 e que prevê a extinção ex lege, em 1 de maio de 2014, de direitos de usufruto então ainda existentes e inscritos nos registos prediais, e não à legalidade dos contratos de usufruto celebrados antes da adesão da Hungria à União. Além disso, a Hungria reconheceu expressamente, na sua resposta ao parecer fundamentado, que os órgãos jurisdicionais húngaros não declararam, em nenhum processo, a nulidade de acordos de usufruto específicos.

B. Apreciação do Tribunal de Justiça

25

Como resulta de jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o direito da União no que se refere à sua aplicação num novo Estado‑Membro a partir da data da adesão deste à União (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 39 e jurisprudência aí referida).

26

No caso, como alega a Comissão, os direitos de usufruto afetados pela regulamentação controvertida ainda existiam em 30 de abril de 2014 e a sua extinção, bem como o seu cancelamento subsequente no registo predial, ocorreram por causa dessa regulamentação, adotada cerca de dez anos após a adesão da Hungria à União, e não devido à aplicação de regulamentações nacionais que estivessem em vigor e tenham produzido todos os seus efeitos relativamente a tais direitos de usufruto ainda antes da data dessa adesão.

27

Daqui resulta que a argumentação da Hungria destinada a excluir a competência do Tribunal de Justiça deve ser rejeitada.

V. Quanto ao mérito

A. Argumentos das partes

28

A Comissão sustenta, em primeiro lugar, que a regulamentação controvertida é, segundo as particularidades de cada caso concreto, suscetível de restringir tanto a liberdade de estabelecimento como a livre circulação de capitais e, consequentemente, de infringir tanto o artigo 49.o TFUE como o artigo 63.o TFUE.

29

Em segundo lugar, sustenta que a referida regulamentação é indiretamente discriminatória face aos nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria, na medida em que, entre 1992 e 2002, a constituição de um usufruto era a única forma de aqueles investirem em terrenos agrícolas na Hungria e, por outro lado, seria raro que esses nacionais tivessem familiares próximos que fossem proprietários de tais terrenos para que tivessem adquirido um direito de usufruto sobre os mesmos. Nestas condições, a regulamentação controvertida não pode ser justificada com fundamento no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE ou por razões imperiosas de interesse geral admitidas pela jurisprudência.

30

Em terceiro lugar, e admitindo que tais justificações fossem possíveis, as justificações invocadas pela Hungria não são admissíveis no caso vertente e a regulamentação controvertida não satisfaz as exigências que decorrem do princípio da proporcionalidade.

31

Desde logo, no que se refere aos diversos objetivos de política agrícola referidos no preâmbulo da Lei de 2013 relativa aos terrenos agrícolas e identificados pelo Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional, Hungria) no seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, a saber, assegurar que os terrenos agrícolas produtivos apenas sejam possuídos pelas pessoas singulares que os trabalham e não para fins especulativos, prevenir a fragmentação dos terrenos e manter uma população rural e uma agricultura sustentável, bem como criar explorações de dimensão viável e competitivas, a Comissão alega que estes não justificam um entrave à livre circulação de capitais.

32

Em qualquer caso, as restrições em causa não são apropriadas, nem coerentes, nem necessárias para alcançar os objetivos assim alegados.

33

No que se refere, em seguida, ao objetivo de regularizar as situações ilícitas criadas pelas aquisições de direitos de usufruto por não residentes que não dispunham da autorização de câmbio do Banco Nacional da Hungria que era exigida, até 16 de junho de 2001, por força da Lei n.o XCV, de 1995, relativa às divisas, a Comissão alega que tal exigência de autorização cria, desde a adesão da Hungria à União, uma discriminação baseada na nacionalidade proibida pelo direito da União. De resto, segundo a Comissão, a Hungria admitiu, durante o procedimento pré‑contencioso, que não existe nenhuma decisão pela qual um órgão jurisdicional húngaro tenha considerado que a aquisição de um direito de usufruto sem a detenção de uma autorização de câmbio é suscetível de conduzir à nulidade do referido usufruto.

34

No que se refere, por último, ao objetivo de eliminar os direitos de usufruto adquiridos, antes de 1 de janeiro de 2002, por não residentes ou por pessoas coletivas que, ao fazê‑lo, tivessem contornado ilegalmente a proibição de aquisição de propriedade, a Comissão considera que o facto de um nacional de um Estado‑Membro diferente da Hungria escolher, para investir em terrenos agrícolas ou para se estabelecer na Hungria, um título jurídico disponível ao abrigo do direito desse Estado‑Membro constitui um simples exercício das liberdades garantidas pelos artigos 49.o e 63.o TFUE e não pode, portanto, ser qualificado de abuso.

35

Por outro lado, segundo a Comissão, a Hungria não sustenta a sua alegação de que todos os contratos de usufruto afetados pela regulamentação controvertida foram celebrados de forma abusiva. Não expõe, nomeadamente, a razão pela qual tal poderia ser o caso no que respeita aos contratos provenientes de queixosos, que a Comissão apresentou no Tribunal de Justiça, nem refere qualquer contrato judicialmente declarado ilícito. Além disso, mesmo admitindo que, em determinados casos, o direito de usufruto tenha sido constituído para contornar a regulamentação em vigor, isso não pode, de qualquer modo, ser generalizado através da presunção de que qualquer pessoa que tenha constituído tal direito agiu com essa intenção.

36

Em quarto lugar, a Comissão considera que a regulamentação controvertida viola os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima. Com efeito, segundo a Comissão, estes princípios têm como consequência que, em caso de extinção de títulos jurídicos que permitem aos seus titulares exercer uma atividade económica, não seria proporcionado e justificado prever um período transitório de apenas quatro meses e meio suprimindo, desse modo, o período transitório de 20 anos decretado menos de um ano antes. Segundo a Comissão, é igualmente contrário a estes princípios o facto de não ser prevista uma compensação específica que permita indemnizar os interessados, em condições predeterminadas, pela privação da contrapartida paga, pela depreciação dos investimentos feitos e pelo lucro cessante.

37

Em quinto lugar, a Comissão alega que, na medida em que a regulamentação controvertida coloca um entrave à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais e a Hungria invoca razões imperiosas de interesse geral para justificar tais entraves, as disposições da Carta são aplicáveis ao caso vertente.

