ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

25 de julho de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2002/47/CE — Execução de acordos de garantia financeira — Abertura de um processo de insolvência contra o beneficiário da garantia financeira — Ocorrência do facto que desencadeia a execução da garantia — Inclusão da garantia financeira na massa insolvente — Obrigação de os créditos serem satisfeitos, em primeiro lugar, através da garantia financeira»

No processo C‑107/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), por decisão de 24 de fevereiro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de março de 2017, no processo

«Aviabaltika» UAB

contra

«Ūkio bankas» AB, em liquidação,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: T. von Danwitz (relator), presidente de secção, C. Vajda, E. Juhász, K. Jürimäe e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 18 de janeiro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

em representação da «Aviabaltika» UAB, por E. Baranauskas, advokatas,

em representação da «Ūkio bankas» AB, por T. Bairašauskas e D. Ušinskaitė‑Filonovienė, advokatai,

em representação do Governo lituano, por K. Dieninis, D. Kriaučiūnas L. Bendoraitytė e R. Butvydytė, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. Rius, A. Nijenhuis e A. Steiblytė, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de abril de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.os 1 e 5, e do artigo 8.o da Diretiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho de 2002, relativa aos acordos de garantia financeira (JO 2002, L 168, p. 43), conforme alterada pela Diretiva 2009/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009 (JO 2009, L 146, p. 37) (a seguir «Diretiva 2002/47»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a «Aviabaltika» UAB ao «Ūkio bankas» AB, a respeito de um pedido de pagamento apresentado pela instituição bancária Ūkio bankas contra a Aviabaltika em execução dos acordos de constituição de garantia entre estes celebrados.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O considerando 3 da Diretiva 2002/47 enuncia:

«Deve ser instituído um regime comunitário aplicável aos valores mobiliários e aos montantes pecuniários nas aquisições com cauções de títulos e nas transferências de titularidade, incluindo os acordos de recompra (reporte). Este regime contribuirá para a integração e o funcionamento ao menor custo do mercado financeiro, bem como para a estabilidade do sistema financeiro da Comunidade, o que promoverá a livre prestação de serviços e a livre circulação de capitais no mercado único dos serviços financeiros. A presente diretiva concentra‑se nos acordos bilaterais de garantia financeira.»

4

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», dispõe, no seu n.o 1:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

c)

“Acordo de garantia financeira com constituição de penhor”, um acordo ao abrigo do qual o prestador da garantia constitui a favor do beneficiário da garantia ou presta a este uma garantia financeira a título de penhor, conservando o prestador da garantia a plena propriedade ou a propriedade restrita da garantia, ou o pleno direito à mesma, quando é estabelecido o direito de penhor;

[…]

f)

“Obrigações financeiras cobertas”, as obrigações que são garantidas por um acordo de garantia financeira e que dão direito a uma liquidação em numerário e/ou à entrega de instrumentos financeiros.

[…]

j)

“Processo de liquidação”, um processo coletivo que inclui a realização de ativos e a repartição do produto dessa realização entre os credores, os acionistas ou os membros, consoante o caso, e que implica a intervenção de uma autoridade administrativa ou judicial, incluindo os casos em que este processo é encerrado mediante uma concordata ou qualquer outra medida análoga, independentemente de se basear ou não numa falência e de ter caráter voluntário ou obrigatório;

[…]

l)

“Facto que desencadeia a execução”, um caso de incumprimento ou qualquer acontecimento análogo acordado entre as partes cuja ocorrência determine, nas condições previstas num acordo de garantia financeira ou em aplicação da lei, que o beneficiário da garantia tem o direito de realizar ou de se apropriar da garantia financeira, ou desencadeie uma compensação com vencimento antecipado (close‑out netting);

[…]»

5

Nos termos do artigo 4.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Execução de acordos de garantia financeira»:

«1.   Os Estados‑Membros assegurarão que sempre que ocorra um facto que desencadeie a execução, o beneficiário da garantia tenha a possibilidade de realizar de uma das seguintes formas qualquer garantia financeira fornecida ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor e segundo as disposições nele previstas:

[…]

b)

Numerário, quer compensando o seu montante com as obrigações financeiras cobertas, quer aplicando‑o para a sua liquidação;

[…]

4.   As formas de realizar a garantia financeira referidas no n.o 1 não estão, sob reserva das condições decididas no acordo de garantia financeira com constituição de penhor, sujeitas à obrigação de:

a)

Notificação prévia da intenção de proceder à realização;

[…]

5.   Os Estados‑Membros asseguram que um acordo de garantia financeira produza efeitos, nas condições nele previstas, não obstante a abertura ou prossecução de um processo de liquidação ou de medidas de saneamento relativamente ao prestador ou ao beneficiário da garantia.

