CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MELCHIOR WATHELET

apresentadas em 25 de julho de 2018 ( 1 )

Processo C‑163/17

Abubacarr Jawo

contra

Bundesrepublik Deutschland

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Fronteiras, asilo e imigração — Sistema de Dublim — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Transferência do requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável — Artigo 29.o, n.o 1 — Modalidades de prorrogação do prazo — Artigo 29.o, n.o 2 — Conceito de fuga — Admissibilidade de recusa de transferência do interessado em virtude de um risco real e comprovado de tratos desumanos ou degradantes no fim do procedimento de asilo — Artigo 3.o, n.o 2 — Condições de vida dos beneficiários de proteção internacional no Estado‑Membro responsável — Artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça, em 3 de abril de 2017, pelo Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Alemanha) (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha), tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, e do artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida ( 2 ) (a seguir «Regulamento Dublim III»), bem como do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe um requerente de asilo, Abubacarr Jawo, à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha), a propósito de uma decisão do Bundesamt für Migration und Flüchtlinge (Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados, Alemanha; a seguir «Serviço»), de 25 de fevereiro de 2015, de indeferir o pedido de asilo apresentado por A. Jawo, por inadmissível, e ordenar o seu afastamento para Itália.

II. Quadro jurídico

A. Direito Internacional

1.   Convenção de Genebra

3.

O artigo 21.o da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 ( 3 ), que entrou em vigor em 22 de abril de 1954, conforme completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»), sob a epígrafe «Alojamento», estabelece:

«No que diz respeito a alojamento, os Estados Contratantes concederão um tratamento tão favorável quanto possível aos refugiados que residam regularmente nos seus territórios, na medida em que esta questão caia sob a alçada das leis e regulamentos ou esteja sujeita à vigilância das autoridades públicas; de todos os modos, este tratamento não poderá ser menos favorável que o concedido, nas mesmas circunstâncias, aos estrangeiros em geral.»

2.   Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais

4.

Sob a epígrafe «Proibição da tortura», o artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), estabelece:

«Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.»

B. Direito da União

1.   Carta

5.

Nos termos do artigo 1.o da Carta, que tem por epígrafe «Dignidade do ser humano»:

«A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.»

6.

O artigo 4.o da Carta, sob a epígrafe «Proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes», enuncia:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

7.

O artigo 19.o da Carta, sob a epígrafe «Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição», prevê no seu n.o 2:

«Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

8.

O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe no seu n.o 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

9.

O artigo 52.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», enuncia no seu n.o 3:

«Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

2.   Regulamento Dublim III

10.

O Regulamento n.o 604/2013 fixa os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida ( 4 ). Os considerandos e os artigos aplicáveis deste regulamento são os seguintes:

11.

Considerando 32

«No que se refere ao tratamento das pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os Estados‑Membros encontram‑se vinculados pelas obrigações que lhes incumbem por força de instrumentos de direito internacional, nomeadamente pela jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.»

12.

Considerando 39

«O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos, nomeadamente, pela [Carta]. Em particular, o presente regulamento visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo artigo 18.o da [Carta], bem como dos direitos nela reconhecidos nos artigos 1.o, 4.o, 7.o, 24.o e 47.o Por conseguinte, o presente regulamento deverá ser aplicado em conformidade.»

13.

Artigo 3.o

«1.   Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2.   […]

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da [Carta], o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar‑se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado‑Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado‑Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável passa a ser o Estado‑Membro responsável.

[…]»

14.

Artigo 29.o

«1.   A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

Se as transferências para o Estado‑Membro responsável forem efetuadas sob forma de uma partida controlada ou sob escolta, os Estados‑Membros devem garantir que são realizadas em condições humanas e no pleno respeito dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

[…]

2.   Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.

[…]»

3.   Regulamento (CE) n.o 1560/2003

15.

O Regulamento (CE) n.o 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.o 343/2003 ( 5 ), conforme alterado pelo Regulamento de Execução (UE) n.o 118/2014 da Comissão, de 30 de janeiro de 2014 ( 6 ) (a seguir «regulamento de aplicação»), contém as modalidades de aplicação do Regulamento Dublim III.

16.

O artigo 8.o do Regulamento n.o 1560/2003, sob a epígrafe «Cooperação com vista à transferência», prevê:

«1.   O Estado‑Membro responsável é obrigado a permitir a transferência do requerente o mais rapidamente possível e deve garantir que não sejam criados obstáculos à sua entrada. Incumbe‑lhe determinar, se for caso disso, o local do seu território em que o requerente será transferido ou entregue às autoridades competentes, tendo em conta os condicionalismos geográficos e os meios de transporte disponíveis para o Estado‑Membro que procede à transferência. Não pode ser exigido, em caso algum, que a escolta acompanhe o requerente para além do ponto de chegada do meio de transporte internacional utilizado ou que o Estado‑Membro que procede à transferência suporte as despesas de transporte para além desse ponto.

2.   Incumbe ao Estado‑Membro que procede à transferência organizar o transporte do requerente e da respetiva escolta e fixar, em concertação com o Estado‑Membro responsável, a hora de chegada e, se for caso disso, as modalidades de entrega do requerente às autoridades competentes. O Estado‑Membro responsável pode exigir um pré‑aviso de três dias úteis.

3.   Deve ser utilizado o formulário‑tipo que consta do anexo VI para efeitos da transmissão ao Estado‑Membro responsável dos dados essenciais para proteger os direitos e as necessidades imediatas da pessoa a transferir. Este formulário‑tipo é considerado um pré‑aviso na aceção do n.o 2.»

17.

Nos termos do artigo 9.o do mesmo regulamento, que tem por epígrafe «Adiamento da transferência e transferências tardias»:

«1.   O Estado‑Membro responsável deve ser informado sem demora de qualquer adiamento da transferência devido quer a um procedimento de recurso ou de revisão com efeitos suspensivos, quer a circunstâncias materiais tais como o estado de saúde do requerente, a indisponibilidade do meio de transporte ou o facto de o requerente se ter eximido à execução da transferência.

1‑A.   Sempre que uma transferência tenha sido adiada a pedido do Estado‑Membro que procede à transferência, este último e o Estado‑Membro responsável devem retomar a comunicação para que possa ser organizada uma nova transferência o mais rapidamente possível, em conformidade com o artigo 8.o, e o mais tardar duas semanas a partir do momento em que as autoridades tomem conhecimento da cessação das circunstâncias que estiveram na origem do atraso ou do adiamento. Nesse caso, antes da transferência, deve ser enviado um formulário‑tipo atualizado para a transferência de dados antes de uma transferência, como constante do anexo VI.

2.   Incumbe ao Estado‑Membro que, por um dos motivos enunciados no artigo 29.o, n.o 2, do [Regulamento Dublim III], não pode proceder à transferência no prazo normal de seis meses a contar da data da aceitação do pedido de tomada a cargo ou de retomada a cargo da pessoa em causa ou da decisão final sobre um recurso ou revisão com efeitos suspensivos, informar o Estado‑Membro responsável de tal facto antes do termo deste prazo. Caso contrário, a responsabilidade pelo tratamento do pedido de proteção internacional e as outras obrigações decorrentes do [Regulamento Dublim III] incumbem ao Estado‑Membro requerente, em conformidade com o disposto no artigo 29.o, n.o 2, do referido regulamento.

[…]»

18.

Os Anexos VI e IX do regulamento de aplicação contêm os formulários‑tipo destinados, respetivamente, à transferência de dados e à troca de dados relativos à saúde antes da execução da transferência ao abrigo do Regulamento Dublim III.

4.   Diretiva 2011/95/UE

19.

Nos termos do artigo 2.o, alínea h), da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida ( 7 ), um «pedido de proteção internacional» constitui «um pedido de proteção apresentado a um Estado‑Membro por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida que deem a entender que pretendem beneficiar do estatuto de refugiado ou de proteção subsidiária […]».

20.

O capítulo VII da Diretiva 2011/95, sob a epígrafe «Conteúdo da proteção internacional», contém as seguintes disposições:

21.

Artigo 20.o, n.o 1

«O presente capítulo não prejudica os direitos estabelecidos na Convenção de Genebra.»

22.

Artigo 26.o, n.o 1

«Imediatamente após a concessão da proteção, os Estados‑Membros devem autorizar os beneficiários da proteção internacional a exercer atividades por conta de outrem ou por conta própria, sob reserva das regras gerais aplicáveis à profissão e aos empregos na administração pública.»

23.

Artigo 27.o, n.o 1

«Os Estados‑Membros devem proporcionar aos menores aos quais tenha sido concedida proteção internacional pleno acesso ao sistema de ensino, nas mesmas condições que aos respetivos nacionais.»

24.

Artigo 29.o, n.o 1, «Segurança social»

«Os Estados‑Membros devem assegurar que os beneficiários de proteção internacional recebam, no Estado‑Membro que lhes concedeu essa proteção, a assistência social necessária, à semelhança dos nacionais desse Estado‑Membro.»

25.

Artigo 30.o, n.o 1, «Cuidados de saúde»

«Os Estados‑Membros devem assegurar que os beneficiários de proteção internacional tenham acesso a cuidados de saúde de acordo com os mesmos critérios de elegibilidade que os nacionais do Estado‑Membro que concedeu essa proteção.»

26.

Artigo 32.o, n.o 1, «Acesso a alojamento»

«Os Estados‑Membros devem assegurar que os beneficiários de proteção internacional tenham acesso a alojamento em condições equivalentes às dos nacionais de outros países terceiros que residam legalmente nos respetivos territórios.»

III. Litígio no processo principal e questões prejudiciais

27.

A. Jawo, que é solteiro e não padece de limitações em termos de saúde, declara ser nacional da Gâmbia, nascido a 23 de outubro de 1992. Abandonou a Gâmbia a 5 de outubro de 2012 e chegou a Itália por via marítima, onde apresentou um pedido de asilo a 23 de dezembro de 2014.

28.

Viajou de Itália para a Alemanha. Em 26 de janeiro de 2015, o Serviço, tendo constatado, por pesquisa no sistema Eurodac ( 8 ), que A. Jawo tinha apresentado pedido de asilo em Itália, pediu à República Italiana que o retomasse a seu cargo ( 9 ). Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, «[a] Itália não se pronunciou sobre este pedido […]».

29.

Por decisão de 25 de fevereiro de 2015, o Serviço indeferiu o pedido de asilo apresentado por A. Jawo, por inadmissível, e ordenou o seu afastamento para Itália, transferência essa para efeitos da instauração de um procedimento de asilo, à qual A. Jawo se opõe.

30.

Em 4 de março de 2015, A. Jawo intentou ação e, a 12 de março de 2015, apresentou pedido de medidas provisórias, que foi julgado inadmissível pelo Verwaltungsgericht Karlsruhe (Tribunal Administrativo de Karlsruhe, Alemanha), por despacho de 30 de abril de 2015, com fundamento na sua intempestividade. Posteriormente, no seguimento de outro requerimento de medidas provisórias, o referido tribunal, por despacho de 18 de fevereiro de 2016, atribuiu efeito suspensivo à ação.

31.

Era suposto A. Jawo ser transferido para Itália no dia 8 de junho de 2015, o que se frustrou porque não se conseguiu encontrá‑lo no seu alojamento comunitário em Heidelberga. O Regierungspräsidium Karlsruhe (Governo da Região de Karlsruhe, Alemanha), questionou os Serviços para Emergências Habitacionais da cidade de Heidelberga, que informaram, em 16 de junho de 2015, que segundo o porteiro responsável, A. Jawo abandonara o alojamento comunitário já há algum tempo. Na audiência de julgamento realizada perante o órgão jurisdicional de reenvio, A. Jawo explicou — pela primeira vez desde no processo judicial — que no início de junho de 2015 viajou até Freiberg/Neckar, a fim de aí visitar um amigo.

32.

Acrescentou que, após uma ou duas semanas, recebeu uma chamada telefónica do seu companheiro de quarto em Heidelberga, a informá‑lo de que a polícia o procurava. Decidiu então regressar a Heidelberga, mas não tinha dinheiro para pagar a viagem, pelo que teve, antes de mais, de pedi‑lo emprestado. Ainda segundo a mesma declaração, decorridas cerca de duas semanas conseguiu regressar a Heidelberga; dirigiu‑se ao Sozialamt (Serviços Sociais) e perguntou se ainda dispunha do seu quarto, ao que lhe foi respondido que sim. Ninguém o informou de que devia comunicar ausências mais prolongadas.

