ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

19 de outubro de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 2005/29/CE — Práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores — Âmbito de aplicação desta diretiva — Vendas de um grossista a retalhistas — Competência do Tribunal de Justiça — Legislação nacional que proíbe genericamente as vendas com prejuízo — Exceções baseadas em critérios não previstos pela referida diretiva»

No processo C‑295/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 4 de Murcia (Tribunal Administrativo n.o 4 de Múrcia, Espanha), por decisão de 27 de abril de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de maio de 2016, no processo

Europamur Alimentación SA

contra

Dirección General de Comercio y Protección del Consumidor de la Comunidad Autónoma de la Región de Murcia,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça, presidente de secção, E. Levits, A. Borg Barthet, M. Berger e F. Biltgen (relator), juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 6 de abril de 2017,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Europamur Alimentación SA, por F. Bueno Sánchez, Procurador, e A. García Medina, abogado,

em representação do Governo espanhol, por A. Gavela Llopis, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Pardo Quintillán e G. Goddin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de junho de 2017,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 («diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO 2005, L 149, p. 22).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Europamur Alimentación SA (a seguir «Europamur») à Dirección General de Comercio y Protección del Consumidor de la Communidad Autónoma de la Región de Murcia (Direção‑Geral do Comércio e Proteção do Consumidor da Comunidade Autónoma da Região de Múrcia, Espanha), anteriormente denominada Dirección General de Consumo, Comercio y Artesanía de la Comunidad Autónoma de la Región de Murcia (Direção‑Geral do Consumo, do Comércio e do Artesanato da Comunidade Autónoma da Região de Múrcia, a seguir «Administração Regional»), a propósito da legalidade de uma sanção administrativa aplicada à Europamur devido a uma infração à proibição de venda com prejuízo prevista pela legislação espanhola em matéria de comércio a retalho.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 6, 8 e 17 da diretiva relativa às práticas comerciais desleais enunciam o seguinte:

«(6)

[…] a presente diretiva aproxima as legislações dos Estados‑Membros relativas às práticas comerciais desleais, incluindo a publicidade desleal, que prejudicam diretamente os interesses económicos dos consumidores e consequentemente prejudicam indiretamente os interesses económicos de concorrentes legítimos. […] Não abrange nem afeta as legislações nacionais relativas às práticas comerciais desleais que apenas prejudiquem os interesses económicos dos concorrentes ou que digam respeito a uma transação entre profissionais; na plena observância do princípio da subsidiariedade, os Estados‑Membros, continuarão a poder regulamentar tais práticas, em conformidade com a legislação comunitária se assim o desejarem. […]

[…]

(8)

A presente diretiva protege diretamente os interesses económicos dos consumidores das práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores. […]

[…]

(17)

É desejável que essas práticas comerciais consideradas desleais em quaisquer circunstâncias sejam identificadas por forma a proporcionar segurança jurídica acrescida. Por conseguinte, o anexo I contém uma lista exaustiva dessas práticas. Estas são as únicas práticas comerciais que podem ser consideradas desleais sem recurso a uma avaliação casuística nos termos dos artigos 5.° a 9.° A lista só poderá ser alterada mediante revisão da presente diretiva.»

4

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o funcionamento correto do mercado interno e alcançar um elevado nível de defesa dos consumidores através da aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às práticas comerciais desleais que lesam os interesses económicos dos consumidores.»

5

O artigo 2.o da referida diretiva prevê:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva, entende‑se por:

a)

“consumidor”: qualquer pessoa singular que, nas práticas comerciais abrangidas pela presente diretiva, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

b)

“Profissional”: qualquer pessoa singular ou coletiva que, no que respeita às práticas comerciais abrangidas pela presente diretiva, atue no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional e quem atue em nome ou por conta desse profissional;

[…]

d)

“Práticas comerciais das empresas face aos consumidores” […]: qualquer ação, omissão, conduta ou afirmação e as comunicações comerciais, incluindo a publicidade e o marketing, por parte de um profissional, em relação direta com a promoção, a venda ou o fornecimento de um produto aos consumidores;

[…]»

6

O artigo 3.o, n.o 1, da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«A presente diretiva é aplicável às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, tal como estabelecidas no artigo 5.o, antes, durante e após uma transação comercial relacionada com um produto.»

