ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

12 de julho de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política comum das pescas — Regulamento (UE) n.o 1380/2013 — Artigo 16.o, n.o 6, e artigo 17.o — Atribuição das possibilidades de pesca — Legislação nacional que prevê um método baseado em critérios objetivos e transparentes — Condições de concorrência desiguais entre os operadores do setor — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 16.o e 20.o — Liberdade de empresa — Igualdade de tratamento — Proporcionalidade»

No processo C‑540/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo, Lituânia), por decisão de 17 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de outubro de 2016, no processo

«Spika» UAB,

«Senoji Baltija» AB,

«Stekutis» UAB,

«Prekybos namai Aistra» UAB

contra

Žuvininkystės tarnyba prie Lietuvos Respublikos žemės ūkio ministerijos,

sendo intervenientes:

Lietuvos Respublikos žemės ūkio ministerija,

«Sedija» BUAB,

V. Malinausko gamybinė‑komercinė firma «Stilma»,

«Starkis» UAB,

«Banginis» UAB,

«Baltijos šprotai» UAB,

«Monistico» UAB,

«Ramsun» UAB,

«Rikneda» UAB,

«Laivitė» AB,

«Baltijos jūra» UAB,

«Baltlanta» UAB,

«Grinvita» UAB,

«Strimelė» UAB,

«Baltijos žuvys» BUAB,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça (relator), presidente de secção, E. Levits, A. Borg Barthet, M. Berger e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da «Banginis» UAB, por E. Bernotas, L. Sesickas e J. Poderis, advokatė,

em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e G. Taluntytė, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por S. Jiménez García, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por D. Colas, S. Horrenberger e E. de Moustier, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por J. Jokubauskaitė e A. Stobiecka‑Kuik, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 5, alínea c), do artigo 16.o, n.o 6, e do artigo 17.o do Regulamento (UE) n.o 1380/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, relativo à política comum das pescas, que altera os Regulamentos (CE) n.o 1954/2003 e (CE) n.o 1224/2009 do Conselho e revoga os Regulamentos (CE) n.o 2371/2002 e (CE) n.o 639/2004 do Conselho e a Decisão 2004/585/CE do Conselho (JO 2013, L 354, p. 22), bem como dos artigos 16.o e 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a «Spika» UAB, a «Senoji Baltija» AB, a «Stekutis» UAB e a «Prekybos namai Aistra» UAB (a seguir, em conjunto, «Spika e o.»), quatro operadores lituanos no setor da pesca, ao Žuvininkystės tarnyba prie Lietuvos Respublikos žemės ūkio ministerijos (Departamento das Pescas do Ministério da Agricultura, Lituânia) a propósito da atribuição, por este departamento, de possibilidades de pesca individuais complementares no mar Báltico para o ano de 2015.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 2.o, n.os 1, 2 e 5, do Regulamento n.o 1380/2013, relativo aos objetivos da política comum das pescas, prevê:

«1.   A Política Comum das Pescas garante que as atividades da pesca e da aquicultura sejam ambientalmente sustentáveis a longo prazo e sejam geridas de uma forma consentânea com os objetivos consistentes em gerar benefícios económicos, sociais e de emprego, e em contribuir para o abastecimento de produtos alimentares.

2.   A Política Comum das Pescas aplica a abordagem de precaução à gestão das pescas e visa assegurar que os recursos biológicos marinhos vivos sejam explorados de forma restabelecer e manter as populações das espécies exploradas acima de níveis que possam gerar o rendimento máximo sustentável.