33.

Por formulário de 16 de junho de 2015, o Serviço informou o Ministério do Interior italiano de que a transferência não era temporariamente possível, por A. Jawo se encontrar em fuga, situação de que adquiriu conhecimento nesse mesmo dia. Refere‑se ainda, no mencionado formulário, que a transferência deveria realizar‑se o mais tardar até ao dia 10 de agosto de 2016, «segundo o artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento n.o 604/2013».

34.

A transferência foi reagendada para o dia 3 de fevereiro de 2016; mas frustrou‑se novamente porque o demandante se recusou a entrar a bordo da aeronave.

35.

Por Acórdão de 6 de junho de 2016, o Verwaltungsgericht Karlsruhe (Tribunal Administrativo) julgou improcedente a ação de A. Jawo.

36.

Em fase de recurso, A. Jawo alegou que em junho de 2015 não se encontrava em fuga e que o Serviço não podia ter alargado o prazo segundo o artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III. «Considera que o ato administrativo também [tinha] de ser revogado, porque até ao momento ainda não [tinha sido] proferida decisão acerca da proibição de adoção de medida de afastamento nacional […], decisão essa que é exigida desde 6 de agosto de 2016» e, «atendendo a que obteve formação, de acordo com a autorização concedida para o efeito pela [autoridade alemã competente em matéria de estrangeiros]» ( 10 ). A. Jawo entende ainda que a transferência para Itália também seria ilícita, porque o procedimento de asilo e as condições de acolhimento dos requerentes, nesse Estado‑Membro, revelam falhas sistémicas, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 604/2013.

37.

No decurso do processo de recurso, o Serviço apurou que, em Itália, fora concedido a A. Jawo um título de residência nacional, por motivos humanitários, válido por um ano e que tinha expirado em 9 de maio de 2015.

38.

Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Um requerente de asilo só se encontra em fuga, na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento [Dublim III], se deliberada e conscientemente se subtrair à ação das autoridades nacionais com competência para a execução da transferência, de modo a frustrar ou dificultar a transferência, ou basta que não permaneça na habitação que lhe foi atribuída, durante um período mais longo de tempo, e não informe as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada?

A pessoa em causa pode invocar a necessidade de aplicação correta da disposição e alegar, em ação intentada contra a decisão de transferência, que o prazo de seis meses para a transferência expirou, porque não se encontrava em fuga?

2)

Para que se verifique o alargamento do prazo a que se refere o artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento [Dublim III], basta que o Estado‑Membro que procede à transferência informe o Estado‑Membro responsável, ainda antes do termo do prazo, de que a pessoa em causa se encontra em fuga e simultaneamente indique um prazo concreto, que não exceda os 18 meses, para execução da transferência, ou o alargamento só é possível se os Estados‑Membros envolvidos estabelecerem concertadamente um novo prazo?

3)

A transferência do requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável é inadmissível se, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco sério de ser sujeito a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da [Carta]?

Esta questão ainda cai no âmbito de aplicação do direito da União?

Quais os critérios de direito da União ao abrigo dos quais se impõe apreciar as condições de vida de uma pessoa à qual foi reconhecido o estatuto de proteção internacional?»

IV. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

39.

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, tendo em conta que a terceira questão prejudicial assume particular importância. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta questão tem relevância para todos os procedimentos de transferência para Itália e constitui uma questão prévia em relação a um número indeterminado de processos. O órgão jurisdicional de reenvio invocou igualmente que a incerteza quanto à resposta durante demasiado tempo albergava o perigo de comprometer o funcionamento do sistema introduzido pelo Regulamento Dublim III e, por conseguinte, de enfraquecer o sistema europeu comum de asilo.

40.

Em 24 de abril de 2017, a Quinta Secção decidiu que não havia que dar seguimento ao pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o referido processo à tramitação prejudicial urgente a que o artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça se refere.

41.

A. Jawo, os Governos alemão, italiano, húngaro, neerlandês, do Reino Unido e da Confederação Suíça, bem como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

42.

Na audiência conjunta que teve lugar em 8 de maio de 2018 no processo C‑163/17 e nos processos apensos C‑297/17, C‑318/17, C‑319/17 e C‑438/17, o demandante no processo principal nessas causas, o Serviço, os Governos alemão, belga, italiano, neerlandês, do Reino Unido, bem como a Comissão apresentaram observações orais.

V. Análise

A. Quanto à primeira questão prejudicial

1.   Possibilidade de o requerente de proteção internacional invocar o termo do prazo de seis meses tal como definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento Dublim III e o facto de não se encontrar em fuga, para se opor à sua transferência

a)   Prazo de seis meses

43.

Com a segunda parte da primeira questão prejudicial, que deve ser examinada em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III, deve ser interpretado no sentido de que um requerente de proteção internacional pode invocar, no âmbito de um recurso interposto de uma decisão de transferência tomada a seu respeito, o termo do prazo de seis meses tal como definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, «porque não se encontrava em fuga».

44.

Nos termos do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, a transferência de um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável efetua‑se logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo. No n.o 41 do Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:805), o Tribunal de Justiça declarou que «os prazos enunciados no artigo 29.o do Regulamento Dublim III [tinham] por objeto enquadrar não só a adoção mas também a execução da decisão de transferência». Segundo o mesmo artigo, n.o 2, primeira frase, do referido regulamento, quando a transferência não for executada no prazo de seis meses, a responsabilidade incumbe ao Estado‑Membro requerente. Contudo, segundo o n.o 2, segunda frase, desse mesmo artigo, o prazo de seis meses pode ser alargado para dezoito meses, no máximo, em caso de fuga da pessoa em causa.

45.

O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III prevê que o requerente de proteção internacional tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional. No n.o 48 do Acórdão de 26 de julho de 2017, Mengesteab (C‑670/16, EU:C:2017:587), o Tribunal de Justiça considerou que «esta disposição dev[ia] ser interpretada no sentido de que assegura ao requerente de proteção internacional uma proteção jurisdicional efetiva ao garantir‑lhe, nomeadamente, a possibilidade de introduzir um recurso contra uma decisão de transferência tomada a seu respeito, que pode ter por objeto o exame da aplicação [do Regulamento Dublim III], incluindo o respeito das garantias processuais previstas pelo referido regulamento».

46.

Nos n.os 39 e 40 do Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:805), o Tribunal de Justiça considerou que os procedimentos de tomada a cargo e de retomada a cargo instituídos pelo Regulamento Dublim III deviam, em especial, ser conduzidos no respeito de uma série de prazos imperativos, entre os quais figura o prazo de seis meses mencionado no artigo 29.o, n.os 1 e 2, deste regulamento. Além de visarem enquadrar os referidos procedimentos, estas disposições contribuem igualmente, da mesma maneira que os critérios enunciados no capítulo III do referido regulamento, para determinar o Estado‑Membro responsável. Com efeito, a expiração desse prazo, sem ter sido efetuada a transferência do requerente do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável, implica a transferência de pleno direito da responsabilidade do segundo Estado‑Membro para o primeiro. Nestas condições, para se assegurar de que a decisão de transferência impugnada é adotada na sequência de uma aplicação correta dos referidos procedimentos, o órgão jurisdicional no qual foi interposto um recurso de uma decisão de transferência deve poder analisar as alegações de um requerente de proteção internacional segundo as quais essa decisão foi adotada em violação das disposições que figuram no artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, dado que o Estado‑Membro requerente se tornou o Estado‑Membro responsável no dia da adoção da referida decisão, devido à expiração do prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, deste regulamento.

47.

Além disso, no n.o 46 do Acórdão de 25 de outubro de 2017, Shiri (C‑201/16, EU:C:2017:805), o Tribunal de Justiça declarou que «o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, lido à luz do considerando 19 deste regulamento ( 11 ), e o artigo 47.o da [Carta] [deviam] ser interpretados no sentido de que um requerente de proteção internacional deve poder dispor de uma via de recurso efetiva e célere que lhe permita invocar a expiração do prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, que tivesse ocorrido após a adoção da decisão de transferência».

48.

Em conformidade com o artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, a constatação de que a pessoa em causa se encontra em fuga pode alargar o prazo de seis meses para dezoito meses, no máximo. Tendo em conta as consequências desta constatação para a situação das pessoas em causa — uma vez que, então, o prazo triplica — é imperativo que, em aplicação do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e do artigo 47.o da Carta, a pessoa em causa disponha de uma via de recurso efetiva e célere que lhe permita invocar a expiração do prazo de seis meses, invocando, se for caso disso, que não se encontrava em fuga e que, portanto, esse prazo não podia pode ser prorrogado.

49.

Resulta das considerações que precedem que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, bem como o artigo 47.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que um requerente de proteção internacional deve poder dispor de uma via de recurso efetiva e célere que lhe permita invocar a expiração do prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, que tivesse ocorrido após a adoção da decisão de transferência, invocando, se for caso disso, que não se encontrava em fuga e que, portanto, esse prazo não podia ser prorrogado.

b)   Conceito de «fuga» na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III

50.

Com a primeira parte da sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o conceito de «fuga» na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III e sobre as condições em que se considera que um requerente de proteção internacional está em fuga, caso em que o prazo de transferência de seis meses pode ser alargado para dezoito meses, no máximo. Em especial pretende saber se o conceito de «fuga» na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III exige a prova de que o requerente de proteção internacional «deliberada e conscientemente se subtrai[u] à ação das autoridades nacionais com competência para a execução da transferência, de modo a frustrar ou dificultar a transferência» ou se «basta que não permaneça na habitação que lhe foi atribuída, durante um período mais longo de tempo, e não informe as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada» ( 12 ).

51.

O Regulamento Dublim III não contém qualquer definição do conceito de «fuga» na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase ( 13 ), do mesmo regulamento.

52.

Além disso, embora evoquem a vontade de escapar a qualquer coisa, os termos «fuite» (na versão em língua francesa), «flucht» ( 14 ) (na versão em língua alemã), «absconds» (na versão em língua inglesa), «fuga» (nas versões em língua espanhola, italiana e portuguesa) utilizados pelo artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III não fazem referência à exigência de uma prova das intenções do requerente de proteção internacional, em particular de deliberada e conscientemente se subtrair à execução da transferência.

53.

Por outro lado, a redação do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III também não permite concluir que basta provar a «fuga» do requerente de proteção internacional por uma ou várias circunstâncias objetivas, em particular pela sua ausência inexplicada e prolongada da sua morada habitual.

54.

Face a esta falta de precisão no texto do Regulamento Dublim III, o conceito de «fuga» na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III ( 15 ) deve ser interpretado tendo em conta não apenas os termos desta disposição, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada ( 16 ).

55.

Além disso, uma vez que a pessoa em causa é um requerente de proteção internacional, a Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional ( 17 ) e a Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional estão integradas no contexto pertinente ( 18 ).

1) Quanto aos objetivos do artigo 29.o do Regulamento Dublim III

56.

Resulta nomeadamente dos considerandos 4 e 5 do Regulamento Dublim III que este visa instaurar um método claro e operacional, baseado em critérios objetivos e equitativos, para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional. Este método deverá permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional, preservando em simultâneo o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

57.

Nos termos do artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III, a transferência da pessoa em causa efetua‑se logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses. O Tribunal de Justiça considerou, no n.o 40 do Acórdão de 29 de janeiro de 2009, Petrosian (C‑19/08, EU:C:2009:41), que o prazo de seis meses tinha por finalidade, tendo em conta a complexidade prática e as dificuldades de organização ligadas à execução de tal transferência, permitir que os dois Estados‑Membros em causa se concertassem para a respetiva realização e, mais particularmente, que o Estado‑Membro requerente regulasse as modalidades da realização dessa transferência, que é levada a cabo de acordo com a legislação nacional deste último Estado ( 19 ).

58.

O artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III precisa que, se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente.

59.

Considero que, atendendo ao objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional, a possibilidade de alargamento do prazo de seis meses até dezoito meses só se aplica quando existam provas convincentes de que a pessoa em causa se encontrava em fuga. Com efeito, à semelhança de A. Jawo, considero que o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III tem caráter derrogatório, com consequências importantes para a pessoa em causa e para a determinação do Estado‑Membro responsável ( 20 ). Por conseguinte, esta disposição deve ser interpretada de forma restritiva.

60.