7

Nos termos do artigo 4.o da diretiva relativa às práticas comerciais desleais:

«Os Estados‑Membros não podem restringir a livre prestação de serviços nem a livre circulação de mercadorias por razões ligadas ao domínio que é objeto de aproximação por força da presente diretiva.»

8

O artigo 5.o desta diretiva, com a epígrafe «Proibição de práticas comerciais desleais», tem a seguinte redação:

«1.   São proibidas as práticas comerciais desleais.

2.   Uma prática comercial é desleal se:

a)

For contrária às exigências relativas à diligência profissional;

e

b)

Distorcer ou for suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico, em relação a um produto, do consumidor médio a que se destina ou que afeta, ou do membro médio de um grupo quando a prática comercial for destinada a um determinado grupo de consumidores.

[…]

4.   Em especial, são desleais as práticas comerciais:

a)

Enganosas, tal como definido nos artigos 6.° e 7.°;

ou

b)

Agressivas, tal como definido nos artigos 8.° e 9.°

5.   O anexo I inclui a lista das práticas comerciais que são consideradas desleais em quaisquer circunstâncias. A lista é aplicável em todos os Estados‑Membros e só pode ser alterada mediante revisão da presente diretiva.»

Direito espanhol

Legislação relativa ao comércio retalhista

9

Nos termos da exposição de motivos da Ley 7/1996 de Ordenación del Comercio Minorista (Lei 7/1996, relativa à regulamentação do comércio retalhista), de 15 de janeiro de 1996 (BOE n.o 15, de 17 de janeiro de 1996, p. 1243), na versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «LOCM»):

«A presente lei [visa, designadamente,] corrigir os desequilíbrios entre as grandes e as pequenas empresas comerciais, e, sobretudo, assegurar uma concorrência livre e leal. É supérfluo reiterar que os efeitos mais imediatos e tangíveis de uma situação de concorrência livre e leal se concretizam por uma melhoria contínua dos preços e da qualidade bem como das outras características da oferta e do serviço ao público, o que representa, afinal, a ação mais eficaz a favor dos consumidores.»

10

O artigo 14.o da LOCM, com a epígrafe «Proibição de venda com prejuízo», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Não obstante o disposto no artigo anterior, [que estabelece o princípio de liberdade dos preços,] não podem ser propostas nem realizadas vendas ao público com prejuízo, fora dos casos regulados nos capítulos IV [relativo às vendas em saldos] e V [relativo às vendas em liquidação] do título II da presente lei, a menos que, quem a realize, tenha por objetivo alcançar os preços de um ou de vários concorrentes com capacidade para afetar, significativamente, as suas vendas, ou se trate de produtos perecíveis em datas próximas do termo do período em que podem ser consumidos.

Em todo o caso, deve ser respeitado o disposto na lei relativa à concorrência desleal.

2.   Para os efeitos referidos no número anterior, considera‑se que existe venda com prejuízo quando o preço aplicado a um produto seja inferior ao preço de aquisição de acordo com a fatura, deduzida a parte proporcional dos descontos que figurem na mesma, ao preço de reposição se este for inferior àquele, ou ao custo efetivo de produção, se o produto tiver sido fabricado pelo próprio comerciante, acrescidos dos impostos indiretos que agravem a operação.»

11

Por força da sexta disposição adicional da LOCM, inserida nesta última no decurso do ano de 1999, essa proibição de venda com prejuízo também é aplicável «às entidades, qualquer que seja a sua natureza jurídica, que se dediquem ao comércio grossista».

12

A LOCM foi implementada na Comunidade Autónoma de Múrcia mediante a Ley 11/2006 sobre Régimen del Comercio Minorista de la Región de Murcia (Lei 11/2006, que estabelece o Regime de Comércio a Retalho da Região de Múrcia), de 22 de dezembro de 2006 (BORM n.o 2, de 3 de janeiro de 2007, p. 141, a seguir «Lei Regional 11/2006»). O seu artigo 54.o prevê que as infrações graves são sancionadas com uma coima de 3001 a 15000 euros. Para determinar a existência de uma «infração grave», a referida lei remete para a LOCM, cujo artigo 65.o, n.o 1, alínea c), define como tal as vendas com prejuízo. Os fatores a tomar em consideração para calcular o montante da sanção são enunciados no artigo 55.o da Lei Regional 11/2006, que faz referência, designadamente, à gravidade do prejuízo «causado aos interesses dos consumidores».

