CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 26 de abril de 2018 ( 1 ) ( 2 )

Processo C‑176/17

Profi Credit Polska S.A. w Bielsku Białej

contra

Mariusz Wawrzosek

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Rejonowy w Siemianowicach Śląskich (Tribunal da Comarca de Siemianowice Śląskie, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Contrato de crédito ao consumidor — Procedimento de injunção de pagamento de uma livrança, que garante direitos decorrentes de um contrato de crédito ao consumidor — Impossibilidade de o juiz apurar a possível abusividade de cláusulas do contrato se o consumidor não tiver lançado mão de qualquer meio processual»

I. Introdução

1.

O Tribunal de Justiça sublinhou várias vezes que o direito nacional tem um papel decisivo na efetiva garantia da proteção do consumidor. Assim, o Tribunal de Justiça já decidiu, em especial, que o tribunal nacional deve apreciar oficiosamente a abusividade de uma cláusula contratual abrangida pelo âmbito de aplicação da diretiva das cláusulas abusivas ( 3 ) ( 4 ) No presente pedido de decisão prejudicial pergunta‑se ao Tribunal de Justiça, pela primeira vez, se o juiz nacional também tem esse dever quando aprecia uma relação cambiária e a letra ou livrança garante direitos decorrentes de um contrato de crédito ao consumidor.

2.

As letras e as livranças são um instituto jurídico venerável, que remonta à Idade Média e tem origem nas transações em dinheiro entre comerciantes ( 5 ). Os grandes trabalhos legislativos do século XIX, a começar, antes de mais, pelo Code de commerce francês de 1807, libertaram as letras e livranças dessas grilhetas corporativas ( 6 ) e aquelas tornaram‑se no instrumento por excelência que abriu aos cidadãos de todos os estratos sociais o caminho às transações escriturais ( 7 ). A maioria dos Estados‑Membros da União Europeia são partes na Convenção de Genebra de 1930 sobre a Lei Uniforme relativa às letras e livranças, que visava a uniformização internacional do regime jurídico das letras e livranças.

3.

A utilização de livranças, isto é, de títulos de crédito em que o próprio sacador promete pagar uma quantia, como garantia de contratos de crédito ao consumidor, é lícita e uma prática muito frequente, ao contrário do que sucede nalguns outros Estados‑Membros ( 8 ). O direito processual polaco prevê um procedimento de injunção acelerado com base numa livrança, em que o juiz nacional fica restringido a uma apreciação formal da livrança. Se a letra ou livrança servir de garantia a um contrato de mútuo, o procedimento de injunção exclui a apreciação do contrato de mútuo subjacente. O órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a questão de saber se esse procedimento é compatível com a diretiva das cláusulas abusivas e com a diretiva dos contratos de crédito ao consumidor ( 9 ).

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

4.

A diretiva das cláusulas abusivas diz respeito às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. O seu artigo 3.o, n.o 1, dispõe:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

5.

O artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor […].»

6.

O artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

7.

A diretiva dos contratos de crédito ao consumidor é, de acordo com o seu artigo 2.o, aplicável aos contratos de crédito. O artigo 3.o, alínea c), define «Contrato de crédito» como «o contrato por meio do qual um mutuante concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de pagamento diferido, empréstimo ou qualquer outro acordo financeiro semelhante».

8.

O artigo 17.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor:

«Caso os direitos do mutuante ao abrigo de um contrato de crédito ou o próprio contrato sejam cedidos a um terceiro, o consumidor pode exercer em relação ao cessionário qualquer meio de defesa que pudesse invocar perante o mutuante inicial, incluindo o direito à indemnização, desde que esta seja autorizada no Estado‑Membro em causa.»

9.

O artigo 22.o da mesma diretiva prevê:

«(1)   Na medida em que a presente diretiva prevê disposições harmonizadas, os Estados‑Membros não podem manter ou introduzir no respetivo direito interno disposições divergentes daquelas que vêm previstas na presente diretiva para além das nela estabelecidas.

(2)   Os Estados‑Membros devem assegurar que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições da legislação nacional que dão cumprimento ou correspondem à presente diretiva.

(3)   Os Estados‑Membros devem assegurar, além disso, que as disposições que venham a aprovar para dar cumprimento à presente diretiva não possam ser contornadas em resultado da redação dos contratos, em especial integrando levantamentos ou contratos de crédito sujeitos ao âmbito de aplicação da presente diretiva em contratos de crédito cujo caráter ou objetivo permitiria evitar a aplicação desta.

[…]»

B.   Direito Nacional

10.

As disposições sobre o procedimento de injunção de pagamento com base numa letra ou livrança constam do Kodeks postępowania cywilnego (Código de Processo Civil polaco, a seguir «KPC»). O artigo 485.o, § 2, do KPC dispõe:

«O tribunal também decreta uma injunção de pagamento contra aqueles que estão vinculados por uma letra de câmbio […] ou livrança devidamente preenchida, se a veracidade e conteúdo desta não suscitarem qualquer dúvida. Se os direitos decorrentes da letra ou livrança […] tiverem sido cedidos ao requerente da injunção, esta só é decretada se forem apresentados documentos que provem a pretensão do requerente da injunção, salvo se a cessão desses direitos ao requerente da injunção resultar diretamente da letra ou livrança […].»

11.

O artigo 486.o, n.o 1, do KPC prevê:

«Se não se verificarem os pressupostos para se decretar a injunção, o presidente marca a audiência de julgamento, salvo se a causa puder ser julgada em conferência.»

12.

O artigo 491.o, n.o 1, do KPC prevê:

«Na injunção, o tribunal ordena ao requerido que pague a quantia pedida, acrescida das despesas, no prazo de duas semanas a contar da emissão da injunção, ou que deduza oposição, no mesmo prazo. […]»

13.