[…]»

6

O artigo 8.o desta mesma diretiva, sob a epígrafe «Inaplicabilidade de certas disposições em matéria de falência», prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que um acordo de garantia financeira bem como a prestação de uma garantia financeira ao abrigo desse acordo não possam ser declarados inválidos ou nulos ou ser anulados pelo simples facto de ter entrado em vigor o acordo de garantia financeira ou ter sido prestada a garantia financeira:

a)

No dia de abertura de um processo de liquidação ou da tomada de medidas de saneamento, mas antes de proferidos o despacho ou a sentença respetivos; ou

b)

Num determinado período anterior, definido por referência à abertura de um processo de liquidação ou a medidas de saneamento ou por referência à emissão de qualquer despacho ou sentença, ou à tomada de qualquer outra medida ou à ocorrência de qualquer outro facto no decurso desse processo ou dessas medidas.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que, quando um acordo de garantia financeira ou uma obrigação financeira coberta tiver entrado em vigor, ou a garantia financeira tiver sido prestada na data de um processo de liquidação ou de medidas de saneamento, mas após a abertura do mesmo processo ou da tomada das referidas medidas, o acordo produza efeitos jurídicos e seja oponível a terceiros no caso de o beneficiário da garantia poder provar que não tinha conhecimento, nem deveria ter tido conhecimento, da abertura desse processo ou da tomada dessas medidas.

[…]»

Direito lituano

7

A Lietuvos Respublikos finansinio užtikrinimo susitarimų įstatymas (Lei da República da Lituânia relativa aos acordos de garantia financeira, a seguir «Lei lituana relativa aos acordos de garantia financeira»), que transpõe a Diretiva 2002/47, dispõe, no seu artigo 2.o, n.os 8 e 32:

«8.   Entende‑se por “acordo de garantia financeira sem transferência de propriedade” o acordo ao abrigo do qual o prestador da garantia constitui a favor do beneficiário da garantia, ou presta a este, uma garantia que garanta a execução das obrigações financeiras cobertas, mas conserva a propriedade plena ou a propriedade restrita da garantia financeira.

[…]

32.   Entende‑se por “obrigação financeira coberta” a obrigação garantida por um acordo de garantia financeira e que dá direito a uma liquidação em numerário e/ou à entrega de instrumentos financeiros e/ou dos ativos cobertos por esses instrumentos financeiros. […]»

8

Nos termos do artigo 9.o, n.os 3 e 8, da Lei lituana relativa aos acordos de garantia financeira:

«3.   Se ocorrer um facto que desencadeie a execução da garantia financeira, o beneficiário da garantia terá o direito de executar unilateralmente, de uma das seguintes formas, a garantia financeira prestada ao abrigo do acordo de garantia financeira sem transferência de propriedade, segundo as disposições nele previstas:

[…]

2)

Em caso de numerário, quer compensando o seu montante com as obrigações financeiras cobertas, quer aplicando‑o para a sua liquidação;

[…]

8.   O acordo de garantia financeira produzirá efeitos nos prazos nele previstos, não obstante a abertura de um processo de insolvência ou da aplicação de medidas de saneamento relativamente ao prestador ou ao beneficiário da garantia.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9

Em 10 de outubro de 2011 e 16 de agosto de 2012, a Aviabaltika e a instituição bancária Ūkio bankas celebraram dois acordos de constituição de garantia (a seguir «acordos de 2011 e de 2012»), com base nos quais foram prestadas garantias a cocontratantes da Aviabaltika. A própria Aviabaltika deu, como garantia das suas obrigações, fundos existentes na conta aberta em seu nome junto do Ūkio bankas.

10

Os acordos de 2011 e 2012 estipulavam que os fundos existentes nessa conta, bem como o crédito de restituição desses fundos, tinham sido entregues ao banco a título de garantias que asseguravam a boa execução das obrigações decorrentes desses acordos e deviam ser qualificadas de garantia financeira na aceção da Lei lituana relativa aos acordos de garantia financeira.

11

Em seguida, o Ūkio bankas celebrou acordos de contragarantia com o Commerzbank AG, nos termos dos quais o Commerzbank prestou garantias ao State Bank of India e este último, por sua vez, prestou‑as aos beneficiários dessas garantias, ou seja, os cocontratantes da Aviabaltika. A título de garantia, o Ūkio bankas depositou fundos no montante das garantias apresentadas pelo Commerzbank.