Contudo, não obstante o caráter derrogatório do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III, uma obrigação de provar que o requerente de proteção internacional deliberada e conscientemente se subtraiu à ação das autoridades nacionais com competência para a execução da transferência, de modo a frustrar ou dificultar a transferência, seria, na minha opinião, excessiva e poderia perturbar consideravelmente o sistema, já complexo e difícil, de transferências, criado pelo Regulamento Dublim III ( 21 ).

61.

Considero, de acordo com as observações da Comissão, que se o critério de «fuga» exigisse a prova de uma determinada intenção subjetiva por parte do requerente de proteção internacional, «muitas vezes […] essa intenção só poderia ser estabelecida com grandes dificuldades, no decurso de audições morosas, cuja duração ultrapassaria frequentemente o prazo de seis meses previsto no artigo 29.o, n.o 2» do Regulamento Dublim III. Por outras palavras, em vez de ser derrogatória ou de interpretação restrita, a segunda frase do n.o 2, do artigo 29.o do Regulamento Dublim III seria praticamente impossível de aplicar ( 22 ).

2) Quanto ao contexto: impacto das Diretivas 20013/32 e 2013/33

62.

Na minha opinião, a questão de saber se um requerente de proteção internacional se encontra em fuga deve ser decidida com base em provas concretas e objetivas dessa «fuga», tendo em consideração todas as circunstâncias pertinentes, bem como o contexto do caso no processo principal, independentemente de qualquer prova de quaisquer intenções do interessado que fugiu. Uma vez que o procedimento instituído pelo Regulamento Dublim III não tem natureza penal, o nível de prova deverá ser o aplicável em matéria civil (a ponderação das probabilidades — «on the balance of probabilities»). O ónus da prova recai necessariamente sobre as autoridades nacionais competentes que alegam a fuga da pessoa interessada, pois são elas que pretendem beneficiar da derrogação prevista no artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III.

63.

Tratando‑se do contexto particular em causa, embora os requerentes de proteção internacional possam, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2013/33, «circular livremente no território do Estado‑Membro de acolhimento ou no interior de uma área que lhes for fixada por esse Estado‑Membro», este direito não é absoluto e pode ser sujeito a condições e obrigações.

64.

Com efeito, os Estados‑Membros podem decidir, por um lado, «da residência do requerente por razões de interesse público, de ordem pública ou, sempre que necessário, para o rápido tratamento e acompanhamento eficaz do seu pedido de proteção internacional» ( 23 ) e, por outro, «podem sujeitar a atribuição das condições materiais de acolhimento à residência efetiva dos requerentes de asilo num local determinado, a fixar pelos Estados‑Membros» ( 24 ). Além disso, os «Estados‑Membros devem exigir aos requerentes que comuniquem o seu endereço às autoridades competentes e que as notifiquem, o mais rapidamente possível, de qualquer alteração de endereço» ( 25 ). Na minha opinião, essas limitações e obrigações são necessárias para garantir, nomeadamente, que o requerente de proteção internacional possa ser rapidamente localizado para facilitar a análise do seu pedido, bem como, se for caso disso, a sua transferência para outro Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 29.o do Regulamento Dublim III.

65.

Segundo a Comissão, o artigo 7.o, n.os 2 a 4, da Diretiva 2013/33 foi transposto pela República Federal da Alemanha pelos §§ 56 a 58 da Asylgesetz (Lei relativa ao direito de asilo). Referiu que, por força dessas disposições, A. Jawo «não devia sair — nem mesmo temporariamente — sem autorização administrativa do distrito abrangido pelo serviço de estrangeiros da cidade de Heidelberga, o que, no entanto, o mesmo fez no início do mês de junho de 2015».

66.

Importa, todavia, notar que, em conformidade com o artigo 5.o da Diretiva 2013/33, os Estados‑Membros devem informar os requerentes de proteção internacional, por escrito e numa língua que estes compreendam ou seja razoável presumir que compreendem, das obrigações que terão de respeitar no âmbito das condições de acolhimento ( 26 ). Decorre daqui que se essas regras não foram cumpridas a não observância das restrições à livre circulação não pode ser invocada contra os requerentes de proteção internacional.

67.

Além disso, o artigo 13.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2013/32 prevê a possibilidade de os Estados‑Membros imporem ao requerente de proteção internacional a obrigação de «contactar as autoridades competentes ou comparecer pessoalmente junto destas, imediatamente ou em momento determinado» ( 27 ). Considero que esta obrigação pode ser pertinente num caso como o que está em apreço no processo principal, ainda que o pedido de asilo apresentado por A. Jawo tenha sido indeferido pelo Serviço, por inadmissível, e ordenado o seu afastamento para Itália. De facto, a autoridade nacional competente deve estar em condições de entrar em contacto com um requerente de proteção internacional para proceder à sua transferência, a fim de que o seu pedido de proteção internacional seja analisado pelas autoridades do Estado‑Membro responsável nos termos do Regulamento Dublim III.

68.

Resulta das considerações que precedem que, desde que um requerente de proteção internacional tenha sido informado ( 28 ) das restrições aplicadas ao seu direito de circular livremente e das suas obrigações de se apresentar às autoridades nacionais competentes em conformidade com as disposições nacionais que transpõem o artigo 5.o da Diretiva 2013/33 e o artigo 13.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2013/32, o fato de não ter permanecido na habitação que lhe tinha sido atribuída, durante um período mais longo de tempo, e de não ter informado as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada, basta, na minha opinião, para alargar o prazo de transferência para dezoito meses nos termos do artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III.

B. Quanto à segunda questão prejudicial

69.

Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, para que se verifique o alargamento do prazo de transferência, basta que o Estado‑Membro requerente informe o Estado‑Membro responsável, ainda antes do termo do prazo de seis meses, de que a pessoa em causa se encontra em fuga e simultaneamente indique um prazo concreto, que não exceda os dezoito meses, para execução da transferência, ou se o alargamento do prazo de seis meses só é possível se os Estados‑Membros envolvidos estabelecerem concertadamente um novo prazo.

70.

É de salientar que o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III não prevê qualquer concertação entre o Estado‑Membro requerente e o Estado‑Membro responsável ( 29 ) quanto ao alargamento do prazo que o mesmo permite.

71.

Além disso, o poder do adotar procedimentos de consulta e o intercâmbio de informações entre os Estados‑Membros, em especial em caso de transferências adiadas ou atrasadas, foi delegado na Comissão pelo artigo 29.o, n.o 4, do Regulamento Dublim III. Esses procedimentos são, nomeadamente, fixados pelo artigo 9.o do Regulamento de Execução.

72.

Na minha opinião, resulta da leitura conjugada do artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III e do artigo 9.o do Regulamento n.o 1560/2003 que, quando for estabelecido que a pessoa em causa se encontra em fuga, o prazo de seis meses previsto no artigo 29.o do referido regulamento pode ser ( 30 ) unilateralmente alargado pelo Estado‑Membro requerente para dezoito meses, no máximo, desde que informe sem demora o outro Estado‑Membro do adiamento da transferência, em conformidade com as modalidades previstas no artigo 9.o do Regulamento de Execução. Segundo o artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1560/2003, deve fazê‑lo antes do termo do prazo de seis meses fixado pelo artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento Dublim III.

73.

Tendo em conta o que precede, considero que o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III e o artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1560/2003 devem ser interpretados no sentido de que, para que se verifique o alargamento do prazo de transferência, basta que o Estado‑Membro requerente informe o Estado‑Membro responsável, ainda antes do termo do prazo de seis meses, de que a pessoa em causa se encontra em fuga e simultaneamente indique um prazo concreto, que não exceda os dezoito meses, para execução da transferência.

C. Quanto à terceira questão prejudicial

74.

Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio, em primeiro lugar, interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a transferência do requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável é inadmissível se o referido requerente, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional nesse Estado‑Membro, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco sério de ser sujeito a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se esta questão cai no âmbito de aplicação do direito da União. Em terceiro lugar, interroga‑se sobre quais os critérios ao abrigo dos quais se imporá apreciar as condições de vida de uma pessoa que beneficia de proteção internacional.

75.

Examinarei sucessivamente a segunda, primeira e terceira partes desta questão prejudicial.

1.   Observações preliminares

76.

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as regras do direito derivado da União, incluindo as disposições do Regulamento Dublim III, devem ser interpretadas e aplicadas com respeito pelos direitos fundamentais garantidos pela Carta. A proibição das penas ou dos tratamentos desumanos ou degradantes, prevista no artigo 4.o da Carta, é, a este respeito, de importância fundamental, na medida em que esta reveste caráter absoluto, uma vez que está estreitamente ligada ao respeito da dignidade do ser humano referida no seu artigo 1.o ( 31 ).

77.

O sistema europeu comum de asilo foi concebido num contexto que permitia supor que o conjunto dos Estados que nele participam, quer sejam Estados‑Membros ou Estados terceiros, respeitam os direitos fundamentais, incluindo os direitos que têm o seu fundamento na Convenção de Genebra e na CEDH, e que existe entre os Estados‑Membros, a este respeito, confiança mútua. Devido a este princípio de confiança mútua, o legislador da União adotou, nomeadamente, o Regulamento Dublim III. Nestas condições, o Tribunal de Justiça considerou que devia presumir‑se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada Estado‑Membro era conforme com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra e da CEDH ( 32 ).

78.

Não obstante esta presunção de conformidade, o Tribunal de Justiça também declarou que não se pode excluir que o sistema europeu comum de asilo se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado‑Membro, de modo que existia um sério risco de os requerentes de asilo serem, em caso de transferência para esse Estado‑Membro, tratados de modo incompatível com os seus direitos fundamentais ( 33 ).

79.

No n.o 99 do Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), o Tribunal de Justiça precisou claramente «que uma aplicação do Regulamento [Dublim III] com base na presunção inilidível de que os direitos fundamentais do requerente de asilo são respeitados no Estado‑Membro normalmente competente para conhecer o seu pedido é incompatível com a obrigação de os Estados‑Membros interpretarem e aplicarem o Regulamento [Dublim III] em conformidade com os direitos fundamentais».

80.

Trata‑se, por conseguinte, de uma presunção de conformidade ilidível.

81.

O Tribunal de Justiça também observou, no seu Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 86 a 94 e 106), que a transferência dos requerentes de asilo, no âmbito do sistema de Dublim, podia, em determinadas circunstâncias, ser incompatível com a proibição prevista no artigo 4.o da Carta. Considerou, assim, que um requerente de asilo corria um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção deste artigo, no caso de transferência para um Estado‑Membro no qual seria possível haver um grande receio de que existam falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes. Por conseguinte, em conformidade com a proibição prevista no referido artigo, incumbe aos Estados‑Membros não efetuarem transferências no âmbito do sistema de Dublim para um Estado‑Membro quando não possam ignorar a existência, no mesmo, dessas falhas ( 34 ).

82.

O Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), foi proferido numa situação análoga à visada pelo Acórdão do TEDH, de 21 de janeiro de 2011, M. S. S. c. Bélgica e Grécia ( 35 ), e relativa ao artigo 3.o da CEDH, a saber, a transferência pelas autoridades belgas de um requerente de asilo para a Grécia, que era o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido ( 36 ). No n.o 88 do Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), o Tribunal de Justiça constatou que o TEDH tinha decidido, nomeadamente, que o Reino da Bélgica tinha violado o artigo 3.o da CEDH, por um lado, ao expor o recorrente aos riscos resultantes das falhas do procedimento de asilo na Grécia, na medida em que as autoridades belgas tinham conhecimento ou deviam ter conhecimento de que não existia nenhuma garantia de que o seu pedido de asilo fosse analisado seriamente pelas autoridades gregas, e, por outro, ao expor o recorrente, com pleno conhecimento de causa, a condições de prisão e de existência constitutivas de tratos degradantes ( 37 ).

83.

Embora a jurisprudência resultante do Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), relativa à existência no Estado‑Membro requerido de falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes tenha sido codificada, em 2013, no artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III, o Tribunal de Justiça declarou contudo que daqui não se podia concluir que qualquer violação de um direito fundamental pelo Estado‑Membro responsável afeta as obrigações de os outros Estados‑Membros respeitarem as disposições do Regulamento Dublim III ( 38 ). Com efeito, não seria compatível com os objetivos e o sistema do Regulamento Dublim III que qualquer violação das regras que regem o sistema comum de asilo fosse suficiente para impedir a transferência de um requerente de asilo para o Estado‑Membro normalmente competente ( 39 ).

