Processo T‑136/16 RENV
Reino da Bélgica
contra
Comissão Europeia
Acórdão do Tribunal Geral (Segunda Secção Alargada) de 20 de setembro de 2023
«Auxílios de Estado — Regime de auxílios executado pela Bélgica — Decisão que declara o regime de auxílios incompatível com o mercado interno e ilegal e que ordena a recuperação do auxílio pago — Decisão fiscal antecipada (tax ruling) — Lucros tributáveis — Isenção em matéria de lucros excedentários — Vantagem — Caráter seletivo — Violação da concorrência — Recuperação»
Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Auxílios provenientes de recursos do Estado — Decisão fiscal antecipada — Reduções das cargas fiscais de entidades nacionais pertencentes a grupos multinacionais — Inclusão
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 27‑32)
Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Medidas fiscais — Decisão fiscal antecipada — Quadro de referência para determinar a existência de uma vantagem e da sua seletividade — Tomada em consideração apenas do direito nacional — Não inclusão no quadro de referência de uma prática administrativa contrária à legislação aplicável — Admissibilidade
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 37‑81)
Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Concessão de uma vantagem aos beneficiários — Medida que confere um benefício fiscal — Decisão fiscal antecipada — Isenção fiscal que resulta de uma prática administrativa contrária à legislação aplicável — Isenção fiscal que conduz a uma redução da carga fiscal em relação à que resulta da aplicação das regras normais de tributação — Inclusão
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 92‑101)
Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere um benefício fiscal — Decisão fiscal antecipada — Introdução de uma diferenciação entre operadores que se encontram numa situação factual e jurídica comparável tendo em conta o objetivo do sistema fiscal nacional — Medida que pode ser qualificada de seletiva
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 118‑141)
Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Derrogação ao sistema fiscal geral — Justificação relativa à natureza e à economia do sistema — Isenção fiscal que não responde de forma necessária e proporcionada a situações de dupla tributação — Inexistência de justificação
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 145‑149)
Auxílios concedidos pelos Estados — Afetação das trocas comerciais entre Estados‑Membros — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Auxílios suscetíveis de afetar as referidas trocas comerciais e de falsear a concorrência — Reduções das cargas fiscais de entidades nacionais pertencentes a grupos multinacionais — Inclusão
(Artigo 107.o, n.o 1, TFUE)
(cf. n.os 151‑157)
Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Auxílio concedido sob a forma de isenção fiscal — Reduções das cargas fiscais de entidades nacionais pertencentes a grupos multinacionais — Identificação das entidades nacionais e dos grupos multinacionais como beneficiários do auxílio — Inexistência de erro manifesto de apreciação — Recuperação ordenada junto dos grupos multinacionais em causa — Inexistência de violação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade
(Artigo 108.o, n.o 2, TFUE)
(cf. n.os 163‑171, 179, 180)
Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado — Decisão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado interno e ordena a sua recuperação — Decisão que contem indicações que permitem ao seu destinatário determinar o montante a recuperar e os beneficiários que devem restituir os auxílios — Fundamentação suficiente
(Artigo 108.o TFUE)
(cf. n.os 175‑178)
Resumo
Entre 2004 e 2014, a administração fiscal belga emitiu decisões fiscais antecipadas (tax rulings) a favor de entidades belgas de grupos multinacionais de empresas. Através destas decisões antecipadas, as referidas entidades podiam reduzir a sua base tributável na Bélgica deduzindo os lucros considerados «excedentários» dos lucros que tinham registado. Segundo as autoridades fiscais belgas, esses lucros excedentários resultavam de sinergias, de economias de escala ou de outros benefícios decorrentes da pertença a um grupo multinacional e, portanto, não eram imputáveis às entidades belgas em questão.
Por Decisão de 11 de janeiro de 2016 ( 1 ), a Comissão declarou que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários, ao abrigo do qual o Reino da Bélgica tinha emitido as decisões fiscais antecipadas, constituía um regime de auxílios de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que era incompatível com o mercado interno. Considerando que este regime tinha sido executado em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, a Comissão ordenou a recuperação dos auxílios assim concedidos aos beneficiários, cuja lista definitiva devia ser posteriormente estabelecida pelo Reino da Bélgica.