O artigo 492.o do KPC dispõe:

«§ 1. A injunção constitui, a partir do momento em que é decretada, um título de garantia de um crédito, que não carece de fórmula executória para ser executado. […]

§ 3. A injunção decretada com base numa letra de câmbio ou livrança […] é imediatamente exequível logo após o termo do prazo para pagamento da dívida. Caso seja deduzida oposição, o tribunal pode suspender a execução, a pedido do requerido. […]»

14.

O artigo 493.o do KPC estipula:

«A oposição é deduzida no tribunal que decretou a injunção. O requerido deve indicar se se opõe total ou parcialmente à injunção, deduzir as exceções que devem ser deduzidas antes de a causa ser julgada, sob pena de essas exceções não serem admitidas, e alegar factos e apresentar provas. O requerido deve indicar se se opõe total ou parcialmente à injunção, deduzir as exceções que devem ser deduzidas antes de a causa ser julgada, sob pena de essas exceções não serem admitidas, e alegar factos e apresentar provas. […]»

15.

O artigo 19.o, § 4, da Ustawa o kosztach sądowych w sprawach cywilnych (Lei das custas judiciais nos processos cíveis) prevê que o requerido tem de suportar três quartos das custas se deduzir oposição a uma injunção.

16.

No tocante às cláusulas dos contratos de crédito ao consumidor, o artigo 385.o do Kodeks cywilny (Código Civil, a seguir «KC») prevê:

«§1.   As cláusulas de um contrato com um consumidor, que não tenham sido negociadas individualmente, não são vinculativas para o consumidor se estipularem os direitos e deveres deste de uma forma que viole os bons costumes e prejudique grosseiramente os seus interesses (cláusulas contratuais ilícitas). Esta regra não se aplica às cláusulas respeitantes à prestação principal, em especial ao preço ou à remuneração, se as mesmas estiverem formuladas de forma inequívoca.

§ 2.   Se, por força do disposto no § 1, uma cláusula contratual não for vinculativa para o consumidor, as demais cláusulas do contrato continuam a vincular as partes.»

17.

Sobre a livrança, o artigo 101.o da Ustawa prawo (Lei das letras de câmbio e das livranças):

«A livrança contém: 1) a indicação “Livrança”, no texto do impresso, na língua em que a livrança é emitida; 2) a promessa incondicional de pagamento de uma quantia determinada; 3) um prazo de pagamento determinado; 4) um lugar de pagamento determinado; 5) o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem o pagamento deve ser feito; 6) o local e data da emissão da livrança; 7) a assinatura do sacador da livrança.»

18.

A Ustawa o kredycie konsumenckim (Lei dos contratos de crédito aos consumidores, a seguir «UKK»), de 12 de maio de 2011, transpôs as normas da diretiva dos contratos de crédito aos consumidores para o direito polaco. O artigo 41.o da UKK dispõe:

«1.   A letra de câmbio ou livrança […] de um consumidor, que é entregue ao mutuante para cumprimento ou garantia de uma prestação resultante de um contrato de crédito ao consumidor, deve conter uma cláusula “não à ordem” ou com um significado idêntico.

2.   Se o mutuante aceitar uma letra de câmbio ou livrança […] que não contenha a cláusula “não à ordem” e essa letra de câmbio ou livrança for endossada a […] outra pessoa, o mutuante é obrigado a indemnizar o consumidor dos prejuízos que este tiver sofrido com o pagamento da letra de câmbio ou livrança. […]

3.   O disposto no n.o 2 também se aplica se a letra de câmbio, livrança ou cheque se encontrar na posse de outra pessoa, contra a vontade do mutuante.»

III. Matéria de facto e tramitação do processo principal

19.

Em 3 de dezembro de 2015, a Profi Credit Polska S.A., com sede em Bielsko‑Biała (a seguir «banco»), requerente no processo principal, celebrou um contrato de mútuo com Mariusz Wawrzosek, requerido no processo principal. Como é do conhecimento do tribunal de reenvio, através de outros processos nele instaurados pela requerente, o contrato tem a natureza de contrato de adesão, expresso num formulário do qual consta a condição de o mutuário subscrever uma livrança, para garantia dos direitos do mutuante no contrato de crédito ao consumidor Em cumprimento desta condição, o requerido entregou à requerente uma livrança em branco assinada.

20.

Subsequentemente, o requerido não reembolsou a requerente da quantia mutuada. Por isso, a requerente resolveu o contrato de mútuo e incluiu na livrança em branco a quantia de 3268,38 PLN.

21.

A requerente requereu ao tribunal de reenvio que decretasse uma injunção ao requerido do pagamento da quantia de 3268,38 PLN. A requerente juntou ao requerimento a livrança devidamente preenchida e assinada e a notificação da resolução do contrato de mútuo, mas não o próprio contrato.

22.

Como o tribunal de reenvio explica, de acordo com o direito nacional o procedimento de injunção com base numa letra ou livrança compreende duas fases. A primeira fase inicia‑se com o requerimento de decretação de uma injunção. Tem lugar sem o conhecimento do requerido. Nos termos do artigo 485.o, § 2, do KPC o tribunal decreta uma injunção de pagamento se for apresentada uma letra de câmbio ou livrança em devida ordem e «a veracidade e conteúdo desta não suscitarem qualquer dúvida». Segundo o tribunal de reenvio, a jurisprudência nacional interpreta esta disposição no sentido de que, na primeira fase, apenas se averigua oficiosamente se o impresso da letra ou livrança que o requerente apresenta é verdadeiro e cumpre os requisitos de forma previstos na lei. Se esses requisitos forem cumpridos, o tribunal está obrigado a decretar a injunção, sem que seja relevante o conteúdo da relação jurídica subjacente. Se a letra ou livrança garantir direitos decorrentes de um contrato de mútuo, o requerente pode, na primeira fase, apresentar apenas a letra ou livrança como prova. Não tem de provar que o direito decorrente do contrato de mútuo, garantido pela letra ou livrança, existe e é válido.