12

Em 2 de maio de 2013, foi iniciado um processo de insolvência contra o Ūkio bankas pelo Kaunas apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas, Lituânia).

13

Não tendo a Aviabaltika cumprido as suas obrigações para com os seus cocontratantes, que eram beneficiários das garantias prestadas ao abrigo dos acordos de 2011 e 2012, o Commerzbank teve de executar, em 12 de março de 2014, as suas obrigações decorrentes dos acordos de contragarantia e debitou uma parte dos fundos que o Ūkio bankas tinha depositado a título de garantia.

14

Em 28 de outubro de 2014, o Kaunas apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas) admitiu no passivo do Ūkio bankas o crédito da Aviabaltika, constituído nomeadamente pelos fundos entregues a este banco a título de garantia financeira ao abrigo dos acordos de 2011 e 2012.

15

O Ūkio bankas compensou uma parte dos débitos efetuados pelo Commerzbank não com os fundos que haviam sido depositados a título dessa garantia constituída pela Aviabaltika mas com a indemnização recebida ao abrigo das disposições lituanas sobre a garantia dos depósitos, que se encontrava noutra conta de que a Aviabaltika era titular. Em seguida, o Ūkio bankas pediu que a Aviabaltika fosse condenada a reembolsar‑lhe a parte restante do montante devido ao abrigo dos acordos de 2011 e 2012, após essa compensação, acrescido de juros.

16

Por Decisão de 14 de dezembro de 2015, o Kaunas apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas) deferiu aqueles pedidos. Por Decisão de 31 de maio de 2016, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) confirmou essa decisão. Estes órgãos jurisdicionais declararam que os acordos de 2011 e 2012 incluíam um acordo de garantia financeira que tinha por objeto os fundos creditados na conta aberta em nome da Aviabaltika junto desse banco. Consideraram que, na sequência da abertura do processo de insolvência contra o Ūkio bankas, esses fundos passaram a integrar a massa insolvente e que o direito deste banco de deles dispor era limitado pela proibição de cumprir qualquer obrigação que não tivesse sido cumprida à data de abertura deste processo, nos termos do direito nacional na matéria. A Aviabaltika interpôs recurso de cassação no Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal, Lituânia).

17

O órgão jurisdicional de reenvio expõe que a Aviabaltika e o Ūkio bankas celebraram um acordo de garantia financeira com constituição de penhor, na aceção do artigo 2.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva 2002/47, e que o facto que desencadeia a execução da garantia ocorreu depois da abertura do processo de insolvência contra o beneficiário da garantia, ou seja, neste caso, o Ūkio bankas. Assim, coloca‑se ao órgão jurisdicional de reenvio, em especial, a questão de saber se esta garantia pode ser executada pelo beneficiário, a fim de lhe permitir cobrar o seu crédito sobre o prestador da garantia, ou seja, a Aviabaltika, decorrente de um incumprimento por esta última das obrigações financeiras cobertas por aquele acordo.

18

A Aviabaltika alega que, para cobrar o seu crédito, nos termos da Diretiva 2002/47, nomeadamente do seu artigo 4.o, o Ūkio bankas deve utilizar os fundos que foram depositados a título da referida garantia e não outros ativos que lhe pertençam. Além disso, a Aviabaltika considera que, caso os pedidos do Ūkio bankas sejam julgados procedentes, não poderá recuperar esses fundos no âmbito do processo de insolvência e deverá, na prática, pagar uma segunda vez o montante da garantia financeira a este banco. Em contrapartida, o Ūkio bankas considera que, ao abrigo das disposições nacionais em matéria bancária e em matéria de insolvência, os referidos fundos passaram a integrar a massa insolvente e não podem ser utilizados para satisfazer os seus próprios créditos. Acrescenta que, em conformidade com esta diretiva, enquanto beneficiário da garantia financeira, tem o direito e não a obrigação de utilizar os fundos depositados a este título e pode optar por satisfazer o seu crédito através de outros ativos da Aviabaltika.

