CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 5 de julho de 2018 ( 1 )

Processo C‑328/17

Amt Azienda Trasporti e Mobilità SpA,

Atc Esercizio SpA,

Atp Esercizio Srl,

Riviera Trasporti SpA,

Tpl Linea Srl

contra

Atpl Liguria ‑ Agenzia regionale per il trasporto pubblico locale SpA,

Regione Liguria

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale Amministrativo Regionale della Liguria (Tribunal Administrativo Regional da Ligúria, Itália)]

«Questão prejudicial — Contratos públicos — Admissibilidade — Inutilidade superveniente da lide — Diretiva 89/665/CEE — Procedimentos de recurso — Necessidade de ter participado no concurso para poder recorrer — Legitimidade do proponente em caso de certeza absoluta de inelegibilidade»

1.

Num processo em que se verificou a inutilidade superveniente da lide de modo que, na ausência de um litígio entre as partes quanto ao mérito, deixa de ser necessária uma decisão judicial que o dirima, pode o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se suscitar uma questão prejudicial limitada apenas à questão de saber quem deve pagar as despesas processuais?

2.

O Tribunal de Justiça tem duas possibilidades:

Por um lado, pode seguir o precedente que estabeleceu no processo Reinke ( 2 ) e determinar que, neste contexto, já não é necessário responder à questão prejudicial, que é inadmissível.

Por outro lado, pode superar esse obstáculo e, nesse caso, deverá responder ao órgão jurisdicional a quo quanto à interpretação das diretivas relativas aos procedimentos de recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos ( 3 ). Essa interpretação é‑lhe pedida para a confrontar com a acolhida pelos tribunais supremos de Itália (Conselho de Estado e Tribunal Constitucional) relativamente à legitimidade de uma empresa para impugnar os atos de um procedimento de concurso em que não participou. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a condenação nas despesas do processo principal dependerá da resposta dada a esta questão.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Diretiva 89/665 e Diretiva 92/13 ( 4 )

3.

O artigo 1.o («Âmbito de aplicação e acesso ao recurso») dispõe:

«1.   A presente diretiva é aplicável aos contratos a que se refere a Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços [(JO 2004, L 134, p. 114)], salvo os contratos excluídos nos termos dos artigos 10.o a 18.o dessa diretiva [Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (JO 2004, L 134, p. 1), salvo os contratos excluídos nos termos do artigo 5.o, n.o 2, ou dos artigos 18.o a 26.o, 29.o, 30.o ou 62.o da referida diretiva].

Os contratos, na aceção da presente diretiva, incluem os contratos públicos [contratos de empreitada de obras públicas, contratos públicos de fornecimento e contratos públicos de serviços], os acordos‑quadro, as concessões de obras públicas e os sistemas de aquisição dinâmicos.

Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que, no que se refere aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18/CE [Diretiva 2004/17/CE], as decisões das entidades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes e, sobretudo, tão céleres quanto possível, nos termos dos artigos 2.o a 2.o‑F da presente diretiva, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito comunitário em matéria de contratos públicos ou das normas nacionais de transposição desse direito.

2.   Os Estados‑Membros devem assegurar que não se verifique qualquer discriminação entre as empresas que aleguem um prejuízo no âmbito de um procedimento de adjudicação de um contrato devido à distinção feita na presente diretiva entre as normas nacionais de execução do direito comunitário e as outras normas nacionais.

3.   Os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

[…]»

4.

O artigo 2.o («Requisitos do recurso») dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.o prevejam poderes para:

[…]

b)

Anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa [do anúncio de concurso, do anúncio periódico indicativo, do anúncio de existência de um sistema de qualificação, do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o processo de celebração do contrato em causa].

[…]»

2. Regulamento n.o 1370/2007 ( 5 )

5.

O artigo 5.o («Adjudicação de contratos de serviço público») dispõe:

«1.   Os contratos de serviço público devem ser adjudicados de acordo com as regras estabelecidas no presente regulamento. No entanto, os contratos de serviços ou os contratos públicos de serviços, tal como definidos nas Diretivas 2004/17/CE ou 2004/18/CE, para o transporte público de passageiros por autocarro ou elétrico, devem ser adjudicados nos termos dessas diretivas na medida em que tais contratos não assumam a forma de contratos de concessão de serviços, tal como definidos nessas diretivas. Sempre que os contratos devam ser adjudicados nos termos das Diretivas 2004/17/CE ou 2004/18/CE, não se aplica o disposto nos n.os 2 a 6 do presente artigo.

[…]

7.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para garantir que as decisões tomadas de acordo com os n.os 2 a 6 possam ser revistas de forma eficaz e célere, a pedido de uma pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um contrato particular, e que tenha sido ou corra o risco de ser prejudicada por uma alegada infração, em virtude de essas decisões terem infringido o direito comunitário ou as normas nacionais que transpõem esse direito.

[…]»

B.   Direito italiano

1. Decreto‑Lei n.o 138, de 13 de agosto de 2011 ( 6 )

6.

Nos termos do seu artigo 3.o bis regra geral, a província é o âmbito territorial de referência para a prestação dos serviços públicos locais.

2. Lei regional da Ligúria n.o 33 de 7 de novembro de 2103 ( 7 )

7.

Nos termos dos artigos 9.o, n.o 1, e 14.o, n.o 1, a adjudicação do serviço é efetuada num único lote relativo a todo o território regional ( 8 ).

3. Código de Processo Administrativo (Codice del processo amministrativo) ( 9 )

8.

O artigo 26.o («Despesas judiciais») dispõe:

«1.   Quando profere uma decisão, o juiz decide também quanto às despesas processuais, em conformidade com os artigos 91.o, 92.o, 93.o, 94.o, 96.o e 97.o do Código de Processo Civil, tendo também em conta o respeito pelos princípios da clareza e da concisão a que se refere o artigo 3.o, n.o 2. Em qualquer caso, o tribunal também pode, oficiosamente, condenar a parte vencida no pagamento à outra parte de um montante determinado em conformidade com o princípio da equidade, que não exceda o dobro das despesas pagas, quando existam fundamentos manifestamente improcedentes.

