CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 27 de setembro de 2018 ( 1 )

Processo C‑345/17

Sergejs Buivids

sendo interveniente:

Datu valsts inspekcija

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia)]

«Reenvio prejudicial — Âmbito de aplicação da Diretiva 95/46/CE — Filmagem e publicação em páginas da Internet de um vídeo de agentes de polícia durante o desempenho das suas funções numa esquadra de polícia — Tratamento de dados pessoais e liberdade de expressão — Artigo 9.o da Diretiva 95/46/CE»

1. 

O presente pedido de decisão prejudicial do Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia) respeita à filmagem e à publicação em páginas da Internet de um vídeo de agentes de polícia durante o desempenho das suas funções numa esquadra de polícia. O órgão jurisdicional de reenvio pede esclarecimentos sobre o âmbito de aplicação da Diretiva 95/46/CE, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados ( 2 ), e sobre a interpretação da isenção que figura no artigo 9.o da mesma diretiva (a seguir «exceção para fins jornalísticos»).

Direito da União

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

2.

O direito ao respeito pela vida privada e familiar dos cidadãos é garantido pelo artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ( 3 ). De acordo com o artigo 8.o, «[1.] Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito. [2.] Esses dados devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respetiva retificação. […]». Nos termos do artigo 11.o, qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão, a qual inclui o direito de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos ( 4 ).

3.

O artigo 52.o, n.o 3, dispõe que na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção.

Diretiva 95/46

4.

Nos considerandos da Diretiva 95/46 estão enunciados os seguintes objetivos:

«deve [excluir‑se] o tratamento de dados efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas, por exemplo correspondência ou listas de endereços;

[…]

tendo em conta a importância do desenvolvimento que, no âmbito da sociedade de informação, sofrem atualmente as técnicas de captação, transmissão, manipulação, gravação, conservação ou comunicação de dados de som e de imagem relativos às pessoas singulares, há que aplicar a [Diretiva 95/46] ao tratamento desses dados;

[…]

o tratamento de dados de som e de imagem, tais como os de vigilância por vídeo, não é abrangido pelo âmbito de aplicação da [Diretiva 95/46] se for executado para fins de segurança pública, de defesa, de segurança do Estado ou no exercício de atividades do Estado relativas a domínios de direito penal ou no exercício de outras atividades não abrangidas pelo âmbito de aplicação do [direito da União];

[…]

no que se refere ao tratamento de som e de imagem para fins jornalísticos ou de expressão literária ou artística, nomeadamente no domínio do audiovisual, os princípios da diretiva [aplicam‑se] de modo restrito de acordo com as disposições referidas no artigo 9.o;

[…]

o tratamento de dados pessoais para fins jornalísticos ou de expressão artística ou literária, nomeadamente no domínio do audiovisual, deve beneficiar de derrogações ou de restrições a determinadas disposições da [Diretiva 95/46], desde que tal seja necessário para conciliar os direitos fundamentais da pessoa com a liberdade de expressão, nomeadamente a liberdade de receber ou comunicar informações, tal como é garantida, nomeadamente pelo artigo 10.o da [CEDH]; […] por conseguinte, compete aos Estados‑Membros estabelecer, tendo em vista a ponderação dos direitos fundamentais, as derrogações e limitações necessárias que se prendam com as medidas gerais em matéria de legalidade do tratamento de dados […]» ( 5 ).

5.

O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 95/46 prevê que os Estados‑Membros devem assegurar «a proteção das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais».

6.

De acordo com as definições que figuram no artigo 2.o, entende‑se por:

«a)

“Dados pessoais”, qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“pessoa em causa”); é considerado identificável todo aquele que possa ser identificado, direta ou indiretamente, nomeadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social;

b)

“Tratamento de dados pessoais” (“tratamento”), qualquer operação ou conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais, com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, registo, organização, conservação, adaptação ou alteração, recuperação, consulta, utilização, comunicação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição;

[…]

d)

“Responsável pelo tratamento dos dados”, a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais […]»

7.

De acordo com o artigo 3.o, a Diretiva 95/46 aplica‑se:

«1.   […] ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos num ficheiro ou a ele destinados.

2.   A [Diretiva 95/46] não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

efetuado no exercício de atividades não sujeitas à aplicação do [direito da União], tais como as previstas nos títulos V e VI do Tratado da União Europeia, e, em qualquer caso, ao tratamento de dados que tenha como objeto a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado (incluindo o bem‑estar económico do Estado quando esse tratamento disser respeito a questões de segurança do Estado), e as atividades do Estado no domínio do direito penal,

efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas.»

8.

O capítulo II tem por epígrafe «Condições gerais de licitude do tratamento de dados pessoais». Em aplicação do artigo 6.o, n.o 1, os Estados‑Membros devem estabelecer que os dados pessoais serão tratados em conformidade com as condições cumulativas nele enumeradas. Nessa lista figura a condição de que os dados só podem ser recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas ( 6 ). O artigo 6.o, n.o 2, dispõe que incumbe ao responsável pelo tratamento dos dados assegurar a observância das condições estabelecidas no artigo 6.o, n.o 1.

9.

O artigo 7.o da Diretiva 95/46 estabelece critérios de legitimidade do tratamento de dados. Aqueles incluem os casos em que o tratamento for necessário para prosseguir interesses legítimos do responsável pelo tratamento de dados ou do terceiro ou terceiros a quem os dados sejam comunicados, desde que não prevaleçam os interesses ou os direitos e liberdades fundamentais da pessoa ou pessoas em causa, protegidos ao abrigo do artigo 1.o, n.o 1, da diretiva ( 7 ).

10.

Nos termos do artigo 9.o, que tem por epígrafe «Tratamento de dados pessoais e liberdade de expressão» (e que faz parte do capítulo II da Diretiva 95/46), «Os Estados‑Membros estabelecerão isenções ou derrogações ao disposto no [capítulo II] e nos capítulos IV e VI para o tratamento de dados pessoais efetuado para fins exclusivamente jornalísticos ou de expressão artística ou literária, apenas na medida em que sejam necessárias para conciliar o direito à vida privada com as normas que regem a liberdade de expressão».

11.