84.

No que se refere aos riscos associados à própria transferência de um requerente de proteção internacional, o Tribunal de Justiça considerou, no n.o 65 do Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127), que esta só podia ser efetuada em condições que excluíssem que essa transferência implicasse um risco real de o interessado ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta. A este respeito, o Tribunal de Justiça tomou em consideração o estado de saúde especialmente grave do interessado ( 40 ), que podia conduzir a não o poder transferir para outro Estado‑Membro, mesmo inexistindo falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de asilo no Estado‑Membro requerente.

85.

Com efeito, no n.o 91 desse acórdão, o Tribunal de Justiça rejeitou expressamente o argumento da Comissão de que decorre do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III que apenas a existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável pode afetar a obrigação de transferência de um requerente de asilo para esse Estado‑Membro ( 41 ).

86.

A este respeito, o Tribunal de Justiça destacou o caráter geral do artigo 4.o da Carta, que proíbe os tratos desumanos ou degradantes sob todas as suas formas e o facto de que seria manifestamente incompatível com o caráter absoluto dessa proibição que os Estados‑Membros pudessem ignorar um risco real e comprovado de tratos desumanos ou degradantes que afetassem um requerente de asilo sob pretexto de que esse risco não resultava de uma falha sistémica no Estado‑Membro responsável ( 42 ).

87.

O n.o 95 do Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127), precisa que a impossibilidade de proceder à transferência nas circunstâncias em causa nesse processo «respeita plenamente o princípio da confiança mútua, uma vez que, longe de afetar a existência de uma presunção de respeito dos direitos fundamentais em cada Estado‑Membro, garante que as situações excecionais descritas no presente acórdão são devidamente tidas em conta pelos Estados‑Membros. De resto, se um Estado‑Membro procedesse à transferência de um requerente de asilo em tais situações, o trato desumano e degradante que daí resultaria não seria imputável, direta ou indiretamente, às autoridades do Estado‑Membro responsável, mas unicamente ao primeiro Estado‑Membro» ( 43 ).

88.

Esta abordagem prudente, que coloca a tónica na proteção dos princípios fundamentais e dos direitos humanos, reflete igualmente a jurisprudência do TEDH. Com efeito, no n.o 126 do seu Acórdão de 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1104JUD002921712), este recorda «que a alegação de uma pessoa segundo a qual a sua transferência para um Estado terceiro a exporia a tratos proibidos pelo artigo 3.o da [CEDH] deve imperativamente ser objeto de um controlo rigoroso por uma instância nacional».

89.

Ao contrário das circunstâncias presentes nos processos que deram origem aos Acórdãos de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), e de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127), que tinham por objeto, no primeiro caso, as falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e, no segundo caso, a transferência enquanto tal de um requerente de proteção internacional, o processo principal tem por objeto a tomada em conta da situação que poderá ocorrer após a concessão da proteção internacional no Estado‑Membro responsável.

90.

Esta circunstância inédita ainda não foi tratada pelo Tribunal de Justiça.

2.   Quanto à segunda parte da terceira questão prejudicial ( 44 )

a)   Observações das partes

91.

O Governo italiano apenas apresentou observações sobre a terceira questão prejudicial. Considera que as alegadas falhas sistémicas atribuídas ao Estado‑Membro responsável, tal como expostas pelo órgão jurisdicional de reenvio, visam, na realidade, o sistema de proteção social em vigor nesse Estado e não constituem, por conseguinte, uma violação do artigo 4.o da Carta, mas, se for o caso, dos artigos 34.o e 35.o da Carta e do disposto na Diretiva 2011/95.

92.

Segundo o Governo italiano, o órgão jurisdicional de reenvio baseia‑se numa hipotética «falha sistémica» que não diz respeito ao procedimento de asilo nem às condições de acolhimento dos requerentes de asilo, mas a uma fase posterior, a saber, a da presença no território do Estado‑Membro dos requerentes de asilo que beneficiam de proteção internacional. Por conseguinte, o alegado risco afigura‑se hipotético, uma vez que a situação de A. Jawo é a de um requerente de asilo cujo pedido de proteção internacional ainda não foi objeto de análise nem de uma decisão.

93.

Segundo o Governo alemão, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as regras do direito derivado da União, incluindo as disposições do Regulamento Dublim III, devem ser interpretadas e aplicadas com respeito pelos direitos fundamentais garantidos pela Carta.

94.

Com base no exposto, o Governo alemão considera que é necessário apreciar as condições de vida de uma pessoa à qual foi reconhecido o direito a beneficiar de proteção internacional, à luz da Diretiva 2011/95. Salienta que, embora a Diretiva 2013/33 imponha normas mínimas uniformes relativas ao acolhimento dos requerentes de proteção internacional, a Diretiva 2011/95, bem como a Convenção de Genebra, preveem o tratamento nacional ou a igualdade de tratamento em relação aos nacionais de Estados terceiros, no Estado‑Membro responsável. Segundo o Governo alemão «[e]sta particularidade deve […] ser tomada em consideração na apreciação das condições de vida de uma pessoa à qual foi reconhecido o direito a beneficiar de proteção internacional, quando há que apreciar se essas condições de vida são aceitáveis à luz do artigo 4.o da Carta. A escolha desta técnica legislativa derrogatória ( 45 ) tem também incidências no âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União. Com efeito, por força do artigo 51.o, n.o 1, primeiro período, da Carta, os direitos fundamentais da União [apenas] se aplicam no âmbito da aplicação do direito da União. Por conseguinte, as medidas que não estão incluídas na Diretiva [2011/95], e no âmbito das quais os Estados‑Membros agem em virtude da sua própria competência, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação da Carta, [e] o critério do direito primário (artigo 4.o da Carta, neste caso) apenas é aplicável se o direito derivado da União impuser exigências aos Estados‑Membros».

95.

O Governo alemão acrescenta que o órgão jurisdicional de reenvio se baseia numa interpretação errada do âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União, ao sugerir que, na apreciação das condições de vida das pessoas às quais foi reconhecido o direito a beneficiar de proteção internacional, um órgão jurisdicional nacional pode examinar, para além do respeito do nível básico imposto pelo direito da União na Diretiva 2011/95, a questão de uma eventual violação do artigo 4.o da Carta. Além disso, segundo o Governo alemão, a apreciação substantiva do pedido de asilo compete exclusivamente ao Estado‑Membro responsável e não se vê com que base factual poderia o Estado‑Membro que procede à transferência efetuar este exame antecipadamente, para poder chegar com certeza ao resultado de que o reconhecimento será, ou não, concedido no Estado‑Membro responsável.

96.

Segundo o Governo neerlandês, o Estado‑Membro requerente não pode ser responsabilizado por um trato desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta que possa ser aplicado a um requerente de proteção internacional no período posterior ao procedimento de asilo, uma vez que não é a transferência que expõe diretamente o requerente a esse tratamento. A responsabilidade pela situação em que o requerente de proteção internacional «se encontrar após ter completado o procedimento de asilo cabe exclusivamente ao Estado‑Membro que o Regulamento de Dublim designa para o tratamento do pedido de asilo e para assumir as obrigações daí decorrentes».

97.

Segundo o Governo do Reino Unido, é evidente que a possibilidade concedida a um requerente de asilo de contestar uma decisão de transferência, invocando as condições de vida no Estado‑Membro responsável após a concessão de proteção internacional, ultrapassa largamente o âmbito de aplicação do sistema de Dublim. Em primeiro lugar, o texto do Regulamento Dublim III não confirma essa interpretação alargada. Em segundo lugar, o sistema de Dublim visa determinar o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo e não está interessado no resultado de um pedido de asilo ou na situação dos requerentes de asilo após ter sido concedida a proteção internacional, no caso de resposta favorável ao pedido. Em terceiro lugar, o resultado de um pedido de asilo, uma vez que o requerente de asilo se encontre no Estado‑Membro responsável, é incerto. Em quarto lugar, o Governo do Reino Unido considera que invocar as condições de vida na sequência da concessão da proteção internacional, para contestar uma decisão, é prematuro. Observa que pode decorrer muito tempo antes que ocorra a transferência e que, seguidamente, o pedido de asilo seja analisado, podendo também, durante esse período, as condições de vida alterarem‑se significativamente. Segundo o Governo do Reino Unido, se o beneficiário de proteção internacional estivesse confrontado com o risco de ser sujeito a um trato contrário ao artigo 4.o da Carta após a concessão dessa proteção, ser‑lhe‑ia então possível, desde que o direito da União se aplicasse, solicitar proteção jurisdicional no Estado‑Membro de acolhimento.

98.

O Governo húngaro considera que o âmbito de aplicação do Regulamento Dublim III abrange o período correspondente à execução do procedimento para efeitos da determinação do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional e, em contrapartida, não contém regras relativas ao período subsequente. Segundo o referido governo, as circunstâncias posteriores à transferência e à análise de um pedido de proteção internacional não se inserem em nenhuma das circunstâncias que devem ser analisadas no âmbito do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III. Sublinha que as condições de vida, após a análise do pedido, não são suscetíveis de serem examinadas de forma objetiva, dado que os regimes de proteção social dos Estados‑Membros não são comparáveis e que não existe nenhuma solução nacional, cujo caráter adequado não possa ser contestado. Segundo o mesmo governo, poderemos, assim, interrogar‑nos, basicamente, sobre a questão de saber como poderá uma autoridade ou um órgão jurisdicional nacional fundamentar a sua decisão relativa à recusa de transferência no âmbito do procedimento de «Dublim», uma vez que seria necessário examinar antecipadamente, em primeiro lugar, se o requerente vai ser reconhecido como refugiado no Estado‑Membro responsável e, em segundo lugar, se existe no caso concreto, um risco real de que, eventualmente, as condições de vida não sejam satisfatórias.

99.

A Comissão considera que o Regulamento Dublim III, mesmo interpretado à luz do artigo 4.o da Carta, não exige que os Estados‑Membros, por um lado, se debrucem sobre a questão de saber se os beneficiários de proteção internacional correm um risco concreto, após a conclusão do seu procedimento de asilo, de viver na miséria e, portanto, de serem sujeitos a um trato contrário à dignidade do ser humano, no âmbito de procedimentos de transferência ao abrigo do referido regulamento, e, por outro, suspendam transferências individuais por razões dessa natureza. Considera, pelo contrário, que, enquanto o Estado‑Membro responsável cumprir as suas obrigações, no que diz respeito a beneficiários de proteção, nos termos da Convenção de Genebra e da Diretiva 2011/95, isto é, em particular, lhes conceder um acesso efetivo, em termos de igualdade, à educação, ao emprego, à proteção social, ao alojamento e à assistência médica, os Estados‑Membros podem confiar no facto de que esse Estado e a sua sociedade, em geral, desenvolvem esforços suficientes para que mesmo as pessoas mais necessitadas não sejam tratadas de forma desumana ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta.

b)   Análise

100.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a análise pelo Estado‑Membro requerente, antes de proceder à transferência, da existência de riscos reais e comprovados de tratos desumanos ou degradantes do interessado no Estado‑Membro requerido, que poderiam surgir após a eventual concessão da proteção internacional, cai no âmbito de aplicação do direito da União ou se, pelo contrário, pode considerar que os referidos riscos são demasiado longínquos e que, por conseguinte, a sua análise e a sua tomada em conta são prematuros ( 46 ).

101.

O artigo 51.o, n.o 1, da Carta prevê que as suas disposições têm por destinatários os Estados‑Membros apenas quando estes aplicam o direito da União. Daqui decorre que se impõe aos Estados‑Membros o respeito do artigo 4.o da Carta, relativo à proibição de penas e de tratos desumanos ou degradantes, quando transferem um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento Dublim III ( 47 ).

102.

Ora, quando um Estado‑Membro procede à transferência de um requerente de proteção internacional, aplica o artigo 29.o do Regulamento Dublim III e não as disposições da Diretiva 2011/95. Consequentemente, as observações do Governo alemão, segundo as quais a Carta não é aplicável, no caso em apreço, se a Diretiva 2011/95 não impuser exigências aos Estados‑Membros, não são pertinentes.

103.

Quanto às observações do Governo italiano sobre os artigos 34.o e 35.o da Carta, importa salientar que o órgão jurisdicional de reenvio não colocou questões relativas a essas disposições. Considero, além disso, que uma eventual aplicação dessas disposições não leva a excluir a pertinência da aplicação do artigo 4.o da Carta.