[…]»

9.

O artigo 39.o, n.o 1, dispõe:

«Ao que não estiver regulado no presente Código são aplicáveis as disposições do Código de Processo Civil, na medida em que sejam compatíveis ou constituam a expressão de princípios gerais.»

4. Código de Processo Civil (Codice di procedura civile) ( 10 )

10.

O artigo 91.o estabelece o princípio da condenação objetiva quanto ao pagamento das despesas.

11.

O artigo 92.o dispõe:

«O tribunal, na sentença proferida em conformidade com o artigo anterior, pode recusar o reembolso das despesas em que a parte vencedora tenha incorrido se as considerar excessivas ou desnecessárias; […]

Em caso de vencimento parcial, de uma questão completamente nova ou de alteração da jurisprudência relativa às questões recorridas, o órgão jurisdicional pode compensar, total ou parcialmente, as despesas entre as partes.

[…]»

12.

O artigo 100.o dispõe:

«Para intentar uma ação ou para se lhe opor é necessário ter interesse na mesma.»

II. Matéria de facto e questão prejudicial

13.

A Região da Ligúria, através da Agência regional para o transporte público local, publicou no Jornal Oficial da União Europeia de 3 de junho de 2015 ( 11 ) um «anúncio para a seleção dos operadores económicos» que deveriam prestar, no seu território, o serviço público de transporte terrestre de passageiros, em conformidade com a Lei regional da Ligúria n.o 33/2013 e com o Regulamento n.o 1370/2007.

14.

Diversas empresas (a seguir «AMT») que prestavam serviço de transporte público terrestre na região, à escala da província ou infraprovincial, impugnaram no Tribunale Amministrativo Regionale della Liguria (Tribunal Administrativo Regional da Ligúria, Itália) ( 12 ) os atos do procedimento de seleção. Alegaram, para fundamentar o seu pedido, que, ao estabelecer a região como âmbito territorial único para a prestação do serviço, as suas possibilidades de lhes ser adjudicado o serviço eram praticamente nulas.

15.

Tendo sido posta em causa a conformidade da Lei regional da Ligúria n.o 33/2013 com a Constituição italiana, o TAR da Ligúria submeteu uma «questão de constitucionalidade» à Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália) em 21 de janeiro de 2016.

16.

Na pendência da ação de apreciação da constitucionalidade, a Região da Ligúria aprovou uma nova Lei ( 13 ) que eliminou a delimitação regional para a prestação do serviço de transporte terrestre. A autoridade competente, perante a referida eliminação, decidiu não dar continuidade ao procedimento de concurso, deixando‑o sem efeito.

17.

Não obstante o que precede, a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) proferiu o Acórdão n.o 245/2016, de 22 de novembro, em que declarou inadmissível a questão suscitada pelo Tribunal Administrativo da Ligúria, porque a AMT não tinha legitimidade para recorrer dos atos do procedimento de concurso, no qual não tinha participado.

18.

A Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:

«Segundo refere o tribunal requerente, as recorrentes, empresas já adjudicatárias de serviços de transporte público à escala da província, não participaram no concurso informal aberto pela Administração regional nos termos do artigo 30.o do Decreto Legislativo n.o 163 de 2006 [ ( 14 )], tendo‑se limitado a impugnar o anúncio para a seleção dos operadores económicos em que se convidava à apresentação de manifestações de interesse, na medida em que estabelece a adjudicação de âmbito regional e num único lote.

Segundo jurisprudência consolidada em matéria de contencioso administrativo, uma empresa que não participe no procedimento de concurso não pode impugnar o referido procedimento nem a adjudicação a favor de empresas terceiras porque a sua posição jurídica material não é suficientemente diferenciada, por se fundamentar num mero interesse factual (Acórdão n.o 2507 do Conselho de Estado, Terceira Secção, de 10 de junho de 2016; Acórdão n.o 491 do Conselho de Estado, Terceira Secção, de 2 de fevereiro de 2015; Acórdão n.o 6048 do Conselho de Estado, Sexta Secção, de 10 de dezembro de 2014; Acórdão n.o 9 do Conselho de Estado, reunido em Plenário, de 25 de fevereiro de 2014, e Acórdão n.o 4 do Conselho de Estado, reunido em Plenário, de 7 de abril de 2011).

Também segundo jurisprudência consolidada, “os convites à apresentação de propostas e os anúncios de concurso são normalmente impugnados conjuntamente com os atos que os aplicam, uma vez que são esses atos que identificam concretamente as pessoas afetadas pelo procedimento e tornam atual e concreto o dano causado à situação subjetiva do interessado” (Acórdão n.o 1 do Plenário do Conselho de Estado, de 29 de janeiro de 2003).

Constituem uma exceção a estas regras, resultantes da simples aplicação aos procedimentos de concurso dos princípios gerais em matéria de legitimidade e interesse em agir, as situações em que se impugne a inexistência de concurso ou o anúncio do mesmo, ou as situações em que se impugnem cláusulas do anúncio de concurso que excluam imediatamente concorrentes ou, por último, cláusulas que imponham encargos manifestamente incompreensíveis ou completamente desproporcionados ou que impossibilitem a própria apresentação da proposta (Acórdão n.o 2507 do Conselho de Estado, Terceira Secção, de 10 de junho de 2016; Acórdão n.o 5862 do Conselho de Estado, Quinta Secção, de 30 de dezembro de 2015; Acórdão n.o 5181 do Conselho de Estado, Quinta Secção, de 12 de novembro de 2015; Acórdão n.o 9 do Conselho de Estado, reunido em Plenário, de 25 de fevereiro de 2014 e Acórdão n.o 4 do Conselho de Estado, reunido em Plenário, de 7 de abril de 2011).