Chamado a pronunciar‑se na sequência de recursos de anulação interpostos pelo Reino da Bélgica e por várias empresas identificadas na decisão da Comissão ou que beneficiaram de uma decisão fiscal antecipada, o Tribunal Geral anulou a decisão da Comissão através do Acórdão de 14 de fevereiro de 2019 ( 2 ), com o fundamento de que esta tinha declarado erradamente a existência de um regime de auxílios.
Em sede de recurso interposto pela Comissão, o Tribunal de Justiça, por um lado, anulou o acórdão do Tribunal Geral e, por outro, julgou definitivamente improcedentes os fundamentos que contestam a existência de um regime de auxílios e a competência da Comissão ( 3 ). Não estando o litígio em condições de ser julgado no que respeita aos fundamentos de anulação ainda não examinados pelo Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça remeteu o processo ao Tribunal Geral para que este se pronunciasse sobre os referidos fundamentos.
Após remessa do processo, o Tribunal Geral julga improcedentes todos os fundamentos de anulação sujeitos à sua fiscalização e, por conseguinte, nega provimento aos recursos do Reino da Bélgica e das empresas recorrentes na sua totalidade.
Apreciação do Tribunal Geral
Em apoio dos seus recursos de anulação, o Reino da Bélgica e as empresas recorrentes contestavam, nomeadamente, a existência de uma vantagem decorrente do regime dos lucros excedentários e da seletividade dos mesmos.
No que diz respeito ao sistema de referência, a saber, o regime fiscal comum ou «normal» em relação ao qual devem ser analisados os dois elementos anteriores, o Reino da Bélgica e as recorrentes acusavam a Comissão de ter considerado erradamente que o regime de imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica previa que a totalidade dos lucros registados das sociedades fosse tributada, ignorando a possibilidade de efetuar ajustamentos. Além disso, a Comissão excluiu erradamente o regime dos lucros excedentários do referido sistema de referência.
A este respeito, resultava, todavia, das disposições aplicáveis do Código dos Impostos sobre o Rendimento que os lucros tributáveis eram constituídos, essencialmente, por todos os lucros registados pelas empresas sujeitas a imposto na Bélgica. Com efeito, esses lucros registados constituíam o ponto de partida para o cálculo do referido imposto, sobre os quais podiam ser efetuados os ajustamentos positivos e negativos legalmente previstos. Ora, enquanto a legislação aplicável subordinava o ajustamento negativo dos lucros a uma dupla condição, a saber, que os lucros da entidade belga a ajustar fossem incluídos nos lucros de outra sociedade associada e que esta última realizasse esses lucros caso sejam aplicáveis condições semelhantes às acordadas entre sociedades independentes, a isenção em matéria de lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas nas suas decisões fiscais antecipadas não estava sujeita a esta dupla condição. Tendo em conta esta constatação, o Tribunal Geral conclui que a Comissão considerou corretamente que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários, conforme aplicado pelas autoridades fiscais belgas, não fazia parte do sistema de referência aplicável no caso em apreço.
O Tribunal Geral rejeita igualmente os argumentos avançados pelo Reino da Bélgica e pelas empresas recorrentes relativos à constatação, na decisão impugnada, da existência de uma vantagem que favorece os beneficiários das decisões fiscais antecipadas.
Por um lado, o Tribunal Geral confirma que a Comissão examinou efetivamente o critério da vantagem e forneceu os elementos tidos em conta para considerar a existência de uma vantagem. O facto de a análise da vantagem ter sido inserida numa secção que abrange igualmente o exame da seletividade não tem impacto a este respeito. Por outro, o Tribunal Geral salienta que a aplicação do regime dos lucros excedentários, caracterizada pela concessão de isenções em violação dos requisitos legais aplicáveis, era suscetível de conduzir a uma redução do imposto que as entidades beneficiárias teriam de pagar de outra forma. Nestas circunstâncias, a Comissão não pode ser acusada de ter constatado que esse regime era suscetível de favorecer os seus beneficiários.