23.

O requerido é notificado da injunção, juntamente com o requerimento apresentado pelo requerente, e de uma explicação sobre a dedução de oposição. O prazo para deduzir oposição é de duas semanas, contadas da data da notificação da injunção. A pedido do requerido, o tribunal pode então suspender a execução, nos termos do artigo 492.o, § 3, do KPC. Segundo o tribunal de reenvio, nesta segunda fase do procedimento o requerido não só pode impugnar a relação cambial, mas também pode impugnar a relação jurídica subjacente, por exemplo, pode invocar a abusividade de uma cláusula do contrato de crédito ao consumidor subjacente. Se o requerido não deduzir oposição, a injunção constitui, nos termos do artigo 492.o, § 1, do KPC, um título de garantia de um crédito, que não carece de fórmula executória para ser executado. A injunção tem força de caso julgado no tocante à relação cambial, mas não no tocante à relação jurídica subjacente.

IV. Pedido de decisão prejudicial e tramitação processual perante o Tribunal de Justiça

24.

Por despacho de 17 de fevereiro de 2017, que deu entrada em 6 de abril de 2017, o Sąd Rejonowy w Siemianowicach Śląskich (Tribunal da Comarca de Siemianowice Śląskie, Polónia) submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem as disposições da [diretiva das cláusulas abusivas], em especial os seus artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, e as disposições da [diretiva dos contratos de crédito aos consumidores], em especial os seus artigos 17.o, n.o 1, e 22.o, n.o 1, ser interpretados no sentido de que se opõem a que um empresário (mutuante) demande consumidores (mutuários) em juízo, com base numa livrança devidamente preenchida, mediante o procedimento de injunção a que se refere o artigo 485.o, § 2, e seguintes, do [KPC], conjugado com o artigo 41.o da [UKK], limitando se o tribunal nacional a apreciar exclusivamente a validade da obrigação cambial, do ponto de vista dos requisitos formais da livrança, abstraindo da relação jurídica subjacente?»

25.

No processo no Tribunal de Justiça, a República da Polónia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas e participaram na audiência de 1 de março de 2018.

V. Questão de direito

26.

Começarei de seguida por debruçar‑me sobre a interpretação e admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, para a seguir analisar a diretiva das cláusulas abusivas e depois a diretiva dos contratos de crédito ao consumidor.

A.   Quanto à interpretação da questão prejudicial e à admissibilidade da questão

27.

Com a sua questão, o tribunal de reenvio pretende saber, no essencial, se a diretiva das cláusulas abusivas e a diretiva dos contratos de crédito ao consumidor devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, no âmbito de um procedimento de injunção de pagamento com base numa livrança, restringe o tribunal nacional à apreciação da observância dos requisitos formais da livrança e exclui a apreciação do contrato de mútuo garantido pela livrança.

28.

No seu pedido de decisão prejudicial, o tribunal de reenvio esclarece que esta apreciação só tem lugar se o consumidor deduzir oposição à injunção. Em meu entender, haverá que considerar globalmente o procedimento em causa, logo, haverá que considerar não só a primeira fase, antes da dedução da oposição, mas também a segunda fase, que se lhe segue.

29.

Além disso, entendo a questão no sentido de que o tribunal nacional a formula com base na premissa de que é possível a apreciação da relação jurídica subjacente, isto é, o contrato de mútuo. Por isso, é irrelevante saber se a livrança, considerada isoladamente, constitui um contrato abrangido pelo âmbito de aplicação da diretiva.

30.

Com efeito, no tribunal nacional, o objeto do litígio, na primeira fase, é só a livrança. Só na segunda fase é que, em consequência da oposição deduzida pelo consumidor, o objeto do litígio é a relação jurídica subjacente. Porém, daí não decorre que a interpretação do direito da União solicitada não tenha qualquer nexo com o objeto e por isso seja inadmissível ( 10 ). É que a questão submetida centra‑se, essencialmente, em saber se é compatível com o direito da União que o direito polaco exija que o consumidor atue para que o contrato de mútuo se torne objeto do litígio e seja possível ao tribunal apreciá‑lo, ou se o direito da União deve ser interpretado no sentido de que essa apreciação deve ter lugar logo na primeira fase.

B.   Quanto à diretiva dos contratos de crédito aos consumidores

31.

A diretiva dos contratos de crédito aos consumidores tem por objetivo a harmonização de determinados aspetos das disposições dos Estados‑Membros em matéria de contratos que regulam o crédito aos consumidores. Para tutela do consumidor, a diretiva prevê vários deveres de informação por parte do mutuante.

32.

No tocante às garantias, a diretiva prevê que as informações pré‑contratuais devem, se for caso disso, especificar as garantias exigidas ( 11 ). Do mesmo modo, as garantias contam‑se entre as informações a mencionar no contrato de crédito ( 12 ). De resto, a diretiva dos contratos de crédito aos consumidores não contém nenhuma disposição sobre as garantias de um direito decorrente de um contrato de crédito ao consumidor, em especial sobre livranças.

33.

Pelo contrário, a anterior diretiva dos contratos de créditos ao consumidor mencionava os títulos de crédito. Essa disposição previa que os Estados‑Membros que, no que se refere aos contratos de crédito, permitissem ao consumidor dar garantias por meio de títulos de crédito, incluindo livranças, assegurariam que o consumidor fosse adequadamente protegido quando utilizasse esses instrumentos para os fins referidos ( 13 ).

34.

Esta disposição não foi reproduzida na nova diretiva dos contratos de crédito ao consumidor. Embora a primeira proposta da Comissão de revisão da anterior diretiva ainda contivesse precisamente uma proibição estrita de o mutuante exigir ou propor ao consumidor um título de crédito como garantia do crédito ao consumidor ( 14 ), o texto final da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor não contém nenhuma norma sobre títulos de crédito.

