CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 7 de fevereiro de 2017 ( 1 )

Processo C‑638/16 PPU

X,

X

contra

État belge

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Competência do Tribunal de Justiça — Artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 810/2009 que estabelece o Código Comunitário de Vistos — Visto com validade territorial limitada — Aplicação do direito da União — Emissão de um visto desse tipo por razões humanitárias ou para cumprir obrigações internacionais — Conceito de ‘obrigações internacionais’ — Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados — Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Obrigação dos Estados‑Membros de emitirem um visto humanitário em caso de risco comprovado de violação dos artigos 4.° e/ou 18.° da Carta dos Direitos Fundamentais»

Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial, submetido pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica), tem por objeto a interpretação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (a seguir «Código de Vistos») ( 2 ), bem como dos artigos 4.° e 18.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe dois nacionais sírios e os seus três filhos de tenra idade, que residem em Alepo (Síria), ao État belge (Estado belga), a respeito da recusa deste último de lhes conceder um visto com validade territorial limitada, na aceção do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, requerido por razões humanitárias.

3.

Como demonstrarei nas presentes conclusões, apesar das objeções apresentadas pelos governos que participaram na audiência de 30 de janeiro de 2017 e das objeções da Comissão Europeia, este processo confere, por um lado, ao Tribunal de Justiça a oportunidade de esclarecer que um Estado‑Membro aplica o direito da União quando adota uma decisão relativa a um pedido de visto com validade territorial limitada, o que, consequentemente, o obrigada a garantir o respeito dos direitos conferidos pela Carta. Por outro lado, o presente processo deve, segundo a minha análise, levar o Tribunal de Justiça a afirmar que o respeito desses direitos, muito especialmente o consagrado no artigo 4.o da Carta, implica a existência de uma obrigação positiva de os Estados‑Membros emitirem um visto com validade territorial limitada quando existam razões sérias e comprovadas para crer que a recusa de emissão desse documento terá como consequência direta expor pessoas que procuram obter proteção internacional à tortura ou a tratos desumanos ou degradantes proibidos por este artigo.

4.

Na minha opinião, é crucial que, num momento em que as fronteiras se fecham e os muros se erguem, os Estados‑Membros não fujam às suas responsabilidades, conforme decorrem do direito da União ou, permitam‑me a expressão, do direito da sua e da nossa União.

5.

Num tom particularmente alarmista, o Governo checo alertou o Tribunal de Justiça, na audiência, para as consequências «fatais» que resultariam para a União de um acórdão que fosse no sentido de obrigar os Estados‑Membros a emitir vistos humanitários por força do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos.

6.

Embora a União viva momentos difíceis, não partilho desse receio. É, pelo contrário, como no processo principal, a recusa em reconhecer uma via legal de acesso ao direito à proteção internacional no território dos Estados‑Membros – que, infelizmente, precipita muitas vezes os nacionais de países terceiros que tentam obter tal proteção a juntarem‑se, correndo risco de vida, ao fluxo atual de imigrantes ilegais às portas da União — que me parece particularmente preocupante, atendendo, nomeadamente, aos valores humanitários e de respeito dos direitos do Homem em que assenta a construção europeia. Será necessário recordar que, como afirmam, respetivamente, os artigos 2.° e 3.° do Tratado UE, a União «[se funda] nos valores do respeito pela dignidade humana […] e do respeito pelos direitos do Homem» e tem «por objetivo promover […] os seus valores», nomeadamente nas suas relações com o resto do mundo?

7.

A este respeito, é triste constatar que, apesar da extensão e do caráter repetitivo das intervenções dos representantes dos catorze governos que se sucederam na barra na audiência de 30 de janeiro de 2017, nenhum deles tenha recordado estes valores perante a situação em que estão imersos os recorrentes no processo principal e que levou o Tribunal de Justiça a acionar a tramitação urgente.

8.

Como demonstrarei nas presentes conclusões, contrariamente ao que um certo número de governos sugeriu na audiência no Tribunal de Justiça, é inútil esperar por uma hipotética alteração do Código de Vistos para reconhecer uma via legal de acesso ao direito à proteção internacional, que decorreria das alterações propostas pelo Parlamento Europeu à proposta atualmente em discussão ( 3 ).

9.

Com efeito, esta via legal já existe, a saber, a do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, como, de resto, admitiu o relator da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos do Parlamento ( 4 ). Pelas razões que exporei na análise que se segue, convido o Tribunal de Justiça a declarar a existência de tal via legal que se materializa na obrigação de emitir vistos humanitários, nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, em determinadas condições.

Quadro jurídico

Direito internacional

10.

O artigo 1.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), intitulado «Obrigação de respeitar os direitos do homem», prevê que as «Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção».

11.

O artigo 3.o da CEDH, intitulado «Proibição da tortura», dispõe que ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.