Legislação relativa à concorrência desleal

13

Nos termos do preâmbulo da Ley 3/1991 de Competencia Desleal (Lei 3/1991, relativa à concorrência desleal), de 10 de janeiro de 1991 (BOE n.o 10, de 11 de janeiro de 1991, p. 959, a seguir «LCD»):

«[A presente] lei responde à necessidade de adequar o ordenamento concorrencial aos valores plasmados na nossa constituição económica. A Constituição espanhola de 1978 faz gravitar o nosso sistema económico em torno do princípio da liberdade de empresa e, consequentemente, no plano institucional, em torno do princípio da liberdade de concorrência. Daqui resulta, para o legislador ordinário, a obrigação de estabelecer os mecanismos necessários para impedir que tal princípio possa ser distorcido por comportamentos desleais, suscetíveis de, eventualmente, perturbar o funcionamento concorrencial do mercado.

Esta exigência constitucional é completada e reforçada pela exigência que resulta do princípio da proteção do consumidor, na sua qualidade de parte mais fraca das relações típicas de mercado, enunciado no artigo 51.o da Constituição.

Este novo aspeto do problema, até então geralmente ignorado pelo direito tradicional espanhol da concorrência desleal, constituiu um estímulo adicional da máxima importância para a adoção da nova legislação.»

14

O artigo 17.o da LCD, com a epígrafe «Venda com prejuízo», enuncia:

«1.   Salvo disposição legislativa ou regulamentar em contrário, a fixação de preços é livre.

2.   Não obstante, a venda com prejuízo ou realizada a custo reduzido de aquisição, é considerada desleal nos seguintes casos:

a)

Quando seja suscetível de induzir os consumidores em erro acerca do nível de preços de outros produtos ou serviços do mesmo estabelecimento.

b)

Quando tenha por efeito desacreditar a imagem de um produto ou de um estabelecimento alheios.

c)

Quando faça parte de uma estratégia para eliminar um concorrente ou grupo de concorrentes do mercado.»

Lei 29/2009

15

A diretiva relativa às práticas comerciais desleais foi transposta para o direito espanhol pela Ley 29/2009 por la que se modifica el Régimen Legal de la Competencia Desleal y de la Publicidad para la Mejora de la Protección de los Consumidores y Usuarios (Lei 29/2009, que altera o regime legal da concorrência desleal e da publicidade para a melhoria da proteção dos consumidores e dos utilizadores), de 30 de dezembro de 2009 (BOE n.o 315, de 31 de dezembro de 2009, p. 112039, a seguir «Lei 29/2009»).

16

A Lei 29/2009 alterou, entre outros instrumentos, a LOCM e a LCD, sem, contudo, introduzir alterações às suas disposições, mencionadas, respetivamente, nos n.os 9 a 12, e 13 e 14 do presente acórdão.

17

A Lei 29/2009 aditou um n.o 3 ao artigo 18.o da LOCM, nos termos do qual a promoção das vendas «é considerada desleal quando ocorram as circunstâncias previstas no artigo 5.o da [LCD]».

18

A Lei 29/2009 alterou, por um lado, o artigo 4.o da LCD, de tal modo que este enuncia os critérios que permitem qualificar uma prática comercial de «desleal» tal como definidos no artigo 5.o da diretiva relativa às práticas comerciais desleais e, por outro, os artigos 5.° e 7.° da LCD cuja redação reproduz agora, respetivamente, a dos artigos 6.° e 7.° da referida diretiva.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

Como grossista, a Europamur vende produtos de uso doméstico e alimentar aos supermercados e às lojas de bairro que enfrentam diretamente a concorrência das grandes cadeias de supermercados. Ao estar associada a uma central de compras, a Europamur pode propor aos pequenos comerciantes, que são seus clientes, produtos a preços competitivos que lhes permitem enfrentar as referidas cadeias.

20

Com decisão de 23 de fevereiro de 2015, a Administração Regional aplicou uma coima de 3001 euros à Europamur por ter infringido a proibição prevista no artigo 14.o da LOCM, ao vender com prejuízo determinados produtos que comercializa.