35.

Daqui só se pode concluir que, por vontade do legislador, caberá aos Estados‑Membros decidir se pode ser utilizada uma letra ou livrança para garantir um contrato de crédito ao consumidor. Face à anterior diretiva, a margem de discricionariedade dos Estados‑Membros até foi alargada. Enquanto, à luz da diretiva anterior, os Estados‑Membros tinha ainda que assegurar que o consumidor fosse adequadamente protegido quando utilizasse um título de crédito ( 15 ), a diretiva dos contratos ao consumidor já não contém nenhuma disposição equivalente, que preveja esse dever dos Estados‑Membros.

O artigo 22.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor não é violado

36.

O tribunal de reenvio pretende saber, não obstante, se a legislação polaca viola o artigo 22.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor. Este artigo proíbe os Estados‑Membros de manter ou introduzir no respetivo direito interno disposições divergentes das da diretiva, na medida em que esta contenha disposições de harmonização. Porém, no tocante às livranças, esta questão fica sem objeto, uma vez que a diretiva, como se explicou acima, não introduziu nenhuma harmonização precisamente no domínio das letras e livranças enquanto garantia de um contrato de crédito ao consumidor. De resto, as circunstâncias do processo principal não permitem perceber se, no domínio específico abrangido pela harmonização ( 16 ), foram mantidas ou introduzidas disposições de direito nacional divergentes. Por isso, não se vislumbra nenhuma violação do artigo 22.o, n.o 1, da diretiva.

O artigo 22.o, n.o 2, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor não é violado

37.

Porém, a Comissão defende que é violado o artigo 22.o, n.o 2, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor. Esta disposição obriga os Estados‑Membros a assegurar que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições da legislação nacional que dão cumprimento à diretiva.

38.

Porém, não se vislumbra que M. Wawrzosek tenha renunciado aos direitos que o direito polaco lhe confere, por ter sacado uma livrança. Com efeito, a renúncia, na aceção do artigo 22.o, n.o 2, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor, pressupõe que o consumidor, mediante uma declaração expressa ou um comportamento concludente, deixe caducar um direito existente de que dispõe por força de disposições nacionais que transpõem a diretiva. Porém, o pedido de decisão prejudicial não contém nenhuma indicação de que existem semelhantes direitos, a que M. Wawrzosek tenha renunciado em conexão com a livrança ou qualquer outro título.

A diretiva dos contratos de crédito aos consumidores não é contornada, na aceção do seu artigo 22.o, n.o 3

39.

Ao contrário do que o tribunal de reenvio e a Comissão entendem, a prestação, mediante uma livrança, de uma garantia dos direitos decorrentes de um contrato de crédito aos consumidores também não se traduz em contornar as disposições nacionais de transposição da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor, o que é inadmissível por força do seu artigo 22.o, n.o 3.

40.

Embora uma vantagem da livrança, para o mutuante, seja o facto de este gozar de um aligeiramento do ónus da prova na primeira fase do procedimento de injunção de pagamento, porquanto só tem de provar a veracidade e validade formal da livrança, isso não leva à inversão do ónus da prova no tocante ao cumprimento dos deveres de informação por parte do mutuante, que se possa traduzir em contornar disposições nacionais aprovadas para dar cumprimento à diretiva, na aceção do artigo 22.o, n.o 3, da diretiva.

41.

Como o Tribunal de Justiça já decidiu, a diretiva dos contratos de crédito ao consumidor não contém nenhuma disposição expressa sobre o ónus da prova de que o mutuante cumpriu os seus deveres de informação nos termos dessa diretiva ( 17 ). Porém, o Tribunal de Justiça deduziu do artigo 22.o, n.o 3, que uma cláusula contratual não pode levar à inversão do ónus da prova do cumprimento dos deveres de informação ( 18 ).

42.

Se, na primeira fase do processo nacional, não é apreciada a relação jurídica subjacente, não está em causa uma norma sobre a repartição do ónus da prova, mas tão‑só uma delimitação da matéria do processo. Em contrapartida, não há quaisquer restrições ao ónus do mutuante de provar a veracidade e a validade formal da letra ou livrança na primeira fase do processo.

43.

Assim que o consumidor dá início à segunda fase do processo, ao deduzir oposição à injunção, a relação jurídica subjacente também é incluída na matéria do processo. A partir deste momento, o mutuante tem o ónus de provar que cumpriu os seus deveres de informação.

44.

Por isso, a legislação polaca ora controvertida não leva a uma alteração do ónus da prova. A cláusula do contrato de mútuo que obriga M. Wawrzosek a sacar uma livrança não constitui, pois, uma configuração do contrato que viole a proibição de contornar a lei nacional do artigo 22.o, n.o 3, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor.

45.

Aliás, há que rejeitar também a alegação da Comissão de que uma livrança acordada se traduz em contornar a diretiva dos contratos de crédito ao consumidor, porque isso gera o risco de não ser provado judicialmente o cumprimento dos deveres de informação pelo mutuante. É que este entendimento levaria, na prática, a que fosse inadmissível dar livranças de garantia de contratos de crédito ao consumidor. Porém, isso iria contra a vontade do legislador de deixar aos Estados‑Membros a decisão sobre permitir que esse instrumento sirva de garantia de contratos de crédito ao consumidor ( 19 ).

Quanto à questão da violação do artigo 17.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor

46.

O pedido de decisão prejudicial suscita, além disso, a questão de saber se o artigo 17.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor se opõe a que seja invocada uma livrança, sacada nos termos do direito polaco, para garantia de um contrato de crédito ao consumidor.

47.

