Processo T‑913/16

Silvio Berlusconi e Finanziaria d’Investimento Fininvest S.p.A. (Fininvest)
e
Silvio Berlusconi

contra

Banco Central Europeu

Acórdão do Tribunal Geral (Segunda Secção alargada) de 11 de maio de 2022

«Política económica e monetária — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Atribuições específicas de supervisão conferidas ao BCE — Avaliação das aquisições de participações qualificadas — Oposição à aquisição de uma participação qualificada — Não retroatividade — Força de caso julgado — Aplicação das disposições nacionais de transposição — Direitos de defesa — Direito à consulta do processo — Direito de ser ouvido — Novo fundamento — Primado do direito da União — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva»

  1. Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo Único de Supervisão — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Atribuições específicas conferidas ao Banco Central Europeu (BCE) — Procedimento de avaliação das aquisições de participações qualificadas — Conceito de aquisição de uma participação qualificada — Interpretação extensiva — Tomada em consideração dos objetivos do referido procedimento

    (Regulamento n.o 1024/2013 do Conselho, artigo 15.o; Diretiva 2013/36 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 22.o, n.o 1)

    (cf. n.os 44‑57)

  2. Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo Único de Supervisão — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Atribuições específicas conferidas ao Banco Central Europeu (BCE) — Procedimento de avaliação das aquisições de participações qualificadas — Critério da influência provável de um proposto adquirente na instituição de crédito em causa — Não aplicabilidade no âmbito da qualificação de uma operação como aquisição de uma participação qualificada — Inexistência de impacto da influência provável de um proposto adquirente na sua idoneidade

    (Regulamento n.o 1024/2013 do Conselho, artigo 15.o; Diretiva 2013/36 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 22.°, n.o 1, e 23.°, n.o 1)

    (cf. n.os 58‑60, 162‑166)

  3. Atos das instituições — Aplicação no tempo — Princípio da não retroatividade — Inexistência de violação

    (Diretiva 2013/36 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 22.° e 23.°)

    (cf. n.os 97‑99)

  4. Processo judicial — Dedução de novos fundamentos no decurso da instância — Requisitos — Ampliação de um fundamento existente e que apresenta um nexo estreito com este — Inexistência — Inadmissibilidade

    (Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 84.o, n.o 1)

    (cf. n.os 128‑130, 139‑142)

  5. Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo Único de Supervisão — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Direitos de defesa — Alcance — Direito de ser ouvido no âmbito dos procedimentos de supervisão prudencial — Possibilidade de apresentar observações sobre o projeto de decisão do BCE relativo à aquisição de uma participação qualificada numa instituição de crédito num curto prazo — Existência de várias modalidades processuais que permitem assegurar o respeito pelo direito de ser ouvido — Inexistência de violação desse direito

    (Regulamento n.o 1024/2013 do Conselho, artigo 15.o; Regulamento n.o 468/2014 do Banco Central Europeu, artigo 31.o, n.o 3)

    (cf. n.os 215‑218, 222, 224‑232, 236)

  6. Processo judicial — Dedução de novos fundamentos no decurso da instância — Requisitos — Fundamento baseado em elementos revelados no decurso da instância — Alcance — Fundamento assente num acórdão do Tribunal de Justiça que confirma uma situação jurídica conhecida do recorrente no momento da interposição do recurso — Exclusão

    (Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 84.o, n.o 1)

    (cf. n.os 251‑257)

Resumo

O Tribunal Geral confirma a decisão através da qual o BCE recusou a aquisição de uma participação qualificada na Banca Mediolanum por Silvio Berlusconi.

Silvio Berlusconi não preenchia o requisito de idoneidade aplicável aos detentores de participações qualificadas, devido à sua condenação por fraude fiscal em 2013

Em 2015, a companhia financeira Mediolanum foi incorporada na sua filial, a Banca Mediolanum. Tendo em conta a sua participação no capital social da Mediolanum, a Fininvest, uma sociedade gestora de participações sociais de direito italiano, maioritariamente detida por Silvio Berlusconi (a seguir, em conjunto, «recorrentes»), tornou‑se titular de uma participação no capital da Banca Mediolanum. Concretamente, esta operação de fusão por incorporação consistiu numa troca de ações pela qual a Fininvest adquiriu juridicamente ações dessa instituição de crédito.

