CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 13 de dezembro de 2017 ( 1 )

Processo C‑9/17

Maria Tirkkonen

com intervenção de:

Maaseutuvirasto

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia)]

«Questão prejudicial — Diretiva 2004/18/CE — Procedimento de adjudicação de contratos públicos de serviços de aconselhamento agrícola — Existência de um contrato público — Sistema de aquisição de serviços mediante contratos regulados por um acordo‑quadro e aberto a qualquer operador económico que satisfaça as condições previamente estabelecidas — Sistema não aberto posteriormente a outros operadores económicos»

1.

Entre os apoios ao desenvolvimento rural financiados pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) figuram os destinados a prestar serviços de aconselhamento aos agricultores. As autoridades nacionais selecionam os consultores que devem oferecer os seus conselhos profissionais a esses agricultores por via de concursos públicos abertos, em princípio, a quem preencha os requisitos adequados para desempenhar esta atividade.

2.

No âmbito de um desses processos de seleção, M. Tirkkonen apresentou a sua proposta para constar da lista de consultores agrícolas, preenchendo o respetivo formulário. Contudo, não preencheu o ponto em que tinha de assinalar se aceitava as «condições constantes do projeto de acordo‑quadro», o que determinou que a sua candidatura fosse rejeitada pela Administração adjudicante.

3.

Deduz‑se do despacho de reenvio que essa omissão seria sanável se se aplicasse a lei nacional que regula as relações entre a Administração pública e os administrados. Contudo, sendo aplicável a lei nacional relativa à adjudicação de contratos públicos, parece que o erro seria irreversível. Tal foi, pelo menos, o declarado tanto pela Administração finlandesa como pelo tribunal de primeira instância que confirmou a sua decisão.

4.

Neste contexto, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia) pretende saber, em suma, se o mecanismo de seleção dos consultores agrícolas que é o objeto do litígio constitui um «contrato público», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE ( 2 ).

5.

Na resposta às suas dúvidas, terá de ser tomada em consideração a jurisprudência, relativa ao referido conceito, do Tribunal de Justiça no processo Falk Pharma ( 3 ) que, na minha opinião, fornece indicações suficientes para a resolução da controvérsia.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Diretiva 2004/18

6.

Nos termos do artigo 1.o («Definições»):

«[…]

2.

a)

“Contratos públicos” são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva.

[…]

5.

“Acordo‑quadro” é um acordo entre uma ou mais entidades adjudicantes e um ou mais operadores económicos, que tem por objeto fixar os termos dos contratos a celebrar durante um determinado período, nomeadamente em matéria de preços e, se necessário, de quantidades previstas.

[…]»

7.

O artigo 32.o («Acordos‑quadro») dispõe:

«[…]

2.   Para efeitos de celebração de um acordo‑quadro, as entidades adjudicantes seguirão as normas processuais referidas na presente diretiva em todas as fases até à adjudicação dos contratos baseados nesse acordo‑quadro. A escolha das partes no acordo‑quadro é feita mediante a aplicação dos critérios de adjudicação estabelecidos nos termos do artigo 53.o

Os contratos baseados num acordo‑quadro serão adjudicados segundo os procedimentos previstos nos n.os 3 e 4. Esses procedimentos só são aplicáveis entre as entidades adjudicantes e os operadores económicos que sejam parte no acordo‑quadro desde o início.

Aquando da adjudicação de contratos baseados num acordo‑quadro, as partes não podem[,] em caso algum, introduzir alterações substanciais nos termos fixados no acordo‑quadro, designadamente no caso a que se refere o n.o 3.

[…]

4.   Quando um acordo‑quadro é celebrado com vários operadores económicos, o seu número deve ser, no mínimo, três, desde que exista um número suficiente de operadores económicos que cumpram os critérios de seleção e/ou de propostas admissíveis que satisfaçam os critérios de adjudicação.