21

A Administração Regional fundamentou a sua decisão em considerações relativas, designadamente, à proteção dos consumidores. Assim, antes de mais, considerou que os descontos «não devem prejudicar a correta formação do consentimento contratual, em detrimento dos consumidores e clientes, acerca do nível correto dos preços de um determinado empresário ou estabelecimento». Em seguida, teve em consideração «a relevância social da infração, que afeta todos os comerciantes e consumidores da Região de Múrcia […] uma vez que os objetivos económicos prosseguidos pelo infrator são múltiplos e compreendem, entre outros, criar ofertas que, no caso em apreço, funcionam como isco para produtos como os que estão em causa, com o objetivo de incitar os consumidores a comprar produtos ou serviços do mesmo estabelecimento, com a intenção oculta de dissuadir ou eliminar concorrentes». Por último, quando fixou o montante da sanção, teve em consideração o critério do «prejuízo grave causado aos interesses dos consumidores» enunciado no artigo 55.o da Lei Regional 11/2006. Em contrapartida, não precisou em que medida o comportamento da Europamur tinha prejudicado concretamente os interesses dos consumidores, uma vez que, segundo a interpretação dominante do artigo 14.o da LOCM, a venda com prejuízo é, por si só, suscetível de causar prejuízo aos consumidores e aos clientes.

22

A Europamur interpôs recurso da referida decisão alegando, entre outros fundamentos, que era necessário os pequenos comerciantes puderem alinhar aos seus preços com os dos seus concorrentes, que o regime da prova que resulta do artigo 17.o da LCD devia ter sido aplicado no que lhe diz respeito e que o comportamento sancionado não causava nenhum prejuízo aos consumidores. Alegou também que a sanção aplicada era contrária ao direito da União, uma vez que a diretiva relativa às práticas comerciais desleais tinha sido insuficientemente transposta para a ordem jurídica interna pela Lei 29/2009, dado que não alterou a redação do artigo 14.o da LOCM.

23

A Administração Regional sustentou, designadamente, por um lado, que o regime das sanções da LOCM, previsto especialmente para defender os interesses dos consumidores, é independente da LCD, que regula sobretudo as relações dos operadores económicos entre si, pelo que a proibição estabelecida no artigo 14.o da LOCM se pode aplicar sem que estejam reunidas as circunstâncias previstas no artigo 17.o da LCD, e, por outro, que não existe conflito entre a legislação nacional e a legislação da União.

24

Nestas condições, o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 4 de Murcia (Tribunal Administrativo n.o 4 de Múrcia, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve a [diretiva relativa às práticas comerciais desleais] ser interpretada no sentido de que se opõe a uma disposição nacional como o artigo 14.o da [LOCM], que tem um caráter mais restritivo do que a [referida] diretiva […], ao proibir em geral a venda com prejuízo — mesmo aos grossistas — por considerar esta prática uma infração administrativa, aplicando‑lhe consequentemente uma sanção, tendo em conta que a [l]ei espanhola visa, além da regulação do mercado, proteger os interesses dos consumidores?

2)

Deve a [diretiva relativa às práticas comerciais desleais] ser interpretada no sentido de que se opõe ao referido artigo 14.o da LOCM, mesmo que a disposição nacional permita excluir da proibição [geral] a venda com prejuízo nos casos em que i) o infrator prove que a venda com prejuízo tinha como objetivo alinhar‑se pelos preços de um ou diversos concorrentes com capacidade para afetar significativamente as suas vendas, ou ii) se trate de produtos perecíveis em datas próximas do termo do período em que podem ser consumidos?»

Quanto às questões prejudiciais

25

Com as suas duas questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a diretiva relativa às práticas comerciais desleais deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que contém uma proibição geral de propor para venda ou de vender bens com prejuízo e que prevê motivos de derrogação a essa proibição baseados em critérios que não figuram nessa diretiva.

Quanto à competência

26

O Governo espanhol e a Comissão Europeia questionam a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial porque, do seu ponto de vista, os factos em causa no processo principal não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Com efeito, esta diretiva só se aplica, como resulta dos seus artigos 2.° e 3.°, às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores e não se aplicaria, portanto, às práticas comerciais desleais entre profissionais. Ora, no caso presente, é pacífico que a venda com prejuízo teve lugar entre profissionais.