O Tribunal Geral rejeita, além disso, as diferentes alegações apresentadas contra a conclusão da Comissão, no termo do seu raciocínio a título principal, segundo a qual o regime dos lucros excedentários derrogava o sistema comum do imposto sobre as sociedades na Bélgica, na medida em que a prática das autoridades fiscais belgas que consistia em efetuar um ajustamento negativo unilateral, sem que fosse necessário demonstrar que os lucros a ajustar tinham sido incluídos nos lucros de outra sociedade e que eram lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as transações em causa tivessem sido realizadas entre sociedades independentes, não estava prevista no referido sistema. O Tribunal Geral rejeita igualmente as alegações apresentadas contra a conclusão da Comissão segundo a qual a vantagem resultante de tal prática das autoridades fiscais belgas, em derrogação do sistema de referência, não era acessível a todas as entidades que se encontrassem numa situação jurídica e factual semelhante.
Em primeiro lugar, o Tribunal Geral considera que, à luz da prática administrativa das autoridades fiscais, a Comissão não cometeu um erro ao considerar que as entidades que fazem parte de um grupo multinacional que beneficiou da isenção dos lucros excedentários receberam um tratamento diferenciado em relação a outras entidades na Bélgica que não beneficiaram dessa isenção, quando essas entidades se encontravam numa situação factual e jurídica comparável, à luz do objetivo das regras fiscais de direito comum, a saber, tributar todos os lucros tributáveis de todas as sociedades residentes ou ativas por intermédio de um estabelecimento estável na Bélgica.
Em segundo lugar, o Tribunal constata que a Comissão também não cometeu qualquer erro de apreciação ao sustentar que o regime em causa era seletivo na medida em que excluía as sociedades que tinham decidido não efetuar investimentos, não centralizar atividades e não criar postos de trabalho na Bélgica. Com efeito, resultava da amostra de decisões fiscais antecipadas analisada na decisão impugnada que todas essas decisões tinham sido concedidas na sequência de propostas dos requerentes de realizarem investimentos na Bélgica, de aí recolocarem determinadas funções ou de aí criarem um certo número de postos de trabalho.
Em terceiro lugar, uma vez que nenhuma decisão fiscal antecipada que figura na referida amostra dizia respeito a entidades pertencentes a grupos de empresas de pequena dimensão, também não se pode criticar a Comissão por ter sustentado que o regime em causa era seletivo na medida em que não estava disponível às empresas que faziam parte de um grupo de pequena dimensão.
Nestas circunstâncias, o Tribunal Geral não considera necessário examinar as alegações apresentadas contra o raciocínio sobre a seletividade efetuado pela Comissão a título subsidiário, na medida em que a isenção dos lucros excedentários derrogava o princípio da plena concorrência.
O Tribunal Geral rejeita, além disso, a argumentação do Reino da Bélgica segundo a qual o regime dos lucros excedentários não era financiado através de recursos estatais, uma vez que os lucros excedentários não estão abrangidos pela sua competência fiscal.
Quanto a este ponto, o Tribunal Geral precisa que, por força do sistema comum de tributação dos lucros das sociedades na Bélgica, o montante total dos lucros registados pelas sociedades residentes é, essencialmente, tributável na Bélgica. Assim, foi tendo em conta esta escolha efetuada pelo legislador belga, no exercício da competência fiscal de que beneficia, que a Comissão pôde concluir que a não tributação dos lucros excedentários de entidades belgas de grupos multinacionais, quando eram, essencialmente, lucros tributáveis, constituía uma perda de recursos que pertenciam a esse Estado.
A argumentação do Reino da Bélgica segundo a qual a isenção em matéria de lucros excedentários, tal como aplicada pelas autoridades fiscais, era justificada pela natureza e pela economia geral do sistema fiscal e, mais particularmente, pelo objetivo de evitar a dupla tributação também não é convincente. Com efeito, na prática, essa isenção não estava sujeita ao requisito de provar que os lucros excedentários tinham sido incluídos nos lucros de outra sociedade associada nem que tinham sido efetivamente objeto de tributação noutro Estado. Por conseguinte, a Comissão não cometeu nenhum erro ao concluir que o sistema de isenção em causa não respondia de forma necessária e proporcionada a situações de dupla tributação.
A Comissão também não cometeu qualquer erro ao concluir que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários falseava ou ameaçava falsear a concorrência e era suscetível de afetar as trocas comerciais na União.