[…]

5.   A Política Comum das Pescas deve, nomeadamente:

[…]

c)

Criar condições para tornar economicamente viáveis e competitivos os setores da pesca e da transformação e as atividades em terra relacionadas com a pesca;

d)

Prever medidas destinadas a ajustar a capacidade de pesca das frotas a níveis de possibilidades de pesca consentâneos com o n.o 2, a fim de dispor de frotas economicamente viáveis sem sobre[‑]explorar os recursos biológicos marinhos;

[…]

f)

Contribuir para assegurar um nível de vida adequado às populações que dependem das atividades da pesca, tendo em conta a pesca costeira e os aspetos socioeconómicos;

[…]

i)

Promover as atividades da pesca costeira, tendo em conta os aspetos socioeconómicos;

[…]»

4

O artigo 4.o deste regulamento, sob a epígrafe «Definições», dispõe, no seu n.o 1:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

4)

“Navio de pesca”: um navio equipado para a exploração comercial de recursos biológicos marinhos ou uma armação para a pesca do atum‑rabilho;

5)

“Navio de pesca da União”: um navio de pesca que arvore pavilhão de um Estado‑Membro e esteja registado na União;

[…]

30)

“Operador”, uma pessoa singular ou coletiva que explora ou detém uma empresa que exerce atividades relacionadas com qualquer fase das cadeias de produção, transformação, comercialização, distribuição e venda a retalho de produtos da pesca ou da aquicultura;

[…]»

5

O artigo 16.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Possibilidades de pesca», dispõe, no seu n.o 6:

«Os Estados‑Membros decidem, em relação aos navios que arvoram o seu pavilhão, do método de repartição das possibilidades de pesca que lhes tenham sido atribuídas e que não estejam sujeitas a um sistema de concessões de pesca transferíveis (por exemplo, criando possibilidades de pesca individuais). Os Estados‑Membros informam a Comissão do método de atribuição por que optaram.»

6

O artigo 17.o do mesmo regulamento tem a seguinte redação:

«Na repartição das possibilidades de pesca que lhes foram atribuídas nos termos do artigo 16.o, os Estados‑Membros utilizam critérios transparentes e objetivos, incluindo critérios ambientais, sociais e económicos. Os critérios a utilizar podem incluir, designadamente, o impacto ambiental da pesca, o historial de conformidade, o contributo para a economia local e os níveis históricos de capturas. No âmbito das possibilidades de pesca que lhes são atribuídas, os Estados‑Membros esforçam‑se por prever incentivos para os navios de pesca que utilizem artes de pesca seletiva ou métodos de pesca com um impacto reduzido no ambiente, tais como um baixo consumo de energia ou danos reduzidos nos habitats

Direito lituano

7

A Lietuvos Respublikos žuvininkystės įstatymas (Lei das pescas lituana), conforme completada e modificada pela Lei n.o XII‑1523, de 23 de dezembro de 2014, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2015 (a seguir «Lei das pescas»), destina‑se, designadamente, a implementar o Regulamento n.o 1380/2013 no direito interno. O artigo 171 desta lei prevê os princípios gerais da repartição das possibilidades de pesca no mar Báltico.

8

O artigo 171, n.o 1, da Lei das pescas prevê o modo de determinação da atribuição das possibilidades de pesca individuais aos operadores que dispõem de um navio de pesca que arvore pavilhão da Lituânia. Nos termos desta disposição, para este efeito, será calculada, para cada operador, a média das suas capturas de diferentes espécies de peixes em três anos civis, escolhidos pelo operador de entre os últimos sete anos civis (a seguir «fração histórica»).

9

Nos termos do artigo 171, n.o 4, desta lei, as possibilidades de pesca individuais atribuídas aos operadores económicos correspondem à fração histórica, que pode ser reduzida ou bonificada nos seguintes termos:

A fração histórica será bonificada em 0,1% por cada parcela dos produtos da pesca da espécie em causa, vendidos no território lituano, calculada em relação à totalidade dos produtos da pesca dessa espécie capturados pelo operador nos anos de referência.

Tendo em conta o menor impacto ambiental da pesca comercial de um operador, a fração histórica será bonificada em 5% quando sejam utilizados materiais de pesca profissional e técnicas de pesca que preservem os habitats naturais, e em 5% para navios de pesca que poluam menos o ambiente e consumam menos energia.

A fração histórica será reduzida em 2% por cada infração grave que tenha sido cometida nos anos de referência e em 0,5% por cada infração não qualificada de grave à legislação aplicável à pesca comercial.