19

De acordo com as indicações apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o depósito a título de garantia financeira de fundos existentes numa conta bancária teve por efeito dar como garantia o crédito de restituição desses fundos, sendo a propriedade dos referidos fundos transferida para o banco. Além disso, as disposições nacionais em matéria bancária e em matéria de insolvência, nas quais os órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso se baseavam, são aplicáveis à situação em causa no processo principal, nomeadamente a proibição de cumprir qualquer obrigação ainda não cumprida no momento da abertura do processo de insolvência, que impeça a realização dessa garantia e a sua utilização efetiva pelo beneficiário. Este órgão jurisdicional sublinha que, no caso de o prestador ser obrigado a liquidar as obrigações financeiras cobertas através dos seus outros ativos em razão desse incumprimento, este será, na prática, confrontado com as regras em matéria de insolvência para recuperar a referida garantia.

20

Nestas circunstâncias, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/47 ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros a obrigação de adotar normas jurídicas que excluam a garantia financeira dos ativos remanescentes em caso de insolvência do beneficiário da garantia (um banco em processo de insolvência)? Por outras palavras, estão os Estados‑Membros obrigados a adotar normas jurídicas que possibilitem ao beneficiário de uma garantia financeira (um banco) obter, de facto, a satisfação do seu crédito, coberto por uma garantia financeira (numerário existente numa conta bancária e direito à sua restituição), não obstante o facto que desencadeou a execução da garantia ter ocorrido após a abertura do processo de insolvência do beneficiário da garantia (o banco)?

2)

Deve o artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47 ser sistematicamente interpretado no sentido de que confere ao prestador da garantia o direito a exigir que o beneficiário da garantia (o banco) obtenha, em primeiro lugar, a satisfação do seu crédito, coberto por uma garantia financeira (numerário depositado numa conta bancária e direito à sua restituição), mediante a utilização da garantia financeira, e, por conseguinte, no sentido de que impõe ao beneficiário da garantia financeira a obrigação de dar cumprimento a tal exigência mesmo após a abertura do seu processo de insolvência?

3)

Se a resposta à segunda questão for negativa e o prestador da garantia satisfizer o crédito coberto pela garantia financeira mediante a utilização de outros ativos próprios, devem as disposições da Diretiva 2002/47, nomeadamente os seus artigos 4.o e 8.o, ser interpretadas no sentido de que deve aplicar‑se ao prestador da garantia a exceção ao princípio da igualdade de tratamento dos credores do beneficiário da garantia (o banco) no processo de insolvência, e de que deve ser concedida prioridade ao prestador da garantia sobre outros credores no processo de insolvência, com vista à recuperação da garantia financeira?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

21

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/57 deve ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que adotem uma regulamentação que permita ao beneficiário de uma garantia prestada ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor obter, através dessa garantia, a satisfação do seu crédito decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas, quando o facto que desencadeia a execução da garantia ocorre depois de ser iniciado um processo de insolvência contra esse beneficiário.

22

Conforme resulta do pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a garantia financeira em causa no processo principal passou a integrar a massa insolvente do Ūkio bankas, beneficiário, e não pode, devido a uma proibição de execução aplicável no direito interno, ser executada para assegurar efetivamente a cobrança do seu crédito. Assim, verifica‑se que tal situação iria obrigar, na prática, o prestador a pagar uma segunda vez o montante dessa garantia ao beneficiário, a qual está abrangida pelo processo de insolvência.

23

Em primeiro lugar, resulta inequivocamente dos termos do artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/47 que os Estados‑Membros são obrigados a prever um quadro jurídico nos termos do qual um acordo de garantia financeira pode produzir efeitos nas condições nele previstas, não obstante a abertura ou prossecução de um processo de insolvência relativamente ao prestador ou ao beneficiário da garantia. Esta disposição visa expressamente as duas partes no acordo, sem proceder a uma distinção no que diz respeito à execução deste, consoante a abertura desse processo ocorra em relação a uma ou outra parte.

24

Em seguida, no que se refere à economia geral e às finalidades da Diretiva 2002/47, importa recordar que, de acordo com o seu considerando 3, esta visa contribuir para a integração e o funcionamento ao menor custo do mercado financeiro, bem como para a estabilidade do sistema financeiro da União Europeia. Para este efeito, esta diretiva instituiu um regime que tem por objetivo limitar as formalidades administrativas a cumprir pelas partes que utilizam as garantias financeiras previstas pela mesma, aumentar a segurança jurídica destas garantias não lhes aplicando certas disposições legislativas nacionais em matéria de insolvência que permitam salvaguardar a estabilidade financeira e limitar efeitos de contágio em caso de incumprimento de uma das partes num acordo de garantia financeira (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Private Equity Insurance Group, C‑156/15, EU:C:2016:851, n.o 23).