104.

Acresce que, além do caráter geral e absoluto da proibição prevista no artigo 4.o da Carta, que milita a favor de uma aplicação extensiva desta disposição, importa recordar que o Tribunal de Justiça constatou, no Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), que o sistema europeu comum de asilo é fundado na confiança mútua e numa presunção de respeito, por parte dos outros Estados‑Membros, do direito da União e, mais particularmente, dos direitos fundamentais, permitindo assim, em princípio, a transferência para o Estado‑Membro competente, em aplicação do sistema de Dublim, dos requerentes de proteção internacional.

105.

A este respeito, resulta dos n.os 84 e 85 do Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), que, na sua análise do sistema europeu comum de asilo, o Tribunal de Justiça teve em conta não só a Diretiva 2003/9, mas também a Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida ( 48 ), bem como a Diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados‑Membros ( 49 ).

106.

É de assinalar que a Diretiva 2004/83, à semelhança da Diretiva 2011/95 que a substituiu, continha regras sobre o tratamento dos beneficiários de proteção internacional ( 50 ) e previa, nomeadamente, normas mínimas relativas ao acesso do interessado à educação, à assistência social, aos cuidados de saúde e ao alojamento. Ora, é precisamente o acesso a estes direitos sociais em Itália que está em causa no processo principal.

107.

Além disso, o tratamento dos pedidos de proteção internacional e a eventual concessão desta proteção são claramente consecutivas à determinação do Estado‑Membro responsável, em conformidade com o Regulamento Dublim III.

108.

Embora cada etapa seja caracterizada por regras e prazos específicos, penso que a determinação do Estado‑Membro responsável, a análise do pedido de proteção internacional e a eventual concessão desta proteção, em conjunto, formam o sistema europeu comum de asilo. De facto, todas essas etapas separadas são consecutivas e estão intrinsecamente ligadas. Nas circunstâncias em causa no processo principal, em que é alegado um risco de tratos desumanos ou degradantes no Estado‑Membro responsável, seria artificial separar as etapas relativas à transferência do requerente de proteção internacional, ao seu acolhimento e à análise do seu pedido da etapa relativa à concessão da proteção internacional, tendo nomeadamente em conta a proximidade temporal de todas essas etapas ( 51 ). Consequentemente, invocar a existência de um risco real de uma violação do artigo 4.o da Carta, posterior à concessão de proteção internacional, para contestar uma decisão de transferência não teria, na minha opinião, por consequência dar lugar a uma análise prematura.

109.

Além disso, dado que os Estados‑Membros, antes de procederem à transferência de um requerente de proteção internacional nos termos do artigo 29.o do Regulamento Dublim III, são obrigados a verificar o procedimento de asilo e as condições de acolhimento no Estado‑Membro responsável à luz do artigo 4.o da Carta sempre que haja uma alegação de existência de falhas sistémicas a este respeito nesse Estado‑Membro ( 52 ), o argumento dos Governos húngaro e alemão de que os Estados‑Membros não têm capacidade para verificar as condições de vida dos beneficiários de proteção internacional noutros Estados deve ser rejeitado. Ademais, esta recusa de responsabilidade baseada na falta de meios práticos é manifestamente contrária à jurisprudência do TEDH, que impõe às instâncias nacionais a obrigação de fazer «um controlo rigoroso» ( 53 ).

110.

Tendo em conta o que precede, considero que a questão de saber se a transferência de um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o artigo 29.o do Regulamento Dublim III, é inadmissível se o referido requerente, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional nesse Estado, ficar exposto no referido Estado, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco real e comprovado de ser sujeito a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta, cai no âmbito de aplicação do direito da União.

3.   Quanto à primeira parte da terceira questão prejudicial

111.

Na minha opinião, resulta da resposta que dei à segunda parte da terceira questão prejudicial do órgão jurisdicional de reenvio e, em particular, do caráter geral e absoluto da proibição de tratos desumanos e degradantes prevista no artigo 4.o da Carta que deve responder‑se à primeira parte da terceira questão no sentido de que a transferência de um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o artigo 29.o do Regulamento Dublim III, é inadmissível se o referido requerente, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional nesse Estado, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco sério de ser sujeito a um trato como o referido no artigo 4.o da Carta. Por conseguinte, a transferência de um requerente de proteção internacional no âmbito do Regulamento Dublim III só pode ser efetuada em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado ser sujeito, após a concessão da proteção internacional, a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta.

4.   Terceira parte da terceira questão prejudicial

112.

Com a terceira parte da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre os critérios do direito da União ao abrigo dos quais se imporá apreciar as condições de vida, num Estado‑Membro, de uma pessoa cujo direito a beneficiar de uma proteção internacional foi aí reconhecido.

113.

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Diretiva 2011/95, «no que se refere às condições de vida dos beneficiários de proteção, apenas promete, regra geral, o tratamento nacional [com exceção do artigo 32.o da Diretiva 2011/95, relativo ao acesso a alojamento, que só exige uma igualdade de tratamento em relação aos nacionais de outros países terceiros] e que, no direito da União, não é indicada nenhuma norma (mínima) precisa, no âmbito do sistema comum europeu de asilo. Contudo, o tratamento nacional pode revelar‑se insuficiente, mesmo quando os mínimos sejam, para os nacionais, ainda conformes com a dignidade do ser humano. Com efeito, a União deve ter sempre presente que as pessoas aqui em causa são geralmente pessoas vulneráveis e desenraizadas, de qualquer modo pessoas que acumulam as desvantagens e que, entregues a si próprias, dificilmente conseguirão, ou não conseguirão mesmo, fazer valer, de forma efetiva, os direitos que a ordem jurídica do Estado‑Membro de acolhimento teoricamente lhes garante. Por conseguinte, devem em primeiro lugar elevar‑se, materialmente, a um nível idêntico ou comparável àquele em que a população local deve estar para que possa reivindicar o exercício dos seus direitos. Esta questão de fundo social é uma condição necessária para que o princípio do tratamento nacional seja justificado e realista. É essa a razão pela qual o artigo 34.o da Diretiva 2011/95 exige, com razão, que os Estados‑Membros devem assegurar o acesso efetivo a programas de integração que têm uma função compensatória específica, sem reservas ou condições» ( 54 ).

114.

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que dispõe, entre outros, do relatório de investigação detalhado da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados, intitulado «Condições de acolhimento em Itália», de agosto de 2016 (v. pp. 32 e segs.) ( 55 ) (a seguir «Relatório da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados»), «que contém elementos concretos que permitem pensar que os beneficiários de proteção internacional correm o risco de viver à margem da sociedade e sem domicílio fixo, e numa situação de miséria» nesse Estado‑Membro. «A Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados sublinha várias vezes que o desenvolvimento totalmente insuficiente do sistema social se explica, em grande parte, pelo recurso à solidariedade familiar, ou seja, que é exclusivamente graças a esta solidariedade familiar dentro da população italiana que a miséria não um fenómeno generalizado. Ora, essa solidariedade falta na totalidade aos beneficiários de proteção internacional».

a)   Observações das partes

115.

A. Jawo entende que não faz «sentido que a pessoa em causa seja afastada para um país em que as condições para os requerentes de asilo são, sem dúvida, corretas, mas em que as condições para as pessoas que têm direito a beneficiar de proteção são, pelo contrário, criticáveis. Nestas condições, um resultado favorável do procedimento de asilo teria, assim, por consequência uma deterioração da situação jurídica da pessoa em causa. Isto seria absurdo. [I]sto mostra igualmente que a afirmação de que os requerentes de asilo não correm, em Itália, nenhum risco de serem sujeitos a um trato proibido pelo artigo 4.o da Carta não pode ser exata».

116.

O Governo italiano considera que o órgão jurisdicional de reenvio põe em causa a adequação do sistema estatal de integração social, cujas hipotéticas lacunas são em si mesmas irrelevantes para efeitos de aplicação do artigo 3.o da CEDH. Entende que não se pode falar de trato desumano ou degradante, quando existe um sistema de proteção social com base no qual um Estado assegura aos beneficiários de proteção internacional os mesmos direitos e garantias que os que são concedidos aos seus próprios nacionais, pelo simples facto de as medidas compensatórias de integração criadas em virtude da posição de particular fraqueza e vulnerabilidade dos referidos beneficiários não serem as mesmas que as adotadas noutros países ou apresentarem algumas lacunas. Segundo o Governo italiano, as falhas devem ser de molde a impedir (ou a poder impedir com um grau de probabilidade suficiente), in concreto, o beneficiário de proteção internacional de exercer, pelo benefício de prestações sociais essenciais, os direitos que lhe são reconhecidos. Considera que, para que exista um risco sério de trato desumano, as falhas devem constituir um obstáculo concreto à implementação das referidas prestações sociais mínimas e essenciais de forma tal que exista um elevado grau de probabilidade de o beneficiário de proteção internacional cair em estado de marginalização e de pobreza.

117.

O Governo italiano salienta que o (único) relatório de uma organização não governamental que o órgão jurisdicional de reenvio tomou em consideração ( 56 ) é desmentido por outro relatório independente ( 57 ) e, além disso, não parece conter elementos suficientemente precisos e aptos a fornecer prova de falhas sistémicas suscetíveis de dar lugar a uma derrogação às regras do Regulamento Dublim III ( 58 ).

118.

O Governo do Reino Unido considera que a Diretiva 2011/95 foi redigida de forma que os beneficiários de proteção internacional não sejam mais bem tratados do que os nacionais do Estado‑Membro que lhes reconheceu essa proteção.

119.

O Governo húngaro considera que as autoridades nacionais devem agir no respeito da confiança mútua que os Estados‑Membros se atribuem.

120.

O Governo neerlandês duvida que as condições de vida em Itália, descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio, possam ser qualificadas como trato contrário ao artigo 4.o da Carta. Segundo o mesmo governo, essas condições não são comparáveis à situação que estava em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), e ao Acórdão do TEDH de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609).

121.

A Comissão considera que o artigo 34.o da Diretiva 2011/95 está formulado com muita reserva. Segundo a Comissão, os Estados‑Membros devem apenas assegurar o acesso a programas de integração «que considerem apropriados, a fim de ter em conta as necessidades específicas dos beneficiários do estatuto de refugiado ou do estatuto de proteção subsidiária» ou criar condições prévias que garantam aos beneficiários de proteção o acesso a programas de integração não estatais. Entende que deficiências na preparação dos programas de integração não podem ser suficientes para desenvolver a hipótese descrita no pedido de decisão prejudicial, a saber, que os beneficiários de proteção que ainda não se puderam integrar na sociedade, por exemplo, por falta de conhecimentos linguísticos, se poderiam considerar abandonados por uma sociedade e um Estado que se mostram indiferentes a um destino tão miserável, daí resultando uma violação da sua dignidade humana.

122.

A Confederação Suíça não apresentou observações sobre a terceira questão prejudicial.

b)   Análise

123.

Em conformidade com o princípio de confiança mútua, deve presumir‑se que o tratamento dado aos beneficiários de proteção internacional em cada Estado‑Membro é conforme com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra e da CEDH ( 59 ). Esta presunção de conformidade é reforçada se o Estado‑Membro transpõe de jure ( 60 ), mas também de facto, as disposições do capítulo VII da Diretiva 2011/95 («Conteúdo da proteção internacional»), que prevê um nível de proteção social ao beneficiário em causa que é equivalente, ou mesmo superior, ao previsto na Convenção de Genebra.

124.

Contudo, como já indiquei no n.o 80 das presentes conclusões, esta presunção de conformidade (nomeadamente com o artigo 4.o da Carta) não é inilidível.

125.

Considero que resulta, por analogia, dos n.os 253 e 254 do Acórdão do TEDH de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609), cuja pertinência, num contexto análogo ao que está em causa no processo principal, foi confirmada pelo Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 88), que um Estado‑Membro viola o artigo 4.o da Carta se beneficiários de proteção internacional, inteiramente dependentes da ajuda pública, forem confrontados com a indiferença das autoridades de tal forma que se encontrem numa situação de privação ou de carência tão grave que fosse incompatível com a dignidade do ser humano.

126.