38

Ora, a referida regulamentação viola o artigo 17.o da Carta. Com efeito, a extinção dos direitos de usufruto em causa constitui uma privação da propriedade, na aceção deste artigo, tal como do artigo 1.o do Protocolo n.o 1 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

39

No caso vertente, a privação de direitos de usufruto em detrimento de milhares de cidadãos não húngaros não é justificada por qualquer motivo admissível de interesse geral, e, mesmo admitindo que o fosse, esta extinção não seria proporcionada, atendendo, nomeadamente, aos elementos anteriormente expostos. A regulamentação controvertida também não previu a indemnização exigida pelo artigo 17.o da Carta e destinada a compensar, mediante modalidades eficazes, a privação de direitos reais de valor económico considerável.

40

Por último, segundo a Comissão, os interessados agiram de boa‑fé ao utilizarem uma possibilidade de investimento que lhes era oferecida pelo quadro legislativo existente e tanto a prática das autoridades administrativas competentes em matéria de registo predial como a das autoridades judiciais confirmaram a legalidade dos usufrutos em causa.

41

Em sua defesa, a Hungria contesta qualquer entrave à liberdade de estabelecimento. Resulta do Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) que os titulares de direitos de usufruto em causa não sofreram prejuízo patrimonial, tendo esse órgão jurisdicional considerado que, em geral, as disposições do direito civil húngaro garantem suficientemente a possibilidade de invocarem os seus interesses no âmbito de uma liquidação de contas entre as partes. Por outro lado, esses titulares poderiam continuar a trabalhar o terreno no futuro adquirindo, mediante acordo do proprietário, a propriedade deste ou celebrando um arrendamento. Quanto à livre circulação de capitais, não está demonstrada uma restrição à mesma, uma vez que a regulamentação controvertida se limita a estabelecer uma condição relativa ao vínculo de parentesco no que respeita a apenas um dos títulos de exploração de terras aráveis, continuando a ser possíveis a compra e o arrendamento.

42

Por outro lado, o referido Estado‑Membro contesta a existência de uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, na medida em que a regulamentação controvertida afetou indiferentemente os nacionais húngaros e os de outros Estados‑Membros, como demonstra o facto de, em mais de 100000 pessoas abrangidas por esta regulamentação, apenas 5058 serem nacionais de outros Estados, estando aí incluídos nacionais de Estados terceiros. O facto de a exceção do vínculo de parentesco próximo operar tipicamente em benefício de nacionais húngaros resulta de estarem em causa terrenos sitos na Hungria cujos proprietários são normalmente húngaros. Essa exceção tem em conta o facto de os pais frequentemente adquirirem para os seus filhos imóveis reservando para si um direito de usufruto e o facto de o cônjuge sobrevivo frequentemente herdar esse direito.

43

Admitindo que estivesse demonstrada uma restrição à livre circulação de capitais, a Hungria considera que esta é justificada, desde logo, pelos objetivos de política agrícola recordados no n.o 31 do presente acórdão.

44

Em seguida, esse Estado‑Membro alega que a ilegalidade ab initio dos contratos de usufruto em causa foi reconhecida pelo Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional), tendo este referido, no seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, que o objetivo da regulamentação controvertida consistia, nomeadamente, em assegurar que o registo predial refletisse relações jurídicas conformes com o novo regime aplicável aos terrenos agrícolas e em eliminar os efeitos jurídicos de uma prática em virtude da qual o direito de usufruto foi aplicado de maneira disfuncional.

45

No caso de as partes optarem por um tipo de contrato diferente do que corresponde à sua verdadeira intenção, decorre do artigo 207.o, n.o 6, da polgari törvénykönyvről szóló 1959. évi IV. törvény (Lei n.o IV, de 1959, que aprova o Código Civil) que o contrato é simulado e nulo.

46

Atendendo ao grande número de aquisições de direitos de usufruto que foram celebradas, segundo modalidades diversas, na esperança, acalentada por não residentes, de poder, após a adesão da Hungria à União ou uma vez desaparecidos os obstáculos legais, um dia adquirir a propriedade dos terrenos em causa, aquisições essas cuja eliminação podia estar abrangida pelo âmbito de aplicação do conceito de ordem pública previsto no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE, o legislador nacional optou, por razões de ordem orçamental e de economia processual, pela extinção desses direitos e pelo seu cancelamento no registo predial, por via legislativa, em vez de os deixar serem individualmente impugnados em juízo.

47

Por último, a Hungria considera que a regulamentação controvertida é igualmente justificada pela vontade de pôr termo à ilegalidade dos contratos de usufruto celebrados sem a autorização de câmbio exigida por força da Lei n.o XCV, de 1995.

48

No que se refere à proporcionalidade e à necessidade da restrição ao direito de propriedade, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) declarou, no seu Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, que a extinção dos direitos de usufruto em causa não se assemelhava a uma expropriação, uma vez que os direitos em causa eram de natureza contratual e podiam, por conseguinte, ser limitados por disposições legislativas, no interesse geral, e a referida extinção não dava origem à aquisição de um direito pelo Estado nem à constituição de um novo direito real em benefício de outro sujeito de direito. Afirma ainda que esta medida corresponde ao interesse geral, uma vez que o direito do nu‑proprietário fica desonerado e este passa a ficar sujeito, por força de restrições sociais, às obrigações relativas aos solos produtivos.

49

Quanto à brevidade do período transitório, os operadores económicos afetados não podiam depositar a sua confiança legítima na manutenção da regulamentação anterior, a qual era previsível que evoluísse em virtude do fim da moratória sobre a aquisição de terrenos resultante do Ato de Adesão de 2003.

50

Por outro lado, a Hungria alega que não é necessária uma análise separada da regulamentação controvertida à luz da Carta e que, de qualquer modo, resulta do Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) que a extinção dos direitos de usufruto em causa não constitui uma expropriação e que é, além do mais, justificada pelo interesse geral, sendo que as regras do direito civil permitem ao antigo usufrutuário obter uma compensação justa, global e em tempo útil das perdas incorridas. Por outro lado, o artigo 17.o da Carta não é aplicável no caso vertente, uma vez que os contratos de usufruto assim suprimidos foram celebrados ilegalmente e de má‑fé.

B. Apreciação do Tribunal de Justiça

1.   Quanto ao artigo 49.o TFUE

51

No que se refere ao pedido da Comissão para que seja declarado o incumprimento das obrigações que incumbem à Hungria por força do artigo 49.o TFUE, importa recordar que o direito de adquirir, explorar e alienar bens imóveis no território de outro Estado‑Membro, quando é exercido, enquanto complemento da liberdade de estabelecimento, gera movimentos de capitais (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 54).