A atribuição dos contratos baseados em acordos‑quadro celebrados com vários operadores económicos pode ser feita:

quer nos termos estipulados no acordo‑quadro, sem reabertura de concurso;

quer, quando nem todos os termos se encontrem estipulados no acordo‑quadro, após reabertura de concurso entre as partes com base nos mesmos termos, se necessário precisando‑os, e, se for caso disso, noutros termos indicados no caderno de encargos do acordo‑quadro, recorrendo ao seguinte procedimento:

a)

Para cada contrato a adjudicar, as entidades adjudicantes consultarão por escrito os operadores económicos suscetíveis de executar o objeto do contrato;

b)

As entidades adjudicantes fixarão um prazo suficiente para a apresentação das propostas relativas a cada contrato específico, tendo em conta elementos como a complexidade do objeto do contrato e o tempo necessário para o envio das propostas;

c)

As propostas serão apresentadas por escrito e o respetivo conteúdo deve permanecer confidencial até ao termo do prazo de resposta previsto;

d)

As entidades adjudicantes atribuirão cada contrato ao proponente que tiver apresentado a melhor proposta com base nos critérios de adjudicação previstos no caderno de encargos do acordo‑quadro.»

8.

O artigo 53.o («Critérios de adjudicação») dispõe:

«1.

Sem prejuízo das disposições legislativas, regulamentares ou administrativas nacionais relativas à remuneração de determinados serviços, os critérios em que as entidades adjudicantes se devem basear para a adjudicação são os seguintes:

a)

Quando a adjudicação for feita à proposta economicamente mais vantajosa do ponto de vista da entidade adjudicante, diversos critérios ligados ao objeto do contrato público em questão, como sejam qualidade, preço, valor técnico, características estéticas e funcionais, características ambientais, custo de utilização, rendibilidade, assistência técnica e serviço pós‑venda, data de entrega e prazo de entrega ou de execução; ou

b)

Unicamente o preço mais baixo.

2.

Sem prejuízo do disposto no terceiro parágrafo, no caso previsto na alínea a) do n.o 1, a entidade adjudicante especificará, no anúncio de concurso ou no caderno de encargos ou, no caso do diálogo concorrencial, na memória descritiva, a ponderação relativa que atribui a cada um dos critérios escolhidos para determinar a proposta economicamente mais vantajosa.

Essas ponderações podem ser expressas por um intervalo de variação com uma abertura máxima adequada.

Sempre que, no entender da entidade adjudicante, a ponderação não for possível por razões demonstráveis, a entidade adjudicante indicará, no anúncio de concurso ou no caderno de encargos ou, no caso do diálogo concorrencial, na memória descritiva a ordem decrescente de importância dos critérios.»

2. Regulamento (UE) n.o 1305/2013 ( 4 )

9.

O artigo 15.o, n.o 3, dispõe:

«As autoridades ou organismos selecionados para fornecer serviços de aconselhamento devem dispor dos recursos adequados, em termos de pessoal qualificado e com formação regular, bem como de experiência e fiabilidade no que respeita aos domínios em que se propõem intervir. Os beneficiários desta medida são escolhidos na sequência de convite à apresentação de propostas. O procedimento de seleção é regido pel[o] direito dos contratos públicos e é aberto tanto aos organismos públicos como aos privados. O procedimento deve ser objetivo e excluir os candidatos que apresentem conflitos de interesses.

[…]»

3. Regulamento de execução (UE) n.o 808/2014 ( 5 )

10.

O artigo 7.o prevê:

«Os convites à apresentação de propostas a que se refere o artigo 15.o, n.o 3, do Regulamento (UE) n.o 1305/2013 devem ser conformes com as normas da União e nacionais aplicáveis aos contratos públicos. Devem ter na devida conta o grau de qualificação dos requerentes, a que se refere aquele artigo.»

B.   Direito nacional

11.

A Diretiva 2004/18 foi transposta na Finlândia pela Lei relativa à adjudicação de contratos públicos (Lei 348/2007).

12.

Nos termos do artigo 45.o, n.o 1, da Lei relativa à aplicação de ajudas agrícolas (Lei 192/2003, alterada pela Lei 501/2014), os consultores são selecionados em conformidade com as disposições da Lei relativa à adjudicação de contratos públicos por um período que termina com o encerramento do Programa de Desenvolvimento do Meio Rural na Finlândia Continental 2014‑2020.