Nesses casos, o pedido de participação no procedimento não é relevante para efeitos da impugnação, seja pela inexistência do próprio concurso, seja porque a impugnação do concurso na sua origem ou a impossibilidade de nele participar façam emergir ex se uma situação jurídica diferenciada (em relação, respetivamente, à empresa titular de uma relação jurídica incompatível com o anúncio do novo procedimento e à empresa do setor que se vê impedida de participar) e um prejuízo efetivo e concreto (Acórdão n.o 4 do Conselho de Estado, reunido em Plenário, de 7 de abril de 2011).

O caso em apreço no presente processo não está abrangido por estas situações excecionais, como se depreende da própria fundamentação do despacho de reenvio, que afirma que as cláusulas impugnadas dizem respeito às probabilidades de adjudicação às recorrentes, que “estavam reduzidas quase a zero”, enquanto num concurso relativo ao território da província e subdivido em lotes, estas “teriam consideráveis probabilidades obter a adjudicação do serviço, nem que fosse em resultado da vantagem de terem sido os anteriores operadores do mesmo serviço”.

Dessa fundamentação não decorre a existência de um impedimento real e efetivo à participação no concurso, mas apenas a hipótese de um eventual prejuízo, que pode ser impugnado por quem tenha participado no procedimento, exclusivamente no termo do mesmo, caso não lhe tenha sido adjudicado o contrato.»

19.

O TAR da Ligúria duvida que a interpretação da Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) seja compatível com a Diretiva 89/665. Por esse motivo, apesar de o anúncio de concurso ter ficado sem efeito, considera necessário que o Tribunal de Justiça se pronuncie a título prejudicial para decidir relativamente às despesas do processo.

20.

O órgão jurisdicional de reenvio entende que se podem verificar duas situações:

«se se considerasse que o recurso de anulação que visa a fiscalização de todo o procedimento de concurso integra um dos casos excecionais em que se considera que o operador económico que não tinha tomado parte no concurso tem legitimidade para recorrer, a instância deveria terminar com uma decisão de declaração da inutilidade superveniente da lide, em virtude da aprovação da Lei regional da Ligúria n.o 19/2016 […]. [A]s despesas processuais, assim como a taxa de justiça, […] seriam […] suportadas pela parte recorrida com o subsequente reembolso das mesmas às recorrentes.»

«Em contrapartida, no caso de se aceitar a opção interpretativa prevista no Acórdão n.o 245/2016 da Corte Costituzionale, e se considerar, portanto, que as sociedades recorrentes não têm o direito de impugnar os atos do concurso, a instância deveria terminar com uma declaração de inadmissibilidade do recurso por falta de interesse em agir, com a consequente repartição das despesas a cargo das recorrentes.»

21.

Com fundamento nas circunstâncias anteriormente referidas, o TAR da Ligúria submete a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 1.o, n.os 1, 2 e 3, e o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 89/665 CEE, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras, opõem‑se a uma regulamentação nacional que reconhece a possibilidade de impugnar os atos de um procedimento de concurso apenas aos operadores económicos que tenham apresentado um pedido de participação nesse concurso, mesmo quando a ação judicial visa a fiscalização do procedimento na origem, na medida em que do regulamento do concurso resulta uma probabilidade elevadíssima de não obter a adjudicação?»

III. Síntese das observações das partes.

22.

O Governo italiano contesta a admissibilidade da questão prejudicial com os argumentos seguintes:

Em primeiro lugar, porque o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 89/665 define o seu âmbito de aplicação por referência à Diretiva 2004/18. Dado que o concurso controvertido tinha por objeto a adjudicação de uma concessão de serviço público de transporte terrestre, a Diretiva 2004/18 não é aplicável, tal como a Diretiva 89/665.

Em segundo lugar, mesmo que o fosse, a aplicação da Diretiva 89/665 assenta numa violação das normas substantivas da Diretiva 2004/18. O órgão de reenvio não indicou que disposições foram violadas, referindo‑se de modo vago a uma eventual restrição excessiva da concorrência, sem especificar as disposições do direito da União violadas.

23.

Quanto ao mérito, o Governo italiano salienta que a regra geral consiste em que quem se tenha abstido voluntária e livremente de participar num procedimento de seleção não tem legitimidade para pedir a sua anulação. Contudo, existem exceções quando se impugne: i) a abertura do concurso na sua origem; ii) a não existência de concurso, tendo a Administração decidido adjudicar o contrato por ajuste direto contrato; e iii) uma ou várias cláusulas do anúncio de concurso, que excluam diretamente o recorrente. Entende que este esquema é perfeitamente compatível com os princípios jurisprudenciais estabelecidos no Acórdão Grossmann Air Service ( 15 ).

24.

O Governo italiano conclui que, no caso concreto, a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) entendeu que as possibilidades da ATM não eram inexistentes mas sim reduzidas, de modo que a determinação da sua elegibilidade só podia ser feita após a finalização do procedimento de seleção, ao qual deveria ter concorrido.

25.

O Governo da República Checa, fundamentando‑se também no Acórdão Grossmann, alega que, se os proponentes potenciais se encontram numa situação discriminatória, deve ser‑lhes reconhecida legitimidade para impugnar as cláusulas geradoras de discriminação. O provimento do seu recurso permitir‑lhes‑ia ter acesso à adjudicação do contrato, podendo obter a revisão dos atos da primeira fase do concurso, sem esperar pelo seu resultado definitivo.

26.

Para o Governo de Espanha, a Diretiva 89/665 estabelece níveis mínimos de acesso aos procedimentos de recurso, competindo aos ordenamentos internos configurá‑los no âmbito dos limites dos princípios da equivalência e efetividade. Centra a análise no princípio da efetividade e rejeita a sua violação, uma vez que o artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 89/665 exige que a pessoa afetada tenha sido ou possa vir a ser lesada por uma eventual violação do direito comunitário. Tal não se verifica relativamente ao recorrente no que diz respeito a atos de um concurso em que não participou.