Por outras palavras, para se considerar que existem motivos válidos e comprovados para crer que os beneficiários da proteção internacional correm um risco real de serem sujeitos a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, em virtude das suas condições de vida no Estado‑Membro responsável em aplicação do Regulamento Dublim III, estes devem encontrar‑se numa situação de especial gravidade ( 61 ) resultante de falhas sistémicas relativamente a eles nesse Estado‑Membro.

127.

A verificação da existência, ou não, de tal situação no Estado‑Membro responsável deve basear‑se unicamente numa avaliação concreta dos factos e das circunstâncias. O órgão jurisdicional de reenvio deve tomar em consideração todas as provas apresentadas pelo interessado sobre todos os factos pertinentes relativos às condições de vida dos beneficiários de proteção internacional no Estado‑Membro responsável, incluindo as leis e regulamentos e a forma como esta legislação é efetivamente aplicada.

128.

Além disso, os relatórios e os documentos emitidos pelas instituições e agências europeias, pelo Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa (a seguir «Comissário») e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), bem como os relatórios e os documentos emitidos por organizações não governamentais ( 62 ), permitem, também, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar as condições de vida dos beneficiários de proteção internacional e, assim, avaliar os riscos reais que o interessado corre caso seja transferido para o Estado‑Membro responsável ( 63 ).

129.

Embora, no âmbito desta apreciação, os documentos emitidos pela Comissão, pelo ACNUR e pelo Comissário beneficiem de uma especial pertinência ( 64 ), o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar a pertinência e o peso a atribuir aos dados e às avaliações contidos em relatórios e documentos emitidos por organizações não governamentais, no que respeita, designadamente, à metodologia utilizada na sua preparação, bem como à imparcialidade dessas organizações.

130.

O facto de um Estado‑Membro não cumprir as obrigações previstas nas disposições do capítulo VII da Diretiva 2011/95 constitui um facto pertinente. Cabe recordar, no entanto, que, dado que uma violação do artigo 4.o da Carta relacionada com as condições de vida dos beneficiários de proteção internacional no Estado‑Membro responsável exige que estes devem encontrar‑se numa situação de especial gravidade ( 65 ), a violação das disposições da Diretiva 2011/95 não constitui necessariamente uma prova suficiente.

131.

Na audiência, vários governos (neste caso, alemão, belga e neerlandês) insistiram neste conceito de situação de especial gravidade para não incentivar «uma migração secundária» e não criar um «fardo unilateral» para os Estados que concedem as melhores prestações, salientando que as diferenças entre sistemas nacionais de proteção social não violavam o direito da União.

132.

O Governo neerlandês sublinhou que apenas se podia afastar o princípio de confiança mútua por motivos muito sérios, só devendo ser sancionadas as violações menores da Diretiva 2011/95 através de recursos para os órgãos jurisdicionais nacionais ou de ações por incumprimento propostas pela Comissão no Tribunal de Justiça.

c)   Aplicação ao caso em apreço

133.

Saliento que o órgão jurisdicional de reenvio apenas toma em consideração falhas sistémicas e não casos isolados.

134.

Além disso, não existe qualquer indício, no processo submetido ao Tribunal de Justiça, de que A. Jawo se encontrasse numa situação de particular vulnerabilidade, que o individualizasse ou o distinguisse dos outros beneficiários de proteção internacional em Itália ( 66 ) e o colocasse entre as pessoas vulneráveis, na aceção do artigo 20.o, n.o 3, da Diretiva 2011/95.

135.

Segundo o pedido de decisão prejudicial, A. Jawo é maior de idade, solteiro e não padece de limitações em termos de saúde.

136.

Parece decorrer do pedido de decisão prejudicial que, de jure, isto é, de um ponto de vista formal, os beneficiários de proteção internacional em Itália têm designadamente acesso ao emprego, à educação, à assistência social e aos cuidados de saúde nas mesmas condições que os nacionais italianos ( 67 ). No que diz respeito ao acesso a alojamento, é feita uma distinção entre os cidadãos nacionais e os requerentes de proteção internacional.

137.

Embora considere que esta distinção é lamentável no plano humano, importa sublinhar que a mesma é, em princípio, conforme com o direito da União e com o direito internacional público. Com efeito, contrariamente às disposições relativas ao emprego ( 68 ), à educação ( 69 ), à assistência social ( 70 ) e aos cuidados de saúde ( 71 ), que impõem um tratamento idêntico ao reservado aos nacionais do Estado‑Membro ( 72 ), esta distinção entre os nacionais de um Estado‑Membro e os beneficiários de proteção internacional, no acesso a alojamento, encontra‑se expressamente prevista no artigo 32.o da Diretiva 2011/95 e no artigo 21.o da Convenção de Genebra.

138.

Além disso, a este respeito, observo que, no n.o 249 do Acórdão do TEDH de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609), aquele considerou que «o artigo 3.o [da CEDH] não pode ser interpretado no sentido de obrigar as Altas Partes Contratantes a garantir o direito ao alojamento a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição […]. Também não se pode retirar do artigo 3.o [da CEDH] um dever geral de prestar aos refugiados assistência financeira para que estes possam manter um certo nível de vida» ( 73 ).

139.

Contudo, deve‑se sublinhar que embora os Estados‑Membros não sejam, em princípio, obrigados a conceder um tratamento nacional aos beneficiários da proteção internacional quanto ao acesso a alojamento, devem assegurar que esses beneficiários têm acesso designadamente ao emprego, à educação, à assistência social e aos cuidados de saúde nas mesmas condições que os nacionais, assegurando assim que os resultados previstos pela Diretiva 2011/95 são efetivamente atingidos. É possível que, no Estado‑Membro responsável, a única forma de atingir esses resultados seja conceder um tratamento nacional de acesso a alojamento aos beneficiários de proteção internacional. Esta conclusão só poderá resultar de uma análise pormenorizada e fundamentada. Neste contexto, devo referir aqui que, na audiência conjunta de 8 de maio de 2018, o Governo italiano afirmou que, em Itália, os beneficiários da proteção internacional tinham direito ao tratamento nacional.

140.

Importa ainda notar que o órgão jurisdicional de reenvio, com base no relatório da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados, manifestou dúvidas quanto ao cumprimento das obrigações impostas pelo artigo 34.o da Diretiva 2011/95 relativas ao acesso aos mecanismos de integração, por parte da República Italiana. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio fez referência a dificuldades linguísticas encontradas por alguns beneficiários de proteção internacional, que torna difícil o acesso efetivo à assistência social em pé de igualdade com os nacionais.

141.

É verdade que a falta de programas de integração destinados a ter em conta as necessidades específicas dos beneficiários de proteção internacional ( 74 ) e as suas dificuldades, nomeadamente, linguísticas, constituiria um facto pertinente se fosse estabelecido pelo órgão jurisdicional de reenvio.

142.

De facto, decorre claramente do n.o 261 do Acórdão do TEDH de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609), que a circunstância de os beneficiários de proteção internacional terem dificuldades resultantes da falta de conhecimentos linguísticos e da inexistência de qualquer rede de apoio são factos pertinentes na avaliação da existência de um tratamento contrário ao artigo 3.o da CEDH (e, por conseguinte, ao artigo 4.o da Carta).

143.

Resulta das considerações que precedem que, devido ao princípio de confiança mútua, deve presumir‑se que o tratamento dado aos beneficiários de proteção internacional em cada Estado‑Membro é conforme com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra e da CEDH. Esta presunção de conformidade é reforçada quando um Estado‑Membro transpõe de jure e de facto as disposições do capítulo VII da Diretiva 2011/95 intitulado «Conteúdo da proteção internacional» que prevê um nível de proteção social dos beneficiários em causa que é equivalente, ou mesmo superior, ao previsto na Convenção de Genebra. Contudo, esta presunção de conformidade, nomeadamente com o artigo 4.o da Carta, não é inilidível. Para se considerar que existem motivos válidos e comprovados para crer que os beneficiários de proteção internacional correm um risco real de serem sujeitos a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, em virtude das suas condições de vida no Estado‑Membro responsável em aplicação do Regulamento Dublim III, estes devem encontrar‑se numa situação de especial gravidade resultante de falhas sistémicas relativamente a eles nesse Estado‑Membro.

144.

A verificação da existência, ou não, de tal situação no Estado‑Membro responsável deve basear‑se unicamente numa avaliação concreta dos factos e das circunstâncias. O órgão jurisdicional de reenvio deve tomar em consideração todas as provas apresentadas pelo interessado sobre todos os factos pertinentes relativos às condições de vida dos beneficiários de proteção internacional nesse Estado‑Membro responsável, incluindo as leis e regulamentos e a forma como são efetivamente aplicados. Considero que a existência de um único relatório, de uma organização não governamental, sobre as condições de vida no Estado‑Membro responsável poderá não constituir prova suficiente. Nesse caso, o órgão jurisdicional de reenvio deve basear‑se noutras provas e, se necessário, designar um perito.

145.

É verdade que só a adoção de uma verdadeira política sobre a proteção internacional a nível da União, com o seu próprio orçamento, que garanta condições de vida mínimas e uniformes aos beneficiários desta proteção, permitiria reduzir, ou mesmo eliminar, a ocorrência de casos como o do processo principal, assegurando que o princípio da solidariedade e da partilha equitativa de responsabilidades entre os Estados‑Membros, consagrado no artigo 80.o TFUE, seja uma realidade, em benefício não apenas dos Estados‑Membros, mas sobretudo dos seres humanos em causa. Contudo, durante essa espera (provavelmente longa!), cabe aos Estados‑Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, assegurar a plena eficácia das normas atualmente em vigor, tal como acima explicado.

VI. Conclusão

146.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Verwaltungsgerichtshof Baden‑Württemberg (Tribunal Administrativo Superior de Bade‑Vurtemberga, Alemanha) da seguinte forma:

1)

O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, bem como o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que um requerente de proteção internacional deve poder dispor de uma via de recurso efetiva e célere que lhe permita invocar a expiração do prazo de seis meses definido no artigo 29.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, ocorrida após a adoção da decisão de transferência, invocando, se for caso disso, que não se encontrava em fuga e que, portanto, esse prazo não podia ser prorrogado.

2)

O artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que, desde que um requerente de proteção internacional tenha sido informado das restrições aplicadas ao seu direito de circular livremente ou das suas obrigações de se apresentar às autoridades nacionais competentes em conformidade com as disposições nacionais que transpõem o artigo 5.o da Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, e o artigo 13.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional, o fato de não ter permanecido na habitação que lhe tinha sido atribuída, durante um período mais longo de tempo, e de não ter informado as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada, basta, na minha opinião, para alargar o prazo de transferência para dezoito meses.

3)

O artigo 29.o, n.o 2, do Regulamento n.o 604/2013 e o artigo 9.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.o 343/2003, conforme alterado pelo Regulamento de Execução (UE) n.o 118/2014 da Comissão, de 30 de janeiro de 2014, devem ser interpretados no sentido de que, quando for estabelecido que a pessoa em causa se encontra em fuga, o prazo de seis meses previsto no artigo 29.o do Regulamento n.o 604/2013 pode ser unilateralmente alargado pelo Estado‑Membro requerente para dezoito meses, no máximo, desde que informe sem demora o outro Estado‑Membro do adiamento da transferência, em conformidade com as modalidades previstas no artigo 9.o do Regulamento n.o 1560/2003. Segundo o artigo 9.o, n.o 2, do referido regulamento, o Estado‑Membro requerente deve fazê‑lo antes do termo do prazo de seis meses fixado pelo artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 604/2013. A pessoa em causa deve encontrar‑se em fuga na data da tentativa de transferência, bem como na data em que o Estado‑Membro requerente informe o Estado‑Membro responsável de tal facto.

4)

O artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento n.o 604/2013 e o artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1560/2003 devem ser interpretados no sentido de que, para que se verifique o alargamento do prazo de transferência, basta que o Estado‑Membro requerente informe o Estado‑Membro responsável, ainda antes do termo do prazo de seis meses, de que a pessoa em causa se encontra em fuga e simultaneamente indique um prazo concreto, que não exceda os dezoito meses, para execução da transferência.

5)

A questão de saber se a transferência de um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o artigo 29.o do Regulamento n.o 604/2013, é inadmissível se o referido requerente, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional nesse Estado, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco real e comprovado de ser sujeito a um trato desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais, cai no âmbito de aplicação do direito da União.

