CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 12 julho 2018 ( 1 )

Processo C‑238/17

UAB «Renerga»

contra

AB «Energijos skirstymo operatorius»

AB «Lietuvos energijos gamyba»

intervenientes:

UAB «BALTPOOL»,

Governo da República da Lituânia,

Achema AB,

Achemos Grupė UAB

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius, Lituânia)]

«Reenvio prejudicial — Mercado interno da eletricidade — Diretiva 2009/72/CE — Artigo 3.o, n.o 2 — Obrigações de serviço público — Artigo 3.o, n.o 6 — Compensação financeira — Artigo 3.o, n.o 15 — Obrigação do Estado‑Membro de informar a Comissão de todas as medidas aprovadas para o cumprimento das obrigações de serviço universal e de serviço público — Artigo 36.o, alínea f) — Entidade reguladora»

1.

O presente pedido de decisão prejudicial do Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius, Lituânia) tem origem num litígio entre uma empresa produtora de energia e duas clientes suas a respeito de uma alegada mora no pagamento por estas à demandante de valores devidos pela prestação de serviços de interesse público.

2.

Proponho que, na sua resposta, o Tribunal de Justiça declare inadmissíveis as questões do órgão jurisdicional de reenvio, por não existir uma obrigação de serviço público nos termos da Diretiva 2009/72/CE ( 2 ). O presente caso, pura e simplesmente, não se inscreve no âmbito de aplicação da Diretiva 2009/72.

Quadro jurídico

Direito da União

3.

Os considerandos 46 e 50 da Diretiva 2009/72 têm a seguinte redação:

«(46)

O cumprimento dos requisitos de serviço público constitui uma exigência fundamental da presente diretiva e é importante que nela sejam especificadas normas mínimas comuns, a respeitar por todos os Estados‑Membros, que tenham em conta os objetivos de proteção do consumidor, de segurança do fornecimento, de proteção do ambiente e de equivalência dos níveis de concorrência em todos os Estados‑Membros. É importante que os requisitos de serviço público possam ser interpretados num quadro nacional, tendo em conta as circunstâncias nacionais e no respeito do direito comunitário.

[…]

(50)

As obrigações de serviço público, incluindo as que dizem respeito ao serviço universal, e as normas mínimas comuns daí decorrentes têm de ser reforçadas, para garantir a todos os consumidores, em particular aos consumidores vulneráveis, os benefícios da concorrência e de preços mais justos. Os requisitos de serviço público deverão ser definidos a nível nacional, tendo em conta as circunstâncias nacionais. A legislação comunitária deverá ser, todavia, respeitada pelos Estados‑Membros. […]»

4.

Nos termos do artigo 3.o, n.os 2, 6 e 15, da Diretiva 2009/72:

«2.   Tendo plenamente em conta as disposições aplicáveis do Tratado, nomeadamente o artigo 86.o, os Estados‑Membros podem impor às empresas do setor da eletricidade, no interesse económico geral, obrigações de serviço público, nomeadamente em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, de qualidade e de preço dos fornecimentos, assim como de proteção do ambiente, incluindo a eficiência energética, a energia a partir de fontes renováveis e a proteção do clima. Essas obrigações devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis e garantir a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da Comunidade aos consumidores nacionais. Relativamente à segurança do fornecimento, à eficiência energética/gestão da procura e para o cumprimento dos objetivos ambientais e dos objetivos da energia a partir de fontes renováveis referidos no presente número, os Estados‑Membros podem instaurar um sistema de planeamento a longo prazo, tendo em conta a possibilidade de terceiros procurarem aceder à rede.

[…]

6.   Sempre que existam compensações de natureza financeira ou outra e direitos exclusivos concedidos pelos Estados‑Membros para o cumprimento das obrigações previstas nos números 2 e 3, estes devem ser atribuídos de forma transparente e não discriminatória.