Porém, o artigo 17.o, n.o 1, da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor diz respeito a uma situação em que um terceiro, que é diferente das partes originais no contrato de crédito ao consumidor, é titular de direitos contra o consumidor. Pelo contrário, M. Wawrozsoek celebrou o contrato de mútuo original com a requerente. O tomador da livrança e a mutuante são, pois, um e o mesmo. O banco não cedeu os seus direitos no contrato de mútuo a terceiros nem endossou a livrança. Consequentemente, o artigo 17.o, n.o 1, é irrelevante para a decisão no processo principal e o Tribunal de Justiça não tem de se debruçar sobre esta disposição.

48.

A título meramente complementar, refira‑se que o artigo 41.o da lei polaca do contrato de crédito ao consumidor prevê que a letra de câmbio ou livrança entregue por um consumidor como garantia de direitos do mutuante decorrentes de um contrato de crédito ao consumidor tem necessariamente de conter uma cláusula que impeça a transmissão da letra de câmbio ou livrança. Se o mutuante aceitar uma letra de câmbio ou livrança do consumidor sem essa cláusula e a transmitir a um terceiro — sendo irrelevante se isso teve lugar ou não contra a vontade do mutuante —, o mutuante tem de indemnizar o consumidor dos danos que isso lhe tiver causado.

Conclusão intercalar

49.

Por conseguinte, pode concluir‑se que as normas da diretiva dos contratos de crédito ao consumidor não se opõem a uma legislação como a que ora está em causa.

C.   Quanto à diretiva das cláusulas abusivas

Princípios fundamentais da diretiva das cláusulas abusivas

50.

O objetivo da diretiva das cláusulas abusivas é impedir a utilização de cláusulas abusivas em contratos entre profissionais e consumidor.

51.

O artigo 6.o, n.o 1, da diretiva das cláusulas abusivas prevê que as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não são vinculativas para o consumidor. Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, da diretiva, os Estados‑Membros têm de providenciar para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para impedir a utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.

52.

Esta norma assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação, pelo que adere às condições redigidas previamente pelo profissional, cujo conteúdo não pode influenciar ( 20 ).

53.

Consequentemente, o direito nacional deve garantir ao consumidor uma tutela jurisdicional efetiva, dando‑lhe a possibilidade de impugnar judicialmente o contrato controvertido em condições processuais razoáveis, de modo que o exercício dos seus direitos não esteja sujeito a condições, nomeadamente de prazos e de custos, que tornem excessivamente difícil ou na prática impossível exercer os direitos garantidos pela diretiva das cláusulas abusivas ( 21 ).

54.

O Tribunal de Justiça decidiu repetidamente que, na falta de harmonização do processo civil, a regulação do exercício de direitos mediante ações cíveis cabe ao ordenamento jurídico interno dos Estados‑Membros, por força do princípio da autonomia processual. Nesse contexto, os mesmos têm de assegurar que as normas internas não são menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e que não tornam impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos aos consumidores pelo direito da União (princípio da efetividade) ( 22 ).

55.

Como, no caso vertente, não há elementos que possam suscitar dúvidas sobre a compatibilidade com o princípio da equivalência, há apenas que averiguar se as normas do direito polaco violam o princípio da efetividade. Nesse sentido, e segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, haverá que considerar o lugar que a disposição em causa ocupa no processo, visto como um todo, a tramitação deste e as particularidades do processo em causa ( 23 ).

56.

Segundo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça — que se debruçou, entre outros, sobre o procedimento de injunção —, o princípio da efetividade impõe que o tribunal nacional aprecie oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contratual, desde que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para o efeito ( 24 ).

Aplicação à execução de uma livrança segundo o direito polaco

57.

Segundo este critério, a legislação polaca é compatível com os artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da diretiva das cláusulas abusivas. Com efeito, na primeira fase do procedimento de injunção de pagamento o tribunal tem perante si apenas a letra ou livrança, cuja veracidade e validade formal aprecia. O contrato de mútuo subjacente à letra ou livrança não é apresentado ao tribunal. Por isso, este não dispõe dos elementos de direito e de facto necessários para apreciar se o contrato de mútuo contém uma cláusula abusiva.

58.

Na segunda fase do procedimento, que tem início quando o consumidor deduz oposição à injunção, o tribunal aprecia, ao invés, objeções deduzidas contra a relação jurídica subjacente. Só nesta fase processual é que o tribunal dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para o efeito, pois por força do artigo 493.o, § 1, no tribunal são alegados e provados os factos necessários para apreciar a abusividade do contrato de mútuo.

59.

Refira‑se que o direito processual polaco estabelece, para a decretação de uma injunção, requisitos mais rigorosos do que o Regulamento n.o 1896/2006 sobre o procedimento europeu de injunção de pagamento ( 25 ) exige para a decretação de uma injunção de pagamento europeia, que pode ser utilizada para reclamar créditos sobre consumidores. É que, segundo o direito polaco, o requerente tem, na primeira fase do procedimento, de apresentar o impresso da letra ou livrança, e logo um meio de prova. Pelo contrário, nos termos do artigo 7.o, n.o 2, alínea e), do Regulamento n.o 1896/2006, os meios de prova do pedido só têm de ser descritos, mas não apresentados no tribunal.

Delimitação face à jurisprudência até agora firmada sobre a incompatibilidade com a diretiva das cláusulas abusivas

60.

Nesse sentido, a situação de facto subjacente ao processo principal distingue‑se das situações em que o Tribunal de Justiça declarou a incompatibilidade com a diretiva das cláusulas abusivas. No processo Banco Español de Crédito, o tribunal nacional dispunha, logo desde o início do procedimento de injunção, dos elementos de facto e de direito necessários para apreciar a abusividade de uma cláusula contratual. Porém, o tribunal nacional estava impedido, por uma disposição do direito processual nacional, de apreciar oficiosamente a abusividade de uma cláusula, motivo pelo qual o Tribunal de Justiça julgou essa cláusula incompatível com a diretiva das cláusulas abusivas ( 26 ). No processo Finanmadrid EFC tanto o procedimento de injunção, como o processo executivo que se lhe seguia eram encerrados sem que a abusividade de uma cláusula do contrato fosse apreciada oficiosamente, apesar de tanto o «Secretário Judicial» a quem competia tramitar o procedimento de injunção, como o tribunal no qual foi instaurado o processo executivo disporem dos elementos de facto e direito necessários para apreciar a abusividade da cláusula contratual ( 27 ).