52

Como alegou a Comissão ao evocar, a este respeito, o caso de nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria que exercem uma atividade de exploração agrícola nesse Estado‑Membro e que, para esse efeito, adquiriram, de forma direta ou indireta, um direito de usufruto sobre terrenos agrícolas, esse direito constitui, em tal caso, um complemento ao exercício do direito de estabelecimento desses nacionais.

53

Embora a regulamentação controvertida seja como tal, a priori, suscetível de estar abrangida simultaneamente pelo âmbito de aplicação do artigo 49.o TFUE e pelo do artigo 63.o TFUE, não deixa de ser verdade que, no caso vertente, a restrição à liberdade de estabelecimento resultante da regulamentação controvertida alegada pela Comissão na sua ação constitui a consequência direta da restrição à livre circulação de capitais que esta denuncia, por outro lado, nessa mesma ação. Assim, sendo a primeira restrição alegada indissociável da segunda, não é necessário examinar a regulamentação controvertida à luz do artigo 49.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 4 de junho de 2002, Comissão/Portugal, C‑367/98, EU:C:2002:326, n.o 56; de 13 de maio de 2003, Comissão/Espanha, C‑463/00, EU:C:2003:272, n.o 86; e de 10 de novembro de 2011, Comissão/Portugal, C‑212/09, EU:C:2011:717, n.o 98 e jurisprudência aí referida).

2.   Quanto ao artigo 63.o TFUE e ao artigo 17.o da Carta

a)   Quanto à aplicabilidade do artigo 63.o TFUE e à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

54

Importa recordar que os movimentos de capitais incluem as operações pelas quais os não residentes efetuam investimentos imobiliários no território de um Estado‑Membro, como resulta da nomenclatura dos movimentos de capitais que consta do anexo I da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado CE [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO 1988, L 178, p. 5), conservando essa nomenclatura o valor indicativo que já detinha para definir o conceito de movimentos de capitais (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 56 e jurisprudência aí referida).

55

Inserem‑se neste conceito, designadamente, os investimentos imobiliários que têm por objeto a aquisição de um usufruto sobre terrenos, como comprova, em especial, a precisão, contida nas notas explicativas que figuram no anexo I da Diretiva 88/361, segundo a qual a categoria dos investimentos imobiliários abrangidos por esta última inclui a aquisição de direitos de usufruto sobre propriedades construídas e não construídas (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 57).

56

No caso vertente, a regulamentação controvertida extingue os direitos de usufruto anteriormente adquiridos sobre terrenos agrícolas, quando os titulares desses direitos não preenchem o requisito a que a legislação nacional sujeita atualmente a aquisição de tais direitos, a saber, a existência de uma relação de parentesco próxima entre o adquirente do direito de usufruto e o proprietário dos terrenos em causa.

57

Por outro lado, é pacífico que entre os titulares de direitos de usufruto afetados pela referida regulamentação figuram numerosos nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria que adquiriram tais direitos, diretamente ou indiretamente, através de uma pessoa coletiva constituída na Hungria.

58

Ora, ao prever a extinção ex lege dos direitos de usufruto assim detidos sobre terrenos agrícolas por nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria, a regulamentação controvertida restringe, pelo seu próprio objeto e por esse simples facto, o direito dos interessados à livre circulação de capitais garantido pelo artigo 63.o TFUE. Com efeito, esta regulamentação priva‑os tanto da possibilidade de continuarem a gozar do seu direito de usufruto, ao impedi‑los, nomeadamente, de utilizarem e de explorarem os terrenos em causa ou de as arrendarem e de, assim, delas retirarem rendimentos, como da eventual possibilidade de alienarem esse direito, por exemplo, devolvendo‑o ao proprietário. A referida regulamentação é, por outro lado, suscetível de dissuadir os não residentes de fazerem no futuro investimentos na Hungria (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 62 a 66).

b)   Quanto à justificação da restrição à livre circulação de capitais e à aplicabilidade do artigo 17.o da Carta

59

Como decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma medida como a regulamentação controvertida, que restringe a liberdade de circulação de capitais, só pode ser admitida na condição de ser justificada por razões imperiosas de interesse geral e de respeitar o princípio da proporcionalidade, o que exige que seja adequada para garantir a realização do objetivo que prossegue e não ultrapasse o necessário para o atingir (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2010, Comissão/Portugal, C‑543/08, EU:C:2010:669, n.o 83).

60

Da mesma maneira, essa medida pode ser justificada pelas razões mencionadas no artigo 65.o TFUE, desde que respeite o referido princípio da proporcionalidade (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 77 e jurisprudência aí referida).

61

Além disso, há que recordar, neste contexto, que uma regulamentação nacional só é apta a garantir a realização do objetivo invocado se corresponder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 78 e jurisprudência aí referida).

62

No caso vertente, a Hungria alegou que a regulamentação controvertida é justificada, respetivamente, por razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, a saber, objetivos relacionados com a exploração racional dos terrenos agrícolas, e por motivos referidos no artigo 65.o TFUE. No que se refere a esta última disposição, esse Estado‑Membro invoca, mais precisamente, por um lado, a vontade de sancionar violações da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios e, por outro, de lutar, a título de proteção da ordem pública, contra práticas de aquisição abusivas.

63

Por outro lado, importa igualmente recordar que os direitos fundamentais garantidos pela Carta são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União e devem, por conseguinte, ser respeitados quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação desse direito (v., designadamente, Acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.os 19 a 21, e de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis, C‑201/15, EU:C:2016:972, n.o 62).

64

Ora, tal é nomeadamente o caso quando uma regulamentação nacional possa entravar uma ou mais liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE e o Estado‑Membro em causa invoque os motivos previstos no artigo 65.o TFUE ou razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pelo direito da União para justificar esse entrave. Em semelhante hipótese, nos termos de jurisprudência constante, a regulamentação nacional em causa só pode beneficiar das exceções assim previstas se respeitar os direitos fundamentais assegurados pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de junho de 1991, ERT, C‑260/89, EU:C:1991:254, n.o 43; de 27 de abril de 2006, Comissão/Alemanha, C‑441/02, EU:C:2006:253, n.o 108 e jurisprudência aí referida; e de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis, C‑201/15, EU:C:2016:972, n.o 63).

65

A este respeito, e tal como o Tribunal de Justiça já declarou, deve considerar‑se que o recurso de um Estado‑Membro às exceções previstas no direito da União para justificar um entrave a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado «aplica o direito da União», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (Acórdão de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis, C‑201/15, EU:C:2016:972, n.o 64 e jurisprudência aí referida).