[…]

15.   Ao darem execução à presente diretiva, os Estados‑Membros devem informar a Comissão de todas as medidas aprovadas para o cumprimento das obrigações de serviço universal e de serviço público, incluindo a proteção dos consumidores e do ambiente, e dos seus eventuais efeitos na concorrência a nível nacional e internacional, independentemente de tais medidas implicarem ou não uma derrogação à presente diretiva. Os Estados‑Membros devem informar subsequentemente a Comissão, de dois em dois anos, das alterações de que tenham sido objeto essas medidas, independentemente de implicarem ou não uma derrogação à presente diretiva.»

5.

Nos termos do artigo 36.o, da Diretiva 2009/72,

«No exercício das funções reguladoras especificadas na presente diretiva, as entidades reguladoras aprovam todas as medidas razoáveis na prossecução dos seguintes objetivos no quadro das suas obrigações e competências estabelecidas no artigo 37.o, em estreita consulta com outras autoridades nacionais competentes, incluindo as autoridades da concorrência, conforme adequado, e sem prejuízo das competências destas últimas:

[…]

f)

Garantia de que os operadores e utilizadores da rede recebam incentivos apropriados, quer a curto quer a longo prazo, para aumentar a eficiência das redes e promover a integração do mercado;»

Direito lituano

6.

A Diretiva 2009/72 foi transposta para a ordem jurídica lituana pela Energetikos įstatymas (Lei relativa à energia), pela Elektros energetikos įstatymas (Lei relativa à eletricidade) e pela Atsinaujinančių išteklių energetikos įstatymas (Lei relativa à energia de fontes renováveis).

7.

Com base nas disposições da Lei relativa à eletricidade, o Governo lituano adotou em 18 de julho de 2012 a Vyriausybės nutarimas Nr. 916 Dėl Viešuosius interesus atitinkančių paslaugų elektros energetikos sektoriuje teikimo tvarkos aprašo patvirtinimo (Resolução n.o 916 do Governo, que aprova o procedimento para a prestação de serviços de interesse público no setor da eletricidade, a seguir «Resolução n.o 916»). Nos termos do n.o 3 desta resolução, a «compensação de serviço público» é gerida em conformidade com a Vyriausybės nutarimas Nr. 1157 Dėl Viešuosius interesus atitinkančių paslaugų elektros energetikos sektoriuje lėšų administravimo tvarkos aprašo patvirtinimo (Resolução n.o 1157 do Governo, de 19 de setembro de 2012, que aprova o procedimento de gestão de compensações por serviços de interesse público no setor da eletricidade, a seguir «Resolução n.o 1157»).

8.

Por força do ponto 18.1 da Resolução n.o 916 ( 3 ), o pagamento da compensação aos operadores pela prestação dos serviços públicos nela enumerados pode ser temporariamente suspenso, em conformidade com os termos e condições previstos na Resolução n.o 1157, se o operador do serviço público ou as entidades jurídicas com ele relacionadas não pagarem na totalidade ou em parte as compensações por serviços de interesse público pela eletricidade efetivamente consumida ( 4 ), nos termos do n.o 16 da Resolução n.o 1157.

9.

A Resolução n.o 1157, por seu turno, define «entidades jurídicas relacionadas» (ponto3, quinta alínea) ( 5 ) e estipula, no ponto 26.1, que o operador da rede de distribuição, a empresa adquirente e a gestora devem suspender os pagamentos de compensações aos prestadores de serviços de interesse público se estes e/ou as entidades jurídicas com eles relacionadas não pagarem, na totalidade ou em parte, as compensações por serviços de interesse público pela eletricidade efetivamente consumida. A mesma disposição determina em que momento deve ser retomado o pagamento das compensações de serviços de interesse público. O ponto 26.2 da Resolução n.o 1157 estatui que, caso o prestador de um serviço de interesse público deixe de pertencer a um grupo de entidades jurídicas relacionadas, do qual pelo menos uma entidade não tenha pago as compensações por serviços de interesse público, na totalidade ou em parte, pela eletricidade consumida, as compensações por serviços de interesse público ainda pendentes só serão pagas quando as entidades anteriormente relacionadas tiverem pagado todas as compensações por serviços de interesse público devidas pela eletricidade consumida até ao momento em que o prestador de serviços de interesse público tenha abandonado o grupo.