10

Nos termos do artigo 171, n.o 6, da referida lei, um único operador económico não pode deter mais de 40% das possibilidades de pesca atribuídas à República da Lituânia para uma determinada espécie de peixe.

11

O artigo 171, n.os 7 e 8, da mesma lei prevê a atribuição das possibilidades de pesca individuais por meio de licitação. Após dedução das possibilidades de pesca destinadas a serem utilizadas para a pequena pesca costeira, a fração remanescente das possibilidades de pesca para cada espécie atribuídas à República da Lituânia na sequência da atribuição em função da fração histórica, que não deve ser inferior a 5% das referidas possibilidades, é atribuída por licitação a operadores económicos que explorem navios de pesca que arvorem pavilhão lituano, desde que não excedam o limite da capacidade de pesca fixado pelo Ministério da Agricultura na zona geográfica de pesca em causa.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

12

Resulta da decisão de reenvio que, nos termos da ata de uma reunião realizada em 11 de março de 2015 pelo Zvejybos Baltijos jurije kvotu skyrimo komisija (Conselho de atribuição das possibilidades de pesca no mar Báltico, Lituânia), criado pela Decisão n.o VI‑24, de 18 de março de 2013, do diretor do Departamento das Pescas do Ministério da Agricultura, o referido Conselho atribuiu possibilidades de pesca individuais complementares aos operadores que tinham apresentado um pedido nesse sentido, segundo a repartição seguinte:

«Banginis» UAB: 175 toneladas de arenque e 252 toneladas de espadilha;

«Grinvita» UAB: 29 toneladas de arenque e 49 toneladas de espadilha;

«Baltlanta» UAB: 23 toneladas de arenque e 16 toneladas de espadilha; e

«Baltijos šprotai» UAB: 202 toneladas de arenque e 285 toneladas de espadilha.

13

A Spika e o. contestaram a legalidade da atribuição das possibilidades de pesca complementares de arenque e de espadilha e intentaram uma ação no Vilniaus apygardos administracinis teismas (Tribunal Administrativo Regional de Vílnius, Lituânia), para a anulação da ata acima mencionada, alegando que as possibilidades de pesca individuais atribuídas à Grinvita, à Baltlanta, à Banginis e à Baltijos šprotai eram desprovidas de base jurídica.

14

Por Sentença de 6 de novembro de 2015, esse órgão jurisdicional julgou improcedente a ação da Spika e o. Consequentemente, estas interpuseram recurso no órgão jurisdicional de reenvio, o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo, Lituânia), para revogação da sentença proferida em primeira instância e prolação de uma nova decisão que declarasse a procedência da sua ação.

15

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha, em primeiro lugar, que a Lei das pescas executa, designadamente, o Regulamento n.o 1380/2013 e constata que, com base nesta lei, os operadores não são tratados de modo igual no que diz respeito à atribuição das possibilidades de pesca. Nestas circunstâncias, e na falta de uma justificação objetiva, a discriminação para com determinados operadores constitui uma violação aos princípios constitucionais lituanos da livre concorrência e da igualdade de tratamento.

16

Em segundo lugar, esse órgão jurisdicional questiona‑se sobre se o poder de apreciação conferido aos Estados‑Membros pelo artigo 16.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1380/2013 permite aos referidos Estados estabelecer critérios de atribuição das possibilidades de pesca que resultem na criação de condições desiguais para os operadores que concorrem entre si para obter essas possibilidades.

17

Com efeito, o referido órgão jurisdicional considera que o poder de apreciação não é ilimitado, na medida em que o artigo 17.o do referido regulamento prevê que os Estados‑Membros devem adotar critérios transparentes e objetivos, incluindo critérios de natureza ambiental, social e económica. Em especial, questiona‑se, por um lado, sobre se uma legislação nacional como a Lei das pescas, que estabelece um método de atribuição de possibilidade de pesca individuais que se baseia essencialmente nos dados históricos relativos às quantidades pescadas e que, por isso, é suscetível de criar as ditas condições de desigualdade, pode ser considera «objetiva». Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se sobre se as restrições à concorrência decorrentes da adoção deste método são incompatíveis com o direito da União, apesar de este método cumprir os requisitos de objetividade e de transparência referidos no artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013.