O artigo 13.o da Diretiva 95/46 estabelece que os Estados‑Membros podem tomar medidas legislativas destinadas a restringir o alcance das obrigações e direitos referidos, nomeadamente no artigo 6.o, n.o 1, sempre que tal restrição constitua uma medida necessária à proteção de certos interesses, tais como a segurança do Estado, a defesa e a segurança pública.

Direito letão

12.

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a legislação letã em causa tem por objeto a proteção dos direitos fundamentais e das liberdades das pessoas singulares e, em especial, o direito à vida privada no que diz respeito ao tratamento de dados das pessoas singulares. Nos termos do artigo 3.o, n.o 3, da Fizisko personu datu aizsardzības likums (Lei de proteção de dados pessoais), as normas nacionais não se aplicam ao tratamento de dados pessoais quando este seja efetuado por pessoas singulares, para uso pessoal ou doméstico, e quando, além disso, os dados pessoais não sejam divulgados a terceiros.

13.

De acordo com referida lei, entende‑se por «dados pessoais» qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável. O «tratamento» de dados pessoais é definido como qualquer operação aplicada a dados pessoais, incluindo a sua recolha, registo, introdução, conservação, organização, modificação, utilização, comunicação, transmissão e difusão, bloqueio ou supressão.

14.

O artigo 5.o da Lei de proteção de dados pessoais prevê como exceção às regras estabelecidas nessa legislação o caso em que os dados pessoais sejam objeto de tratamento para fins jornalísticos nos termos da lei intitulada Par presi un citiem masu informacijas lidzekliem (Lei da imprensa e outros meios de informação de massas) ou para fins de expressão artística ou literária.

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

15.

S. Buivids («responsável pelo tratamento dos dados» no presente processo) gravou um vídeo nas instalações de uma esquadra de polícia letã. A gravação respeitava às suas próprias declarações no âmbito de um procedimento contraordenacional que tinha sido instaurado contra ele ( 8 ). Nessa gravação, são visíveis as instalações da polícia e diversos agentes de polícia no desempenho dos seus deveres. A conversa de S. Buivids com os agentes de polícia enquanto estes executavam certas funções administrativas foi gravada: S. Buivids é audível, bem como os agentes de polícia em causa e a pessoa que o acompanhou à esquadra de polícia. S. Buivids publicou o vídeo gravado na página de Internet www.youtube.com.

16.

Por decisão de 30 de agosto de 2013, a Latvian Data Protection Agency (Agência de Proteção de Dados, Letónia) decidiu que S. Buivids tinha infringido as normas nacionais pertinentes (artigo 8.o, n.o 1, da Lei de proteção de dados pessoais) porque não tinha informado os agentes de polícia («pessoas em causa»), em conformidade com aquelas normas, da finalidade visada com a gravação. S. Buivids tão‑pouco prestou à Agência de Proteção de Dados qualquer informação relativamente à finalidade da gravação e à publicação do vídeo na página da Internet que demonstrasse que o seu objetivo ao gravar e publicar o vídeo cumpria os requisitos das normas nacionais aplicáveis. Consequentemente, a Agência de Proteção de Dados instou S. Buivids a remover o vídeo em causa da página YouTube, bem como de outras páginas de Internet onde o mesmo vídeo tinha sido publicado.

17.

S. Buivids intentou uma ação no Administratīvā rajona tiesa (Tribunal Administrativo de Primeira Instância) que foi julgada improcedente. S. Buivids interpôs recurso da referida decisão no Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional, Letónia), no qual requereu a declaração de ilegalidade da decisão de 30 de agosto de 2013 e a atribuição de uma indemnização a título de reparação pelos danos sofridos em consequência da mesma. Em apoio do seu pedido, S. Buivids alegou que, com o seu vídeo, pretendia chamar a atenção da sociedade para o que, na sua opinião, constituiu uma atuação ilegal por parte da Polícia. Não há nada na decisão de reenvio que indique que S. Buivids identificou os atos que constituíam a alegada atuação ilegal.

18.

O Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional) negou provimento aos pedidos de S. Buivids com base nos seguintes fundamentos. Em primeiro lugar, deu como provado que as pessoas em causa eram identificáveis na gravação de S. Buivids. Em segundo lugar, considerou que S. Buivids não realizou a gravação para fins jornalísticos nos termos da legislação letã. Ao gravar agentes de polícia no seu local de trabalho durante o desempenho das suas funções e ao não informar esses mesmos agentes de polícia acerca da finalidade específica visada com o tratamento dos seus dados pessoais, S. Buivids não cumpriu o disposto no artigo 5.o da Lei de proteção de dados pessoais e violou o artigo 8.o, n.o 1, da mesma lei. Em terceiro lugar, a Agência de Proteção de Dados tinha exigido a S. Buivids que removesse o vídeo das páginas de Internet em que tinham sido publicados, uma vez que ele tinha procedido ao tratamento de dados pessoais de forma ilegal. Esse pedido foi, ao mesmo tempo, legítimo e proporcionado. Por último, não era possível constatar um conflito entre o direito do recorrente à liberdade de expressão e o direito à privacidade das pessoas em causa, já que S. Buivids não tinha indicado o objetivo da publicação do vídeo. Acresce que o vídeo não informa o público sobre notícias da atualidade nem revela uma atuação ilegal por parte dos agentes de polícia.

19.

S. Buivids interpôs, no órgão jurisdicional de reenvio, um recurso de cassação daquela decisão. O órgão jurisdicional de reenvio observa que o caso de S. Buivids respeita a uma única gravação de vídeo de agentes de polícia durante o desempenho das suas funções, ou seja, durante a sua atuação enquanto representantes do poder público. Interroga‑se sobre a questão de saber se a atuação de S. Buivids está compreendida no âmbito de aplicação da Diretiva 95/46 e se a exceção para fins jornalísticos que figura no artigo 9.o dessa diretiva se aplica à expressão de uma opinião pessoal quanto ao trabalho policial e à divulgação na página de Internet www.youtube.com de um vídeo de agentes de polícia durante o desempenho das suas funções. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pede esclarecimentos ao Tribunal de Justiça sobre as seguintes questões:

«1)

Estão compreendidas no âmbito de aplicação da Diretiva 95/46 atividades como as do presente caso, ou seja, a gravação, numa esquadra de polícia, de agentes policiais aquando da execução de trâmites procedimentais e a publicação do vídeo na página de Internet www.youtube.com?