66

Ora, no caso, conforme salientado nos n.os 58 e 62 do presente acórdão, a regulamentação controvertida constitui uma restrição à livre circulação de capitais e a Hungria invoca a existência de razões imperiosas de interesse geral, bem como de motivos previstos no artigo 65.o TFUE, para justificar essa restrição. Nestas condições, a compatibilidade dessa regulamentação com o direito da União deve ser examinada à luz tanto das exceções previstas pelos Tratados e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça como dos direitos fundamentais garantidos pela Carta (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis, C‑201/15, EU:C:2016:972, n.os 65, 102 e 103), entre os quais figura o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o desta última, cuja violação é alegada pela Comissão no caso vertente.

1) Quanto à existência de privação de propriedade na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta

67

Em conformidade com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte, e ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. Por outro lado, a utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral.

68

A este respeito, há que recordar, a título preliminar, que, como o Tribunal de Justiça já salientou, o artigo 17.o da Carta constitui uma norma jurídica que tem por objeto conferir direitos aos particulares (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2016, Ledra Advertising e o./Comissão e BCE, C‑8/15 P a C‑10/15 P, EU:C:2016:701, n.o 66).

69

No que se refere às condições materiais enunciadas no artigo 17.o, n.o 1, da Carta, decorre, em primeiro lugar, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a proteção conferida por esta disposição tem por objeto os direitos que têm um valor patrimonial do qual decorre, tendo em conta a ordem jurídica em causa, uma posição jurídica adquirida que permite o seu exercício autónomo pelo e a favor do seu titular (Acórdãos de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich, C‑283/11, EU:C:2013:28, n.o 34, e de 3 de setembro de 2015, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Comissão, C‑398/13 P, EU:C:2015:535, n.o 60).

70

Ora, contrariamente ao que a Hungria sustentou a este respeito na audiência, é manifesto que direitos de usufruto sobre um bem imóvel como os que estão em causa, na medida em que autorizam o seu titular a usar e a gozar desse bem, revestem um valor patrimonial e conferem a esse titular uma posição jurídica adquirida que permite o exercício autónomo desses direitos de uso e de gozo, mesmo que a transmissibilidade desses direitos esteja limitada ou excluída por força do direito nacional aplicável.

71

Com efeito, a aquisição, por via contratual, de tais direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas é, em princípio, acompanhada pelo pagamento de um preço. Estes direitos permitem aos seus titulares gozar desses terrenos, nomeadamente para fins económicos, ou, eventualmente, arrendá‑los a terceiros, e estão assim abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

72

Resulta, além disso, da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 1.o do Protocolo n.o 1 da CEDH, jurisprudência essa que se deve tomar em consideração por força do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, para efeitos da interpretação do seu artigo 17.o, como limiar de proteção mínima (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de março de 2017, Al Chodor, C‑528/15, EU:C:2017:213, n.o 37; de 13 de junho de 2017, Florescu e o., C‑258/14, EU:C:2017:448, n.o 49; e de 12 de fevereiro de 2019, TC, C‑492/18 PPU, EU:C:2019:108, n.o 57), que os direitos de uso ou de usufruto sobre um bem imobiliário devem ser considerados «bens» suscetíveis de beneficiar da proteção garantida pelo referido artigo 1.o (v., designadamente, TEDH, 12 de dezembro de 2002, Wittek c. Alemanha, CE:ECHR:2002:1212JUD003729097, §§ 43 a 46; TEDH, 16 de novembro de 2004, Bruncrona c. Finlândia, CE:ECHR:2004:1116JUD004167398, § 78; e TEDH, 9 de fevereiro de 2006, Athanasiou e o. c. Grécia, CE:ECHR:2006:0209JUD000253102, § 22).

73

Em segundo lugar, os direitos de usufruto que a regulamentação controvertida extinguiu devem, contrariamente ao que sustentou a Hungria, ser considerados «legalmente adquiridos», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

74

A este respeito, importa salientar, desde logo, que, como resulta dos n.os 8 e 9 do presente acórdão, as alterações legislativas introduzidas durante 1991 e 1994, para proibir a aquisição de terrenos agrícolas por pessoas singulares que não possuam a nacionalidade húngara e por pessoas coletivas, não diziam respeito à aquisição do direito de usufruto sobre tais terrenos. Com efeito, só a partir de 1 de janeiro de 2002 é que a Lei de 1994 relativa aos terrenos produtivos foi alterada para também afastar a possibilidade de contratualmente se constituir um direito de usufruto sobre terrenos agrícolas em benefício dessas pessoas singulares ou coletivas.

75

Assim, os direitos de usufruto abrangidos pela regulamentação controvertida foram constituídos sobre terrenos agrícolas numa época em que a constituição desses direitos não era proibida pela legislação nacional em vigor.

76

Em seguida, a Hungria não demonstrou que a regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios que invoca visava sujeitar as aquisições de direitos de usufruto por não residentes a uma autorização de câmbio sob pena de invalidade dessas aquisições, nem que os direitos de usufruto adquiridos pelos nacionais de outros Estados‑Membros e extintos pela regulamentação controvertida eram, por força do direito nacional aplicável, nulos ab initio por terem contornado as regras aplicáveis em matéria de aquisição da propriedade de terrenos agrícolas.

77

A este respeito, como salientou a Comissão e a Hungria admitiu na fase pré‑contenciosa do processo, não existe nenhuma decisão judicial que tenha declarado tal nulidade a propósito desses direitos de usufruto. Em contrapartida, a Comissão invocou no Tribunal de Justiça um Acórdão da Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) de 26 de janeiro de 2010, cujos fundamentos indicam claramente que a simples constituição de um direito de usufruto sobre um terreno agrícola não implica que as partes tenham pretendido contornar a regulamentação aplicável em matéria de venda de tais terrenos.

78

Por outro lado, embora, na verdade, pareça resultar do Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) que a regulamentação controvertida se destinava, pelo menos parcialmente, a eliminar os efeitos jurídicos de uma prática de aquisição de terrenos agrícolas em virtude da qual o direito de usufruto foi aplicado «de maneira disfuncional», tal constatação não se afigura equivalente a uma declaração de abuso por parte de todos os titulares de direitos de usufruto em causa, sublinhando o referido acórdão, de resto, que a regulamentação controvertida tinha posto termo aos direitos de usufruto em causa para o futuro, mas sem qualificar qualquer comportamento anterior de ilegal.