Anteriormente, em 2014, a Banca d’Italia (Banco de Itália) tinha decidido, por um lado, ordenar a suspensão dos direitos de voto dos recorrentes na Mediolanum e a cessão das suas participações superiores a 9,99 % e, por outro, indeferir o seu pedido de autorização relativo à detenção de uma participação qualificada nessa instituição, com o fundamento de que Silvio Berlusconi deixou de preencher, em razão da sua condenação por fraude fiscal em 2013, o requisito de idoneidade. Esta decisão do Banco de Itália foi anulada pelo Acórdão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) de 3 de março de 2016.

Na sequência da incorporação da Mediolanum pela Banca Mediolanum e do Acórdão do Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) de 3 de março de 2016, o Banco de Itália e o Banco Central Europeu (BCE) deram início a um novo procedimento de avaliação da aquisição, pelos recorrentes, de uma participação qualificada na Banca Mediolanum. No termo deste procedimento, o BCE, chamado a pronunciar‑se sobre uma proposta do Banco de Itália a este respeito, adotou a decisão pela qual recusou autorizar a aquisição de uma participação qualificada nessa instituição de crédito ( 1 ). Fundamentou a sua decisão, nomeadamente, devido ao facto de Silvio Berlusconi não preencher o requisito de idoneidade aplicável aos detentores de participações qualificadas ( 2 ).

Foi negado provimento ao recurso de anulação da decisão do BCE pela Segunda Secção alargada do Tribunal Geral. No seu acórdão, este fornece precisões significativas sobre a aquisição de uma participação qualificada numa instituição de crédito por uma pessoa que não preenche o critério da idoneidade.

Apreciação do Tribunal Geral

O Tribunal Geral, após ter recordado as disposições do direito da União que regulam o procedimento de avaliação das aquisições de participações qualificadas ( 3 ), começa por pronunciar‑se sobre o conceito de «aquisição de uma participação qualificada».

Em primeiro lugar, observa que este conceito deve ser considerado um conceito autónomo do direito da União, devendo ser interpretado de modo uniforme em todos os Estados‑Membros.

Em segundo lugar, não existindo uma definição deste conceito no direito da União, o mesmo deve ser interpretado tendo em conta, por um lado, o contexto geral da sua utilização e o seu sentido habitual na linguagem comum e, por outro, os objetivos prosseguidos pelas disposições do direito da União que regulam o procedimento de autorização das aquisições de participações qualificadas e o seu efeito útil.

Assim, em sentido corrente, o conceito de aquisição de títulos ou de participações pode abranger diferentes tipos de operações, incluindo uma operação de troca de ações. Em seguida, no que respeita ao contexto em que o procedimento de autorização das aquisições de uma participação qualificada se insere e aos seus objetivos, o Tribunal recorda que é indispensável avaliar a idoneidade de qualquer novo proprietário antes da aquisição de uma participação significativa numa instituição de crédito, para garantir que não é afetada a idoneidade e a solidez financeira dos proprietários dessas instituições. Além disso, a fim de assegurar a sua solidez prudencial, as instituições de crédito devem cumprir um conjunto de regras da União na matéria, e esse cumprimento depende também estreitamente da idoneidade dos seus proprietários e de qualquer pessoa que pretenda adquirir uma participação significativa nessas instituições. Por último, o procedimento de autorização das aquisições de participações qualificadas visa garantir uma gestão sã e prudente da instituição objeto do projeto de aquisição, bem como o caráter apropriado do proposto adquirente e a solidez financeira do projeto de aquisição, tendo em conta a influência provável deste na instituição em causa. Por conseguinte, o conceito de «aquisição de uma participação qualificada» não pode ser interpretado restritivamente, uma vez que essa interpretação teria por efeito permitir contornar o procedimento de avaliação fazendo escapar à fiscalização do BCE determinados modos de aquisição de participações qualificadas e, portanto, pôr em causa esses objetivos.