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

10.

A demandante no processo principal, a empresa UAB «Renerga» (a seguir «Renerga»), opera cinco centrais de produção de energia em que gera eletricidade a partir de fontes de energia renováveis. A Renerga injeta a eletricidade produzida em redes elétricas.

11.

A Renerga integra o Achemos Grupė UAB (a seguir «Grupo Achema»), juntamente com a Achema e outras sociedades.

12.

Pelos contratos de 7 de janeiro e de 19 de junho de 2013 celebrados entre a Renerga e as demandadas (AB Energijos skirstymo operatorius e AB Lietuvos energijos gamyba), a Renerga compromete‑se a vender às demandadas, e estas a adquirir e pagar, toda a eletricidade que produz e fornece à rede. Nos termos destes contratos, o preço a pagar por essa eletricidade à Renerga pelas demandadas é composto pelo preço de mercado da eletricidade, acrescido de uma compensação de serviço público que corresponde à diferença entre (i) a taxa fixa aplicável à eletricidade produzida pela Renerga de acordo com as condições previstas nos regulamentos e (ii) o preço de mercado.

13.

Pela comunicação n.o 16‑SD‑108, de 25 de fevereiro de 2016, a BALTPOOL, entidade gestora das compensações por serviços de interesse público, informou as demandadas de que, nos termos das Resoluções n.os 916 e 1157, o pagamento da compensação de serviço público à Renerga teria de ser suspenso até que a Achema ou outras entidades jurídicas com ela relacionadas procedessem ao pagamento integral das compensações de serviço público devidas pela eletricidade por si efetivamente consumida. Segundo a BALTPOOL, a Achema não cumprira cabalmente a sua obrigação de pagar compensações de serviços de interesse público pela eletricidade efetivamente consumida. Uma vez que o capital da Achema e o controlo acionista da Renerga eram detidos pelo grupo Achema, a Achema e a Renerga deviam ser consideradas entidades jurídicas relacionadas entre si.

14.

Em 26 de fevereiro de 2016, a demandada AB Energijos skirstymo operatorius notificou à Renerga a suspensão do pagamento das compensações por serviços de interesse público. Em 8 de março de 2016, a outra demandada, AB Lietuvos energijos gamyba, enviou à Renerga uma comunicação similar, em que participava que o pagamento das compensações por serviços de interesse público que lhe eram devidas estava suspenso por período indeterminado e que a eletricidade por ela fornecida seria paga apenas ao preço de mercado.

15.

Pela comunicação n.o 16‑SD‑135, de 10 de março de 2016, a BALTPOOL confirmou à Renerga que o pagamento da compensação de serviço público se encontrava suspenso, especificando que em 31 de janeiro de 2016 fora enviada à Achema uma fatura no valor total de 629794,15 euros, IVA incluído, com a data de vencimento de 24 de fevereiro de 2016. Na medida em que a referida fatura não foi paga pela Achema até 25 de fevereiro de 2016, o pagamento das compensações por serviços de interesse público à Achema e a quaisquer entidades jurídicas com elas consideradas relacionadas teria de ser suspenso.

16.

Devido ao incumprimento da obrigação de pagamento à Renerga do preço total devido pela eletricidade adquirida, nomeadamente a parcela de compensação de serviços de interesse público, cujo pagamento, como parte do preço da eletricidade, estava previsto nos contratos, as demandadas acumularam uma dívida de 1248199,81 euros à Renerga de compensações de serviços de interesse público não satisfeitas.

17.

Esta dívida foi paga em 21 de abril de 2016, data em que a BALTPOOL adotou as comunicações n.os 16‑SD‑188 e 16‑SD‑189, dirigidas às demandadas, relativas ao pagamento das compensações por serviços de interesse público suspensas.

18.