18

Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que um Estado‑Membro que aplica um regulamento da União é obrigado a respeitar a Carta. Por conseguinte, questiona‑se quanto à questão de saber se os artigos 16.o e 20.o da Carta, relativos à liberdade de empresa e ao princípio da igualdade, se opõem a que um Estado‑Membro preveja um método de atribuição de quotas de pesca que coloca os operadores em condições desiguais no que respeita à obtenção de possibilidades de pesca, ainda que este método se baseie nos critérios previstos no artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013.

19

Em quarto e último lugar, atendendo aos objetivos concorrentes da política comum das pescas, esse órgão jurisdicional procura saber se o artigo 2.o, n.o 5, alínea c), do Regulamento n.o 1380/2013 deve ser interpretado no sentido de que proíbe os Estados‑Membros de escolher um método de repartição das quotas de pesca que resulte em condições desiguais para os operadores que concorrem entre si para obter uma quantidade mais elevada de possibilidades de pesca, ainda que o mesmo se baseie em critérios transparentes e objetivos.

20

Neste contexto, o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 17.o e 2.o, n.o 5, alínea c), do Regulamento [n.o 1380/2013], à luz dos artigos 16.o e 20.o da [Carta], ser interpretados no sentido de que vedam a um Estado‑Membro, quando exerce a faculdade prevista no artigo 16.o, n.o 6, a adoção de um método de atribuição das quotas de pesca que lhe foram atribuídas que gere condições de desigualdade de concorrência entre os operadores […], devido a um volume maior de possibilidades de pesca, mesmo que o método em questão se baseie num critério transparente e objetivo?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

21

A Banginis alega que o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a questão prejudicial. Com efeito, segundo esta sociedade, o direito da União não é aplicável ao processo principal, na medida em que a República da Lituânia, ao adotar um método de atribuição das possibilidades de pesca individuais, não está a aplicar o direito da União, mas sim a exercer uma competência própria exclusiva.

22

Para determinar se uma legislação nacional diz respeito à aplicação do direito da União, importa verificar, entre outros elementos, se tem por objetivo aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa legislação e se a mesma não prossegue objetivos diferentes dos abrangidos pelo direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2014, Siragusa, C‑206/13, EU:C:2014:126, n.o 25).

23

Ora, quando adotam o método de repartição das possibilidades de pesca que lhes foram atribuídas, os Estados‑Membros exercem uma competência que lhes é expressamente atribuída, no âmbito da realização da política comum das pescas, por uma disposição do direito da União, a saber, o artigo 16.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1380/2013.

24

Nestas circunstâncias, há que considerar que, quando adotou o método de atribuição das possibilidades de pesca aos navios que arvoram pavilhão lituano, a República da Lituânia aplicou o direito da União. Consequentemente, o Tribunal de Justiça é competente para responder à questão submetida.

Quanto ao mérito

25

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 16.o, n.o 6, e o artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013, bem como os artigos 16.o e 20.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, através da qual este adota um método de atribuição das possibilidades de pesca suscetível de estar na origem de uma desigualdade de tratamento entre os operadores que disponham de navios de pesca que arvoram o seu pavilhão.

26

Para responder a esta questão, é necessário determinar, em primeiro lugar, se um método de atribuição como o que está em causa no processo principal cumpre os requisitos estabelecidos pelo artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013.

27

Nos termos do artigo 16.o, n.o 6, do referido regulamento, cada Estado‑Membro decide, em relação aos navios que arvoram o seu pavilhão, do método de repartição das possibilidades de pesca que lhes tenham sido atribuídas. A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 2371/2002 do Conselho, de 20 de dezembro de 2002, relativo à conservação e à exploração sustentável dos recursos haliêuticos no âmbito da Política Comum das Pescas (JO 2002, L 358, p. 59), que corresponde ao artigo 16.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1380/2013, que os Estados‑Membros beneficiam de uma margem de apreciação quanto à aplicação deste último regulamento (v., neste sentido, Despacho de 5 de maio de 2009, Atlantic Dawn e o./Comissão, C‑372/08 P, não publicado, EU:C:2009:287, n.o 41).