2)

Deve a Diretiva 95/46 ser interpretada no sentido de que as referidas atividades podem ser consideradas um tratamento de dados pessoais com fins jornalísticos, para efeitos do artigo 9.o da referida diretiva?»

20.

S. Buivids, os Governos letão, checo, italiano, austríaco, polaco e português e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. S. Buivids, o Governo letão e a Comissão, bem como o Governo sueco, que não tinha apresentado observações escritas, compareceram à audiência que teve lugar em 21 de junho de 2018.

Primeira questão prejudicial

21.

Na primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um particular que grava um filme com agentes de polícia durante o desempenho das suas funções e, posteriormente, publica um vídeo dessa gravação numa página de Internet como o YouTube, está abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 95/46.

22.

S. Buivids, os Governos checo, italiano, polaco e português e a Comissão afirmam que as referidas ações estão compreendidas no âmbito de aplicação da Diretiva 95/46. Os Governos letão e austríaco sustentam o contrário.

23.

Creio que atividades como as de S. Buivids estão de facto abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 95/46.

24.

A gravação em vídeo de agentes de polícia durante o desempenho das suas funções nas instalações da Polícia está abrangida pela redação do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 95/46, na medida em que constitui um tratamento de dados pessoais, por meios total ou parcialmente automatizados. O Tribunal de Justiça já declarou que, segundo o artigo 2.o, alínea a), dessa diretiva, o conceito de «dados pessoais» inclui a imagem de uma pessoa gravada por uma câmara ( 9 ). Resulta do artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 95/46 que uma gravação em vídeo, em princípio, constitui o «tratamento de dados pessoais» abrangido pelo conceito de «qualquer operação ou conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais, […] tais como a recolha, registo, […] conservação» ( 10 ). O Tribunal de Justiça tinha declarado anteriormente que a operação que consiste em pôr dados de caráter pessoal numa página de Internet consubstancia um tratamento na aceção do artigo 2.o, alínea b), da Diretiva 95/46 ( 11 ).

25.

A publicação do referido vídeo numa página de Internet está, assim, claramente compreendida no conceito de «tratamento» de dados pessoais, estabelecido no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 95/46 ( 12 ).

26.

A minha leitura do artigo 2.o, alíneas a) e b), conjugado com o artigo 3.o, n.o 1, é coerente com os objetivos da Diretiva 95/46, que dispõe que a diretiva deve aplicar‑se, nomeadamente, à gravação, conservação ou comunicação de dados de som e de imagem relativos às pessoas singulares. ( 13 ) Ao mesmo tempo que o considerando 16 indica que o âmbito de aplicação da diretiva é limitado no que concerne ao tratamento de dados de som e de imagem do Estado «executado para fins de segurança pública, de defesa, de segurança do Estado ou no exercício de atividades do Estado relativas a domínios de direito penal ou no exercício de outras atividades não abrangidas pelo âmbito de aplicação do [direito da União]», dele resulta, a contrario, que o legislador considerou que a Diretiva 95/46 deve, quanto ao restante, abranger gravações em vídeo ( 14 ).

27.

O Governo austríaco considera que atividades como as de S. Buivids estão fora do âmbito de aplicação da Diretiva 95/46. Afirma que a decisão de reenvio indica que, ao abrigo do direito letão, os funcionários públicos durante o desempenho das suas funções oficiais estão fora do alcance do direito à vida privada no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — isto porque os funcionários públicos ao desempenharem as suas funções têm de aceitar que operam num espaço público e que suas ações podem estar sujeitas a escrutínio.

28.

Não aceito este contra‑argumento.

29.

O texto da Diretiva 95/46 não contém nenhuma exceção expressa que exclua funcionários públicos, como os agentes de polícia, do seu âmbito de aplicação. Nem os considerandos refletem esse objetivo.

30.

A diretiva deve, além disso, ser interpretada de forma coerente com os direitos fundamentais. Os funcionários públicos são, em princípio, protegidos da mesma forma que outros particulares no que diz respeito ao direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 7.o da Carta) e ao direito à proteção de dados pessoais (artigo 8.o da Carta), que emana do direito mais geral à privacidade ( 15 ). De facto, considerar o contrário poderia levar a consequências adversas, pois deixaria os funcionários públicos vulneráveis relativamente ao seu direito à privacidade e poderia impedir o recrutamento e a retenção de funcionários na esfera pública.

31.

Além disso, tal como o Tribunal de Justiça declarou, a expressão «vida privada» não deve ser interpretada de modo restritivo, não existindo nenhuma razão de princípio que dela permita excluir as atividades profissionais ( 16 ).

32.

O Governo letão sustenta que atos como os praticados por S. Buivids não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 95/46 por quatro razões. Em primeiro lugar, resulta de uma interpretação literal do artigo 3.o, n.o 1, que, para que a Diretiva 95/46 seja aplicável, os dados em causa devem fazer parte de um ficheiro. O órgão jurisdicional de reenvio refere que S. Buivids fez uma única gravação em vídeo. As suas atividades não podem, portanto, ser descritas como organizadas ou estruturadas para fazer parte de um ficheiro. Em segundo lugar, o artigo 3.o, n.o 1, deve ser interpretado de modo consistente com os objetivos da Diretiva 95/46, que incluem a proteção do direito à proteção da vida privada. O nexo entre esse objetivo interpretado adequadamente e a publicação de um único vídeo na Internet é muito ténue. Em terceiro lugar, as pessoas no vídeo só podem ser identificadas com um esforço significativo. Portanto, essa gravação não contém «informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável» abrangida pela definição de «dados pessoais» que figura no artigo 2.o, alínea a), da diretiva. Em último lugar, o presente processo deve distinguir‑se do processo Lindqvist ( 17 ): neste, era possível localizar dados pessoais publicados na Internet, inserindo um nome ou outra informação num motor de busca. O Governo letão acrescenta que, devido ao facto de o âmbito de aplicação da Lei de proteção de dados pessoais ser mais vasto do que o da Diretiva 95/46, a ação da Agência de Proteção de Dados contra S. Buivids estava bem fundamentada.

33.

Rejeito os argumentos do Governo letão quanto ao âmbito de aplicação da Diretiva 95/46 pelas razões que passo a expor.

34.