Em 12 de dezembro de 2016, a Renerga intentou uma ação no Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius) em que pede a condenação das demandadas no pagamento das quantias de 9172,84 euros e 572,82 euros, a título de indemnização, concretamente, de juros compensatórios pela mora no pagamento das compensações por prestação de serviços de interesse público, ao abrigo dos contratos de fornecimento de eletricidade celebrados, respetivamente, em 7 de janeiro e 19 de junho de 2013. A Renerga reclama ainda a condenação de ambas as demandadas no pagamento de juros à taxa anual de 8,05%.

19.

Considerando que a resolução do litígio implica a clarificação de vários preceitos da Diretiva 2009/72, por decisão de 11 de abril de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de maio de 2017, o Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«(1)

O objetivo de “garantir que os operadores e utilizadores da rede recebam incentivos apropriados, quer a curto quer a longo prazo, para aumentar a eficiência das redes e promover a integração do mercado”, consagrado no artigo 36.o, alínea f), da Diretiva 2009/72 para o exercício das funções reguladoras especificadas na Diretiva 2009/72, deve ser entendido e interpretado no sentido de que proíbe a não concessão de incentivos (não pagamento de compensações pelo serviço de interesse público) ou a sua restrição?

(2)

Tendo em conta que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 dispõe que as obrigações de serviço público “devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias e verificáveis”, e que o artigo 3.o, n.o 6, da Diretiva 2009/72 dispõe que a compensação financeira das pessoas responsáveis pelos serviços de interesse público deve ser determinada de forma transparente e não discriminatória:

(2.1)

Deve o artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72 ser interpretado no sentido de que proíbe que o incentivo aos prestadores de serviços de interesse público seja restringido, se estes cumprirem devidamente as obrigações que assumiram relacionadas com a prestação dos serviços de interesse público?

(2.2)

Deve a obrigação estabelecida na legislação nacional de suspensão do pagamento da compensação financeira a prestadores de serviços de interesse público, independentemente das atividades de prestação de serviços de interesse público que tenham exercido e do cumprimento das obrigações que tenham assumido, que fundamenta e subordina a restrição (suspensão) do pagamento da compensação por serviços de interesse público aos atos e obrigações de uma entidade jurídica relacionada com o prestador de serviços (que detém o controlo daquela entidade jurídica e o controlo do prestador de serviços de interesse público), no que respeita aos consumos dos serviços de interesse público calculados para aquela empresa, ser considerada discriminatória, pouco clara e restritiva da concorrência para efeitos do disposto no artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72?

(2.3)

Deve a obrigação estabelecida na legislação nacional de suspensão do pagamento da compensação financeira a prestadores de serviços de interesse público, apesar de os referidos prestadores continuarem obrigados a cumprir integralmente as suas obrigações de prestação de serviços de interesse público e as obrigações contratuais correlacionadas perante as empresas adquirentes de eletricidade, ser considerada discriminatória, pouco clara e restritiva da concorrência para efeitos do disposto no artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72?

(3)

Nos termos do artigo 3.o, n.o 15, da Diretiva 2009/72, que exige que os Estados‑Membros informem a Comissão Europeia, de dois em dois anos, das alterações a todas as medidas aprovadas para o cumprimento das obrigações de serviço universal e de serviço público, está o Estado‑Membro que adotou uma legislação nacional que estabelece os requisitos, as regras e um mecanismo de restrição da compensação devida aos prestadores de serviços de interesse público, obrigado a comunicar essa nova legislação à Comissão Europeia?

(4)

O estabelecimento, por um Estado‑Membro, na legislação nacional de requisitos, de regras e de um mecanismo de restrição da compensação devida aos prestadores de serviços de interesse público, é contrário aos objetivos da Diretiva 2009/72 e aos princípios gerais de direito da União (segurança jurídica, proteção da confiança legítima, proporcionalidade, transparência e não discriminação)?»

20.

Em 28 de fevereiro de 2018, o Tribunal de Justiça remeteu ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido de esclarecimentos nos termos do artigo 101.o do Regulamento de Processo, ao qual o órgão jurisdicional de reenvio respondeu em 26 de março de 2018.

21.