6)

Uma transferência de um requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o artigo 29.o do Regulamento n.o 604/2013, é inadmissível se o referido requerente, caso lhe seja reconhecido estatuto de proteção internacional nesse Estado, ficar aí exposto, tendo em conta as condições de vida que então serão expectáveis, a um risco sério de ser sujeito a um trato como o referido no artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais. Por conseguinte, a transferência de um requerente de proteção internacional no âmbito do Regulamento n.o 604/2013 só pode ser efetuada em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de que o interessado seja sujeito, após a concessão da proteção internacional, a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais.

7)

Devido ao princípio de confiança mútua, deve presumir‑se que o tratamento dado aos beneficiários de proteção internacional em cada Estado‑Membro é conforme com as exigências da Carta dos Direitos Fundamentais, da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951, que entrou em vigor em 22 de abril de 1954, conforme completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967, e da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950. Esta presunção de conformidade é reforçada quando um Estado‑Membro transpõe de jure e de facto as disposições do capítulo VII da Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida, intitulado «Conteúdo da proteção internacional» que prevê um nível de proteção social dos beneficiários em causa que é equivalente, ou mesmo superior, ao previsto na Convenção de Genebra. Contudo, esta presunção de conformidade, nomeadamente com o artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais, não é inilidível. Para se considerar que existem motivos válidos e comprovados para crer que os beneficiários de proteção internacional correm um risco real de serem sujeitos a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais, em virtude das suas condições de vida no Estado‑Membro responsável em aplicação do Regulamento n.o 604/2013, estes devem encontrar‑se numa situação de especial gravidade resultante de falhas sistémicas relativamente a eles nesse Estado‑Membro.

8)

A verificação da existência, ou não, de tal situação no Estado‑Membro responsável deve basear‑se unicamente numa avaliação concreta dos factos e das circunstâncias. O órgão jurisdicional de reenvio deve tomar em consideração todas as provas apresentadas pelo interessado sobre todos os factos pertinentes relativos às condições de vida dos beneficiários de proteção internacional nesse Estado‑Membro responsável, incluindo as leis e regulamentos e a forma como são efetivamente aplicados. A existência de um único relatório, de uma organização não governamental, sobre as condições de vida no Estado‑Membro responsável poderá não constituir prova suficiente. Nesse caso, o órgão jurisdicional de reenvio deve basear‑se noutras provas e, se necessário, designar um perito.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2013, L 180, p. 31.

( 3 ) Coletânea de Tratados das Nações Unidas, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954).

( 4 ) O Regulamento Dublim III revogou e substituiu o Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1).

( 5 ) JO 2003, L 222, p. 3.

( 6 ) JO 2014, L 39, p. 1.

( 7 ) JO 2011, L 337, p. 9.

( 8 ) V. Regulamento (UE) n.o 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo à criação do sistema «Eurodac» de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.o 604/2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida, e de pedidos de comparação com os dados Eurodac apresentados pelas autoridades responsáveis dos Estados‑Membros e pela Europol para fins de aplicação da lei e que altera o Regulamento (UE) n.o 1077/2011, que cria uma Agência europeia para a gestão operacional de sistemas informáticos de grande escala no espaço de liberdade, segurança e justiça (JO 2013, L 180, p. 1; a seguir «Regulamento Eurodac»).

( 9 ) V., artigo 18.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento Dublim III.

( 10 ) V. n.o 9 do pedido de decisão prejudicial.

( 11 ) O alcance do direito de recurso, concedido ao requerente de proteção internacional, de uma decisão de transferência tomada a seu respeito é precisado no considerando 19 do Regulamento Dublim III, que indica que, a fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso instituído pelo referido regulamento de decisões de transferência deve abranger, por um lado, a análise da aplicação desse regulamento e, por outro, a análise da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido.

( 12 ) O órgão jurisdicional de reenvio «não encontra indícios de que, através do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento [Dublim III], se queira sancionar um comportamento reprovável do estrangeiro. [Para aquele], o sentido e o objetivo desta disposição são assegurar o efetivo funcionamento do sistema de Dublim. Este funcionamento pode ficar seriamente posto em causa nos casos em que as transferências não podem ser executadas num espaço de tempo relativamente curto, por a isso obstarem circunstâncias que não caem na esfera de responsabilidade do Estado‑Membro que procede à transferência. De resto, de um ponto de vista prático podem surgir frequentemente dificuldades consideráveis em matéria de investigação e de prova se for necessário demonstrar, em relação a cada uma das pessoas em causa, que se afastou da sua habitação ou se escondeu com o objetivo de impossibilitar ou dificultar uma transferência».

( 13 ) O artigo 2.o, alínea n), do Regulamento Dublim III, fala, pelo contrário, do «risco de fuga», entendido como «o risco de que um requerente, um nacional de um país terceiro ou um apátrida, objeto de um procedimento de transferência, possa fugir, avaliado num caso individual com base em critérios objetivos definidos pela lei». Parece‑me que este conceito visa as circunstâncias em que um requerente de proteção internacional pode ser mantido em regime de detenção para efeitos de transferência (artigo 28.o do referido regulamento). Por conseguinte, o artigo 2.o, alínea n), do Regulamento Dublim III não visa as circunstâncias em que um requerente de proteção internacional deve ser considerado como estando em fuga na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III.

( 14 )

( 15 ) A este respeito, observo que os artigos 8.o e 9.o do Regulamento n.o 1560/2003 também não contêm quaisquer precisões.

( 16 ) V. Acórdão de 23 de novembro de 2006, Lidl Italia (C‑315/05, EU:C:2006:736, n.o 42). Importa sublinhar que o artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III não faz nenhuma remissão para o direito nacional. V., igualmente, Acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai (C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 37): «Segundo jurisprudência constante, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa».

( 17 ) JO 2013, L 180, p. 60.

( 18 ) JO 2013, L 180, p. 96.

( 19 ) Quanto às modalidades da transferência, v. artigos 8.o e 9.o do regulamento de aplicação.

( 20 ) Com efeito, se o prazo de seis meses for ultrapassado, é, em princípio, o Estado‑Membro requerente o responsável pelo tratamento do pedido de proteção internacional.

( 21 ) Tanto mais que o requerente de proteção internacional, que deve estar acessível e ser informado do desenrolar do procedimento, pode muito facilmente comunicar a sua ausência da sua residência habitual, principalmente se for prolongada.

( 22 ) Segundo o Governo alemão, «podem surgir frequentemente dificuldades consideráveis em matéria de investigação e de prova se for necessário demonstrar, em relação a cada uma das pessoas em causa, que se afastou da sua habitação ou se escondeu com o objetivo de impossibilitar ou dificultar uma transferência. Esta interpretação poderia incentivar os requerentes de asilo a criar histórias para se protegerem. Os requerentes de asilo “encontram‑se em fuga” na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento Dublim III quando, por razões que lhes são imputáveis, não podem ser encontrados pelas autoridades do Estado‑Membro que procedem à transferência. É nomeadamente o que acontece quando requerentes de asilo não permanecem na habitação que lhes foi atribuída, durante um período mais longo de tempo, e não informam as autoridades do seu paradeiro, impedindo assim a execução de uma transferência previamente planeada» (n.os 67 e 68 das suas observações). O Governo húngaro é de opinião que, «[p]ara além do facto de as intenções do requerente constituírem um elemento subjetivo desprovido de qualquer pertinência, à luz do objetivo prosseguido pelo Regulamento [Dublim III], fazer depender a transferência de tal circunstância comprometeria o eficaz funcionamento do regulamento» (n.o 10 das suas observações). O Governo neerlandês alega que «uma interpretação adequada do conceito de “se encontrar em fuga”, na aceção do artigo 29.o, n.o 2, segunda frase, do Regulamento [Dublim III], é aquela em que se trata, em substância, de falta de […] disponibilidade. Esta interpretação não implica que, para se poder concluir que o requerente de asilo “se encontra em fuga”, a sua não disponibilidade tenha um caráter intencional. A razão exata ou o motivo exato da não disponibilidade do requerente de asilo é irrelevante para o sistema e para efeitos do objetivo de assegurar que a transferência para o Estado‑Membro responsável possa realizar‑se o mais rapidamente possível» (n.os 15 e 16 das suas observações). Segundo a Confederação Suíça, «o requerente de asilo tem a obrigação de se manter à disposição das autoridades e de lhes comunicar eventuais ausências. É esse a fortiori o caso quando a transferência para o Estado [membro] responsável está iminente e a pessoa em causa tem conhecimento de tal facto. Por conseguinte, deve entender‑se por fuga situações que tornam impossível a transferência, devido à ausência da pessoa em causa e que lhe são imputáveis» (n.o 11 das suas observações). O sublinhado é meu.

( 23 ) Artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2013/33. O sublinhado é meu.

( 24 ) Artigo 7.o, n.o 3, da Diretiva 2013/33. O artigo 7.o, n.o 4, da referida diretiva dispõe que «[o]s Estados‑Membros devem prever a possibilidade de conceder aos requerentes uma autorização temporária de abandonar o local de residência referido nos n.os 2 e 3 e/ou a área fixada referida no n.o 1. As decisões devem ser tomadas de forma individual, objetiva e imparcial e, no caso de serem negativas, devem ser fundamentadas».

( 25 ) Artigo 7.o, n.o 5, da Diretiva 2013/33.

( 26 ) Essas informações podem ser também, quando apropriado, prestadas oralmente. Neste contexto, as condições de acolhimento incluem o direito de circular livremente.

( 27 ) O Governo do Reino Unido observou que no «Reino Unido, os requerentes de asilo que não se encontrem presos estão sujeitos a certas obrigações, nomeadamente a de se apresentarem regularmente no Ministério do Interior. A maior parte dos requerentes de asilo é obrigada a apresentar‑se semanalmente. Os que são objeto de procedimentos de transferência ao abrigo do Regulamento Dublim III devem apresentar‑se quinzenalmente, exceto se a pessoa em causa estiver envolvida num litígio relativo à contestação do seu afastamento, caso em que deve apresentar‑se uma vez por mês. Este procedimento tem por objetivo assegurar que o requerente de asilo permanece em contacto com as autoridades competentes e que estas são informadas da sua presença e do seu paradeiro. Por último, o mesmo garante a boa aplicação do regulamento, uma vez que permite que as transferências sejam realizadas. O Reino Unido pratica, também, uma política segundo a qual o requerente de asilo que falte três vezes a apresentar‑se às autoridades é considerado como encontrando‑se em fuga. O Reino Unido considera que esta abordagem permite o grau de certeza necessário tanto às autoridades nacionais como ao requerente de asilo e uma certa flexibilidade no caso de o requerente de asilo não se apresentar por motivos fortes (por exemplo, por motivo de doença)» (n.os 51 e 52 das suas observações).

( 28 ) Na audiência, o Serviço não conseguiu responder à questão de saber se esta informação tinha sido prestada. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar este ponto.

( 29 ) V., a contrario, artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, que prevê expressamente uma concertação entre os Estados‑Membros envolvidos.

( 30 ) O alargamento do prazo de seis meses não é automático.

( 31 ) V. Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 59 e jurisprudência referida). Os direitos conferidos aos requerentes de asilo foram também reforçados pelo Regulamento Dublim III. V., neste sentido, Acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash (C‑63/15, EU:C:2016:409, n.o 34). Segundo o Tribunal de Justiça, a proibição de tratos desumanos ou degradantes prevista no artigo 4.o da Carta corresponde à enunciada no artigo 3.o da CEDH e, nessa medida, o seu sentido e alcance são, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, os mesmos que os que lhe confere essa convenção [Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 67)]. Além disso, resulta do artigo 15.o, n.o 2, da CEDH que não é possível nenhuma derrogação ao artigo 3.o da CEDH, e o Tribunal de Justiça confirmou que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») relativa ao artigo 3.o da CEDH devia ser tida em conta para interpretar o artigo 4.o da Carta [Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 68)].

( 32 ) V., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78 a 80).

( 33 ) Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 81).

( 34 ) Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 60 e jurisprudência referida).

( 35 ) CE:ECHR:2011:0121JUD003069609.

( 36 ) É de salientar que, ao examinar as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional na Grécia, o TEDH teve em conta as obrigações que incumbem às autoridades gregas, em conformidade com a Diretiva 2003/9/CE do Conselho, de 27 de janeiro de 2003, que estabelece normas mínimas em matéria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados‑Membros (JO 2003, L 31, p. 18). [Acórdão do TEDH, de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.o 263)].