Não leio o texto do artigo 3.o, n.o 1, da mesma forma que o Governo letão. A letra desse artigo não indica que, quando os dados pessoais são tratados total ou parcialmente por meios automatizados, esses dados devam, além disso, fazer parte de um ficheiro para que a Diretiva 95/46 seja aplicável. Pelo contrário, parece‑me que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 95/46 se aplica em cada uma das duas situações: (i) ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados e ii) a dados não tratados por meios automáticos mas que estão contidos num ficheiro (ou a ele se destinam).

35.

A proteção do direito à vida privada no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais é um objetivo primordial da Diretiva 95/46. Os direitos dos agentes de polícia filmados por S. Buivids são cruciais para o caso em apreço. As pessoas em causa são identificáveis e foram publicadas informações relacionadas com elas. Há, assim, prima facie, uma manifesta violação dos seus direitos fundamentais garantidos pelos artigos 7.° e 8.° da Carta ( 18 ). É indiferente se a informação publicada é sensível ou se os particulares em causa foram de algum modo incomodados ( 19 ).

36.

Se as pessoas em causa são difíceis de identificar não é um critério estabelecido na Diretiva 95/46 e, portanto, não pode ser utilizado para determinar se as condições do artigo 3.o, n.o 1, estão preenchidas. A Diretiva 95/46 também não exige que o tratamento de dados pessoais inclua informações, como o nome ou o endereço, que permitam uma pesquisa na Internet antes que um particular possa alegar que foram violados os seus direitos de proteção de dados.

37.

Por uma questão de exaustividade, gostaria de acrescentar que, na minha opinião, o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 95/46 não é aplicável ao caso vertente. Esta disposição refere que a diretiva não se aplica ao tratamento de dados pessoais «efetuado no exercício de atividades não sujeitas à aplicação do [direito da União], […], e, em qualquer caso, ao tratamento de dados que tenha como objeto a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado […], e as atividades do Estado no domínio do direito penal». Como exceção às regras que regem o âmbito de aplicação desta diretiva, o artigo 3.o, n.o 2, deve ser interpretado de forma restrita. ( 20 ) Todas as atividades enumeradas a título de exemplo são atividades próprias aos Estados ou às autoridades estatais e alheias aos domínios de atividade dos particulares. Destinam‑se a definir o alcance da exceção aí prevista, de maneira que essa exceção só se aplica às atividades aí expressamente mencionadas ou que podem ser classificadas na mesma categoria (ejusdem generis) ( 21 ).

38.

As ações de S. Buivids foram ações de um indivíduo a expressar as suas opiniões particulares. É evidente, portanto, que não estão abrangidas pelo artigo 3.o, n.o 2, primeiro travessão, da Diretiva 95/46.

39.

Relativamente ao segundo travessão do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 95/46, o Tribunal de Justiça declarou que essa disposição interpretada à luz do objetivo expresso no considerando 12 — relativo a essa exceção — menciona a correspondência ou a elaboração de listas de endereços como exemplo de tratamento de dados efetuado por uma pessoa singular no exercício de atividades exclusivamente pessoais ou domésticas. Daí decorre que esta última exceção deve ser interpretada no sentido de que tem apenas por objeto as atividades que se inserem no quadro da vida privada ou familiar dos particulares ( 22 ).

40.

Assim, o segundo travessão do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 95/46 também não pode aplicar‑se às atividades de S. Buivids. A publicação do vídeo na Internet não fazia parte da sua vida privada ou familiar. Pelo contrário: a publicação significa que os dados foram disponibilizados e ficaram acessíveis a um número ilimitado de pessoas.

41.

Concluo, portanto, que as atividades como a filmagem e a gravação de funcionários públicos durante o desempenho das suas funções no seu local de trabalho e a subsequente publicação do vídeo na Internet constituem um tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados para efeitos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 95/46.

Segunda questão prejudicial

42.

Com a segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se atos como os praticados por S. Buivids devem considerar‑se abrangidos pela exceção para fins jornalísticos que figura no artigo 9.o da Diretiva 95/46.

43.

Na decisão de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que se S. Buivids tivesse feito e gravado o seu vídeo para fins jornalísticos nos termos das disposições nacionais pertinentes, as suas atividades estariam isentas do cumprimento das condições previstas no artigo 8.o da Lei de proteção de dados pessoais, que exige que o responsável pelo tratamento dos dados informe, do modo aí previsto, a pessoa ou as pessoas em causa acerca da finalidade visada com uma gravação em vídeo.

44.

A esse respeito, saliento que incumbe aos Estados‑Membros, aquando da transposição de diretivas como a Diretiva 95/46, zelar para que as normas nacionais sejam interpretadas de modo a assegurar um justo equilíbrio entre os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União. Seguidamente, na execução das medidas nacionais de transposição dessas diretivas, incumbe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros não só interpretar o seu direito nacional em conformidade com as referidas diretivas mas também zelar por que seja seguida uma interpretação de um diploma de direito derivado que não entre em conflito com os referidos direitos fundamentais ou com os outros princípios gerais do direito da União, como o princípio da proporcionalidade ( 23 ).

45.

O Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 9.o deve ser interpretado à luz dos objetivos prosseguidos pela Diretiva 95/46 e do sistema que institui ( 24 ). O artigo 1.o deixa claro que esses objetivos incluem permitir a livre circulação dos dados pessoais, bem como assegurar a proteção das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento dos referidos dados. O artigo 9.o da diretiva indica como devem ser conciliados esses objetivos. A obrigação de alcançar o necessário equilíbrio cabe aos Estados‑Membros ( 25 ).

46.

A história legislativa da Diretiva 95/46 indica que a isenção para fins jornalísticos deve ser aplicada de forma restritiva. O texto que agora se encontra no artigo 9.o da Diretiva 95/46 não constava da proposta original da Comissão ( 26 ). Foi introduzido quase cinco anos depois de essa proposta ter sido elaborada devido às alterações sugeridas pelo Parlamento Europeu com vista a clarificar que os Estados‑Membros devem prever isenções ou derrogações apenas na medida em que sejam necessárias para conciliar o direito à vida privada com as normas que regem a liberdade de expressão ( 27 ).

47.