25

Neste contexto, à luz do artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva, que dispõe que o beneficiário de uma garantia financeira com constituição de penhor deve ter a possibilidade de a realizar numa das formas descritas no referido artigo, o Tribunal de Justiça declarou que este regime concede, portanto, uma vantagem às garantias financeiras relativamente a outros tipos de garantia não abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Private Equity Insurance Group, C‑156/15, EU:C:2016:851, n.os 25 e 50).

26

No processo que deu origem a este último acórdão, há que especificar que o Tribunal de Justiça só foi questionado sobre a questão de saber se a Diretiva 2002/47 devia ser interpretada no sentido de que conferia aos beneficiários das referidas garantias o direito de as executar independentemente da abertura de um processo de insolvência contra o prestador. Contudo, uma vez que, como resulta do n.o 23 do presente acórdão, o artigo 4.o, n.o 5, desta diretiva não procede a uma distinção consoante o processo de insolvência seja aberto contra o prestador ou o beneficiário, a referida diretiva deve ser interpretada no sentido de que o regime que institui também confere aos prestadores de garantias financeiras o direito de executar essas garantias independentemente de contra ele ser aberto um processo de insolvência.

27

Por conseguinte, como o advogado‑geral salientou no n.o 85 das suas conclusões, a Diretiva 2002/47 visa instaurar um regime jurídico especial para o acordo de garantia financeira, a fim de contribuir para a estabilidade do sistema financeiro da União.

28

Ora, uma interpretação do artigo 4.o, n.o 5, desta diretiva nos termos da qual a garantia financeira com constituição de penhor se torna inoperante devido à abertura de um processo de insolvência contra o beneficiário, impedindo este último de cobrar efetivamente o seu crédito sobre essa garantia e obrigando o prestador, na prática, a pagar‑lhe uma segunda vez o montante da referida garantia, contrariaria tanto a redação deste artigo como os objetivos da Diretiva 2002/47. Com efeito, tal interpretação iria privar em grande medida esse contrato do seu efeito e poderia, se fosse caso disso, causar dificuldades financeiras a este prestador, contrariando o objetivo que consiste em limitar os efeitos de contágio em caso de incumprimento de uma das partes.

29

Há que acrescentar que, como o advogado‑geral salientou nos n.os 59 e 60 da suas conclusões, uma vez que o artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/47 não especifica a forma através da qual deve ser assegurado o efeito útil de uma garantia financeira independentemente da abertura de um processo de insolvência, cabe aos Estados‑Membros prever os meios adequados que permitam assegurar esse efeito útil, entre os quais pode constar um meio segundo o qual a garantia financeira não integra a massa insolvente do beneficiário da garantia.

30

Atendendo a todas estas considerações expostas, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/47 deve ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que adotem uma regulamentação que permita ao beneficiário de uma garantia prestada ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor obter, através dessa garantia, a satisfação do seu crédito decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas, quando o facto que desencadeia a execução da garantia ocorre depois de ser iniciado um processo de insolvência contra esse beneficiário.

Quanto à segunda questão

31

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47 deve ser interpretado no sentido de que impõe ao beneficiário de uma garantia constituída ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor uma obrigação de obter, em primeiro lugar, através dessa garantia, a satisfação do seu crédito decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas por esse acordo.

32

Em primeiro lugar, no que diz respeito à redação deste artigo 4.o, importa salientar que a expressão «o beneficiário da garantia tenha a possibilidade de realizar», utilizada no seu n.o 1, indica que, nos casos em que a garantia financeira deva ser executada, o beneficiário dispõe mais de uma faculdade de realizar esta garantia do que de uma obrigação. Além disso, as expressões «segundo as disposições nele previstas» e «nas condições nele previstas», utilizadas nos n.os 1 e 5 do referido artigo, revelam a prioridade concedida pela Diretiva 2002/47 às cláusulas contratuais.

33

Como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 74 das suas conclusões, afigura‑se, assim, que a referida disposição visa que o acordo de garantia financeira seja executado prioritariamente nos termos das estipulações contratuais acordadas entre as partes.

34

Em segundo lugar, no que diz respeito ao contexto em que se inscreve o artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47, há que constatar que a redação do artigo 2.o, n.o 1, alínea l), desta diretiva, que define o «facto que desencadeia a execução» como «um caso de incumprimento ou qualquer acontecimento análogo acordado entre as partes», cuja ocorrência «determine […] que o beneficiário […] tem o direito de realizar» a garantia financeira, confirma a importância das estipulações acordadas entre as partes. Esta importância resulta igualmente da redação de outras disposições da referida diretiva, como o seu artigo 4.o, n.o 4, que refere as «condições decididas no acordo de garantia financeira».