13.

Nos termos do n.o 2 desse mesmo artigo, a seleção e a admissão implicam que o consultor disponha de conhecimentos técnicos suficientes sobre o conteúdo e o âmbito do aconselhamento a prestar. O consultor deve ainda cumprir as condições de idoneidade exigidas.

II. Matéria de facto

14.

Em 16 de setembro de 2014, a Maaseutuvirasto (Agência finlandesa para o Espaço Rural; a seguir «Agência») anunciou a abertura de um concurso público para adjudicação de um contrato de prestação de serviços de aconselhamento agrícola, a celebrar sob a forma de acordo‑quadro, para o período 2015‑2020.

15.

O aviso de abertura de concurso refere que o procedimento de concurso estava aberto tanto a consultores públicos como privados e que o seu objetivo consistia em encontrar prestadores de serviços que cumprissem os requisitos do artigo 15.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1305/2013 e do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1306/2013 ( 6 ), além de terem experiência de aconselhamento.

16.

O sistema de seleção baseava‑se num acordo‑quadro, nos termos da Lei relativa à adjudicação de contratos públicos, sendo os prestadores do serviço incluídos no referido acordo‑quadro por via do concurso público do artigo 65.o da referida lei.

17.

No acordo‑quadro incluíam‑se as condições essenciais da prestação do serviço. Os contratos posteriores seriam adjudicados sem a realização de um procedimento de adjudicação de contrato separado, recorrendo o agricultor/gestor agrícola que o solicitasse teia direito à aconselhamento do consultor que considerasse preencher melhor a suas necessidades. Por princípio, seriam utilizados os serviços de aconselhamento mais próximos, podendo‑se também, em casos devidamente justificados, recorrer‑se a outros consultores.

18.

A remuneração dos consultores seria calculada em função das horas de serviço e seria da responsabilidade da Agência (exceto o IVA, cujo pagamento caberia ao agricultor).

19.

Tendo em conta o pedido de aconselhamento existente, seriam admitidos todos os consultores que cumprissem condições os requisitos de idoneidade e as condições mínimas indicadas nos anexos do acordo‑quadro. Além disso, os candidatos deviam ser aprovados num exame específico, integrado no procedimento de seleção.

20.

Por decisão de 18 de dezembro de 2014, a Agência excluiu a proposta de M. Tirkkonen, por não ter preenchido o n.o 7 do formulário «Cumprimento das formalidades da proposta e dos requisitos do concurso» (anexo 2 do aviso de abertura do concurso). Nesse número devia ter indicado, assinalando «sim» ou «não», se «aceitava as condições do projeto de contrato‑quadro anexado ao aviso de abertura do concurso».

21.

M. Tirkkonen impugnou a decisão da Agência no Markkinaoikeus (Tribunal de Comércio), alegando que não estava em causa uma adjudicação de um contrato público. Consequentemente, não seria aplicável a Lei relativa à adjudicação de contratos públicos, mas sim a Lei do Procedimento administrativo, o que obrigava a Agência a solicitar‑lhe que completasse a documentação da sua proposta.

22.

Julgada improcedente a ação, em 7 de setembro de 2015, pelo Markkinaoikeus (Tribunal de Comércio), M. Tirkkonen interpôs recurso no Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia), que suscita a questão prejudicial.

23.

Segundo o despacho de reenvio, o pedido diz respeito à questão de saber se «o sistema de serviços de aconselhamento [da Agência] constitui um contrato público abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18 e, por conseguinte, da lei nacional relativa à adjudicação de contratos públicos» ( 7 ).

III. Questão submetida

24.

A questão prejudicial tem a seguinte redação:

«Deve o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE ser interpretado no sentido de que a definição de “contratos públicos”, na aceção desta diretiva, abrange um sistema de contratos:

através do qual um organismo público pretende obter prestações de serviços no mercado, durante um período previamente limitado, mediante a celebração, nas condições previstas num projeto de contrato‑quadro anexo ao aviso de abertura do concurso, de contratos com todos os operadores económicos que cumprem os requisitos quanto à aptidão do proponente e ao serviço prestado, fixados na documentação do aviso de abertura do concurso e nela descritos individualmente, e foram aprovados num exame descrito de forma mais pormenorizada no aviso de abertura do concurso, e

ao qual não é possível aderir durante o período de vigência do contrato?»

IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e posição das partes

25.

A questão prejudicial foi registada no Tribunal de Justiça em 9 de janeiro de 2017. Apresentaram observações escritas M. Tirkkonen, o Governo finlandês e a Comissão. Não foi considerada necessária a realização de uma audiência.

26.

M. Tirkkonen alega que, das três fases que constituem o concurso público (verificação da aptidão dos proponentes; avaliação da conformidade das propostas com o aviso de abertura do concurso; seleção de uma proposta em função do critério do preço mais baixo ou da relação qualidade/preço), não foi realizada, neste procedimento, a terceira, uma vez que as propostas não foram comparadas entre si e a seleção do prestador do serviço competia ao agricultor. Sublinha, designadamente, que os 140 consultores selecionados inicialmente efetuaram o exame e que 138 foram aprovados, sem que esse exame permitisse classificá‑los realmente por ordem de mérito. A ausência de seleção entre as propostas recebidas excluiria a existência de um contrato público.

27.

O Governo finlandês salienta a pertinência da jurisprudência assente no acórdão Falk Pharma, assinalando, contudo, que neste caso, o sistema não está aberto de forma permanente a novos proponentes. Em sua opinião, o facto de a entidade adjudicante «impor aos prestadores inúmeras exigências específicas não fundamentadas na legislação» ( 8 ) implica que o referido sistema se aproxime do conceito de contrato público. A aplicação da legislação relativa à adjudicação de contratos públicos seria justificada pela necessidade de garantir que os critérios de seleção não sejam estabelecidos de modo discriminatório.

28.

O Governo finlandês alega, também, que das 163 propostas recebidas apenas foram admitidas condicionalmente 140, tendo sido 138 as aceites no final. Este dado demonstraria o caráter seletivo do procedimento e a vontade da entidade adjudicante de selecionar apenas as melhores propostas, bem como o caráter dissuasório das condições impostas aos proponentes.

29.

Finalmente, para o Governo finlandês, a duração de seis anos do período de vigência do sistema implica que, durante esse período de tempo, não podem ser admitidos novos consultores, o que distinguiria o procedimento controvertido de um simples regime de autorização.

30.

A Comissão entende que as exigências específicas do aviso de abertura do concurso relativas à aptidão do proponente e relativas ao serviço, tal como as expõe o tribunal de reenvio, não constituem um critério de adjudicação, mas sim um simples critério de seleção.

31.

Para a Comissão, o procedimento não incluía critérios de adjudicação e a Agência não poderia excluir ou rejeitar um consultor competente escolhido por um agricultor. Em suma, no procedimento apenas teriam sido utilizados critérios de seleção.

32.

Nestas circunstâncias, a Comissão afirma que o processo é semelhante ao apreciado no acórdão Falk Pharma, cuja jurisprudência foi confirmada pela Diretiva 2014/[2]4/UE ( 9 ). Na sua opinião, é pouco relevante que o sistema não esteja aberto de modo permanente aos interessados, uma vez que a ausência de seleção constituiria uma razão suficiente para rejeitar a qualificação de contrato público.

V. Apreciação

33.

Segundo o tribunal de reenvio, a Administração finlandesa iniciou um programa baseado no Regulamento n.o 1305/2013, cujo artigo 15.o, n.o 3, dispõe que o procedimento de seleção dos prestadores de serviços de aconselhamento é regido pelo direito dos contratos públicos. Portanto, a questão prejudicial deve ser respondida com base na legislação sobre contratos públicos.

34.

Creio que essa remissão para o direito dos contratos públicos deve ser interpretada no sentido de que o procedimento de seleção dos consultores agrícolas tem de respeitar os princípios (da não discriminação, da igualdade de tratamento e da transparência) que regem esse setor do ordenamento jurídico. Na minha opinião, não é uma exigência que implique adotar todas e cada uma das disposições das diretivas da União relativas aos contratos dos entes públicos.