As partes no processo principal ‑ Achemos, BALTPOOL, Governo lituano e Comissão Europeia ‑ apresentaram observações escritas. E todas, à exceção das demandadas, participaram na audiência, que teve lugar em 3 de maio de 2018.

Análise

Quanto à admissibilidade

Objeto

22.

Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, apurar se diversas disposições da Diretiva 2009/72 e os princípios gerais de direito da União obstam à aplicação das normas nacionais que preveem a possibilidade de suspensão do pagamento, a produtores de energia, de compensações pela prestação de serviços de interesse público, destinadas a promover a produção de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis, até que as entidades jurídicas com eles relacionadas tenham pagado as compensações por serviços de interesse público devidas pela eletricidade que efetivamente consumiram.

23.

O caso em apreço decorre de um litígio emergente de contratos celebrados entre a produtora de eletricidade Renerga e duas companhias, Energijos skirstymo operatorius e Lietuvos energijos gamyba, pelos quais aquela se compromete a vender a estas toda a eletricidade que produza (gerada a partir de fontes de energia renováveis). As duas empresas clientes obrigam‑se por sua vez a pagar a eletricidade fornecida. Os contratos, por outro lado, não obrigam a Renerga a produzir efetivamente eletricidade. Pelo que me é dado entender das explicações do órgão jurisdicional de reenvio, os contratos constituem relações jurídicas regidas pelo direito civil.

24.

O elemento determinante do caso em apreço é o modo de cálculo do preço da eletricidade adquirida pelas duas firmas: ao preço de mercado da eletricidade acresce uma «compensação por serviços de interesse público». Essa compensação de serviço público, incluindo as modalidades da sua administração, é regulada, em particular, nas resoluções n.os 916 e 1157.

25.

O processo que corre no órgão jurisdicional de reenvio tem por objeto uma ação de indemnização por mora no pagamento da compensação de serviço público. Logo, as questões em causa dizem unicamente respeito às normas que regem o pagamento da referida compensação, e não o direito (inicial) do prestador do serviço a compensação por serviços de interesse público e muito menos uma possível classificação da mesma como auxílio estatal ilegal.

26.

O que as questões pressupõem, no entanto, é que a Renerga estava efetivamente sujeita a obrigações de serviço público impostas por um Estado‑Membro (a República da Lituânia).

27.

Não partilho tal opinião, e, por conseguinte, entendo que as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio são inadmissíveis. Não existe um ato de um Estado‑Membro que imponha uma obrigação de prestação de serviço público.

Artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72

28.

Segundo o preceituado no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72, tendo plenamente em conta as disposições do Tratado, designadamente o artigo 106.o TFUE, os Estados‑Membros podem impor às empresas do setor da eletricidade, no interesse económico geral, obrigações de serviço público nomeadamente em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, de qualidade e de preço dos fornecimentos, assim como de proteção ambiental, incluindo a eficiência energética, a energia a partir de fontes renováveis e a proteção do clima. O artigo 106.o, n.o 2, TFUE, por seu turno, estipula que as empresas «encarregadas» da gestão de serviços de interesse económico geral ficam submetidas ao disposto nos Tratados, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada.

29.

O denominador comum das normas citadas é o facto de os Estados‑Membros estarem na origem tanto da imposição de obrigações de serviço público, em nome do interesse económico geral (artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72), como da atribuição da gestão de serviços de interesse económico geral a empresas (artigo 106.o, n.o 2, TFUE).

30.

Ora, nenhum dos atos regulamentares lituanos citados no quadro jurídico das presentes conclusões impõe uma obrigação de serviço público à Renerga.

31.

As resoluções n.os 916 e 1157, nomeadamente, cingem‑se à regulação do procedimento para a prestação de serviços de interesse público no setor da eletricidade e à aprovação do procedimento de gestão de compensações por serviços de interesse público no mesmo setor. As suas disposições não impõem obrigações aos produtores de eletricidade que utilizam fontes de energia renováveis. Em parte alguma se estabelece que uma empresa como a Renerga está obrigada a gerar ou transmitir a eletricidade em causa.