28

Ora, no âmbito do exercício desta margem de apreciação, os Estados‑Membros são obrigados a utilizar, nos termos do artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013, critérios «transparentes e objetivos».

29

No caso em apreço, a República da Lituânia optou por repartir as possibilidades de pesca que lhe tinham sido atribuídas através de um método que se baseia essencialmente no critério dos «níveis históricos de capturas». Por força deste critério, a maior parte das referidas possibilidades de pesca é atribuída em função da média das capturas de uma espécie de peixe efetuadas por um operador durante três anos civis, escolhidos por esse operador de entre os últimos sete anos civis.

30

Este critério encontra‑se expressamente previsto no artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013, na lista de critérios que os Estados‑Membros podem escolher para repartir as possibilidades de pesca que lhes tenham sido atribuídas. Além disso, o referido critério é objeto de uma disposição legal, nomeadamente o artigo 171 da Lei das pescas, que, no que diz respeito à fração histórica dos operadores em causa, se baseia em dados objetivos, mensuráveis e verificáveis pelas autoridades competentes.

31

Nestas circunstâncias, conclui‑se que um método de atribuição das possibilidades de pesca, como o que está em causa no processo principal, cumpre os requisitos da transparência e da objetividade previstos no artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013.

32

Em segundo lugar, importa determinar se a adoção desse método de atribuição implica a violação dos artigos 16.o e 20.o da Carta, quando este método resulta na criação de condições mais favoráveis para os operadores que dispõem de uma fração histórica dos níveis de capturas (a seguir «operadores históricos»), em detrimento dos operadores que não dispõem dessa fração histórica e que pretendem entrar no mercado da pesca ou aumentar a sua produção (a seguir «operadores não históricos»).

33

Com efeito, de acordo com as informações de que o Tribunal de Justiça dispõe e que o órgão jurisdicional de reenvio deve verificar, os operadores históricos podem obter possibilidades de pesca simplesmente ao fornecer os dados das suas capturas às autoridades competentes, ao passo que é apenas ocasionalmente que as possibilidades de pesca são atribuídas aos operadores não históricos, em função do saldo restante das quotas concedidas à República da Lituânia depois de terem sido concluídas as atribuições em função da fração histórica. Assim, este método pode, por um lado, violar a liberdade de empresa dos operadores não históricos, restringindo o seu direito de operar no mercado em causa, e, por outro, implicar desigualdades de tratamento injustificadas entre os diferentes tipos de operadores.

34

A este respeito, há que recordar que, nos termos do artigo 16.o da Carta, é reconhecida a liberdade de empresa, de acordo com o direito da União. A proteção conferida por este artigo abrange a liberdade de exercer uma atividade económica ou comercial, a liberdade contratual e a livre concorrência (Acórdão de 17 de outubro de 2013, Schaible, C‑101/12, EU:C:2013:661, n.o 25).

35

Quanto ao artigo 20.o da Carta, este consagra o princípio geral do direito da União da igualdade de tratamento, que exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, exceto se esse tratamento diferente for objetivamente justificado (Acórdão de 5 de julho de 2017, Fries, C‑190/16, EU:C:2017:513, n.o 30).

36

Ora, resulta do artigo 52.o, n.o 1, da Carta que qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades por ela reconhecidos pode ser admitida se for prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Além disso, na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.

37

No caso em apreço, é pacífico, tal como foi recordado no n.o 30 do presente acórdão, que o método de atribuição das possibilidades de pesca em causa no processo principal foi previsto por lei, a saber, a Lei das pescas.

38

Além disso, esta lei estabelece, por um lado, um mecanismo de licitação que permite aos operadores não históricos adquirir possibilidades de pesca não atribuídas, com base no saldo restante das quotas concedidas à República da Lituânia depois de terem sido concluídas as atribuições em função da fração histórica. Por outro lado, a referida lei limita a 40% as possibilidades de pesca para uma determinada espécie de peixe que podem ser atribuídas a cada operador. Assim, o método de atribuição em causa no processo principal, uma vez que não implica o fecho total do mercado em causa, respeita o conteúdo essencial da liberdade consagrada no artigo 16.o da Carta.