27.

O Governo de Espanha salienta que a legislação italiana e a jurisprudência que a interpreta preveem vias de impugnação do anúncio do concurso sem que seja necessário ter participado no mesmo, e que as recorrentes deixaram passar a oportunidade de impugnar o anúncio do concurso. Não existe, assim, justificação para interpor agora recurso dos atos de um procedimento de concurso em que não participou.

28.

A Comissão entende que a questão prejudicial submetida é inadmissível, por ser hipotética, dada a inutilidade superveniente do processo principal.

29.

Quanto ao mérito, a Comissão analisa o Acórdão Grossmann e alega que as normas nacionais reguladoras dos recursos devem respeitar o princípio da efetividade e não violar o efeito útil da Diretiva 89/665, reforçado pelo artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

30.

Segundo a Comissão, a jurisprudência da Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) é contrária ao referido princípio quando exige uma certeza absoluta de ser excluído do concurso para invocar as exceções à legitimidade do recorrente que não tenha participado no mesmo. O Tribunal de Justiça não exigiu a demonstração de uma certeza absoluta, mas apenas de uma probabilidade.

IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

31.

O despacho de reenvio prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 31 de maio de 2017.

32.

Apresentaram observações escritas os Governos italiano, espanhol e checo, bem como a Comissão Europeia. Apenas o Governo italiano e a Comissão compareceram na audiência realizada em 26 de abril de 2018.

V. Apreciação

A.   Admissibilidade da questão prejudicial

33.

O ponto essencial da questão prejudicial reside na legitimidade para agir de quem, como a AMT, não apresentou a sua candidatura para ser adjudicatário de um concurso público, ao considerar que existia uma probabilidade elevadíssima de não ser selecionado.

34.

Tal como foi já exposto, a inutilidade superveniente da lide no órgão jurisdicional nacional decorreu de uma reforma legislativa, na sequência da qual a entidade adjudicante não deu seguimento ao anúncio do concurso. Contudo, o órgão jurisdicional nacional alega que continua a ser necessário que o Tribunal de Justiça se pronuncie a título prejudicial, para poder decidir relativamente às despesas processuais.

35.

Decorre do artigo 267.o TFUE que a questão prejudicial tem como finalidade fornecer ao órgão jurisdicional nacional as orientações necessárias para dirimir um litígio em que surjam dúvidas relativas à interpretação do direito da União.

36.

Recordei desde o início destas conclusões que o Tribunal de Justiça teve oportunidade de se pronunciar sobre uma situação semelhante, em que se verificou a inutilidade superveniente do processo principal e a decisão prejudicial era apenas útil para decidir relativamente às despesas.

37.

Com efeito, no Despacho Reinke afirma‑se que a decisão relativa às despesas está subordinada à decisão do processo principal no âmbito do qual tenham sido submetidas as questões prejudiciais. Tendo o referido litígio sido concluído, já não era necessário responder às questões submetidas no que diz respeito apenas às despesas ( 16 ).

38.

Parece‑me que a lógica do Despacho Reinke é correta ( 17 ) e está em linha com outras manifestações desse mesmo princípio (por exemplo, nos termos do artigo 58.o do Estatuto do Tribunal de Justiça, não pode ser interposto recurso que tenha por único fundamento o montante das despesas ou a determinação da parte que as deve suportar). Se se verificar a inutilidade superveniente da lide no processo no qual devia ser aplicada a norma do direito da União, o litígio entre as partes extingue‑se e a interpretação de uma norma da União pelo Tribunal de Justiça simplesmente deixa de ser necessária, porque não pode ter influência no litígio (inexistente).

39.

Contudo, o TAR da Ligúria afirma que a apreciação do Tribunal de Justiça relativa à legitimidade de um recorrente para impugnar um concurso em que não tenha participado seria relevante para que o mesmo identifique a parte que deve suportar as despesas do processo que ficou sem objeto e determine o montante das mesmas.

40.

Não creio que esta relação indireta baste para apreciar uma ligação suficiente com o direito da União. O que ora se discute já não se enquadra, na realidade, no âmbito dos contratos administrativos, mas no da regulação das despesas do processo judicial. A menos que alguma norma do direito da União lhes fosse aplicável (o que se verifica em determinados âmbitos materiais, aos quais farei referência seguidamente), a decisão relativa às despesas baseia‑se exclusivamente no direito nacional, e não no da União

41.

A ideia subjacente ao Despacho Reinke relaciona‑se com a função da questão prejudicial: a interpretação do direito da União deve ser necessária para que o órgão jurisdicional nacional possa dirimir o litígio (n.o 13 do referido despacho), pelo que o desaparecimento deste último torna desnecessária a resposta prejudicial (n.o 16).

42.

O direito da União não contém uma regulamentação harmonizada das despesas do processo, cujo tratamento é abrangido pelo âmbito das competências dos Estados‑Membros. Apenas em determinados setores o legislador da União mostrou a sua vontade de abordar esta questão, quer para evitar despesas excessivamente elevadas que possam inibir o acesso à justiça em algum setor do ordenamento jurídico ( 18 ), quer para garantir que quem tenha sido lesado nos seus direitos receba da outra parte despesas processuais proporcionadas e razoáveis, em determinados domínios materiais específicos ( 19 ).

43.

Mesmo nos domínios em que o direito da União procede à regulação das despesas do processo, o Tribunal de Justiça declarou que, «na falta de precisão do direito da União, os Estados‑Membros, aquando da transposição de uma diretiva, devem assegurar a sua plena eficácia, ao mesmo tempo que dispõem de uma ampla margem de apreciação quanto à escolha dos meios». No que diz respeito ao caso então em apreço, relativo ao direito ao ambiente, o Tribunal de Justiça afirmou que deviam «ser tidas em conta todas as disposições do direito nacional pertinentes e, designadamente, o sistema nacional de apoio judiciário e o regime de proteção das despesas», bem como «as diferenças sensíveis entre as legislações nacionais nesse domínio» ( 20 ).