61.

A legislação aplicável no processo principal também não contraria os princípios que o Tribunal de Justiça desenvolveu no processo Aziz. O Tribunal de Justiça decidiu que, se estiverem iminentes ou já tiverem sido tomadas medidas, em sede de processo executivo, para o despejo do consumidor e da sua família da casa que é a sua residência principal, o tribunal nacional chamado a decidir da abusividade de uma cláusula contratual tem de ter competência para decretar providências cautelares que permitam suspender ou sustar uma execução hipotecária ilícita de um bem imóvel, para garantir a efetividade da proteção pretendida pela diretiva das cláusulas abusivas ( 28 ). Atribuir ao consumidor uma simples indemnização pelos danos sofridos com as medidas tomadas, em sede de processo executivo, para o despejo da habitação fica aquém da proteção imposta pela diretiva das cláusulas abusivas ( 29 ).

62.

Em primeiro lugar, verifica‑se que o Tribunal de Justiça desenvolveu estes princípios para a tutela jurisdicional contra medidas tomadas num processo executivo que tem por objeto um bem imóvel que serve de casa de morada de família ao consumidor. Como o Tribunal de Justiça esclareceu no processo Kušionová, aponta para a incompatibilidade com a diretiva das cláusulas abusivas, em particular, o direito ao respeito do domicílio, protegido pelo artigo 8.o, n.o 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e pelo artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ( 30 ). Ao invés, o procedimento de decretação de uma injunção de pagamento com base numa letra ou livrança é nitidamente menos sensível.

63.

Além disso, embora a injunção de pagamento constitua, segundo o direito polaco, um título de garantia de um crédito, que não carece de fórmula executória para ser executado, o artigo 492.o, § 3, segundo período, do KPC prevê que, após a dedução da oposição, o tribunal pode suspender a execução, a pedido do requerido. O tribunal pode, pois, tomar uma medida cautelar para impedir ou sustar uma execução ilícita, pelo que o consumidor não está limitado a uma pretensão indemnizatória.

64.

Refira‑se, a título puramente complementar, que, nos termos do artigo 23.o do Regulamento n.o 1896/2006, a execução de uma injunção de pagamento europeia só a pedido do requerente pode ser suspensa ou limitada. Nesse sentido, a legislação polaca não estabelece exigências mais rigorosas do que a injunção europeia de pagamento.

65.

Por último, como o Governo polaco alega, a dedução de oposição impede que a injunção de pagamento transite em julgado. No processo finanmadrid EFC, o Tribunal de Justiça decidiu que é incompatível com a diretiva das cláusulas abusivas que o trânsito em julgado de uma decisão impossibilite o consumidor de invocar, numa ação proposta pelo profissional com fundamento no contrato de mútuo, a abusividade de uma cláusula do contrato de mútuo ( 31 ). Segundo o direito nacional, quando o consumidor deduz oposição à injunção de pagamento, impede que esta transite em julgado. Além disso, na segunda fase do procedimento aquele pode invocar a abusividade de uma cláusula do contrato de mútuo. Se o consumidor deduzir oposição, não há qualquer confito com os princípios que o Tribunal de Justiça desenvolveu no processo Finanmadrid EFC.

66.

Ainda que o consumidor não deduza oposição e a injunção de pagamento transite em julgado, não é possível aplicar os princípios do processo Finanmadrid EFC. Como o fundamento para a decretação da injunção de pagamento é só a livrança, a força de caso julgado da injunção de pagamento só abrange a relação cambiária, mas já não o contrato de mútuo.

67.

Nesse aspeto, a situação de facto subjacente ao processo principal distingue‑se da situação de facto subjacente ao processo Finanmadrid EFC. Como o Governo polaco explica, na verdade o consumidor pode, num processo posterior com o profissional, continuar a invocar a abusividade de uma cláusula do contrato de mútuo, que o tribunal tem de apreciar oficiosamente.

68.

Se o profissional tiver proposto uma ação executiva com fundamento na injunção de pagamento, o consumidor pode, em especial com fundamento no princípio do enriquecimento sem causa ou do dever do profissional de indemnizar, reclamar a restituição, pelo profissional, do que este obteve através das medidas de execução. O consumidor pode então fundamentar o seu direito à repetição do indevido ou a indemnização na abusividade de uma cláusula do contrato de mútuo. O trânsito em julgado da injunção de pagamento não obsta a que o consumidor proponha semelhante ação, porque a injunção de pagamento não incide sobre a impugnação do contrato de mútuo.

69.

Muito embora o Tribunal de Justiça tenha decidido, no processo Aziz, no tocante a medidas de execução para o despejo do consumidor da sua habitação, que é incompatível com a diretiva das cláusulas abusivas que aquele apenas tenha direito a uma indemnização pelos danos causados pelo despejo ( 32 ), foi essencial para essa decisão, como já supra se explicou, o facto de as medidas de execução terem conduzido à perda da casa da morada do consumidor e da sua família ( 33 ).

70.

O pedido de decisão prejudicial do tribunal de reenvio não contém, porém, qualquer indicação de que, no processo principal, estivesse iminente o despejo de M. Wawrzosek da casa de morada da família ou um prejuízo análogo.

71.