79

Por último, é pacífico que os direitos de usufruto adquiridos deste modo por não residentes foram objeto de inscrições sistemáticas nos registos prediais pelas autoridades húngaras competentes. Ora, como reconhecem as partes, tal inscrição requer que o ato em causa revista a forma de um ato público ou de um documento particular autenticado por um advogado, e tem como consequência, em conformidade com o artigo 5.o da Lei do registo predial, que o dado imobiliário em causa exista até prova em contrário. A Comissão sublinhou, além disso, sem impugnação da Hungria a esse respeito, que, por força do artigo 3.o dessa lei na versão em vigor até 15 de março de 2014, essa inscrição tinha caráter constitutivo.

80

Assim, é pacífico que, de um modo geral, os interessados puderam gozar desses direitos sem perturbações, agindo como usufrutuários, eventualmente desde há vários anos. No que respeita à segurança jurídica associada aos seus títulos, desde logo, foram apoiados pela sua inscrição nos registos prediais, em seguida, pela inexistência de ações das autoridades nacionais adotadas num prazo razoável para efeitos de obter a declaração da nulidade desses títulos e de cancelar a sua inscrição nesses registos e, por último, pela confirmação, por via legislativa, da existência dos referidos títulos, tendo, com efeito, a Lei n.o CCXIII, de 2012, adotada pouco mais de um ano antes da regulamentação controvertida, decretado a manutenção desses títulos até 1 de janeiro de 2033.

81

Em terceiro lugar, e como salientou o advogado‑geral nos n.os 136 e 157 das suas conclusões, os direitos de usufruto em causa constituem um desmembramento do direito de propriedade, na medida em que conferem aos seus titulares dois atributos essenciais deste último direito, a saber, o direito de se servir do bem em causa e o direito de receber os seus frutos. Ora, a regulamentação controvertida extingue ex lege todos os direitos de usufruto existentes e relativos aos terrenos em causa, com exceção dos que tenham sido constituídos entre familiares próximos da mesma família. Tal extinção priva assim, por definição, de maneira forçada, integral e definitiva, os interessados desses direitos de usufruto a favor dos proprietários de raiz dos referidos terrenos.

82

Daqui resulta que a regulamentação controvertida não contém restrições ao uso dos bens, mas sim uma privação de propriedade, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

83

A este respeito, não colhe a argumentação desenvolvida pela Hungria na audiência segundo a qual os titulares de direitos de usufruto que deles foram privados mantêm a possibilidade de continuar a gozar dos terrenos em causa mediante a celebração de um contrato de arrendamento com o proprietário. Com efeito, essa conclusão depende exclusivamente do consentimento do proprietário e não permite restituir ao antigo titular do direito de usufruto o direito real que tinha anteriormente e que é de natureza diferente do direito pessoal emergente de um contrato de arrendamento. Por outro lado, impõe‑lhe os inconvenientes que não teria sofrido caso tivesse conservado o seu título.

84

Além disso, ao dispor que «ninguém pode ser privado da sua propriedade», o artigo 17.o, n.o 1, segundo período, da Carta não visa apenas as privações de propriedade que têm por objeto transferi‑la para as autoridades públicas. Assim, contrariamente ao que também sustentou a Hungria a este respeito, a circunstância de os direitos de usufruto em causa não serem adquiridos pela autoridade pública, mas, pelo contrário, a sua extinção ter como consequência que se reconstitua a plena propriedade dos terrenos em causa em benefício dos proprietários, em nada afeta o facto de a extinção desses direitos ter como consequência que os seus antigos titulares deles sejam privados.

85

A este respeito, importa igualmente observar que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que se traduzia numa privação da propriedade, na aceção do artigo 1.o, primeiro parágrafo, segundo período, do Protocolo n.o 1 da CEDH, a cessão obrigatória, por força de uma legislação nacional, da propriedade sobre imóveis entre o seu proprietário e o titular de um direito de enfiteuse sobre esses mesmos bens (TEDH, 21 de fevereiro de 1986, James e o. c. Reino Unido, CE:ECHR:1986:0221JUD000879379, §§ 27, 30 e 38) ou ainda a transmissão obrigatória de uma propriedade agrícola de uma pessoa para outra para fins de racionalização da agricultura (TEDH, 21 de fevereiro de 1990, Håkansson e Sturesson c. Suécia, CE:ECHR:1990:0221JUD001185585, §§ 42 a 44).

86

Resulta das considerações expostas nos n.os 69 a 85 do presente acórdão que a extinção dos direitos de usufruto operada pela regulamentação controvertida constitui uma privação de propriedade, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

87

Embora esta disposição não proíba, de forma absoluta, privações de propriedade, prevê, contudo, que estas só podem ocorrer por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei, e mediante justa indemnização, em tempo útil, pela perda dessa propriedade.

88

No que se refere a essas exigências, importa ter igualmente em conta as precisões que figuram no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, disposição segundo a qual podem ser introduzidas restrições ao exercício dos direitos reconhecidos pela Carta desde que estas restrições estejam previstas na lei, respeitem o conteúdo essencial desses direitos e que, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.

89

Uma leitura conjugada dos artigos 17.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta leva a considerar, por um lado, que, quando uma razão de utilidade pública é invocada para justificar uma privação de propriedade, é à luz dessa razão e dos objetivos de interesse geral que esta representa que se deve assegurar a observância do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Por outro lado, tal leitura implica que, caso não exista uma razão de utilidade pública suscetível de justificar uma privação de propriedade, ou, admitindo que esteja demonstrada essa razão de utilidade pública, esta não cumpra os requisitos previstos no artigo 17.o, n.o 1, segundo período, da Carta, o direito de propriedade garantido por esta disposição é violado.

2) Quanto às justificações e às razões de utilidade pública

i) Quanto à justificação baseada em objetivos de interesse geral ligados à exploração dos terrenos agrícolas

90

Como resulta dos n.os 31 e 43 do presente acórdão, a Hungria sustenta que, admitindo que a regulamentação controvertida fosse julgada constitutiva de uma restrição à livre circulação de capitais, esta regulamentação, na medida em que sujeita qualquer manutenção de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas existentes à condição de o usufrutuário ter a qualidade de membro da família próxima do proprietário dos terrenos em causa, visa, simultaneamente, reservar a propriedade dos terrenos agrícolas às pessoas que as exploram e impedir a aquisição desses terrenos para fins puramente especulativos, permitir a sua exploração por novas empresas, facilitar a criação de explorações agrícolas de dimensão viável e competitivas e evitar a fragmentação dos terrenos agrícolas, bem como o êxodo rural e o despovoamento das zonas rurais.