44.

Se esta ampla margem de apreciação, acrescida ao reconhecimento das especificidades de cada sistema nacional, existe nos casos em que o direito da União diz respeito à regulação das despesas do processo, maior será ainda a liberdade dos Estados‑Membros num âmbito em que não existe regulamentação comunitária.

45.

No presente processo, se houvesse um diferendo quanto às despesas ( 21 ), diria apenas respeito à interpretação das normas internas reguladoras da sua repartição entre as partes, bem como dos poderes do juiz para as aplicar. Num litígio limitado a estas despesas do processo, é o direito nacional que deve fornecer as orientações para a sua resolução, e não o direito da União que, repito, não as estabelece neste âmbito material.

46.

Haveria a possibilidade de, apesar de não haver harmonização comunitária em matéria de despesas aplicáveis a este tipo de litígios, as características do processo principal comprometerem o respeito pelas normas fundamentais e pelos princípios gerais do Tratado FUE, mas, para isso, seria necessário que uma das liberdades fundamentais estivesse em causa, facto que o despacho de reenvio nem sugere.

47.

Finalmente, não pretendendo substituir o tribunal a quo nas suas apreciações nem interferir na sua liberdade de optar por uma fórmula ou outra das previstas no seu direito interno, as normas já referidas do Código de Processo Civil e do Código de Processo Administrativo proporcionam‑lhe apoio suficiente para, seja qual for a eventual solução para o problema da legitimidade da recorrente, decidir quanto às despesas com fundamentos dissociados da referida questão.

48.

Basta recordar, sob essa perspetiva, que, segundo o direito interno, quando esteja em causa «uma questão completamente nova ou de alteração da jurisprudência relativa às questões recorridas» ( 22 ), o órgão jurisdicional pode compensar, total ou parcialmente, as despesas entre as partes. Tem, portanto, plena liberdade de escolha relativamente a esta matéria, tanto se, em conformidade com o Acórdão da Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional), recusar a legitimidade da AMT, como se a admitir.

49.

Considero, consequentemente, que a questão prejudicial é inadmissível, por não ser necessária uma resposta do Tribunal de Justiça e este não ser competente para se pronunciar relativamente à aplicação do sistema de despesas processuais italiano, de natureza puramente interna.

B.   Quanto ao mérito

50.

Para o caso de o Tribunal aceitar apreciar o mérito da questão prejudicial, exporei a minha opinião a título subsidiário. Fá‑lo‑ei procurando delimitar, em primeiro lugar, o regime jurídico aplicável, para, seguidamente, propor uma solução para a questão suscitada.

1. Regime jurídico aplicável

51.

O objeto do concurso controvertido consistia na adjudicação da prestação de serviços públicos de transporte terrestre de passageiros. Este tipo de serviços é abrangido pelo âmbito específico do Regulamento n.o 1370/2007, cujo artigo 5.o regula a «adjudicação de contratos de serviço público» no setor dos transportes.

52.

Dos elementos constantes do despacho de reenvio não se pode inferir com segurança se, neste processo, estava em causa um «contrato de concessão de serviços» ou um «contrato público de serviços». Embora os dois institutos tenham características semelhantes ( 23 ), distinguem‑se no que diz respeito à contrapartida, que, no caso das concessões, consiste no direito a explorar o serviço (quer isoladamente, quer acompanhado de um pagamento) e, no caso dos contratos de serviços, consiste no pagamento pela entidade adjudicante ao prestador de serviços em causa ( 24 ).

53.

A inclusão do contrato controvertido numa ou noutra categoria é da competência do órgão jurisdicional nacional, que, diferentemente do Tribunal de Justiça, dispõe de todos os elementos de facto para a realizar. A sua qualificação é relevante para determinar o regime jurídico que lhe é aplicável, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1370/2007 ( 25 ).

54.

Abordarei, assim, o problema da legitimidade para recorrer em ambas as hipóteses.

a) Concessão de serviço público de transporte

55.

Na primeira hipótese, trata‑se de uma concessão de serviços, como algumas das observações escritas defendem e podia deduzir‑se do anúncio de concurso, na medida em que remete para o artigo 30.o do Código dos Contratos Públicos, que regula precisamente as «concessões de serviços» ( 26 ).

56.

O Governo de Itália fundamenta‑se na existência de uma concessão para pôr em causa a invocação da Diretiva 89/665. Alega que, como o seu artigo 1.o, n.o 1, estabelece o seu âmbito de aplicação por referência à Diretiva 2004/18, esta última não é aplicável a essas concessões.

57.

A Comissão, pelo contrário, alega que, em Itália, o artigo 30.o, n.o 7, do Código dos Contratos Públicos estende a aplicação da Diretiva 89/665 às concessões de serviços públicos. Existe, assim, uma ligação comunitária entre a legislação nacional e o direito da União, na qual se fundamenta a competência prejudicial do Tribunal de Justiça, em conformidade com jurisprudência constante ( 27 ).

58.

Por esta via, a Diretiva 89/665 poderia ser aplicável. Contudo, «[a] tomada em consideração dos limites que o legislador nacional estabeleceu para aplicação do direito comunitário a situações meramente internas, às quais o direito comunitário só é aplicável por intermédio da lei nacional, releva do direito interno e, por conseguinte, é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro» ( 28 ).

59.