39

Por outro lado, a Lei das pescas não tem por efeito pôr em causa o princípio da igualdade de tratamento e contém, designadamente no seu artigo 171, n.o 4, disposições que permitem tomar em consideração situações particulares em que os operadores se podem encontrar. Por conseguinte, este método respeita igualmente o conteúdo essencial dos direitos que o artigo 20.o da Carta confere aos diferentes tipos de operadores.

40

Contudo, é ainda necessário verificar se essas restrições às liberdades previstas nos artigos 16.o e 20.o da Carta correspondem a um objetivo de interesse geral da União e, em caso afirmativo, se respeitam o princípio da proporcionalidade.

41

No que diz respeito à questão de saber se a legislação nacional em causa no processo principal contribui para a realização de um interesse geral da União, há que referir que a mesma fixa as possibilidades de pesca dos navios que arvoram pavilhão lituano, regulando igualmente o acesso à atividade pesqueira. Assim, as referidas medidas são justificadas pelo objetivo da política comum das pescas, recordado no artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1380/2013, de garantir que as atividades da pesca e da aquicultura sejam ambientalmente sustentáveis a longo prazo.

42

Além disso, verifica‑se que o método de atribuição das possibilidades de pesca em causa no processo principal, baseado essencialmente na fração histórica, se destina a garantir que estas possibilidades sejam prioritariamente atribuídas a operadores que disponham de uma frota de navios cuja capacidade de pesca é, em princípio, adequada a fazer face ao volume de capturas correspondentes às referidas possibilidades. Nestas circunstâncias, o referido método é justificado pelo objetivo da política comum das pescas mencionado no artigo 2.o, n.o 5, alínea d), do Regulamento n.o 1380/2013 e permite igualmente manter a viabilidade económica das frotas, como prevê esta disposição.

43

Por outro lado, a adoção desse método de atribuição é igualmente justificada pelo objetivo socioeconómico descrito no artigo 2.o, n.o 5, alínea f), do Regulamento n.o 1380/2013, na medida em que a preservação da viabilidade económica das frotas permite aos operadores históricos continuar a operar no mercado em causa e, desta forma, garantir a manutenção de um nível de vida equitativo às pessoas dependentes das atividades de pesca.

44

Quando uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, prossegue objetivos da política comum das pescas, tal como são consagrados pelo Regulamento n.o 1380/2013, é forçoso concluir que a mesma corresponde a um objetivo de interesse geral reconhecido pela União, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

45

Em seguida, importa verificar se as restrições que essa legislação acarreta respeitam o princípio da proporcionalidade, no sentido de que são adequadas a alcançar os objetivos que prosseguem e não vão além do necessário para os concretizar.

46

É verdade que, no caso em apreço, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, com base numa apreciação global de todas as circunstâncias de direito e de facto relevantes, se a legislação nacional em causa no processo principal cumpre os requisitos referidos no número anterior. O Tribunal de Justiça pode, todavia, fornecer‑lhe todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe permitam proferir uma decisão (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet, C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 52).

47

No que diz respeito à questão de saber se a legislação em causa no processo principal é capaz de alcançar os objetivos de interesse geral que prossegue, é de referir que esta legislação permite designadamente, através do método de atribuição das possibilidades de pesca que prevê, evitar que os recursos biológicos marinhos sejam explorados em excesso e que a sua renovação seja perturbada ou impedida. Além disso, resulta da decisão de reenvio que a fração histórica é bonificada em 5% se os operadores utilizarem técnicas de pesca que preservem os habitats naturais, e em 5% suplementares se os referidos operadores utilizarem navios de pesca que sejam menos poluentes para o ambiente e consumam menos energia.

48

Nestas condições, a referida legislação é adequada a garantir o caráter ambientalmente sustentável das atividades da pesca, mencionado no artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1380/2013.