91

A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça admitiu que certas regulamentações nacionais possam restringir a livre circulação de capitais em nome de objetivos como os de preservar a exploração direta dos terrenos agrícolas e tentar que as propriedades agrícolas sejam predominantemente habitadas e exploradas pelos seus proprietários, bem como manter uma população permanente no meio rural para efeitos de ordenamento do território e favorecer uma utilização racional dos terrenos disponíveis, lutando contra a pressão fundiária (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 82 e jurisprudência aí referida).

92

O mesmo se aplica no que se refere aos objetivos de conservar uma repartição da propriedade fundiária que permita o desenvolvimento de explorações viáveis e a manutenção harmoniosa do espaço e das paisagens (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 83 e jurisprudência aí referida).

93

No caso vertente, importa, todavia, verificar, conforme recordado no n.o 59 do presente acórdão, se a regulamentação controvertida prossegue efetivamente os objetivos legítimos de interesse geral assim alegados e se é adequada para garantir a realização desses objetivos e não ultrapassa o necessário para os alcançar.

94

Neste contexto, há também que recordar que as razões justificativas suscetíveis de ser invocadas por um Estado‑Membro devem ser acompanhadas das provas apropriadas ou de uma análise da adequação e da proporcionalidade da medida restritiva adotada por esse Estado, bem como dos elementos precisos que permitam sustentar a sua argumentação (Acórdão de 26 de maio de 2016, Comissão/Grécia, C‑244/15, EU:C:2016:359, n.o 42 e jurisprudência aí referida).

95

A este respeito, importa, em primeiro lugar, observar que a regulamentação controvertida, na medida em que extingue todos os direitos de usufruto existentes sobre os terrenos agrícolas com exceção dos direitos de usufruto dos quais seja titular um familiar próximo do proprietário dos terrenos, não é adequada para prosseguir os objetivos invocados pela Hungria e com os quais não apresenta nenhuma relação direta.

96

Com efeito, a Hungria não demonstrou por que razões o tipo de título detido por uma pessoa sobre um terreno agrícola permite determinar se o interessado explora ou não por si próprio esse terreno, se reside ou não nas suas imediações, se o adquiriu ou não para eventuais fins especulativos ou se é suscetível de contribuir para o desenvolvimento de uma agricultura viável e competitiva, nomeadamente evitando o fracionamento dos terrenos.

97

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já declarou no n.o 87 do Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), a existência da relação familiar entre o usufrutuário e o proprietário exigida no presente caso não é suscetível de garantir que o usufrutuário explore por si próprio o terreno em causa e que não tenha adquirido o direito de usufruto em causa para fins puramente especulativos. Da mesma maneira, nada permite considerar, a priori, que um terceiro relativamente à família do proprietário que adquiriu um direito de usufruto sobre esse terreno não esteja em condições de o explorar por si próprio e que a aquisição tenha necessariamente sido realizada com fins puramente especulativos, sem qualquer intenção de cultivar o referido terreno.

98

De resto, a Hungria também não demonstrou em que medida essa exigência relativa à relação familiar próxima poderia ser suscetível de contribuir para o apoio e para o desenvolvimento de uma agricultura viável e competitiva, nomeadamente evitando um fracionamento dos terrenos, ou de permitir evitar um êxodo rural e o despovoamento das zonas rurais.

99

Em segundo lugar, a regulamentação controvertida vai, em todo o caso, além do necessário para atingir os objetivos alegados pela Hungria.

100

Com efeito, verifica‑se que, para assegurar que a existência de um direito de usufruto sobre um terreno afetado à exploração agrícola não tenha como consequência a suspensão da sua exploração, poderiam ter sido adotadas outras medidas, menos lesivas para a liberdade de movimento de capitais do que as previstas pela referida regulamentação. A este respeito, teria sido possível, por exemplo, exigir ao usufrutuário que mantivesse a afetação agrícola, eventualmente, assegurando por si próprio a exploração do terreno em causa, em condições adequadas a garantir a viabilidade dessa exploração (v., neste sentido. Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 92 e 93).

101

Assim, a Hungria não demonstrou que a regulamentação controvertida prosseguia verdadeiramente os objetivos de interesse geral ligados à exploração dos terrenos agrícolas que alega nem, em qualquer caso, que essa regulamentação fosse adequada para garantir de forma coerente a realização desses objetivos e limitada às medidas necessárias para esse efeito.

ii) Quanto à justificação relativa à violação da regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios

102

O artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE enuncia que o disposto no artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública. Por força do artigo 65.o, n.o 3, TFUE, tais medidas ou procedimentos não devem, todavia, constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.o TFUE.

103

A este respeito, há que recordar que, enquanto derrogação do princípio fundamental da livre circulação de capitais, o artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 96 e jurisprudência aí referida).

104

No caso, a Hungria sustenta que, uma vez que aquisições de direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas ocorreram antes de 1 de janeiro de 2002 e foram realizadas por não residentes, na aceção da regulamentação nacional então aplicável em matéria de controlo de câmbios, estavam sujeitas, por força dessa regulamentação, a uma autorização emitida pelo Banco Nacional da Hungria. Ora, tais autorizações de câmbio nunca teriam sido pedidas para tais aquisições, pelo que estas seriam inválidas.

105

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que, como resulta do n.o 76 do presente acórdão, a Hungria não demonstrou que a regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios a que se refere visasse sujeitar as aquisições de direitos de usufruto por não residentes a uma autorização de câmbio, sob pena de invalidade dessas aquisições. Tão‑pouco demonstrou que a adoção da regulamentação controvertida tivesse sido orientada pela vontade de solucionar as violações a essa regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios.

106

No que se refere ao primeiro destes dois aspetos, há que salientar ainda que, mesmo admitindo que a validade ab initio de certos direitos de usufruto extintos pela regulamentação controvertida tivesse estado sujeita à condição de possuir uma autorização de câmbio, a Comissão apresentou ao Tribunal de Justiça excertos do Parecer n.o 1/2010, de 28 de junho de 2010, e de um acórdão (processo BH2000.556) proferidos pela Kúria (Supremo Tribunal), cuja análise literal indica que, nos termos do artigo 237.o, n.o 2, da Lei n.o IV, de 1959, que aprova o Código Civil, disposição em vigor à época em que foi revogada a regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios invocada, a partir da data em que uma autorização deixa de ser necessária para a formação de um contrato, um contrato celebrado sem que esta tenha sido obtida deve considerar‑se definitiva e validamente formado.