35.

Concretamente, o tribunal a quo pretende saber se um sistema como o dos autos «é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18». Recordarei que com ele se pretende dispor de um número indeterminado de pessoas que possam prestar aconselhamento agrícola aos agricultores, selecionando‑as por via de um procedimento, sujeito às condições previstas num acordo‑quadro, no qual podem participar todos os que preencham os requisitos constantes do caderno de encargos e sejam aprovados num exame. O sistema tem uma vigência temporal limitada, durante a qual se exclui a adesão de novos consultores.

36.

Dos dados fornecidos pelo tribunal de reenvio deduz‑se, tal como salienta a Comissão ( 10 ), que pareciam estar reunidos, à primeira vista, os elementos que caracterizam os contratos definidos pelo artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18. É, com efeito, um contrato, regido por um acordo‑quadro, celebrado por escrito entre um operador económico (o consultor) e una entidade adjudicante (a Agência), cujo objeto consiste na prestação de serviços a título oneroso. Isto, em particular, uma vez que, segundo o tribunal de reenvio ( 11 ), os serviços de aconselhamento beneficiam, desde logo, o agricultor que os recebe, mas também a Agência que os remunera e em cujo nome são prestados, no âmbito das suas competências administrativas.

37.

Ora, não pode ser esquecido o facto de que, para o Tribunal de Justiça, «[a] escolha de uma proposta, e, consequentemente, de um adjudicatário, afigura‑se assim um elemento intrinsecamente ligado ao regime dos contratos públicos estabelecido [pela] Diretiva [2004/18] e, por conseguinte, ao conceito de “contrato público” na aceção do seu artigo 1.o, n.o 2, alínea a)» ( 12 ).

38.

Não me parece que esta abordagem do acórdão Falk Pharma seja excessivamente reducionista. Com ela pretende indicar‑se que, no final, nos contratos públicos sujeitos à Diretiva 2004/18 tem de existir um adjudicatário final, que é preferido relativamente aos restantes concorrentes em função das qualidades da sua proposta. E este elemento essencial é característico de «cada contrato, […] cada acordo‑quadro e […] cada criação de um sistema de aquisição dinâmico», em relação aos quais «as entidades adjudicantes elaborarão por escrito um relatório que inclua o nome do adjudicatário e a justificação da escolha da sua proposta» [artigo 43.o, primeiro parágrafo, alínea e), da Diretiva 2004/18, o sublinhado é meu] ( 13 ).

39.

Na minha opinião, no sistema controvertido não é possível identificar a existência de critérios de atribuição ou adjudicação de contratos de serviços de aconselhamento, mas apenas critérios de seleção de operadores económicos com capacidade para prestar esses serviços.

40.

Como recordava o advogado‑geral M. Wathelet nas conclusões apresentadas no processo Ambisig ( 14 ), são dois tipos de critérios que o Tribunal de Justiça procurou diferenciar. São distintas «a verificação da aptidão dos proponentes para executar os contratos a adjudicar», por um lado, e «a adjudicação do contrato» enquanto tal, por outro. «Enquanto a seleção de um proponente diz respeito à sua situação pessoal e à sua aptidão para prosseguir a atividade profissional em causa, o contrato é adjudicado ao proponente que tenha apresentado a proposta economicamente mais vantajosa do ponto de vista da entidade adjudicante [artigo 53.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/18] ou que proponha o preço mais baixo [n.o 1, alínea b), do mesmo artigo]».

41.

Dito de outra forma, se com os critérios de seleção se pretende aferir os proponentes em função das suas aptidões, com os critérios de adjudicação pretende‑se identificar e escolher a proposta mais conveniente de entre as propostas apresentadas pelos diversos proponentes. Como se pretende «a abertura à concorrência dos contratos públicos» ( 15 ), os operadores económicos têm de concorrer entre si, como rivais, para que lhes seja adjudicada a prestação do serviço.

42.