O artigo 9.o pode ser dividido em duas partes. De acordo com a primeira parte, os Estados‑Membros são instruídos a prever isenções ou derrogações, nomeadamente, às regras gerais sobre a legalidade do tratamento de dados pessoais, como as previstas nos artigos 6.° e 7.° da referida diretiva. A segunda parte salienta que tais isenções ou derrogações podem ser concedidas para o tratamento de dados pessoais para fins exclusivamente jornalísticos, apenas na medida em que seja necessário conciliar o direito à vida privada com as normas que regem a liberdade de expressão ( 28 ).

48.

O Tribunal de Justiça já precisou que, no contexto do direito à liberdade de expressão, o conceito de «fins jornalísticos» deve ser objeto de interpretação lata ( 29 ); e estabeleceu uma série de critérios a ter em conta. Em primeiro lugar, a atividade do jornalismo não está limitada às empresas de comunicação social: ao invés, aplica‑se também a qualquer pessoa que exerça essa atividade. Em segundo lugar, o facto de o jornalismo em questão gerar lucro não é um elemento determinante. Em terceiro lugar, os meios de comunicação mudam e evoluem: assim, se os dados são tratados e transmitidos por meios convencionais, ou mesmo antiquados (como o papel ou as ondas hertzianas) ou se o tratamento é feito por meios mais modernos (como carregar dados na Internet) não é determinante. Em último lugar, à luz destes critérios, podem ser qualificadas de «atividades jornalísticas» as ações que tiverem por finalidade a divulgação ao público de informações, opiniões ou ideias ( 30 ).

49.

As atividades como as de S. Buivids, enquadram‑se no conceito de «fins jornalísticos», tal como previsto no artigo 9.o da Diretiva 95/46?

50.

S. Buivids, apoiado pelos Governos português e sueco, alega que a sua ação é suscetível de ser abrangida pelo artigo 9.o e que está isenta das disposições do capítulo II daquela diretiva. Os Governos checo e polaco objetam que o artigo 9.o não se aplica. Os Governos italiano e austríaco e a Comissão alegam que a apreciação da questão de saber se a exceção de atividades jornalística se aplica incumbe, em última análise, ao órgão jurisdicional nacional. O Governo letão sustenta que, embora as ações de S. Buivids não caiam no âmbito de aplicação da Diretiva 95/46, são aplicáveis as normas nacionais pertinentes.

51.

Os objetivos da divulgação em causa neste processo são claramente questões de facto cuja apreciação não cabe ao Tribunal de Justiça. Dito isto, ao interpretar o artigo 9.o da Diretiva 95/46 o Tribunal de Justiça deverá fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio o quadro necessário para que este faça a referida apreciação. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») na interpretação das disposições correspondentes da CEDH (artigos 8.° e 10.°) fornece alguns pontos de referência úteis.

52.

Assim, na interpretação do artigo 10.o da CEDH, o TEDH declarou que «as atividades expressivas dos utilizadores na Internet fornecem uma plataforma sem precedentes para o exercício da liberdade de expressão» e que publicar notícias e comentários numa página de Internet é uma atividade jornalística ( 31 ). O TEDH reconheceu repetidas vezes o papel vital dos meios de comunicação social na facilitação e promoção do direito do público de receber e transmitir informações e ideias ( 32 ). Também reconheceu que a função de criar várias «plataformas de debate público não se limita à imprensa [convencional] […] Dado o papel essencial desempenhado pela Internet para melhorar o acesso do público à atualidade e para facilitar a divulgação de informações […] a função dos “bloggers” e utilizadores populares das redes sociais também pode ser equiparada [ao papel] de “vigilância e controlo público” na medida em esteja relacionada com a proteção concedida pelo artigo 10.o [da CEDH]» ( 33 ).

53.

Por conseguinte, parece‑me claro que a atividade de um particular que se dedica ao que foi apelidado de «jornalismo dos cidadãos» através da recolha e divulgação de informações com o objetivo de divulgar informações, opiniões ou ideias ao público, pode ser considerada como tratamento de dados pessoais para fins jornalísticos, na aceção do artigo 9.o ( 34 ).

54.

Resulta do exposto que não concordo com as opiniões expressas pelos Governos checo e português, na medida em que argumentam que o jornalismo implica sempre, necessariamente, um certo formalismo e procedimentos profissionais ou controlo. Ainda que isso possa ter sido verdade no passado, o avanço da tecnologia e a mudança dos hábitos sociais tornam impossível confinar o conceito de jornalismo ao de uma profissão regulamentada ( 35 ).

55.

Contudo, daqui não resulta que qualquer divulgação de informações relativas a uma pessoa identificável através de um material de publicação individual na Internet possa ser qualificada como jornalismo e, portanto, seja abrangida pela exceção prevista no artigo 9.o da Diretiva 95/46. Esta disposição é clara ao dispor que a isenção para fins jornalísticos se aplica apenas na medida em que seja necessária para conciliar o direito à vida privada com as normas que regem a liberdade de expressão; e que o tratamento de dados que ocorrer deve ser efetuado para fins exclusivamente jornalísticos.

56.

Onde deve então ser traçado o limite?

57.

Recordo aqui que o artigo 9.o da Diretiva 95/46 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de encontrarem o equilíbrio correto entre os dois direitos fundamentais concorrentes — proteção da vida privada e liberdade de expressão. No entanto, o Tribunal de Justiça pode e deve fornecer as orientações necessárias para garantir a aplicação correta e uniforme, sujeita a fiscalização por parte dos órgãos jurisdicionais nacionais, dos princípios estabelecidos pelo legislador da União. Creio que a abordagem seguinte pode ser útil.

58.

Em primeiro lugar, em todos os casos concretos o órgão jurisdicional nacional deve examinar se os dados tratados transmitiram conteúdo substancial que constitua «divulgação ao público de informações, opiniões ou ideias» no sentido do critério fixado no Acórdão Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia ( 36 ). A decisão de reenvio no caso vertente não contém elementos suficientes para que o Tribunal de Justiça possa discernir se o vídeo de S. Buivids preenche o referido critério, cabendo aos órgãos jurisdicionais nacionais proceder às necessárias verificações adicionais de facto ( 37 ). Na falta de tal conteúdo substancial obrigatório, o vídeo não estaria abrangido pela isenção para fins jornalísticos do artigo 9.o

59.