35

Nestas circunstâncias, o artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47 visa que, respeitando as finalidades desta diretiva, recordadas no n.o 24 do presente acórdão, o acordo de garantia financeira seja executado prioritariamente nos termos das estipulações acordadas entre as partes.

36

Há ainda que salientar que, na falta de estipulações contratuais que regulem esta questão, decorre destas finalidades que o beneficiário deve obter, em primeiro lugar, a satisfação do seu crédito através da garantia constituída para este fim antes de recorrer a outros ativos do prestador. Com efeito, tal exigência, na medida em que permite que o prestador, na prática, não pague uma segunda vez o montante dessa garantia correspondente à sua dívida, é suscetível de evitar um efeito de contágio em caso de insolvência do beneficiário.

37

No que diz respeito, mais especificamente, à situação em causa no processo principal, parece resultar das indicações que constam da decisão de reenvio, nomeadamente do artigo 6.3 dos acordos de 2011 e 2012, relativa à garantia financeira «que garante ao banco a boa execução das obrigações contratuais do cliente», que o beneficiário deve obter, em primeiro lugar, a satisfação do seu crédito através da garantia financeira antes de recorrer a outros ativos do prestador, o que cabe, contudo, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

38

Atendendo a todas estas considerações, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47 deve ser interpretado no sentido de que não impõe ao beneficiário de uma garantia prestada ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor uma obrigação de obter em primeiro lugar através dessa garantia a satisfação do seu crédito, decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas por esse acordo.

Quanto à terceira questão

39

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2002/47, em especial os seus artigos 4.o e 8.o, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de o beneficiário de uma garantia constituída ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor ter cobrado o seu crédito, decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas, este prestador deve ser privilegiado face aos outros credores no âmbito do processo de insolvência relativo a esse beneficiário, para o poder recuperar.

40

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a justificação de um pedido de decisão prejudicial não consiste na formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas mas na necessidade inerente à efetiva solução de um litígio sobre o direito da União (Acórdão de 10 de novembro de 2016, Private Equity Insurance Group, C‑156/15, EU:C:2016:851, n.o 56 e jurisprudência referida).

41

A este respeito, como o advogado‑geral salientou no n.o 93 das suas conclusões, o litígio em causa no processo principal opõe o Ūkio bankas à Aviabaltika relativamente à execução dos acordos de 2011 e 2012 celebrados entre estes e não diz respeito ao decurso do processo de insolvência contra o Ūkio bankas. Não resulta das indicações que constam do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio tenha sido chamado a pronunciar‑se sobre um pedido reconvencional de restituição da garantia financeira contra esse banco, nem que tenha sido chamado a decidir as questões relativas à recuperação do crédito da Aviabaltika sobre o Ūkio bankas a título desta garantia, no âmbito desse processo de insolvência.

42

Por outro lado, aquele pedido não contém elementos relativos à existência ou ao teor das disposições nacionais que o órgão jurisdicional de reenvio poderia aplicar, se fosse caso disso, em função da resposta do Tribunal de Justiça, para resolver o litígio que lhe foi submetido, que poderiam afetar a ordem dos credores no âmbito desse processo.

43

Nestas condições, há que observar que a terceira questão reveste caráter hipotético e deve, por conseguinte, ser julgada inadmissível.

Quanto às despesas

44

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de um incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 4.o, n.o 5, da Diretiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho de 2002, relativa aos acordos de garantia financeira, conforme alterada pela Diretiva 2009/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, deve ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que adotem uma regulamentação que permita ao beneficiário de uma garantia prestada ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor obter, através dessa garantia, a satisfação do seu crédito decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas, quando o facto que desencadeia a execução da garantia ocorre depois de ser iniciado um processo de insolvência contra esse beneficiário.

 

2)

O artigo 4.o, n.os 1 e 5, da Diretiva 2002/47, conforme alterada pela Diretiva 2009/44, deve ser interpretado no sentido de que não impõe ao beneficiário de uma garantia prestada ao abrigo de um acordo de garantia financeira com constituição de penhor uma obrigação de obter em primeiro lugar através dessa garantia a satisfação do seu crédito, decorrente do incumprimento das obrigações financeiras cobertas por esse acordo.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: lituano.