Entendo que, sob esta perspetiva, é central a afirmação do tribunal de reenvio, no sentido de que «[n]o aviso de abertura do concurso não são fixados quaisquer critérios de adjudicação com base nos quais as propostas seriam comparadas entre si, nem a [Agência] avaliou ou comparou as propostas com base num sistema de pontuação», mas sim que «[t]odos os proponentes que cumpriam os requisitos do concurso, entre os quais aqueles que respeitavam à formação e à experiência profissional, foram admitidos no acordo quadro, desde que tivessem sido aprovados no exame descrito de forma mais pormenorizada no aviso de abertura do concurso» ( 16 ).

43.

O Governo finlandês defende que os critérios de admissão conferiam ao procedimento um caráter verdadeiramente seletivo. Por um lado, o facto de terem sido tornados públicos com antecedência pode ter determinado que os interessados que pensaram que não os reuniam se abstivessem de apresentar uma proposta. Por outro lado, as condições eram tão restritivas que nem todos as podiam cumprir, de modo que o procedimento se teria limitado, na realidade, a um «grupo selecionado» ( 17 ). Assim, o caráter seletivo do procedimento tornaria indispensável, para o Governo finlandês, que o estabelecimento dos critérios que conferem essa qualidade não seja realizado de modo discriminatório, o que levaria à aplicação da legislação relativa à adjudicação de contratos públicos.

44.

Não há dúvida quanto ao facto de que exigir algumas condições de qualificação e mérito para aceder ao sistema em causa implica um determinado mecanismo de seleção. No entanto, o determinante, no que diz respeito aos contratos sujeitos à Diretiva 2004/18, não é a constatação da capacidade dos proponentes para prestar o serviço de aconselhamento (critério de seleção), mas sim a comparação entre as propostas desses proponentes, uma vez considerados capazes, com o objetivo de selecionar, no fim, a quem será adjudicada a referida prestação (critério de adjudicação).

45.

Os requisitos de acesso ao sistema de aconselhamento agrícola baseados na capacidade técnica (entre os quais se inclui a aprovação num exame) permitem, desde logo, selecionar os proponentes, por referência a um limiar preestabelecido. Mas a seleção relevante, para efeitos do conceito de contrato público da Diretiva 2004/18, é a que resulta da comparação entre as capacidades e os méritos das propostas dos diferentes candidatos. Ou seja, o determinante é a adjudicação final, comparativa ou por ponderação, à melhor proposta, não a seleção inicial obtida por referência a um limiar cuja superação não implica nenhuma concorrência entre os candidatos.

46.

O tribunal de reenvio faz referência ao processo Ambisig ( 18 ), no qual se afirmou que a competência e a experiência dos membros de uma equipa que pretende executar um contrato cujo objeto era a prestação de serviços de formação e aconselhamento são «determinantes para apreciar a qualidade profissional dessa equipa» e que «[e]ssa qualidade pode ser uma característica intrínseca da proposta e estar ligada ao objeto do contrato, na aceção do artigo 53.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/18» ( 19 ), de modo que «a referida qualidade pode constar como critério de adjudicação do anúncio de concurso ou do caderno de encargos em questão» ( 20 ).

47.

Contudo, essa afirmação do Tribunal de Justiça foi feita num contexto em que a entidade adjudicante selecionou um dos proponentes concorrentes e excluiu outro, utilizando como critério, precisamente, a qualidade das suas respetivas equipas.

48.

Neste processo, pelo contrário, afirma o tribunal de reenvio, a Agência não limitou ab initio o número de eventuais prestadores do serviço ( 21 ), nem efetuou a comparação das propostas entre si, nem procedeu à seleção definitiva de uma ou diversas propostas, baseada numa ponderação comparativa dos seus respetivos conteúdos, com exclusão das restantes ( 22 ).

49.

Estamos, portanto, perante uma situação em que é aplicável a jurisprudência estabelecida no processo Falk Pharma, em conformidade com a qual, «quando uma entidade pública pretende celebrar contratos de fornecimento com todos os operadores económicos que desejam fornecer os produtos em causa nas condições indicadas por essa entidade, a falta de designação de um operador económico ao qual é concedida a exclusividade de um contrato tem como consequência não ser necessário delimitar mediante as regras precisas da Diretiva 2004/18 a ação dessa entidade adjudicante de modo a impedi‑la de adjudicar um contrato que favorece os operadores nacionais» ( 23 ).