27

Com esta argumentação, o Governo espanhol e a Comissão contestam, em substância, a competência do Tribunal de Justiça para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

28

A este respeito, embora seja verdade, como o advogado‑geral realçou no n.o 42 das suas conclusões, que a diretiva relativa às práticas comerciais desleais é aplicável apenas às práticas que prejudicam diretamente os interesses económicos dos consumidores, não se aplicando, assim, às transações entre profissionais, não se pode, contudo, concluir que o Tribunal de Justiça não é competente para responder às questões prejudiciais que lhe foram submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

29

Com efeito, o Tribunal de Justiça várias vezes se declarou competente para decidir pedidos prejudiciais que tinham por objeto disposições do direito da União em situações em que os factos no processo principal saíam do âmbito de aplicação do direito da União, mas nas quais as referidas disposições desse direito passaram a ser aplicáveis por força da legislação nacional, a qual é conforme, nas soluções dadas a situações não abrangidas pelo direito da União, com as soluções acolhidas por este (v., nesse sentido, acórdãos de 18 de outubro de 2012, Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 45, e de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 53). Nessa situação, existe um interesse manifesto da União Europeia em que, para evitar divergências de interpretação futuras, as disposições retomadas do direito da União sejam interpretadas de modo uniforme (acórdão de 18 de outubro de 2012, Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

30

No presente caso, resulta da decisão de reenvio que as disposições da diretiva relativas às práticas comerciais desleais passaram a ser aplicáveis por força da legislação nacional a situações, como a que está em causa no processo principal, que não são abrangidas pelo âmbito de aplicação dessa diretiva.

31

Com efeito, como realçou o advogado‑geral nos n.os 46 a 51 das suas conclusões, o artigo 14.o da LOCM, que proíbe a venda com prejuízo no comércio retalhista, deve ser considerado uma transposição da diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Além disso, na medida em que a sexta disposição adicional da LOCM estende essa proibição aos grossistas, e que a aplicação da proibição prevista no artigo 14.o da LOCM se aplica igualmente às vendas entre grossistas e retalhistas e às vendas entre retalhistas e consumidores, as implicações da interpretação da diretiva relativa às práticas comerciais desleais solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio são as mesmas nos dois tipos de vendas. Aliás, resulta da decisão de reenvio que a sanção aplicada à Europamur se baseia no artigo 14.o da LOCM, que é precisamente objeto das questões prejudiciais.

32

Portanto, existe um interesse certo da União em que, para evitar divergências de interpretação futuras, as disposições retomadas do direito da União sejam interpretadas de modo uniforme.

33

Tendo em conta as considerações precedentes, o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões submetidas.

Quanto ao mérito

34

A fim de responder à questão conforme reformulada no n.o 25 do presente acórdão, importa desde já recordar que o Tribunal de Justiça declarou que a diretiva relativa às práticas comerciais desleais deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê uma proibição geral de propor produtos para venda com prejuízo ou de vender produtos com prejuízo, sem que seja necessário determinar, tendo em conta o contexto factual de cada caso concreto, se a operação comercial em causa tem caráter «desleal» à luz dos critérios enunciados nos artigos 5.° a 9.° dessa diretiva e sem reconhecer aos tribunais competentes uma margem de apreciação a este propósito, desde que essa disposição prossiga finalidades relativas à proteção dos consumidores (v., nesse sentido, despacho de 7 de março de 2013, Euronics Belgium, C‑343/12, EU:C:2013:154, n.os 30 e 31 e jurisprudência aí referida).

35

No que se refere, em primeiro lugar, às finalidades prosseguidas pela disposição nacional em causa no processo principal, resulta da exposição dos motivos da LOCM que esta visa proteger os consumidores. Por outro lado, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a finalidade assim prosseguida impõe‑se mesmo numa situação como a que está em causa no processo principal, que se refere às vendas entre grossistas e pequenos comerciantes, uma vez que essas vendas têm repercussões no consumidor. Concretamente, o consumidor é beneficiado, nas suas compras no pequeno comércio, pelo agrupamento de pedidos realizado através do armazém grossista, sem o qual o retalhista se veria impotente face à capacidade de compra superior das grandes cadeias e superfícies.