107

No que se refere ao segundo aspeto, há que recordar que a regulamentação controvertida prevê a extinção sistemática dos direitos de usufruto detidos sobre terrenos agrícolas por pessoas que não possam demonstrar uma relação familiar próxima com o proprietário do terreno em causa. Ora, este critério de parentesco não tem qualquer ligação com a regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios. Por outro lado, é pacífico, como resulta, nomeadamente, do n.o 42 do presente acórdão, que a extinção de direitos de usufruto determinada pela regulamentação controvertida se aplica não apenas em relação a não residentes, mas também em relação a pessoas que residem na Hungria e a pessoas coletivas estabelecidas nesse Estado‑Membro que não estão, como tal, sujeitas à regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios invocada.

108

Em segundo lugar, e em todo o caso, a extinção ex lege de direitos de usufruto, desde há muito inscritos nos registos prediais, que ocorreu mais de dez anos depois de a referida regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios ter sido revogada, não constitui uma medida proporcionada. Com efeito, podiam ter sido adotadas outras medidas, menos amplas nos seus efeitos, para sancionar ab initio eventuais infrações à regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios, como por exemplo coimas (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 106 e jurisprudência aí referida).

109

Em face do exposto, a Hungria não demonstrou que a regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios que invoca é suscetível de ter afetado a validade dos direitos de usufruto abrangidos pela regulamentação controvertida, nem que esta foi adotada para solucionar essas eventuais infrações a essa regulamentação em matéria de controlo de câmbios, nem, em todo o caso, e admitindo que tal finalidade tenha efetivamente sido prosseguida pela regulamentação controvertida, que a extinção de direitos de usufruto por esta operada seja proporcionada para esse efeito e admissível nos termos do artigo 65.o TFUE.

iii) Quanto à justificação baseada na luta, levada a cabo a título da proteção da ordem pública, contra as práticas destinadas a contornar a lei nacional

110

Conforme foi recordado no n.o 102 do presente acórdão, o artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE dispõe, designadamente, que o artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

111

No caso vertente, a Hungria sustenta que os direitos de usufruto extintos pela regulamentação controvertida foram adquiridos contornando a proibição legal de as pessoas singulares nacionais de outros Estados‑Membros e de as pessoas coletivas adquirirem a propriedade de terrenos agrícolas e que, por conseguinte, eram nulos ab initio, razão pela qual o legislador húngaro decidiu sanar ex lege esses abusos.

112

A este respeito, há que recordar, no que se refere à luta contra práticas que têm por objeto contornar a lei nacional, que o Tribunal de Justiça já admitiu que uma medida nacional que restrinja uma liberdade fundamental pode, sendo caso disso, ser justificada quando vise lutar contra os expedientes puramente artificiais cuja finalidade seja fugir à alçada da legislação nacional em causa (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 114 e jurisprudência aí referida).

113

Contudo, em primeiro lugar, e como já foi observado nos n.os 76 a 80 do presente acórdão, a Hungria não demonstrou que os direitos de usufruto afetados pela regulamentação controvertida, a saber, os que foram constituídos, antes de 2002, sobre terrenos agrícolas por pessoas coletivas e por nacionais de outros Estados‑Membros, fossem inválidos, por força do direito nacional aplicável, pelo facto de contornarem certas regras desse direito.

114

Em segundo lugar, uma justificação como a referida no n.o 112 do presente acórdão, segundo a jurisprudência, só é admissível na medida em que vise especificamente os expedientes artificiais cuja finalidade é fugir à alçada da legislação nacional em causa. Isto exclui, designadamente, qualquer estabelecimento de uma presunção geral de práticas abusivas que baste para justificar uma restrição à livre circulação de capitais (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.os 115, 116 e jurisprudência aí referida).

115

Para respeitar o princípio da proporcionalidade, uma medida que prossegue esse objetivo específico de luta contra os expedientes puramente artificiais deve, pelo contrário, permitir aos órgãos jurisdicionais nacionais proceder a um exame casuístico, tomando em consideração as particularidades de cada situação concreta e baseando‑se em elementos objetivos, para ter em conta o comportamento abusivo ou fraudulento das pessoas em causa (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 117 e jurisprudência aí referida).

116

Ora, não se pode deixar de observar que a regulamentação controvertida não cumpre nenhuma das exigências recordadas nos n.os 114 e 115 do presente acórdão.

117

Em primeiro lugar, o Acórdão n.o 25, de 21 de julho de 2015, do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional), evocado no n.o 78 do presente acórdão, não contém nenhuma declaração de abuso por parte dos titulares de direitos de usufruto em causa e sublinha que a extinção desses direitos de usufruto pela regulamentação controvertida foi sobretudo considerada necessária para realizar plenamente o objetivo estratégico nacional pretendido pelo novo dispositivo jurídico instituído, a saber, que os terrenos produtivos fossem unicamente propriedade das pessoas singulares que os trabalham.

118

Nestas condições, não foi demonstrado que a regulamentação controvertida prossegue o objetivo específico de lutar contra comportamentos que tenham consistido em criar expedientes artificiais cuja finalidade fosse fugir à alçada da legislação nacional relativa às aquisições de terrenos agrícolas.

119

Em segundo lugar, e em qualquer caso, não se pode razoavelmente inferir da simples circunstância de o titular de um direito de usufruto sobre um terreno agrícola ser uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular que não tem a qualidade de familiar próximo do proprietário desse terreno que essa pessoa tenha agido abusivamente no momento em que adquiriu esse direito de usufruto. Conforme recordado no n.o 114 do presente acórdão, não se pode admitir a criação de uma presunção geral de práticas abusivas (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 121).

120

Assim, poderiam ter sido previstas outras medidas, menos lesivas para a livre circulação de capitais, como sanções ou ações específicas de declaração da nulidade perante o juiz nacional para lutar contra eventuais situações em que se verifique o contorno da legislação nacional aplicável, desde que respeitassem as outras exigências decorrentes do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 122).

121

A este respeito, a argumentação da Hungria relativa a considerações de ordem orçamental e de economia processual não pode ser admitida. Com efeito, é jurisprudência constante que os motivos de natureza meramente económica não podem constituir razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar uma restrição a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado. O mesmo se aplica às considerações de ordem meramente administrativa (Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth, C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 123 e jurisprudência aí referida).