50.

Tanto o Governo finlandês ( 24 ) como o tribunal de reenvio concordam quanto à pertinência, para este processo, da jurisprudência a que acabo de fazer referência. A sua única dúvida, que no caso do Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) parece ser a que o levou a submeter a questão prejudicial ( 25 ), reside no facto de, diferentemente do que acontecia no acórdão Falk Pharma, o sistema estabelecido pela Agência não estar aberto de modo permanente a todos os operadores económicos interessados ao longo de toda a sua vigência.

51.

É verdade que, em sentido estrito, ao limitar‑se o sistema de contratação pública, durante o seu período de vigência, aos operadores económicos admitidos inicialmente pela Agência (o que impede o acesso posterior de novos consultores) está a impor‑se uma determinada restrição quantitativa. Mas esta resulta apenas da pura e rigorosa limitação no tempo do próprio sistema de apoios ao aconselhamento, paralelo ao do programa de desenvolvimento do meio rural na Finlândia Continental 2014/2020.

52.

Além disso, a referência do Tribunal de Justiça no acórdão Falk Pharma à abertura permanente do sistema de contratação pública a novos proponentes não foi, na minha opinião, a ratio decidendi desse acórdão, mas sim uma afirmação feita ad abundantiam. O determinante foi, então, que a entidade adjudicante não tinha adjudicado, em exclusividade, o contrato a um dos proponentes ( 26 ).

53.

Neste caso, tal como no processo Falk Pharma, também não houve nenhum elemento de verdadeira concorrência entre candidatos, para avaliar qual das suas propostas é a melhor e afastar, simultaneamente, as restantes.

54.

De resto, tal como recordava o Tribunal de Justiça no mesmo acórdão ( 27 ), este fator essencial é agora expressamente enunciado no conceito de «contratação pública» da Diretiva 2014/24, cuja inaplicabilidade ao caso ratione temporis não retira sentido à sua referência, mesmo que apenas por expressara vontade do legislador de atribuir explicitamente uma característica dos contratos públicos que, de acordo com o Tribunal de Justiça, é inerente à sua natureza ( 28 ).

55.

A relevância, positiva e negativa, desse fator é evidenciada quando, no considerando 4 da Diretiva 2014/24, se explica que as situações em que todos os operadores que preenchem determinadas condições são autorizados a executar determinada tarefa, sem qualquer seletividade, «não deverão ser equiparadas à contratação pública».

VI. Conclusão

56.

Atendendo às considerações efetuadas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia) nos seguintes termos:

«O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretada no sentido de que não constitui um contrato público, na aceção dessa diretiva, um sistema de seleção de prestadores de serviços de aconselhamento agrícola como o que é objeto do processo principal, por via do qual uma entidade pública aceita todos os operadores económicos que preencham os requisitos de idoneidade e sejam aprovados num exame, sem adjudicar a prestação do serviço, de modo exclusivo, a um ou mais dos referidos consultores em regime de concorrência. É irrelevante, para estes efeitos, que o sistema tenha uma vigência temporal limitada, durante a qual não são possíveis novas adesões.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114).

( 3 ) Acórdão de 2 de junho de 2016 (C‑410/14, EU:C:2016:399) (a seguir «acórdão Falk Pharma»).

( 4 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1698/2005 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 487).

( 5 ) Regulamento da Comissão, de 17 de julho de 2014, que estabelece normas de execução do Regulamento (UE) n.o 1305/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo ao apoio ao desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) (JO 2014, L 227, p. 18).

( 6 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, relativo ao financiamento, à gestão e ao acompanhamento da Política Agrícola Comum e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 352/78 (CE) n.o 165/94 (CE) n.o 2799/98 (CE) n.o 814/2000 (CE) n.o 1290/2005 e (CE) n.o 485/2008 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 549).