A este respeito, o Tribunal Geral salienta que o sistema de isenção em causa era suscetível de alterar as atividades dentro dos grupos de empresas que comportam uma entidade belga, na medida em que as decisões de investimento, de localização de atividades e de criação de empregos podiam ser tomadas para que essa entidade belga realizasse lucros que seriam, em seguida, isentos na Bélgica. Nestas circunstâncias, a Comissão não pode ser acusada de ter considerado que os auxílios concedidos pelas decisões fiscais antecipadas eram suscetíveis de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros e de falsear ou ameaçar falsear a concorrência.
O Tribunal Geral rejeita, além disso, os fundamentos do Reino da Bélgica e das empresas recorrentes relativos a erros cometidos pela Comissão quando identificou as entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada e os grupos multinacionais a que pertenciam como beneficiários do regime em causa.
Quanto a este ponto, o Tribunal Geral indica que, na decisão impugnada, a Comissão salientou elementos que lhe permitiam concluir pela existência, em princípio, de relações de controlo no seio dos grupos multinacionais de empresas a que pertenciam as entidades belgas que obtiveram decisões antecipadas. Tendo em conta estes elementos, a Comissão não excedeu a sua ampla margem de apreciação quando considerou que os referidos grupos constituíam uma unidade económica com essas entidades, beneficiando de auxílios de Estado ao abrigo do regime em causa, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. À luz destas considerações, a Comissão também não violou os princípios da segurança jurídica e da legalidade ao ordenar a recuperação dos auxílios ilegais junto dos referidos grupos.
Por outro lado, resulta igualmente da decisão impugnada que a Comissão tinha fornecido, em conformidade com a jurisprudência, explicações que permitiam ao Reino da Bélgica verificar a situação individual de cada empresa em causa tanto no que respeita aos beneficiários junto dos quais os auxílios deviam ser recuperados como ao montante a recuperar.
Neste mesmo contexto, o Tribunal Geral refuta os argumentos das empresas recorrentes relativos à violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a recuperação foi ordenada junto de todos os beneficiários, independentemente da sua dimensão, dos seus recursos e do seu grau de sofisticação. Com efeito, sendo a recuperação dos auxílios de Estado a única consequência da sua ilegalidade e da sua incompatibilidade com as regras em matéria de auxílios de Estado, não pode depender da situação dos seus beneficiários.
Por último, o Tribunal Geral rejeita a alegação das empresas recorrentes relativa ao facto de que, ao ordenar a recuperação de um montante igual ao imposto que teria onerado os rendimentos dos beneficiários na falta de uma decisão fiscal antecipada, sem ter em conta eventuais ajustamentos positivos que poderiam ter sido efetuados por outra administração fiscal a título de lucros excedentários, a decisão impugnada teria imposto a recuperação de um montante que poderia ser mais elevado do que a vantagem recebida pelos beneficiários.
A este respeito, o Tribunal Geral recorda, por um lado, que a Comissão não está obrigada a efetuar uma análise do auxílio concedido em cada caso individual com base num regime de auxílios. Apenas na fase da recuperação dos auxílios será necessário verificar a situação individual de cada empresa em causa. Por outro lado, e em todo o caso, a decisão impugnada não tem nenhuma incidência nos direitos que qualquer contribuinte possa invocar, por força das convenções de dupla tributação aplicáveis, nomeadamente, a fim de obter um ajustamento adequado dos seus lucros tributáveis, na sequência de um ajustamento positivo efetuado pelas autoridades fiscais de outros órgãos jurisdicionais.
( 1 ) Decisão (UE) 2016/1699 da Comissão, de 11 de janeiro de 2016, relativa ao regime de auxílios estatais de isenção em matéria de lucros excedentários SA.37667 (2015/C) (ex 2015/NN) concedido pela Bélgica (JO 2016, L 260, p. 61; a seguir «decisão impugnada»).
( 2 ) Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Bélgica e Magnetrol International/Comissão (T‑131/16 e T‑263/16, EU:T:2019:91).
( 3 ) Acórdão de 16 de setembro de 2021, Comissão/Bélgica e Magnetrol International (C‑337/19 P, EU:C:2021:741).