122

Daqui decorre que a restrição à livre circulação de capitais instituída pela regulamentação controvertida não pode ser justificada pela vontade de lutar contra expedientes puramente artificiais cuja finalidade fosse fugir à alçada da legislação nacional aplicável em matéria de aquisição de propriedades agrícolas.

iv) Quanto à inexistência de razões de utilidade pública e de regime de indemnização na aceção do artigo 17.o da Carta

123

No que respeita à privação de propriedade, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Carta, gerada pela extinção dos direitos de usufruto em causa, há que acrescentar, atendendo às exigências recordadas nos n.os 87 a 89 do presente acórdão, a cuja observância está subordinada a admissibilidade de tal privação, que essa extinção está prevista por lei.

124

Além disso, embora objetivos de interesse geral relativos à exploração de terrenos agrícolas, como os referidos nos n.os 91 e 92 do presente acórdão, ou objetivos como os destinados a solucionar violações de uma regulamentação nacional em matéria de controlo de câmbios ou a lutar contra práticas abusivas que tenham tido por objeto contornar uma legislação nacional aplicável, possam, certamente, estar abrangidos por uma ou várias razões de utilidade pública, na aceção da referida disposição, resulta, todavia, do n.o 101 do presente acórdão que, no caso vertente, a Hungria não demonstrou de modo algum que a extinção ex lege dos direitos de usufruto operada pela regulamentação controvertida prossegue verdadeiramente os referidos objetivos relativos à exploração dos terrenos agrícolas, nem, em qualquer caso, que seja adequada a atingir estes objetivos ou, ainda, necessária nessa perspetiva. Por outro lado, atendendo às observações efetuadas, respetivamente, nos n.os 109 e 122 do presente acórdão, também não se pode considerar que uma extinção de direitos de usufruto como a operada ex lege pela regulamentação controvertida tenha ocorrido para solucionar violações do direito nacional em matéria de controlo de câmbios ou para lutar contra tais práticas abusivas, visto essas violações e práticas não terem sido demonstradas, nem, em qualquer caso, que respeitam a exigência de proporcionalidade recordada no n.o 89 do presente acórdão.

125

Em qualquer caso, a regulamentação controvertida não cumpre a exigência estabelecida no artigo 17.o, n.o 1, segundo período, da Carta, segundo a qual deve ser paga em tempo útil uma justa indemnização por uma privação da propriedade como a perda dos direitos de usufruto em causa.

126

Segundo os próprios termos da referida disposição, a privação da propriedade só pode ocorrer «nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil», de forma que essa indemnização, que constitui assim uma das condições a que a Carta sujeita essa privação, deve ser prevista por lei. Daqui resulta que uma legislação nacional que opera uma privação de propriedade deve prever, de forma clara e precisa, que essa privação dá direito a uma indemnização, bem como as respetivas condições. Ora, não se pode deixar de observar que a regulamentação controvertida não contém nenhuma disposição que preveja a indemnização dos titulares de direitos de usufruto que foram privados desses direitos e que regule as suas modalidades.

127

A este respeito, a remissão para as regras gerais de direito civil apresentada pela Hungria na sua contestação não satisfaz as exigências que decorrem do artigo 17.o, n.o 1, da Carta. De resto, e mesmo admitindo que fosse legalmente possível a um Estado‑Membro, à luz dessa disposição, exonerar‑se face aos particulares da indemnização pela privação de propriedades na origem da qual está exclusivamente esse Estado‑Membro, não se pode deixar de observar que, no caso vertente, essa remissão coloca nos titulares de direitos de usufruto o ónus de ter de proceder à cobrança, mediante processos que se podem revelar longos e dispendiosos, de eventuais indemnizações que lhes possam ser devidas pelo proprietário do terreno. Tais regras de direito civil não permitem determinar de forma simples e suficientemente precisa ou previsível se podem efetivamente ser obtidas indemnizações no termo de tais processos, nem saber, sendo caso disso, quais serão a sua natureza e montante.

128

A este nível, importa igualmente salientar que, no que respeita ao artigo 1.o do Protocolo n.o 1 da CEDH, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que este considera que, quando os bens de um indivíduo são objeto de expropriação, deve existir um procedimento que assegure uma apreciação global das consequências desta, a saber, a concessão de uma indemnização relacionada com o valor do bem expropriado, a determinação dos titulares da indemnização e qualquer outra questão relativa à expropriação (TEDH, 9 de outubro de 2003, Biozokat A. E. c. Grécia, CE:ECHR:2003:1009JUD006158200, § 29).

129

Atendendo às considerações enunciadas nos n.os 123 a 128 do presente acórdão, há que declarar que a privação da propriedade operada pela regulamentação controvertida não é justificada por uma razão de utilidade pública nem, de resto, acompanhada por um regime de pagamento de uma justa indemnização em tempo útil. Por conseguinte, a referida regulamentação viola o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

c)   Conclusão

130

Em face do exposto, há que concluir, por um lado, que a Hungria não demonstrou que a extinção de direitos de usufruto detidos, direta ou indiretamente, por nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria operada pela regulamentação controvertida visava garantir a realização de objetivos de interesse geral admitidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça ou previstos no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE, nem que essa extinção é apropriada e coerente, ou ainda limitada às medidas necessárias, para prosseguir esses objetivos. Por outro lado, a referida extinção não respeita o artigo 17.o, n.o 1, da Carta. Consequentemente, os entraves à livre circulação de capitais assim gerados pela privação de bens adquiridos através de capitais que beneficiam da proteção instituída pelo artigo 63.o TFUE não podem ser justificados.

131

Nestas condições, há que declarar que, ao adotar a regulamentação controvertida e ao extinguir, desse modo, ex lege, os direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas sitos na Hungria detidos, direta ou indiretamente, por nacionais de outros Estados‑Membros, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 63.o TFUE e do artigo 17.o da Carta.

Quanto às despesas

132

Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da Hungria e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

 

1)

Ao adotar o artigo 108.o, n.o 1, da mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei n.o CCXII, de 2013, que adota diversas disposições e medidas transitórias no que respeita à Lei n.o CXXII, de 2013, relativa à venda de terrenos agrícolas e silvícolas), e ao extinguir, desse modo, ex lege, os direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas e silvícolas sitos na Hungria detidos, direta ou indiretamente, por nacionais de outros Estados‑Membros, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 63.o TFUE e do artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

2)

A Hungria é condenada nas despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.