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional nacional deve determinar se o tratamento dos dados em causa foi realizado para fins exclusivamente jornalísticos. A decisão de reenvio afirma que S. Buivids não indicou o objetivo visado com a gravação e a publicação do vídeo. No entanto, foi sugerido durante a audiência perante o Tribunal de Justiça que ele poderia ter querido expor as más práticas policiais (um objetivo clássico do bom jornalismo de espírito público). Incumbe ainda aos órgãos jurisdicionais nacionais, como únicos juízes de facto, determinar se esse era o objetivo de S. Buivids e se era o seu único objetivo. A presença de outros elementos (tais como a crença num direito intrínseco de filmar e publicar vídeos da Polícia simplesmente porque se trata de funcionários públicos, ou por simples voyeurismo) significaria que o critério «para fins exclusivamente jornalísticos» não estava satisfeito. Por conseguinte, a isenção prevista no artigo 9.o não se aplicaria.

60.

Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional nacional terá de lidar com a exigência de que as isenções dos requisitos normais previstos no artigo 9.o da diretiva de proteção dos dados pessoais são permitidas «apenas na medida em que sejam necessárias para conciliar o direito à vida privada com as normas que regem a liberdade de expressão» (o sublinhado é meu). A jurisprudência constante do Tribunal de Justiça salienta que as derrogações e limitações ao direito à proteção dos dados pessoais, garantido nos termos do artigo 8.o da Carta, devem aplicar‑se apenas na medida em que sejam estritamente necessárias e devem ser interpretadas de forma restrita ( 38 ).

61.

Não há disposição equivalente ao artigo 8.o da Carta (proteção de dados pessoais) na CEDH. Na sua jurisprudência, o TEDH assimilou esse direito ao direito fundamental ao respeito pela vida privada e familiar garantido pelo artigo 8.o da CEDH, tratando‑o como uma expressão mais específica do direito à vida privada no que respeita ao tratamento dos dados pessoais ( 39 ). Assim, as decisões desse tribunal sobre a ponderação entre os artigos 8.° e 10.° da CEDH constituem um quadro com base no qual se conciliam os direitos fundamentais à privacidade dos dados pessoais e à liberdade de expressão: tarefa imposta pelo artigo 9.o da Diretiva 95/46.

62.

No que concerne ao exercício de ponderação que as autoridades nacionais (e consequentemente os tribunais nacionais) devem fazer para conciliar aqueles dois direitos, o TEDH decidiu que, em princípio, os direitos previstos nos artigos 8.° e 10.° da CEDH merecem igual respeito ( 40 ). Os passos pertinentes foram até agora definidos como: (i) examinar a contribuição para um debate de interesse público; (ii) avaliar o grau de notoriedade da pessoa afetada; (iii) considerar o objeto da comunicação; (iv) examinar o comportamento anterior da pessoa envolvida; (v) observar o conteúdo, a forma e as consequências da publicação; e (vi) considerar as circunstâncias em que as informações foram obtidas.

63.

Para averiguar se uma publicação que divulgava elementos da vida privada também dizia respeito a uma questão de interesse público, aquele tribunal teve em conta a importância da questão para o público e a natureza da informação divulgada. Além disso, o interesse público refere‑se normalmente a questões que afetam o público de forma tal que ele pode legitimamente interessar‑se por elas, que atraem a sua atenção ou que lhe dizem respeito de modo significativo, sobretudo aquelas questões que afetam o bem‑estar dos cidadãos ou a vida da comunidade ( 41 ). O TEDH declarou que o risco de provocar danos que o conteúdo e as comunicações na Internet representa para o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades, em especial para o direito ao respeito pela vida privada, é certamente maior do que o provocado pela imprensa quando publica através de tecnologia mais antiquada, tal como a imprensa escrita ( 42 ).

64.

No presente processo, as informações apresentadas ao Tribunal de Justiça na decisão de reenvio são escassas. O órgão jurisdicional de reenvio afirma que o vídeo de S. Buivids não revela notícias atuais ou condutas ilegais por parte da Polícia; e não sugere que qualquer dos agentes de polícia identificados no vídeo sejam figuras públicas por direito próprio. Nenhuma informação é dada quanto à conduta anterior de qualquer das pessoas envolvidas. O objeto do vídeo parece ser apenas que S. Buivids estava nas instalações da Polícia no âmbito de um processo administrativo que lhe dizia respeito. S. Buivids fez a sua gravação em vídeo abertamente, mas não informou as pessoas em causa (os agentes de polícia) sobre o propósito específico da filmagem. Na audiência, S. Buivids confirmou que não tinha o consentimento expresso das pessoas em causa, nem para a filmagem nem para a publicação subsequente na Internet.

65.

É claro que, ao publicar o seu vídeo numa página de Internet, S. Buivids violou o direito fundamental ao respeito pela vida privada das pessoas em causa. Não tomou nenhuma medida para mitigar a extensão dessa violação — por exemplo, desfocando ou ocultando os seus rostos ou disfarçando as suas vozes antes de publicar o vídeo.

66.

Com base na informação limitada de que o Tribunal de Justiça dispõe, parece‑me provável que os critérios anteriormente identificados para avaliar se, num caso concreto, o direito à liberdade de informação deve prevalecer sobre o direito à vida privada e à proteção dos dados pessoais não foram satisfeitos. Saliento, contudo, que cabe ao órgão jurisdicional nacional concluir o processo de apuramento dos factos necessários e, nessa base, fazer uma avaliação definitiva no presente processo.

67.

Por uma questão de exaustividade, deverei também debruçar‑me sobre um argumento invocado pelo Governo checo, segundo o qual as atividades de tratamento de dados de S. Buivids se tornam lícitas pela aplicação do artigo 7.o, alínea f), da Diretiva 95/46. Esta disposição estabelece uma lista exaustiva e restritiva de casos em que o tratamento de dados pessoais pode ser considerado lícito ( 43 ), desde que também sejam respeitados os princípios relativos à qualidade dos dados estabelecidos no artigo 6.o da Diretiva 95/46.

68.

Nos termos do artigo 7.o, alínea f), o tratamento satisfaz a condição de legitimidade quando é necessário para prosseguir interesses legítimos do responsável pelo tratamento dos dados (neste caso, S. Buivids) ou do terceiro ou terceiros a quem os dados sejam comunicados, desde que não prevaleçam os interesses ou os direitos e liberdades fundamentais da pessoa em causa, protegidos ao abrigo do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 95/46. Essa análise requer um equilíbrio entre direitos e interesses opostos ( 44 ).