32.

Não existe, assim, um ato de um Estado‑Membro.

33.

Os contratos celebrados entre as partes no processo principal tão‑pouco impõem tal obrigação.

34.

Mesmo abstraindo da questão prévia de saber se um contrato de direito privado pode prever uma obrigação de serviço público imposta por um Estado‑Membro, não vislumbro qualquer obrigação de serviço público no contrato. Com efeito, os contratos, livremente celebrados pelas partes sem intervenção das autoridades públicas, ao que parece, estipulam somente que a Renerga se compromete a fornecer às demandadas, e estas a adquirir àquela, a eletricidade que produz nas suas centrais de produção de energia e injeta na rede, a qual é gerada a partir de fontes renováveis. A Renerga limitou‑se aparentemente a contrair uma obrigação ( 6 ) voluntária, no exercício da sua liberdade contratual. Tais ações não são, em meu entender, suscetíveis de configurar uma obrigação na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

35.

Assim, a República da Lituânia não pode ter imposto uma obrigação de serviço público na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

36.

Curiosamente, o órgão jurisdicional de reenvio parece comungar desta opinião, pois embora qualifique a Renerga como prestador de um serviço de interesse público ( 7 ) à luz do disposto nos pontos 7.1 e 8.1 da Resolução n.o 916, considera, conforme transparece da sua resposta ao pedido de esclarecimentos do Tribunal de Justiça, que não lhe foi imposta uma obrigação de serviço público nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2009/72.

37.

Para completar o quadro, é de salientar que, para os efeitos do presente pedido de decisão prejudicial, é irrelevante o facto de, como nota o órgão jurisdicional de reenvio, a Renerga ter cumprido devidamente as obrigações decorrentes dos contratos, ou seja, ter injetado a eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis nas redes das demandadas, enquanto estas incumpriram a obrigação de lhe pagar em contrapartida, na íntegra, o preço de venda da eletricidade acordado, incluindo a compensação de serviço público.

38.

As questões de saber em que medida as partes incumpriram as respetivas obrigações contratuais e se, neste contexto, elas podem invocar as resoluções n.os 916 e 1157, compete aos tribunais nacionais apreciar. Como já expliquei, trata‑se de matéria em que não há lugar à aplicação da Diretiva 2009/72.

39.

Estou bem ciente de que, quando as questões suscitadas pelos tribunais nacionais dizem respeito à interpretação de uma disposição do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a proferir uma decisão ( 8 ). No caso vertente, em meu entender, porém, o Tribunal de Justiça não está habilitado a dar uma resposta útil às questões submetidas, atendendo a que é bastante óbvio que a interpretação pretendida dos preceitos em causa da Diretiva 2009/72 não apresenta qualquer relação com os factos concretos da ação principal ou com o seu objetivo ( 9 ).

Conclusão

40.

Todas estas considerações me levam a crer que o presente pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

Quanto ao mérito (apreciação a título eventual)

41.

A parte remanescente da minha apreciação é levada a cabo para a eventualidade de o Tribunal de Justiça não concordar com a análise que fiz até aqui e entender, pelo contrário, responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Primeira questão

42.

Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio visa, em substância, apurar se o artigo 36.o, alínea f), da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que proíbe à entidade reguladora a não concessão de incentivos, incluindo as compensações por obrigações de serviço público, ou a sua restrição.

43.

O artigo 36.o da Diretiva 2009/72 estabelece os objetivos gerais das entidades reguladoras, e determina que, no exercício das funções reguladoras especificadas na diretiva, elas devem aprovar todas as medidas razoáveis na prossecução de um conjunto de objetivos ( 10 ), um dos quais consiste em garantir que os operadores e utilizadores da rede recebam incentivos apropriados, quer a curto quer a longo prazo, para aumentar a eficiência das redes e promover a integração do mercado [alínea f) do artigo 36.o].

44.

Não vejo em que medida a interpretação desta disposição é relevante para efeitos do litígio do processo principal.

45.