Por conseguinte, é compatível com a diretiva das cláusulas abusivas que o consumidor possa impedir o trânsito em julgado da injunção de pagamento mediante a dedução de oposição a esta e que, de outro modo, possa invocar a abusividade de uma cláusula do contrato de mútuo numa ação de repetição do indevido ou de indemnização.

Quanto ao significado da oposição à injunção de pagamento

72.

Do que ficou dito supra resulta que a oposição do consumidor à injunção de pagamento tem um papel central na eficácia prática da tutela do consumidor pela diretiva das cláusulas abusivas. Presume‑se que o consumidor envida esta diligência para invocar os seus direitos.

73.

Embora a diretiva das cláusulas abusivas exija, em processos em que são partes um profissional e um consumidor, uma intervenção positiva, exterior às partes no contrato, pelo tribunal chamado a decidir nesses processos ( 34 ), o respeito do princípio da efetividade não pode ir ao ponto de implicar o suprimento integral da passividade total do consumidor em causa ( 35 ). Por isso, é irrelevante que o consumidor tenha de deduzir oposição à injunção de pagamento para dar início à segunda fase do procedimento, em que o tribunal aprecia oficiosamente a abusividade da cláusula.

74.

Isto manifesta‑se, em particular, no facto de o legislador europeu ter estabelecido requisitos análogos quando regulou a injunção europeia de pagamento. Isto porque, em princípio, o requerido tem de deduzir oposição à injunção europeia de pagamento para que a procedência da pretensão invocada seja apreciada num processo judicial, nos termos do artigo 17.o do Regulamento n.o 1896/2006.

75.

Contudo, a Comissão refere que, nos termos do artigo 493.o, §1, segundo período, do KPC, o consumidor, quando deduz oposição à injunção de pagamento, deve deduzir exceções e alegar factos e apresentar provas e, além disso, tem de suportar custas judiciais.

76.

Ao contrário do que a Comissão entende, isso não implica, contudo, que a injunção de pagamento assente numa letra ou livrança seja, por si só, incompatível com a diretiva das cláusulas abusivas. Isto porque, em primeiro lugar, semelhante interpretação da diretiva iria contra a vontade do legislador da União, que deixou aos Estados‑Membros uma margem de discricionariedade quanto à utilização de uma livrança enquanto título de garantia de contratos de crédito aos consumidores ( 36 ). Em segundo lugar, a mesma interferiria excessivamente na autonomia processual dos Estados‑Membros.

77.

Porém, como o Tribunal de Justiça já decidiu, a configuração geral, a tramitação e as particularidades do processo não podem levar a que haja um risco não negligenciável de o consumidor não lançar mão do meio processual necessário ( 37 ).

78.

Por isso, a Comissão tem razão quando critica que o consumidor tenha, por força do artigo 493, § 1, segundo período do KPC, logo que deduz a oposição, de deduzir todas as exceções, alegar factos e apresentar provas. Na audiência, as partes estavam em desacordo sobre se o direito polaco só permite, na segunda fase do procedimento de injunção de pagamento, ao juiz apreciar o contrato de mútuo subjacente se o consumidor, quando deduz oposição à injunção de pagamento, deduzir uma exceção relativa a esse contrato e alegar factos e apresentar provas relativamente a essa exceção. Porém, segundo jurisprudência assente o juiz nacional deve apreciar oficiosamente a abusividade de uma cláusula contratual. Assim, a limitação do âmbito da apreciação às exceções deduzidas pelo consumidor é incompatível com a diretiva. Compete ao tribunal de reenvio assegurar que o direito processual nacional não contém semelhante limitação, ou não a aplicar, se não for possível uma interpretação conforme à diretiva.

79.

Neste contexto, também há que considerar a crítica da Comissão de que o prazo de duas semanas para deduzir oposição à injunção de pagamento não gera o risco não negligenciável de o consumidor não lançar mão do meio processual necessário. Este argumento parece procedente no tocante aos factos e provas, que o consumidor tem de alegar e apresentar nesse prazo. Porém, um prazo de duas semanas não é excessivamente curto, a ponto de obrigar o consumidor a uma intensa atividade nesse prazo. Por isso, a legislação polaca, por força da qual o consumidor tem de deduzir oposição à injunção de pagamento no prazo de duas semanas a contar da notificação desta, só é compatível com o princípio da efetividade se aquele não tiver, nesse prazo, de alegar factos e apresentar provas, que são a base da apreciação da abusividade das cláusulas do contrato de mútuo.

80.

Por último, é procedente a objeção da Comissão de que as custas judiciais cobradas prejudicam o consumidor. O artigo 19.o, § 4, da Lei das custas judiciais nos processos cíveis prevê que o requerido tem de suportar três quartos das custas se deduzir oposição a uma injunção de pagamento. Em contrapartida, o requerente só tem de suportar um quarto das custas, se requerer a decretação de uma injunção de pagamento. Assim, o consumidor tem de pagar custas de montante três vezes superior, se deduzir oposição à injunção de pagamento, para invocar os direitos que a diretiva das cláusulas abusivas lhe confere. Parto do princípio de que estão em causa pagamentos por conta das custas judiciais e de que só no termo do procedimento é proferida decisão definitiva sobre a repartição das custas. Porém, logo a cobrança desses pagamentos por conta é adequada a dissuadir um consumidor de deduzir oposição a uma injunção de pagamento. Será naturalmente um prejuízo para o consumidor se este tiver, em todo o caso, independentemente do desfecho do procedimento, de liquidar custas três vezes superiores.

81.

Estes três pressupostos, previstos no direito polaco, para a dedução de oposição a uma injunção de pagamento são, considerados isoladamente, adequados a dificuldade excessivamente o exercício, pelo consumidor, dos direitos que a diretiva das cláusulas abusivas lhe confere, pelo que violam o princípio da efetividade.

Conclusão intercalar

82.