49

Há que acrescentar que a tomada em conta dos níveis históricos das capturas que decorre da aplicação do método de atribuição em causa no processo principal permite aos operadores históricos que contem, para o futuro, com um volume de possibilidades de pesca relativamente estável em relação aos anos anteriores. Assim, estes operadores podem, por um lado, proceder à amortização dos investimentos, muitas vezes elevados, que fizeram para poderem operar no mercado em causa e, por outro, programar as atividades necessárias para garantir a manutenção da eficácia das suas frotas.

50

Por conseguinte, a legislação nacional em causa no processo principal, bem como o método de atribuição das possibilidades de pesca que a mesma prevê, também são adequados a garantir a realização das finalidades socioeconómicas subjacentes ao artigo 2.o, n.o 5, alíneas d) e f), do Regulamento n.o 1380/2013.

51

No que diz respeito à questão de saber se este método implica ou não restrições às liberdades consagradas nos artigos 16.o e 20.o da Carta que vão além do que é necessário para alcançar os objetivos prosseguidos pela legislação nacional em causa no processo principal, resulta da decisão de reenvio, desde logo, que a fração histórica pode ser bonificada ou reduzida em função de determinados critérios, designadamente de natureza ambiental ou que contribuam para o desenvolvimento da economia local. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a fração histórica é reduzida em 2% ou 0,5% por cada infração grave ou não grave, respetivamente, cometida durante os anos de referência referidos no artigo 171, n.o 1, da Lei das pescas.

52

Além disso, um único operador histórico não pode deter mais de 40% das possibilidades de pesca atribuídas à República da Lituânia para uma determinada espécie de peixe.

53

Por último, como já se referiu no n.o 38 do presente acórdão, a fração das possibilidades de pesca que não foi atribuída prioritariamente aos operadores históricos, que deve representar pelo menos 5% das possibilidades de pesca atribuídas à República da Lituânia, é atribuída por licitação aos outros operadores que possuem um navio de pesca que arvore pavilhão lituano.

54

Nestas circunstâncias, o método de atribuição das possibilidades de pesca em causa no processo principal não só não reserva as possibilidades de pesca apenas aos operadores históricos em função das suas frações históricas mas, além disso, permite ponderar essas frações com base num determinado número de elementos objetivos.

55

Por conseguinte, este método de atribuição não ultrapassa o que é necessário para atingir os objetivos de interesse geral prosseguidos pela legislação nacional em causa no processo principal e, consequentemente, não viola o princípio da proporcionalidade.

56

Atendendo a todas estas considerações, há que responder à questão submetida que o artigo 16.o, n.o 6, e o artigo 17.o do Regulamento n.o 1380/2013, bem como os artigos 16.o e 20.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, através da qual este adota um método de atribuição das possibilidades de pesca que, embora se baseie num critério de repartição transparente e objetivo, é suscetível de estar na origem de uma desigualdade de tratamento entre os operadores que disponham de navios de pesca que arvoram o seu pavilhão, desde que o referido método prossiga um ou vários interesses gerais reconhecidos pela União e respeite o princípio da proporcionalidade.

Quanto às despesas

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

O artigo 16.o, n.o 6, e o artigo 17.o do Regulamento (UE) n.o 1380/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, relativo à política comum das pescas, que altera os Regulamentos (CE) n.o 1954/2003 e (CE) n.o 1224/2009 do Conselho e revoga os Regulamentos (CE) n.o 2371/2002 e (CE) n.o 639/2004 do Conselho e a Decisão 2004/585/CE do Conselho, bem como os artigos 16.o e 20.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, através da qual este adota um método de atribuição das possibilidades de pesca que, embora se baseie num critério de repartição transparente e objetivo, é suscetível de estar na origem de uma desigualdade de tratamento entre os operadores que disponham de navios de pesca que arvoram o seu pavilhão, desde que o referido método prossiga um ou vários interesses gerais reconhecidos pela União Europeia e respeite o princípio da proporcionalidade.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: lituano.