Além disso, a regulação específica do serviço público de transporte terrestre de passageiros constante do Regulamento n.o 1370/2007 submete a adjudicação das respetivas concessões às regras dos n.os 2 a 6 do artigo 5.o desse mesmo regulamento e acrescenta, no n.o 7, que as decisões tomadas de acordo com os referidos números têm de poder «ser revistas de forma eficaz e célere, a pedido de uma pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um contrato particular, e que tenha sido ou corra o risco de ser prejudicada por uma alegada infração, em virtude de essas decisões terem infringido o direito comunitário ou as normas nacionais que transpõem esse direito».

60.

Sublinha‑se, portanto, que, neste ponto, coincidem substancialmente, as previsões do Regulamento n.o 1370/2007 e do artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 89/665. Não é por acaso que o considerando 21 do referido regulamento afirma que «[d]eve ser garantida uma proteção jurídica eficaz, não só em relação aos contratos abrangidos [pela Diretiva 2004/17/CE e pela Diretiva 2004/18/CE], mas também em relação aos contratos celebrados ao abrigo do presente regulamento. É necessário um processo de recurso eficaz, que deverá ser comparável, conforme o caso, aos procedimentos pertinentes estabelecidos na Diretiva 89/665/CEE […], e na Diretiva 92/13/CEE […]».

61.

Em suma, embora por um caminho diferente, o resultado a que se chega é o mesmo: a obrigatoriedade de instaurar processos de recurso eficazes. A questão reside, a partir desta premissa, em determinar até que ponto devem estes recursos ser acessíveis a empresas que não tenham participado no procedimento de concurso.

b) Contrato de serviços de transporte

62.

Na segunda hipótese, o negócio jurídico controvertido está abrangido pela categoria dos contratos de serviços de transporte. De facto, no «anúncio periódico indicativo» de 22 de fevereiro de 2014, refere‑se apenas a Diretiva 2004/17 ( 29 ) e estabelece‑se como critério de adjudicação a proposta economicamente mais vantajosa. Além disso, o anúncio de abertura do concurso de 29 de maio de 2015 faz referência, no ponto 2, a uma contrapartida para o adjudicatário, que se especificará de modo definitivo nas cartas de convite à apresentação da proposta a que se refere o seu ponto 6.

63.

Consequentemente, poderia defender‑se que essas características do contrato o afastam da concessão de serviços de transporte, na aceção do artigo 1.o, n.o 3, alínea b), da Diretiva 2004/17 ( 30 ), para o enquadrar nos contratos de serviços de transporte. Se assim fosse, o artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1370/2007 permitiria a aplicação da Diretiva 2004/17 e, consequentemente, do regime de recursos previsto nos artigos 1.o e 2.o da Diretiva 92/13, análogo ao artigo correspondente da Diretiva 89/665, ao qual diz respeito a questão do órgão jurisdicional de reenvio.

2. Resposta à questão prejudicial

64.

Embora o núcleo do debate resida na legitimidade para recorrer do concurso e, portanto, no direito de acesso ao sistema de recursos, o despacho de reenvio alarga‑o a outros conteúdos, pela referência, um tanto genérica, aos artigos 1.o, n.os 1, 2 e 3, e 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 89/665.

65.

A Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) fundamenta‑se na jurisprudência do Consiglio di Stato (Conselho de Estado) para estabelecer, no Acórdão n.o 245/2016, uma premissa que me parece de difícil refutação: quem se absteve, voluntária e livremente, de participar num procedimento de seleção não tem legitimidade, em princípio, para pedir a sua anulação. Este critério coincide com o que o Tribunal de Justiça expôs no Acórdão Grossmann, ao interpretar o artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 89/665 ( 31 ).

66.

Os tribunais supremos italianos admitem, contudo, que os processos de recurso sejam acessíveis também a quem não tenha participado no concurso, em determinadas situações excecionais. Entre estas encontram‑se, segundo o Acórdão constitucional n.o 245/2016, «as situações em que se impugne a inexistência de concurso ou o anúncio do mesmo, ou as situações em que se impugnem cláusulas do anúncio de concurso que excluam imediatamente concorrentes ou, por último, cláusulas que imponham encargos manifestamente incompreensíveis ou completamente desproporcionados ou que impossibilitem a própria apresentação da proposta».

67.

De novo, este alargamento da legitimidade para recorrer parece‑me em consonância com o que o Tribunal de Justiça admitiu para as situações em que as cláusulas do anúncio do concurso ou do caderno de encargos eram, por si só, discriminatórias ao ponto de impedir a participação de uma ou mais empresas ( 32 ). Mesmo «que as probabilidades de [as referidas empresas] obter[em] a adjudicação [sejam] nulas devido à existência de tais especificações [discriminatórias]» ( 33 ), deve ser‑lhes reconhecida a legitimidade para recorrer sem lhes ser exigida a participação prévia no concurso ( 34 ).

68.

Consequentemente, não deteto divergências entre a interpretação da Diretiva 89/665 efetuada pelo Tribunal de Justiça e a desenvolvida pelos tribunais supremos italianos, relativa às suas normas nacionais, no que diz respeito à legitimidade de quem, sem intervir no procedimento de concurso, pretende impugnar as cláusulas discriminatórias que impedem totalmente o seu acesso ao concurso.

69.

Circunscrita a questão prejudicial à determinação da eventual oposição entre a Diretiva 89/665 e a legislação nacional, em abstrato, é suficiente o suprarreferido para refutar essa incompatibilidade. O tribunal a quo formula a referida questão em termos que, verdadeiramente, não refletem todos os matizes da jurisprudência dos seus tribunais supremos, tal como se deduz da jurisprudência nacional ( 35 ).

70.

Se se alargar a resposta às especificidades do processo principal, no qual a decisão relativa à legitimidade da AMT se tornou definitiva, é, pelo menos, discutível ( 36 ) que a dimensão regional do serviço de transporte terrestre (em vez de o subdividir em lotes por províncias ou de nível inferior) seja, por si só, discriminatória. Diferente é o facto de pequenas empresas não terem meios, só por si, para participar num concurso dessas características, o que é geralmente inerente a concursos de grandes dimensões.