Este processo não versa sobre as ações da entidade reguladora ( 11 ). Aliás, o órgão jurisdicional de reenvio não explica que relação existe entre a suspensão temporária do pagamento de compensações a produtores de eletricidade a partir de fontes renováveis e um incentivo tendente a aumentar a eficiência das redes.

46.

Assim, proponho que se dê a seguinte resposta à primeira questão: o artigo 36.o, alínea f), da Diretiva 2009/72 não obsta à aplicação das normas nacionais que preveem a possibilidade de suspensão do pagamento das compensações destinadas a promover a produção de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis aos produtores de energia até que as entidades jurídicas com eles relacionadas tenham pagado as compensações por serviços de interesse público devidas pela eletricidade que efetivamente consumiram.

Segunda questão

47.

Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende estabelecer se o artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72 se opõe à aplicação de legislação nacional que permita, com fundamentos não diretamente ligados às atividades dos produtores de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis, mas imputáveis a atividades de entidades relacionadas com o produtor, a suspensão do pagamento da compensação de serviço de interesse público aos produtores, mesmo que estes cumpram cabalmente as obrigações contratuais que contraíram para com as empresas a que fornecem eletricidade. O órgão jurisdicional de reenvio pretende também que o Tribunal de Justiça elucide se as disposições relativas ao pagamento da compensação, que possibilitam a sua suspensão, não são discriminatórias, pouco claras ou restritivas da concorrência.

48.

De acordo com o artigo 3.o, n.o 6, da Diretiva 2009/72, sempre que existam compensações de natureza financeira ou outra e direitos exclusivos concedidos pelos Estados‑Membros para o cumprimento das obrigações previstas nos n.os 2 e 3 desse mesmo artigo, estes devem ser atribuídos de forma transparente e não discriminatória.

49.

A fórmula «sempre que» utilizada nesta disposição indica que os Estados‑Membros não são obrigados a compensar financeiramente as empresas sujeitas a obrigações de serviço público ao abrigo do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

50.

É também de recordar que, conforme resulta do considerando 46 da Diretiva 2009/72 — em que se declara que a diretiva especifica «normas mínimas comuns», que têm em conta, entre outros objetivos, a proteção ambiental —, a diretiva não visa harmonizar de forma plena e exaustiva todos os aspetos que abrange.

51.

A diretiva não contém em parte alguma normas pormenorizadas relativas à aplicação de medidas de apoio a prestadores de serviços de interesse público nos Estados‑Membros. Deste facto infiro que, contanto que respeitem os princípios gerais, tais como os princípios de não discriminação e da transparência, os Estados‑Membros dispõem de uma certa margem de apreciação.

52.

Por último, o Tribunal de Justiça tem entendido ainda, relativamente à precursora da Diretiva 2009/72 ( 12 ), que os Estados‑Membros podem definir a extensão e a organização dos seus serviços de interesse económico geral. Em particular, podem ter em consideração objetivos próprios da sua política nacional ( 13 ).

53.

Assim, proponho que a resposta à segunda questão do Tribunal de Justiça seja no sentido de que o artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72 não se opõe à aplicação de legislação nacional que permita, com fundamentos não diretamente ligados às atividades dos produtores de eletricidade a partir de fontes de energia renováveis, mas imputáveis a atividades de entidades relacionadas com o produtor, a suspensão do pagamento da compensação de serviço de interesse público aos produtores, mesmo que estes cumpram cabalmente as obrigações contratuais que contraíram com as empresas a que fornecem eletricidade.

Terceira questão

54.

Na terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio inquire se, por força do preceituado no artigo 3.o, n.o 15, da Diretiva 2009/72, a República da Lituânia estava obrigada a informar a Comissão da introdução na sua legislação nacional da possibilidade de suspensão do pagamento de uma medida de apoio a operadores de serviços de interesse público.

55.

O artigo 3.o, n.o 15, da Diretiva 2009/72 exige que os Estados‑Membros informem a Comissão de todas as medidas aprovadas para o cumprimento das obrigações de serviço universal e de serviço público, incluindo a proteção ambiental, independentemente de tais medidas implicarem ou não uma derrogação à diretiva. Os Estados‑Membros devem também informar a Comissão, de dois em dois anos, das alterações de que tenham sido objeto essas medidas, independentemente de implicarem ou não uma derrogação à diretiva.