( 7 ) O tribunal a quo afirma que não constitui objeto do reenvio analisar se a Agência «agiu de acordo com o procedimento previsto nas disposições em matéria de contratos públicos» (n.o 8 do despacho de reenvio). Em qualquer caso, importa indicar que, se a Diretiva 2004/18 for aplicável, dela se deduz que a entidade adjudicante pode admitir, no âmbito da adjudicação de contratos públicos, a sanação de irregularidades formais que não implique a apresentação de uma nova proposta nem altere significativamente os termos da proposta inicial. Remeto, relativamente a este aspeto, para as minhas conclusões do processo M.A.T.I. SUD e Duemme SGR (C‑523/16 e C‑536/16, EU:C:2017:868).

( 8 ) N.o 22 das observações.

( 9 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65).

( 10 ) N.os 27 e 28 das observações da Comissão.

( 11 ) N.o 56 do despacho de reenvio: «pode partir‑se do princípio de que o serviço a que a prestação dos serviços em causa diz respeito é prestado no interesse económico direto da [Agência]».

( 12 ) Acórdão Falk Pharma, n.o 38.

( 13 ) Ibidem, n.o 39.

( 14 ) Processo C‑601/13, EU:C:2014:2474, n.os 17 e 19.

( 15 ) Considerando 2 da Diretiva 2004/18.

( 16 ) Despacho de reenvio, n.o 59.

( 17 ) N.o 38 das observações do Governo finlandês. Nele salienta que, de um total de 163 propostas, foram admitidas provisoriamente 140 e, com caráter definitivo 138, o que correspondia a 85% das candidaturas.

( 18 ) Acórdão de 26 de março de 2015 (C‑601/13, EU:C:2015:204).

( 19 ) Ibidem, n.o 33.

( 20 ) Ibidem, n.o 34.

( 21 ) Segundo o tribunal a quo, a Agência afirmava que «[é] […] necessário dispor do maior número possível de prestadores de serviços, de forma a garantir que os beneficiários da prestação obtêm os serviços de que necessitam» (n.o 50 do despacho de reenvio).

( 22 ) Aliás, a seleção definitiva de quem irá prestar o serviço, em cada caso, nem sequer é da competência da Agência, mas sim dos agricultores que aderem ao sistema de aconselhamento. Estes últimos podem optar pelo consultor que melhor se adeque às suas necessidades, mesmo que se dê primazia à escolha dos serviços de consultoria mais próximos, uma vez que, em casos devidamente justificados, podem sempre recorrer a outros consultores. V., nesse sentido, n.o 14 do despacho de reenvio.

( 23 ) Tal como o Tribunal de Justiça recordava no n.o 35 desse mesmo acórdão, «o objetivo da Diretiva 2004/18 é excluir o risco de que seja dada preferência aos proponentes ou candidatos nacionais em toda e qualquer adjudicação efetuada pelas entidades adjudicantes». Risco que, afirmava‑se a seguir (n.o 36), «está estreitamente ligado à seleção que a entidade adjudicante tem intenção de efetuar entre as propostas admissíveis e à exclusividade que vai resultar da adjudicação do contrato em causa ao operador cuja proposta seja escolhida, ou aos operadores económicos cujas propostas tenham sido selecionadas no caso de um acordo‑quadro, o que constitui a finalidade de um processo de adjudicação de um contrato público».

( 24 ) Segundo o Governo finlandês, esse fator diferenciaria este procedimento de um regime de simples autorização e aproximá‑lo‑ia de um «contrato público», na aceção da Diretiva 2004/2018.

( 25 ) Para o tribunal a quo, a dúvida consiste em determinar «se a sua característica […] de não estar aberto a outros operadores económicos, permite concluir que pode estar em causa um contrato público na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18» (despacho de reenvio, n.o 63).

( 26 ) Acórdão Falk Pharma, n.o 38.

( 27 ) Ibidem, n.o 40.

( 28 ) Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2014/[2]4, «entende‑se por “contratação pública” a aquisição, mediante contrato público, de obras, fornecimentos ou serviços por uma ou mais autoridades adjudicantes a operadores económicos selecionados pelas mesmas, independentemente de as obras, os fornecimentos ou os serviços se destinarem ou não a uma finalidade de interesse público». O sublinhado é meu.