71.

Em todo o caso, o que a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) decidiu é que, tal como o concurso estava configurado, existia uma elevada probabilidade, mas não uma impossibilidade absoluta, de a AMT não obter a adjudicação ( 37 ). Rejeitou, por conseguinte, que existisse «um impedimento real e efetivo à participação no concurso». Enquanto apreciação já definitiva relativa ao conteúdo das cláusulas respetivas, estas decisões vinculam apenas, necessariamente, o órgão jurisdicional de reenvio, e a resposta prejudicial deverá também circunscrever‑se às mesmas.

72.

A Comissão invoca o Acórdão Grossmann para argumentar que não é exigível uma certeza absoluta da exclusão de um concurso, sendo suficiente a mera probabilidade de ser excluída para que a empresa lesada possa impugnar o referido concurso, sem necessidade de nele ter participado.

73.

A minha leitura do Acórdão Grossman não coincide de modo nenhum com a da Comissão. Entendo ser perigoso introduzir o cálculo de probabilidades como único fator decisivo para a resolução desta questão. Se assim fosse, qualquer empresa poderia alegar que as cláusulas de um concurso (ainda que sem caráter discriminatório) terão como efeito provável a sua exclusão, o que abriria a porta a eventuais impugnações sem seriedade, suscitadas por quem tenha optado por não participar no procedimento de adjudicação.

74.

Mas, em todo o caso, repito, não compete ao Tribunal de Justiça apreciar se a Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional) se enganou ao excluir, neste processo específico, a legitimidade da AMT. O aspeto decisivo — e insisto no facto de a questão do órgão jurisdicional a quo dizer respeito à oposição entre a legislação nacional e a Diretiva 89/665 — consiste em saber se a jurisprudência geral que os tribunais supremos italianos estabeleceram relativamente à legitimidade para recorrer (recusada em princípio, embora admissível em determinados casos) dos operadores económicos que não participam num concurso se circunscreve ao direito da União, como creio ser o caso.

VI. Conclusão

75.

Atendendo a todas as considerações anteriores, sugiro que o Tribunal de Justiça:

«1)

Declare inadmissível a questão prejudicial do Tribunale Amministrativo Regionale della Liguria (Tribunal Administrativo Regional da Ligúria, Itália).

2)

Subsidiariamente, declare que o artigo 1.o, n.os 1, 2 e 3, e o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras de fornecimentos, não se opõem a uma legislação nacional segundo a qual, em conformidade com a interpretação dos seus tribunais superiores:

quem se absteve voluntária e livremente de participar num procedimento de seleção dos adjudicatários não tem, em princípio, legitimidade para pedir a sua anulação;

excetuam‑se dessa regra as situações em que se impugne a inexistência de concurso ou, sendo o caso, a falta de anúncio do mesmo, ou as situações em que se impugnem cláusulas do anúncio de concurso que excluam imediatamente concorrentes ou, por último, cláusulas que imponham encargos manifestamente incompreensíveis ou completamente desproporcionados ou que impossibilitem a própria apresentação da proposta.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Despacho de 14 de outubro de 2010 (C‑336/08, não publicado, a seguir Despacho Reinke, EU:C:2010:604).

( 3 ) Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras de fornecimentos (JO 1989, L 395, p. 33), e Diretiva 92/13/CEE do Conselho, de 25 de fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO 1992, L 76, p. 14).

( 4 ) Redação dada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, que altera as Diretivas 89/665/CEE e 92/13/CEE do Conselho no que diz respeito à melhoria da eficácia do recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos (JO 2007, L 335, p. 31). Indico entre parêntesis retos as alterações do texto da Diretiva 92/13 relativamente à redação correspondente da Diretiva 89/665.

( 5 ) Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 1191/69 e (CEE) n.o 1107/70 do Conselho (JO 2007, L 315, p. 1).

( 6 ) Gazzetta Ufficiale n.o 188, de 13 de agosto de 2011, convertida, com alterações, na Lei n.o 148, de 14 de setembro de 2011.

( 7 ) Bollettino Ufficiale n.o 17, de 8 de novembro de 2013; a seguir «Lei regional da Ligúria n.o 33/2013».

( 8 ) Estes artigos foram revogados pela Lei regional n.o 19, de 9 de agosto de 2016, que aprova «alterações à Lei regional n.o 33, de 7 de novembro de 2013 (Reforma do sistema de transporte público regional e local) e outras alterações legislativas em matéria de transportes públicos locais» (Gazzetta Ufficiale n.o 11, de 18 de março de 2017; a seguir «Lei regional da Ligúria n.o 19/2016»).

( 9 ) Decreto Legislativo n.o 104, de 2 de julho de 2010 (Gazzetta Ufficiale n.o 156, de 7 de julho de 2010).

( 10 ) Regio Decreto n.o 1443, de 28 de outubro de 1940 (Gazzetta Ufficiale n.o 253, de 28 de outubro de 1940).

( 11 ) JO 2015, S 105, de 3 de junho, anúncio n.o 191825. Esse anúncio foi precedido de outro «anúncio indicativo» de 18 de fevereiro de 2014 (2014/S 038‑063550), em que se fazia referência à Diretiva 2004/17.

( 12 ) A seguir «TAR da Ligúria».

( 13 ) V. nota 8..

( 14 ) Decreto legislativo 12 aprile 2006, n.o 163. Codice dei contratti pubblici relativi a lavori, servizi e forniture in attuazione delle direttive 2004/17/CE e 2004/18/CE. [Decreto Legislativo n.o 163, de 12 de abril de 2006 (Gazzetta Ufficiale n.o 100 de 2 de maio de 2006, a seguir «Decreto Legislativo n.o 163 de 2006» ou «Código dos Contratos Públicos)»].