36

Esta constatação é corroborada pela decisão que aplica a sanção adotada pela Administração Regional. Com efeito, como decorre do n.o 21 do presente acórdão, a Administração Regional fundamentou a referida decisão e o montante da coima em considerações relativas à proteção dos consumidores.

37

Aliás, é precisamente à luz das finalidades do artigo 14.o da LOCM assim identificadas que o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça uma interpretação da diretiva relativa às práticas comerciais desleais.

38

No que se refere, em segundo lugar, à questão de saber se a proibição de venda com prejuízo em causa no processo principal tem um caráter geral na aceção da jurisprudência ou se as derrogações a esta proibição permitem aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar, tendo em conta o contexto factual de cada caso concreto, o caráter «desleal» da venda com prejuízo em questão à luz dos critérios enunciados nos artigos 5.° a 9.° da diretiva relativa às práticas comerciais desleais, importa recordar que o artigo 5.o da referida diretiva estabelece os critérios que permitem determinar as circunstâncias em que uma prática comercial deve ser considerada desleal e, por conseguinte, proibida (despacho de 7 de março de 2013, Euronics Belgium, C‑343/12, EU:C:2013:154, n.o 25).

39

A este respeito, o Tribunal de Justiça decidiu que a diretiva relativa às práticas comerciais desleais procede a uma harmonização completa das regras em matéria de práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, e que os Estados‑Membros, como prevê expressamente o artigo 4.o da diretiva, não podem, portanto, adotar medidas mais restritivas do que as definidas por esta diretiva, mesmo com a finalidade de assegurar um grau mais elevado de proteção dos consumidores (v., nesse sentido, acórdão de 14 de janeiro de 2010, Plus Warenhandelsgesellschaft, C‑304/08, EU:C:2010:12, n.o 41, e despacho de 30 de junho de 2011, Wamo, C‑288/10, EU:C:2011:443, n.o 33).

40

No presente caso, por um lado, é pacífico que, em aplicação da disposição nacional em causa no processo principal, a venda com prejuízo é, em si mesma, considerada uma prática comercial desleal e que não cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar o caráter desleal da referida venda com prejuízo, tendo em conta o contexto factual de cada espécie, à luz dos critérios enunciados nos artigos 5.° a 9.° da diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Por outro lado, também não se contesta que as duas derrogações à proibição de vendas com prejuízo visadas no artigo 14.o da LOCM se baseiam em critérios não previstos na referida diretiva.

41

Ora, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 39 do presente acórdão, os Estados‑Membros não podem, ao fixar critérios diferentes dos enunciados no artigo 5.o da referida diretiva, adotar medidas mais restritivas do que as definidas nessa mesma diretiva.

42

Além disso, entre as medidas mais restritivas proibidas figura também, como o advogado‑geral realçou nos n.os 62 a 64 das suas conclusões, a inversão do ónus da prova prevista no artigo 14.o da LOCM. Com efeito, uma vez que as vendas com prejuízo não figuram entre as práticas referidas no anexo I da diretiva relativa às práticas comerciais desleais, a aplicação de uma sanção por violação da proibição de tal venda com prejuízo deve ser precedida de uma análise, levada a cabo tendo em conta o contexto factual de cada caso concreto, do caráter «desleal» da referida venda à luz dos critérios enunciados nos artigos 5.° a 9.° dessa diretiva, e não pode assentar numa presunção que incumbiria ao profissional elidir (v., por analogia, acórdão de 23 de abril de 2009, VTB‑VAB e Galatea, C‑261/07 e C‑299/07, EU:C:2009:244, n.o 65, relativa à proibição das ofertas conjuntas aos consumidores).

43

Nestas condições, há que responder à questão submetida que a diretiva relativa às práticas comerciais desleais deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que contém uma proibição geral de propor para venda ou de vender bens com prejuízo e que prevê motivos de derrogação a essa proibição baseados em critérios que não figuram nessa diretiva

Quanto às despesas

44

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

A Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 («diretiva relativa às práticas comerciais desleais»), deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que contém uma proibição geral de propor para venda ou de vender bens com prejuízo e que prevê motivos de derrogação a essa proibição baseados em critérios que não figuram nessa diretiva.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.