69.

Parece‑me que a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça ao interpretar o artigo 7.o, alínea e), da Diretiva 95/46 em conjugação com o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), também se aplica aqui ( 45 ). Assim, o artigo 7.o, alínea f), deve ser lido juntamente com o artigo 6.o, n.o 1, alínea b), dessa diretiva.

70.

A decisão de reenvio refere que o tribunal de primeira instância concluiu que S. Buivids não informou as pessoas em causa acerca do objetivo específico visado com a gravação do vídeo. Face a essa conclusão, parece provável que pelo menos duas das condições cumulativas do artigo 6.o, n.o 1, alínea b) — que os dados tenham sido «recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas» — não tenham sido preenchidas.

71.

Decorre do que antecede que o artigo 7.o, alínea f), da Diretiva 95/46 não é aplicável.

72.

Em último lugar, sublinho que é certo que podem existir circunstâncias especiais em que a única maneira de o jornalismo de investigação detetar infrações graves é recorrer a algum tipo de operação encoberta. Tal situação será caracterizada por um alto grau de interesse público ao permitir a investigação e publicação (envolvendo, portanto, necessariamente, o tratamento de dados). No entanto, exigir‑se‑á sempre um exame minucioso para encontrar um equilíbrio adequado entre os direitos fundamentais concorrentes em jogo. Não explorarei mais esta questão delicada aqui porque, com base nos factos de que o Tribunal de Justiça dispõe, considero que claramente essa questão não se coloca no presente processo.

73.

Concluo que, quando um particular que não é jornalista de profissão faz gravações em vídeo que publica numa página de Internet, essas gravações em vídeo podem ser abrangidas pelo conceito de «fins jornalísticos» na aceção do artigo 9.o da Diretiva 95/46 se for demonstrado que essas atividades foram realizadas apenas para esses fins. De acordo com essa disposição, cabe às autoridades nacionais, sob o controlo dos órgãos jurisdicionais nacionais, analisar e conciliar o direito fundamental ao respeito pela vida privada relativamente ao tratamento de dados pessoais da pessoa ou das pessoas em causa e o direito fundamental à liberdade de expressão do responsável pelo tratamento dos dados. Ao realizar esse exercício de ponderação, essas autoridades deverão ter em conta: (i) se o material divulgado contribui para um debate de interesse público; (ii) o grau de notoriedade da pessoa ou pessoas afetadas; (iii) o objeto da comunicação; (iv) o comportamento prévio da pessoa visada; (v) o conteúdo, forma e consequências da publicação em questão; e (vi) as circunstâncias em que as informações foram obtidas.

Conclusão

74.

À luz de todas as considerações precedentes, entendo que o Tribunal de Justiça deve responder às questões suscitadas pelo Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia), nos seguintes termos:

Atividades como a filmagem e a gravação de funcionários públicos durante o desempenho das suas funções no seu local de trabalho e a subsequente publicação do vídeo na Internet constituem um tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados para efeitos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.

Quando um particular que não é jornalista de profissão faz gravações em vídeo que publica numa página de Internet, essas gravações em vídeo podem ser abrangidas pelo conceito de «fins jornalísticos» na aceção do artigo 9.o da Diretiva 95/46 se for demonstrado que essas atividades foram realizadas apenas para esses fins.

Num caso concreto, nos termos do artigo 9.o da Diretiva 95/46, cabe às autoridades nacionais, sob o controlo dos órgãos jurisdicionais nacionais, analisar e conciliar o direito fundamental ao respeito pela vida privada relativamente ao tratamento de dados pessoais da pessoa ou das pessoas em causa e o direito fundamental à liberdade de expressão do responsável pelo tratamento dos dados. Ao realizar esse exercício de ponderação, essas autoridades deverão ter em conta: (i) se o material divulgado contribui para um debate de interesse público; (ii) o grau de notoriedade da pessoa ou pessoas afetadas; (iii) o objeto da comunicação; (iv) o comportamento prévio da pessoa visada; (v) o conteúdo, forma e consequências da publicação em questão; e (vi) as circunstâncias em que as informações foram obtidas.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de outubro de 1995 (JO 1995, L 281, p. 31). Esta diretiva foi revogada e substituída pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1), com efeitos a partir de 25 de maio de 2018.

( 3 ) JO 2010, C 83, p. 391.

( 4 ) Os artigos 7.° e 11.° da Carta correspondem aos direitos estabelecidos pelos artigos 8.° e 10.° (respetivamente, o direito ao respeito pela vida privada e familiar e o direito à liberdade de expressão) da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»), assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950. Todos os Estados‑Membros são signatários da CEDH, mas a União Europeia, enquanto tal, ainda não aderiu a essa convenção; v. Parecer 2/13, de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454.

( 5 ) Considerandos 12, 14, 16, 17 e 37, respetivamente.

( 6 ) Artigo 6.o, n.o 1, alínea b). As condições do artigo 6.o, n.o 1, alínea a) e alíneas c) a e), estabelecem que os dados pessoais devem ser objeto de um tratamento leal e lícito; devem também ser adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às suas finalidades, exatos e conservados de forma a permitir a identificação das pessoas em causa apenas durante o período necessário para a prossecução das finalidades para que foram recolhidos. Estas condições não têm pertinência imediata para o processo em apreço.

( 7 ) A enumeração de casos em que o tratamento de dados pessoais pode ser considerado lícito para efeitos do artigo 7.o é exaustiva e restritiva. Apenas o artigo 7.o, alínea f), é pertinente no que diz respeito ao processo em apreço: v. n.os 67 a 71, infra.

( 8 ) Na sua decisão de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio declara que foi posteriormente aplicada uma coima a S. Buivids, no âmbito desse procedimento contraordenacional.

( 9 ) Acórdão de 11 de dezembro de 2014, Ryneš (C‑212/13, EU:C:2014:2428, n.os 21 e 22).

( 10 ) Acórdão de 11 de dezembro de 2014, Ryneš (C‑212/13, EU:C:2014:2428, n.os 23 e 24).

( 11 ) Acórdão de 13 de maio de 2014, Google Spain e Google (C‑131/12, EU:C:2014:317, n.o 26).

( 12 ) Acórdão de 6 de novembro de 2003, Lindqvist (C‑101/01, EU:C:2003:596, n.os 25 e 26). Este processo dizia respeito à publicação, por um catequista, de páginas de Internet que permitiam aos paroquianos que se preparavam para o crisma obter as informações de que precisavam.