( 15 ) Acórdão de 12 de fevereiro de 2004 (C‑230/02, a seguir Acórdão Grossmann, EU:C:2004:93).

( 16 ) N.o 16.

( 17 ) Obviamente, poderia argumentar‑se que as circunstâncias do processo Reinke não eram idênticas às deste. Entendo, contudo, que, apesar de algumas diferenças acidentais, a analogia entre ambos é inquestionável.

( 18 ) Artigo 10.o‑A da Diretiva 85/337/CEE do Conselho, de 27 de junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projetos públicos e privados no ambiente (JO 1985, L 175, p. 40) e 15.o‑A da Diretiva 96/61/CE do Conselho, de 24 de setembro de 1996, relativa à prevenção e controlo integrados da poluição (JO 1996, L 257, p. 26).

( 19 ) Artigo 14.o da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO 2004, L 157, p. 45); e artigo 6.o, n.o 3, da Diretiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais (JO 2011, L 48, p. 1).

( 20 ) Acórdão de 11 de abril de 2013, Edwards (C‑260/11, EU:C:2013:221, n.os 37 e 38).

( 21 ) O órgão jurisdicional de reenvio não fornece elementos que demonstrem o conflito entre as partes quanto à aplicação e ao montante das (futuras) despesas processuais. Além disso, todas as partes recusaram intervir no pedido de decisão prejudicial, o que, em meu entender, não revela muito interesse na sua resolução.

( 22 ) No despacho de reenvio afirma‑se que a legislação e a jurisprudência anterior do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) relativa à legitimidade para recorrer de quem não tinha participado no concurso estavam «em linha com a jurisprudência comunitária». Para o tribunal a quo, a situação alterou‑se na sequência do Acórdão constitucional n.o 245/2016, «precedente autorizadíssimo» que já foi aplicado em acórdãos posteriores do Consiglio di Stato.

( 23 ) V. Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Hörmann Reisen (C‑292/15, EU:C:2016:480, n.o 26); e do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Norma‑A e Dekom (C‑348/10, EU:C:2011:468, n.os 39 e segs.)

( 24 ) A que se deve acrescentar o facto de o concessionário ter de assumir o risco ligado à exploração do serviço. V. Acórdão de 10 de novembro de 2011, Norma‑A e Dekom (C‑348/10, EU:C:2011:721, n.o 44).

( 25 )

( 26 ) Nos termos desta disposição, «as disposições do Código dos Contratos Públicos não são aplicáveis às concessões de serviços salvo o disposto no presente artigo». No seu n.o 3 prevê a possibilidade de recorrer a um «concurso informal para o qual sejam convidados pelo menos cinco concorrentes», como método para a seleção do concessionário, procedimento previsto neste processo.

( 27 ) «[U]ma interpretação, pelo Tribunal de Justiça, das disposições do direito da União em situações que não são abrangidas pelo respetivo âmbito de aplicação justifica‑se quando essas disposições foram tornadas aplicáveis pelo direito nacional a essas situações, de maneira direta e incondicional, a fim de assegurar um tratamento idêntico a essas situações e às abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União» [Acórdão de 19 de outubro de 2017, Solar Electric Martinique (C‑303/16, EU:C:2017:773, n.o 27, e jurisprudência ai referida)].

( 28 ) Acórdão de 18 de outubro de 1990, Dzodzi (C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360 n.os 41 e 42).

( 29 ) Este anúncio é regulado no artigo 41.o da referida diretiva.

( 30 )

( 31 ) Acórdão Grossmann, n.o 27: «[…] a participação num processo de concurso público pode, em princípio, validamente constituir uma condição cuja satisfação seja exigida para que a pessoa em causa possua interesse na obtenção do contrato público ou possa vir a sofrer danos em consequência da natureza alegadamente ilegal da decisão de adjudicação. Se não tiver apresentado uma proposta, essa pessoa dificilmente pode demonstrar que dispõe de um interesse em opor‑se à referida decisão ou que é ou pode vir a ser lesada pela adjudicação».

( 32 ) Ibidem, n.o 28: «[N]a hipótese de uma empresa não ter apresentado uma proposta devido à presença de especificações alegadamente discriminatórias na documentação relativa ao concurso ou no caderno de encargos, as quais estariam precisamente na origem da impossibilidade de a mesma fornecer todas as prestações solicitadas». Neste caso, a empresa «pode recorrer diretamente dessas especificações, mesmo antes do encerramento do processo de adjudicação do contrato público em causa» (o sublinhado é meu).

( 33 ) Ibidem, n.o 29 (o sublinhado é meu).

( 34 ) Ibidem, n.o 30: «Assim, uma empresa deve poder recorrer diretamente destas especificações discriminatórias, sem aguardar o termo do processo de adjudicação do contrato público».

( 35 ) V. a sua transcrição no n.o 18 das presentes conclusões.

( 36 ) Podem invocar‑se motivos de eficácia e economias de escala para estabelecer âmbitos de prestação dos serviços públicos de transporte rodoviário de um determinado nível (regional, por exemplo), em vez de os fragmentar em níveis inferiores. A opção entre uns e outros compete às autoridades competentes, que devem também ponderar se da seleção de um único lote decorrem obstáculos desproporcionados à entrada para os operadores económicos de menor dimensão. Neste processo, a Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (autoridade responsável pela concorrência e pelo mercado) convidou, em 25 de junho de 2015, a Agência regional para o transporte público local da Ligúria a estabelecer «uma multiplicidade de lotes que permitam assegurar a mais ampla participação possível no procedimento concorrencial».

( 37 ) No recurso da AMT no TAR da Ligúria, esta empresa afirmava que o anúncio do concurso «limitava significativamente a possibilidade de participação […] dos operadores de pequena e média dimensão, como as empresas de transporte público local, impondo‑lhes a associação, a toda o custo, com os operadores de grandes dimensões» (p. 51 do requerimento de interposição de recurso) (o sublinhado é meu).