( 37 ) No seu acórdão, o TEDH declarou que uma situação de grave privação material pode criar um problema à luz do artigo 3.o da CEDH. A seguir, concluiu que a situação em que se tinha encontrado o recorrente em causa era de uma especial gravidade. O TEDH assinalou que «[o recorrente tinha explicado] ter vivido durante meses na mais absoluta pobreza e não ter podido fazer face a nenhuma das suas necessidades mais elementares: alimentação, higiene e alojamento. A esta situação vinha juntar‑se a angústia permanente de ser atacado e roubado, bem como da falta total de perspetivas de ver a sua situação melhorar» [Acórdão do TEDH, de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.os 252 a 254)]. No n.o 263 deste acórdão, o TEDH considera que as autoridades gregas «não tomaram devidamente em conta a vulnerabilidade do recorrente enquanto requerente de asilo e devem ser consideradas responsáveis, devido à sua passividade, pelas condições em que este se encontrou durante meses, a viver na rua, sem recursos, sem acesso a sanitários, não dispondo de qualquer meio para prover às suas necessidades essenciais. O Tribunal é de opinião que o recorrente foi vítima de um tratamento humilhante, que revela falta de respeito pela sua dignidade e que esta situação suscitou nele, sem dúvida, sentimentos de medo, de angústia ou de inferioridade, que podem levar ao desespero. Considera que tais condições de existência, conjugadas com a incerteza prolongada em que se tinha mantido e a falta total de perspetivas de ver a sua situação melhorar, atingiram o limiar de gravidade exigido pelo artigo 3.o da [CEDH]».

( 38 ) V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 82).

( 39 ) Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 84).

( 40 ) Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.os 71, 73 e 96). Neste processo, o Tribunal de Justiça considerou que não havia razões sérias para acreditar na existência de falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo no Estado‑Membro responsável. Contudo, o Tribunal de Justiça declarou que não se podia excluir que a própria transferência de um requerente de asilo cujo estado de saúde era particularmente grave pudesse, em si, expor o interessado a um risco real de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, e isso independentemente da qualidade do acolhimento e dos cuidados disponíveis no Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido. O Tribunal de Justiça considerou que, em circunstâncias nas quais a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física especialmente grave, implica um risco real e comprovado de uma deterioração significativa e irremediável do seu estado de saúde, essa transferência constitui um trato desumano e degradante, na aceção do referido artigo. O Tribunal de Justiça acrescentou que incumbia às autoridades do Estado‑Membro que deve proceder à transferência e, se for caso disso, aos seus órgãos jurisdicionais dissipar quaisquer dúvidas sérias quanto ao impacto da transferência no estado de saúde do interessado, tomando as precauções necessárias para que a sua transferência se realize em condições que permitam salvaguardar de maneira adequada e suficiente o estado de saúde dessa pessoa. No caso de, tendo em conta a especial gravidade da doença do requerente de asilo em causa, a tomada dessas precauções não ser suficiente para assegurar que a sua transferência não implicará um risco real de um agravamento significativo e irremediável do seu estado de saúde, incumbe às autoridades do Estado‑Membro em causa suspender a execução da transferência do interessado, e isso enquanto o seu estado de saúde não o tornar apto a essa transferência.

( 41 ) Saliento que, no seu Acórdão de 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1104JUD002921712), o TEDH considerou que, para verificar se a transferência de um requerente de proteção internacional em aplicação do sistema de Dublim constituía um trato desumano ou degradante, era necessário averiguar se, tendo em conta a situação geral do dispositivo de acolhimento dos requerentes de asilo no Estado‑Membro responsável e a situação específica dos requerentes, existiam motivos válidos e comprovados para crer que, em caso de transferência para Itália, os requerentes corriam o risco de serem sujeitos a tratamentos contrários ao artigo 3.o da CEDH. O TEDH considerou que, no período relevante, a situação da Itália não podia, de modo algum, ser comparada com a situação da Grécia, à época do Acórdão de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609), e que a abordagem, nesse processo, não podia ser a mesma que a que deu origem ao referido acórdão. Contudo, o TEDH declarou que se os requerentes (um casal com seis filhos menores, beneficiando estes últimos de uma proteção especial, tendo em conta as suas necessidades específicas e a sua extrema vulnerabilidade) devessem ser transferidos para Itália sem que as autoridades suíças tivessem previamente obtido das autoridades italianas uma garantia individual, no que respeita, por um lado, a uma tomada a cargo adequada à idade das crianças e, por outro, à preservação da unidade familiar, haveria violação do artigo 3.o da CEDH.

( 42 ) V. Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o. (C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 93).

( 43 ) O sublinhado é meu.

( 44 ) Conforme anunciei no n.o 75 das presentes conclusões, examinarei, em primeiro lugar, a segunda parte da terceira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio.

( 45 ) A saber, o tratamento nacional em vez das normas mínimas uniformes.

( 46 ) O órgão jurisdicional de reenvio considera que o sistema europeu comum de asilo não se limita a regulamentar apenas a fase de acolhimento dos requerentes de proteção internacional e o procedimento para a concessão dessa proteção. Este sistema deverá, igualmente, ter em conta as pessoas a quem o Estado‑Membro responsável concedeu proteção internacional no fim do procedimento. Este órgão jurisdicional entende que a análise da questão de saber se existem num Estado‑Membro falhas sistémicas, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III, não se pode limitar a responder à questão de saber se as condições de acolhimento, no decurso do procedimento propriamente dito, estão isentas dessas falhas, mas deve ter também em consideração a situação subsequente. «[…], a consequência necessária disso é que a presença, nem que seja numa única fase, de falhas sistémicas, não conformes com a dignidade do ser humano, implica que seja, de um modo geral, impossível redirecionar as pessoas em causa para o procedimento no Estado‑Membro em princípio responsável, uma vez que estas correriam, nesse caso, um risco real de serem sujeitas a maus tratos, na aceção do artigo 4.o da [Carta]».

( 47 ) V., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 64 a 69).

( 48 ) JO 2004, L 304, p. 12. A Diretiva 2004/83 foi revogada e substituída pela Diretiva 2011/95.

( 49 ) JO 2005, L 326, p. 13. A Diretiva 2005/85 foi revogada e substituída pela Diretiva 2013/32.

( 50 ) Ou do estatuto de proteção subsidiária.

( 51 ) De facto, nos termos do artigo 31.o, n.o 3, da Diretiva 2013/32 «[o]s Estados‑Membros asseguram a conclusão do procedimento de apreciação no prazo de seis meses a contar da apresentação do pedido». Segundo essa mesma disposição, o prazo de seis meses começa a contar do momento em que o Estado‑Membro responsável pela sua análise for determinado, nos termos do Regulamento Dublim III, e o requerente se encontrar no território desse Estado‑Membro e tiver sido tomado a cargo pela autoridade competente.

( 52 ) V. artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III.

( 53 ) V. n.o 126 do Acórdão de 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1104JUD002921712).

( 54 ) O órgão jurisdicional de reenvio acrescentou que, «[c]oncretamente, isto significa também que este sistema europeu comum de asilo deve garantir, pelo menos, um programa de integração de dimensão adequada e que tenha em conta as desvantagens do grupo da população em causa, na medida do necessário para, de qualquer forma, garantir e assegurar o tratamento nacional na prática e não apenas no plano teórico, o que poderia traduzir‑se em exigências diferentes, consoante os Estados‑Membros. No contexto do direito da União, esta norma representa uma exigência mínima em termos de direito de asilo e de direitos humanos» (n.o 25 das suas observações).

( 55 ) Disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.asylumineurope.org/sites/default/files/resources/160908‑sfh‑bericht‑italien‑f.pdf.

( 56 ) A saber, o relatório da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados.

( 57 ) A saber, o relatório de outra organização não governamental, a AIDA [Asylum Information Database, Country report: Italy (fevereiro de 2017)] (a seguir «Relatório da AIDA»).
Disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.asylumineurope.org/reports/country/italy.

( 58 ) Segundo o Governo italiano, «[n]o referido relatório da AIDA, também não foi detetada, no sistema de integração e de assistência subsequentes ao reconhecimento da proteção internacional, qualquer situação crítica suscetível de originar um trato desumano e degradante» (n.o 88 das suas observações).

( 59 ) V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78 a 80).

( 60 ) Com efeito, nos termos do artigo 288.o TFUE, o Estado‑Membro está vinculado quanto ao resultado a alcançar.

( 61 ) V. Acórdão do TEDH, de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.o 254).

( 62 ) Como o relatório da Organização Suíça de Ajuda aos Refugiados e o relatório da AIDA citados pelo órgão jurisdicional de reenvio.

( 63 ) V., por analogia, Acórdão de 30 de maio de 2013, Halaf (C‑528/11, EU:C:2013:342, n.o 44), e Acórdão do TEDH de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.o 255).

( 64 ) Neste contexto, o Tribunal de Justiça fez especificamente referência ao papel confiado ao ACNUR pela Convenção de Genebra, à luz da qual as regras de direito da União que regulam o asilo devem ser interpretadas [v. Acórdão de 30 de maio de 2013, Halaf (C‑528/11, EU:C:2013:342, n.o 44)].

( 65 ) Acórdão do TEDH, de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD0003069609, n.o 254).

( 66 ) No que se refere à proteção acrescida das pessoas vulneráveis, v. artigo 20.o, n.o 3, da Diretiva 2011/95, que prevê que «[a]o aplicar o [capítulo VII sobre o conteúdo da proteção internacional], os Estados‑Membros devem ter em conta a situação específica das pessoas vulneráveis, designadamente os menores, os menores não acompanhados, os deficientes, os idosos, as grávidas, as famílias monoparentais com filhos menores, as vítimas de tráfico humano, as pessoas com distúrbios mentais e as pessoas que tenham sido sujeitas a atos de tortura, violação ou outras formas graves de violência psicológica, física ou sexual». Saliento que, no n.o 94 do seu acórdão de 4 de novembro de 2014, Tarakhel c. Suíça (CE:ECHR:2014:1109JUD002921712), o TEDH considerou «que, para ser abrangido pela proibição constante do artigo 3.o [da CEDH], o tratamento deve revestir‑se de um mínimo de gravidade. A apreciação deste mínimo é relativa; depende do conjunto de dados do processo, nomeadamente, da duração do tratamento e dos seus efeitos físicos e mentais, bem como, por vezes, do sexo, da idade e do estado de saúde da vítima».

( 67 ) Segundo a Comissão, «[é] importante notar que o despacho de reenvio não menciona qualquer elemento que indique que, em Itália, são recusadas, de forma discriminatória, aos refugiados ou aos beneficiários de proteção subsidiária, as prestações sociais geralmente aplicáveis» (n.o 43 das suas observações).

( 68 ) V. artigo 26.o da Diretiva 2011/95. V., igualmente, artigos 17.o a 19.o da Convenção de Genebra.

( 69 ) V. artigo 27.o da Diretiva 2011/95 e artigo 22.o da Convenção de Genebra.

( 70 ) V. artigo 29.o da Diretiva 2011/95. Nos termos do artigo 29.o, n.o 2, da Diretiva 2011/95, «[e]m derrogação da regra geral estabelecida no n.o 1, os Estados‑Membros podem limitar a assistência social a conceder aos beneficiários do estatuto de proteção subsidiária às prestações sociais de base, que nesse caso serão prestadas ao mesmo nível e segundo os mesmos critérios de elegibilidade dos respetivos nacionais». V., igualmente, artigos 23.o e 24.o da Convenção de Genebra.

( 71 ) V. artigo 30.o da Diretiva 2011/95. V., igualmente, artigo 24.o da Convenção de Genebra.

( 72 ) O considerando 41 da Diretiva 2011/95 prevê que, «[a] fim de melhorar o exercício efetivo dos direitos e benefícios estabelecidos na presente diretiva pelos beneficiários de proteção internacional, é necessário ter em conta as suas necessidades específicas e os problemas particulares de integração com que se confrontam. Tais considerações não deverão normalmente conduzir a um tratamento mais favorável do que o conferido aos seus nacionais, sem prejuízo da possibilidade de os Estados‑Membros introduzirem ou manterem normas mais favoráveis». O sublinhado é meu.

( 73 ) No entanto, recorda‑se que, segundo este mesmo acórdão, uma situação de grave privação material pode criar um problema à luz do artigo 3.o da CEDH e, por conseguinte, do artigo 4.o da Carta.

( 74 ) Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar a veracidade desta alegação.