Além disso, o procedimento de avaliação das aquisições de participações qualificadas numa instituição de crédito aplica‑se tanto às aquisições diretas como indiretas ( 4 ). Assim, quando uma participação qualificada indireta se torna direta ou quando o grau de fiscalização indireta dessa participação qualificada é alterado, nomeadamente quando uma participação indiretamente detida por intermédio de duas sociedades se torna indiretamente detida por intermédio de uma única sociedade, a própria detenção de uma participação qualificada é alterada na sua estrutura jurídica, pelo que essa operação deve ser considerada como a aquisição de uma participação qualificada.

Em terceiro lugar, nos termos das disposições pertinentes do direito da União no caso em apreço ( 5 ), a aplicabilidade do procedimento de autorização da aquisição de uma participação qualificada não está sujeita a uma alteração da influência provável suscetível de ser exercida pelo proposto adquirente na instituição de crédito. Com efeito, essa influência figura entre os fatores a ter em conta unicamente para efeitos da apreciação da idoneidade desse proposto adquirente e da solidez financeira do projeto de aquisição ( 6 ). Em contrapartida, este fator não é pertinente para a qualificação de uma operação como aquisição de uma participação qualificada.

Em seguida, tendo em conta estas considerações, o Tribunal reconhece que a fusão em causa, na sequência do Acórdão do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) de 3 de março de 2016, teve por efeito alterar a estrutura jurídica da participação qualificada dos recorrentes na instituição de crédito em causa. Assim, o BCE concluiu corretamente que a operação de fusão em questão constituía uma aquisição de uma participação qualificada.

Além disso, o Tribunal julga improcedentes os argumentos dos recorrentes relativos à falta de avaliação, pelo BCE, do critério da influência provável do proposto adquirente na instituição de crédito em causa. Especifica, a este respeito, que a idoneidade do proposto adquirente não depende do alcance da sua influência provável na referida instituição. Uma vez que o BCE não era obrigado a examinar este critério aquando da avaliação da idoneidade do proposto adquirente, não lhe pode ser imputada uma violação do dever de fundamentação à luz deste critério.

Por último, o Tribunal rejeita as alegações dos recorrentes relativas à ilegalidade de uma disposição do Regulamento‑Quadro do MUS, nos termos da qual os recorrentes dispunham de um curto prazo de três dias úteis para apresentar comentários sobre o projeto de decisão impugnada ( 7 ). A este respeito, salienta que, no âmbito de um procedimento de supervisão prudencial, tal como o procedimento de avaliação da aquisição de uma participação qualificada, existem várias modalidades processuais que permitem às partes interessadas serem ouvidas. Estas últimas podem invocar todos os elementos pertinentes no seu pedido de autorização de uma aquisição de participação qualificada e têm a oportunidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre a notificação do BCE. Além disso, o respeito pelo seu direito de ser ouvido pode igualmente ser assegurado, se for caso disso, graças à possibilidade, de que dispõe o BCE, de organizar uma reunião. De resto, incumbe ao BCE utilizar todos os meios de que dispõe para se certificar, em cada caso concreto, do respeito pelo direito de ser ouvido.


( 1 ) Decisão ECB/SSM/2016 — 7LVZJ6XRIE7VNZ4UBX81/4, de 25 de outubro de 2016.

( 2 ) Na aceção do artigo 23.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento, que altera a Diretiva 2002/87/CE e revoga as Diretivas 2006/48/CE e 2006/49/CE (JO 2013, L 176, p. 338).

( 3 ) Artigo 15.o do Regulamento (UE) n.o 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013, que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito (JO 2013, L 287, p. 63) (a seguir «Regulamento MUS»), artigos 85.° a 87.° do Regulamento (UE) n.o 468/2014 do BCE, de 16 de abril de 2014, que estabelece o quadro de cooperação, no âmbito do Mecanismo Único de Supervisão, entre o [BCE] e as autoridades nacionais competentes e com as autoridades nacionais designadas (o «Regulamento‑Quadro do MUS») (JO 2014, L 141, p. 1), bem como artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 2013/36.

( 4 ) Artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 2013/36.

( 5 ) Leitura conjugada do artigo 15.o do Regulamento MUS com o artigo 22.o, n.o 1, e do artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2013/36.

( 6 ) Artigo 23.o, n.o 1, da Diretiva 2013/36.

( 7 ) Artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento‑Quadro do MUS.