56.

Sou incapaz de conceber um modo de a modificação e suspensão dos acordos de pagamento configurarem medidas de cumprimento da obrigação de serviço público na aceção do artigo 3.o, n.o 15, da Diretiva 2009/72.

57.

Por conseguinte, proponho que se dê a seguinte resposta à terceira questão: o artigo 3.o, n.o 15, da Diretiva 2009/72 não obriga um Estado‑Membro a informar a Comissão da introdução na legislação nacional da possibilidade de suspensão do pagamento de uma medida de apoio a operadores de serviço público.

Quarta questão

58.

Com a quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, apurar se o estabelecimento, por um Estado‑Membro, na legislação nacional de requisitos, de regras e de um mecanismo de restrição da compensação devida aos prestadores de serviços de interesse público é contrário aos objetivos da Diretiva 2009/72 e aos princípios gerais de direito da União (segurança jurídica, proteção da confiança legítima, proporcionalidade, transparência e não discriminação).

59.

Com a informação facultada pelo órgão jurisdicional de reenvio, não estou em posição de poder apreciar em que medida os supracitados princípios gerais do direito da União seriam lesados.

60.

Além disso, os elementos relevantes foram já abordados nas secções referentes à admissibilidade e à segunda questão. Com efeito, a assumir‑se que a matéria do caso em apreço se inscreve no âmbito de aplicação da Diretiva 2009/72, não seria necessário recorrer aos princípios de direito primário avançados pelo órgão jurisdicional de reenvio.

Conclusão

61.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius, Lituânia) da seguinte forma:

O pedido de decisão prejudicial de 11 de abril de 2017 do Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância da cidade de Vilnius, Lituânia) é inadmissível.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE (JO 2009 L 211, p. 55).

( 3 ) O ponto 18.1 foi inserido na Resolução n.o 916 por via de uma alteração nela introduzida pela Resolução n.o 76 do Governo, de 25 de janeiro de 2016.

( 4 ) O pedido de decisão prejudicial não aduz mais elementos sobre a natureza ou as modalidades dessa compensação de serviço público no que toca ao consumo efetivo.

( 5 ) Alterada pela Resolução n.o 77 do Governo, de 27 de janeiro de 2016.

( 6 ) De vender, e não de produzir.

( 7 ) Sem especificar em que consiste tal interesse público, conforme já foi observado nas presentes conclusões.

( 8 ) V. Acórdãos de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem (C‑28/95, EU:C:1997:369, n.o 25), e de 2 de março de 2017, Pérez Retamero (C‑97/16, EU:C:2017:158, n.o 21).

( 9 ) V., pela similitude das situações, Acórdãos de 7 de julho de 2011, Agafiţei e o. (C‑310/10, EU:C:2011:467, n.o 27), e de 2 de março de 2017, Pérez Retamero (C‑97/16, EU:C:2017:158, n.o 22).

( 10 ) Tudo isto no quadro das suas obrigações e competências estabelecidas no artigo 37.o, em estreita consulta com outras autoridades nacionais competentes, incluindo as autoridades da concorrência, conforme adequado, e sem prejuízo das competências destas últimas.

( 11 ) De acordo com o artigo 35.o, n.o 1, da Diretiva 2009/72, cada Estado‑Membro designa uma única entidade reguladora a nível nacional. O pedido de decisão prejudicial não especifica o organismo designado pela República da Lituânia para a função (trata‑se da Comissão Nacional de Controlo dos Preços e da Energia ‑ https://ec.europa.eu/energy/en/national‑regulatory‑authorities). Em lugar dela, refere‑se por duas vezes ao Governo lituano.

( 12 ) Diretiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade (JO 2003 L 176, p. 37).

( 13 ) V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, ENEL (C‑242/10, EU:C:2011:861, n.o 50).