Conclui‑se, por conseguinte, que um procedimento como o polaco é incompatível com a diretiva das cláusulas abusivas, porque dificulta excessivamente ao consumidor a dedução de oposição à injunção de pagamento decretada com base numa letra ou livrança, dado que só permite ao juiz apreciar a abusividade de cláusulas contratuais se o consumidor deduzir uma exceção nesse sentido, exige que o consumidor, no prazo de duas semanas a contar da data da notificação da injunção de pagamento, alegue os factos e apresente as provas que possibilitam ao juiz a referida apreciação, e prejudica o consumidor nas custas judiciais.

VI. Conclusão

83.

Pelo exposto supra, proponho ao Tribunal de Justiça que responda ao pedido de decisão prejudicial do Sąd Rejonowy w Siemianowicach Śląskich, do seguinte modo:

As normas da diretiva das cláusulas abusivas devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a legislação como a controvertida no processo principal, caso preveja que uma injunção de pagamento é proferida com base numa letra ou livrança, formalmente válida, que garante os direitos que um profissional tem face a um consumidor por força de um contrato de mútuo, sem que a abusividade das cláusulas desse contrato seja apreciada, e caso dificulte excessivamente ao consumidor a dedução de oposição à injunção de pagamento, por só permitir ao juiz apreciar a abusividade de cláusulas contratuais se o consumidor deduzir uma exceção nesse sentido, por exigir que o consumidor, no prazo de duas semanas a contar da data da notificação da injunção de pagamento, alegue os factos e apresente as provas que possibilitam ao juiz a referida apreciação, e por prejudicar o consumidor nas custas judiciais.


( 1 ) Língua original: alemão.

( 2 ) O n.o 13, primeiro parágrafo, do presente texto foi objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha

( 3 ) Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

( 4 ) V., por exemplo, Acórdãos de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing (C‑137/08, EU:C:2010:659, n.o 49); de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 42); e de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová (C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 52).

( 5 ) V. H. Coing, Europäisches Privatrecht I, Munique, 1985, p. 543.

( 6 ) H. Coing, Europäisches Privatrecht II, Munique, 1989, p. 570.

( 7 ) Ch. Bergfeld, «Preußen und das Allgemeine Deutsche Handelsgesetzbuch», Ius Commune 14 (1987), pp. 105 e 106.

( 8 ) Entre eles contam‑se a Bélgica, a Bulgária, a Dinamarca, a Alemanha, a Estónia, a Finlândia, França, a Letónia, o Luxemburgo, os Países Baixos, a República Eslovaca, a Eslovénia, a Suécia, a República Checa e o Reino Unido.

( 9 ) Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66).

( 10 ) V. Acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o. (C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25).

( 11 ) Artigo 5.o, n.o 1, segundo parágrafo, alínea n).

( 12 ) Artigo 10.o, n.o 2, alínea o).

( 13 ) Artigo 10.o da Diretiva 87/102/CEE do Conselho, de 22 de dezembro de 1986, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao crédito ao consumo (JO 1987, L 42, p. 48).

( 14 ) Artigo 18.o da Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de crédito aos consumidores [COM(2002) 443 final (JO 2002, C 331E, p. 200). Não foi introduzida nenhuma alteração significativa pela COM(2004) 747 final.

( 15 ) V. n.o 33, supra.

( 16 ) V. Acórdão de 12 de julho de 2012, SC Volksbank România (C‑602/10, EU:C:2012:443, n.o 38), e Despacho de 12 de outubro de 2016, Horžić e Pušić (C‑511/15 e C‑512/15, EU:C:2016:787, n.o 26).

( 17 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance (C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.o 22).

( 18 ) Acórdão de 18 de dezembro de 2014, CA Consumer Finance (C‑449/13, EU:C:2014:2464, n.os 30 e seg.).

( 19 ) V. n.o 35, supra.

( 20 ) Acórdãos de 7 de dezembro de 2017, Banco Santander (C‑598/15, EU:C:2017:945, n.o 36 e jurisprudência aí referida); de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 39); e de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, EU:C:2000:346, n.o 25).

( 21 ) Acórdãos de 7 de dezembro de 2017, Banco Santander (C‑598/15, EU:C:2017:945, n.o 38), e de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 59).

( 22 ) Acórdãos de 7 de dezembro de 2017, Banco Santander (C‑598/15, EU:C:2017:945, n.o 38); de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 40); e de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 46).

( 23 ) Acórdãos de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 43), e de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 49).

( 24 ) Acórdãos de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 36); de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 57); e de 4 de junho de 2009, Pannon GSM (C‑243/08, EU:C:2009:350, n.o 35).

( 25 ) Regulamento (CE) n.o 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento (JO 2006, L 399, p. 1).

( 26 ) Acórdão de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.os 52 e 53)

( 27 ) Acórdão de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.os 45, 46, 50).

( 28 ) Acórdãos de 7 de dezembro de 2017, Banco Santander (C‑598/15, EU:C:2017:945, n.o 49); de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 66); e de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 59).

( 29 ) Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 60).

( 30 ) Acórdão de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.os 64 e 65).

( 31 ) Acórdão de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.os 47 e 51); v. Acórdão de 21 de junho de 2016, Aktiv Kapital Portfolio (C‑122/14, não publicado, EU:C:2016:486, n.os 29 e 36).

( 32 ) Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 60).

( 33 ) Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 61).

( 34 ) Acórdãos de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 41), e de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, EU:C:2000:346, n.o 27).

( 35 ) Acórdãos de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 62); de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 56); e de 6 de outubro de 2009, Asturcom Telecomunicaciones (C‑40/08, EU:C:2009:615, n.o 47); v. Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2015:746, n.o 43), e as minhas Conclusões no processo Aziz (C‑415/11, EU:C:2012:700, n.o 55).

( 36 ) V. n.o 34, supra.

( 37 ) Acórdãos de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 52); de14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 58); e de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 54).