( 13 ) Considerando 14 da Diretiva 95/46.

( 14 ) Considerando 16 da Diretiva 95/46; v. n.o 4, supra.

( 15 ) Acórdão de 16 de julho de 2015, ClientEarth e PAN Europe/EFSA (C‑615/13 P, EU:C:2015:489, n.o 30).

( 16 ) Acórdão de 9 de novembro de 2010, Volker und Markus Schecke e Eifert (C‑92/09 e C‑93/09, EU:C:2010:662, n.o 59).

( 17 ) Acórdão de 6 de novembro de 2003 (C‑101/01, EU:C:2003:596).

( 18 ) Acórdão de 13 de maio de 2014, Google Spain e Google (C‑131/12, EU:C:2014:317, n.o 66).

( 19 ) Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland e o. (C‑293/12 e C‑594/12, EU:C:2014:238, n.o 33).

( 20 ) Acórdão de 27 de setembro de 2017, Puškár (C‑73/16, EU:C:2017:725, n.o 38).

( 21 ) Acórdão de 27 de setembro de 2017, Puškár (C‑73/16, EU:C:2017:725, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida).

( 22 ) Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, EU:C:2008:727, n.os 43 e 44).

( 23 ) Acórdão de 29 de janeiro de 2008, Promusicae (C‑275/06, EU:C:2008:54, n.o 68 e jurisprudência referida).

( 24 ) Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, EU:C:2008:727, n.os 50 a 53).

( 25 ) V. considerandos 17 e 37 da Diretiva 95/46.

( 26 ) COM(90) 314 final, de 13 de setembro de 1990. A proposta original incluía um projeto de artigo 19.o que permitia aos Estados‑Membros derrogar disposições da diretiva relativas à imprensa e aos meios audiovisuais, na medida do necessário para conciliar os direitos fundamentais das pessoas à privacidade e à liberdade de expressão. Esta proposta foi alterada duas vezes pelas propostas da Comissão COM (92) 422 final, de 15 de outubro de 1992, e COM (95) 375 final, de 18 de julho de 1995.

( 27 ) V. Decisão referente à posição comum do Conselho sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados [C4‑0051/95 ‑ 00/0287(COD)] (JO 1995, C 166, p. 105).

( 28 ) A isenção abrange também o tratamento de dados pessoais para fins de expressão artística ou literária, que não é relevante no contexto do processo principal: v. n.o 10, supra.

( 29 ) Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, EU:C:2008:727, n.o 56).

( 30 ) Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, EU:C:2008:727, n.os 58 a 61).

( 31 ) TEDH, 16 de junho de 2015, Delfi AS c. Estónia, CE:ECHR:2015:0616JUD006456909, § 110 e jurisprudência referida, bem como § 112.

( 32 ) TEDH, 8 de novembro de 2016, Magyar Helsinki Bizottság c. Hungria, CE:ECHR:2016:1108JUD001803011, § 165 e jurisprudência referida.

( 33 ) TEDH, 8 de novembro de 2016, Magyar Helsinki Bizottság c. Hungria, CE:ECHR:2016:1108JUD001803011, §§ 166 e 168.

( 34 ) V. nota n.o 30, supra.

( 35 ) V. «The rise of citizen journalism», jornal The Guardian, de 11 de junho de 2012. O Financial Times designou como «personalidade do ano» 2017 Susan Fowler, a jovem americana que levantou o véu sobre o assédio sexual na Uber ao divulgar as suas experiências num blogue e motivou as mulheres a falarem. Mesmo antes dos dias da Internet, o jornalismo não era restrito no sentido formal de uma profissão específica. Veja‑se o Samizdat, sistema clandestino na U.R.S.S. e nos países que se encontravam na sua órbita, através do qual a literatura era impressa e distribuída de modo privado a fim de contornar a censura do governo permitia que particulares em geral expressassem as suas opiniões.

( 36 ) Acórdão de 16 de dezembro de 2008 (C‑73/07, EU:C:2008:727); v. n.o 48, supra.

( 37 ) Uma vez que o pedido de reenvio prejudicial foi enviado pelo Augstākā tiesa (Supremo Tribunal), pode ser necessária a remessa do processo para um tribunal inferior que leve a cabo esse apuramento adicional da matéria de facto.

( 38 ) Acórdão de 11 de dezembro de 2014, Ryneš (C‑212/13, EU:C:2014:2428, n.os 28 e 29 e jurisprudência referida).

( 39 ) TEDH, 27 de junho de 2017, Satakunnan Markkinapörssi Oy e Satamedia Oy c. Finlândia, CE:ECHR:2017:0627JUD000093113, §§ 8 a 28. As origens deste processo estão nas circunstâncias factuais que deram origem ao Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2008, Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, EU:C:2008:727). No TEDH o processo começou com o pedido n.o 931/13. A Quarta Secção do Tribunal de Justiça proferiu a sua decisão em 21 de julho de 2015. O pedido do recorrente para remeter o processo para a Grande Secção foi deferido em 14 de dezembro de 2015; e esta secção pronunciou‑se em 27 de junho de 2017.

( 40 ) TEDH, 16 de junho de 2015, Delfi AS c. Estónia, CE:ECHR:2015:0616JUD006456909, § 139.

( 41 ) TEDH, 27 de junho de 2017, Satakunnan Markkinapörssi Oy e Satamedia Oy c. Finlândia, CE:ECHR:2017:0627JUD000093113, §§ 165, 166 e 171.

( 42 ) TEDH, 16 de junho de 2015, Delfi AS c. Estónia, CE:ECHR:2015:0616JUD006456909, § 133.

( 43 ) Acórdão de 27 de setembro de 2017, Puškár (C‑73/16, EU:C:2017:725, n.o 104 e jurisprudência referida; v. também n.o 105).

( 44 ) Acórdão de 13 de maio de 2014, Google Spain e Google (C‑131/12, EU:C:2014:317, n.o 74 e jurisprudência referida).

( 45 ) Acórdão de 27 de setembro de 2017, Puškár (C‑73/16, EU:C:2017:725, n.o 110 e jurisprudência referida); v., também, as Conclusões da advogada‑geral J. Kokott nesse processo (EU:C:2017:253, n.o 106).