12.

O artigo 1.o, A., ponto 2, da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951, conforme alterada pelo Protocolo de Nova Iorque de 31 de janeiro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»), dispõe, nomeadamente, que se considera refugiado qualquer pessoa que, receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país.

13.

O artigo 33.o, n.o 1, da Convenção de Genebra prevê que nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.

Direito da União

Carta

14.

O artigo 1.o da Carta indica que a dignidade do ser humano é inviolável e deve ser respeitada e protegida.

15.

O artigo 2.o, n.o 1, da Carta dispõe que todas as pessoas têm direito à vida.

16.

O artigo 3.o, n.o 1, da Carta estabelece que todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental.

17.

O artigo 4.o da Carta dispõe que ninguém pode ser submetido a tortura nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.

18.

O artigo 18.o da Carta prevê que é garantido o direito de asilo, no quadro da Convenção de Genebra e nos termos do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

19.

O artigo 24.o, n.o 2, da Carta indica que todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

20.

O artigo 51.o, n.o 1, da Carta prevê que as disposições da Carta têm por destinatários as instituições, os órgãos e os organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União.

21.

O artigo 52.o, n.o 3, da Carta estabelece que, na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

Direito derivado

22.

O considerando 29 do Código de Vistos enuncia que este código respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos, designadamente, na CEDH e na Carta.

23.

O artigo 1.o, n.o 1, do Código de Vistos dispõe que este código estabelece os procedimentos e as condições para a emissão de vistos de trânsito ou de estada prevista no território dos Estados‑Membros não superior a 90 dias num período de 180 dias.

24.

O artigo 19.o deste código, intitulado «Admissibilidade», prevê, no seu n.o 4, que, a título de derrogação, um pedido que não preencha as condições de admissibilidade pode ser considerado admissível por razões humanitárias ou de interesse nacional.

25.

O artigo 23.o do Código de Vistos, intitulado «Decisão sobre o pedido», esclarece, no seu n.o 4, que, salvo nos casos em que o pedido seja retirado, é tomada a decisão de, nomeadamente, emitir um visto uniforme, nos termos do artigo 24.o do código, de emitir um visto com validade territorial limitada, nos termos do artigo 25.o do referido código, ou de recusar um visto, nos termos do artigo 32.o do mesmo código

26.

O artigo 25.o do Código de Vistos, intitulado «Emissão de vistos com validade territorial limitada», dispõe:

«1.   Um visto com validade territorial limitada é emitido excecionalmente nos seguintes casos:

a)

Sempre que o Estado‑Membro em causa considere necessário, por razões humanitárias ou de interesse nacional, ou por força de obrigações internacionais:

i)

afastar o princípio de que as condições de entrada estabelecidas nas alíneas a), c), d) e e) do n.o 1 do artigo [6].° do Código das Fronteiras Schengen devem estar preenchidas […]

ii)

emitir um visto […]

[…]

2.   O visto com validade territorial limitada é válido para o território do Estado‑Membro emitente. Pode excecionalmente ser válido para o território de mais de um Estado‑Membro, sob reserva do consentimento dos Estados‑Membros em causa.

3.   Se o requerente for titular de um documento de viagem que só seja reconhecido por um ou alguns Estados‑Membros, mas não por todos, deve ser emitido um visto válido para o território dos Estados‑Membros que reconhecem o documento de viagem. Se o Estado‑Membro emitente não reconhecer o documento de viagem do requerente, o visto emitido é válido apenas para esse Estado‑Membro.

4.   Se tiver sido emitido um visto com validade territorial limitada nos casos previstos na alínea a) do n.o 1, as autoridades centrais do Estado‑Membro emitente devem transmitir imediatamente as informações relevantes às autoridades centrais dos outros Estados‑Membros, nos termos do n.o 3 do artigo 16.o do [Regulamento (CE) n.o 767/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de julho de 2008, relativo ao Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) e ao intercâmbio de dados entre os Estados‑Membros sobre os vistos de curta duração ( 5 )].

5.   Os dados referidos no n.o 1 do artigo 10.o do Regulamento [n.o 767/2008] são inseridos no VIS quando for tomada uma decisão sobre a emissão do visto.»

27.

O artigo 32.o do Código de Vistos, intitulado «Recusa de visto», prevê:

«1.   Sem prejuízo do n.o 1 do artigo 25.o, o visto é recusado:

[…]

b)

se existirem dúvidas razoáveis quanto à autenticidade dos documentos comprovativos apresentados pelo requerente ou à veracidade do seu conteúdo, à fiabilidade das declarações do requerente ou à sua intenção de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar.»

28.

Nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (reformulação) ( 6 ):

«1.   A presente diretiva aplica‑se a todos os pedidos de proteção internacional apresentados no território dos Estados‑Membros, incluindo a fronteira, as águas territoriais e as zonas de trânsito, bem como à retirada da proteção internacional.

2.   A presente diretiva não se aplica aos pedidos de asilo diplomático ou territorial apresentados em representações dos Estados‑Membros. […]»

29.

O artigo 4.o do Regulamento (UE) 2016/399 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) ( 7 ), prevê que os Estados‑Membros aplicam este regulamento agindo no estrito cumprimento do direito aplicável da União, designadamente a Carta, do direito internacional aplicável, designadamente a Convenção de Genebra, das obrigações em matéria de acesso à proteção internacional, em particular o princípio de não repulsão, e dos direitos fundamentais.

30.

O artigo 6.o do Código das Fronteiras Schengen, intitulado «Condições de entrada para os nacionais de países terceiros», prevê:

«1.   Para uma estada prevista no território dos Estados‑Membros de duração não superior a 90 dias em qualquer período de 180 dias, o que implica ter em conta o período de 180 dias anterior a cada dia de estada, as condições de entrada para os nacionais de países terceiros são as seguintes:

a)

Estar na posse de um documento de viagem válido […]

b)

Estar na posse de um visto válido, se tal for exigido […], exceto se for detentor de um título de residência válido ou de um visto de longa duração válido;

c)

Justificar o objetivo e as condições da estada prevista e dispor de meios de subsistência suficientes […];

d)

Não estar indicado no [Sistema de Informação Schengen] para efeitos de não admissão;

e)

Não ser considerado suscetível de perturbar a ordem pública, a segurança interna, a saúde pública ou as relações internacionais de qualquer Estado‑Membro, e em especial não estar indicado para efeitos de não admissão, pelos mesmos motivos, nas bases de dados nacionais dos Estados‑Membros.»

Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

31.

Os recorrentes no processo principal, um casal e os seus três filhos menores de tenra idade, têm nacionalidade síria, vivem em Alepo e declararam ser de confissão cristã ortodoxa. Em 12 de outubro de 2016, apresentaram pedidos de visto no consulado da Bélgica em Beirute (Líbano), e regressaram à Síria em 13 de outubro de 2016.

32.

Estes pedidos visam a emissão rápida de vistos com validade territorial limitada, nos termos do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos. Segundo os recorrentes no processo principal, os referidos pedidos destinam‑se a permitir‑lhes sair da cidade sitiada de Alepo para apresentar um pedido de asilo na Bélgica. Um dos recorrentes no processo principal declara, nomeadamente, ter sido sequestrado por um grupo terrorista, espancado e torturado, antes de ser finalmente libertado contra pagamento de um resgate. Os recorrentes no processo principal insistem particularmente na degradação da situação de segurança na Síria, em geral, e em Alepo, em particular, bem como no facto de, por serem de confissão cristã ortodoxa, correrem o risco de serem perseguidos em razão da sua crença religiosa. Acrescentam que lhes é impossível registarem‑se como refugiados nos países limítrofes, atendendo, nomeadamente, à circunstância de a fronteira entre o Líbano e a Síria ter entretanto sido fechada.

33.

Estes pedidos foram indeferidos por decisões do Office des étrangers (Serviço de Estrangeiros, Bélgica) de 18 de outubro de 2016 (a seguir «decisões controvertidas»), em aplicação do artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos. Com efeito, segundo o Office des étrangers, ao requererem um visto com validade territorial limitada para apresentarem um pedido de asilo na Bélgica, os recorrentes no processo principal tinham manifestamente a intenção de permanecer mais de 90 dias na Bélgica. Além disso, as decisões controvertidas do Office des étrangers salientam, por um lado, que o artigo 3.o da CEDH não pode ser interpretado no sentido de que exige que os Estados contratantes admitam no seu território todas as pessoas que se encontrem numa situação de catástrofe e, por outro, que, nos termos da legislação belga, os postos diplomáticos belgas não fazem parte das autoridades nacionais junto das quais um estrangeiro pode apresentar um pedido de asilo. Ora, autorizar a emissão de um visto de entrada aos recorrentes no processo principal para lhes permitir apresentar o seu pedido de asilo na Bélgica equivaleria a autorizar a apresentação desse pedido num posto diplomático.

34.

Tendo recorrido para o órgão jurisdicional de reenvio para pedir a suspensão da execução das decisões de recusa de visto, nos termos do procedimento nacional de extrema urgência, os recorrentes no processo principal alegam, em substância, que o artigo 18.o da Carta prevê uma obrigação positiva dos Estados‑Membros de garantirem o direito ao asilo e que a concessão de uma proteção internacional é o único meio de evitar o risco de violação do artigo 3.o da CEDH e do artigo 4.o da Carta. A este respeito, denunciam que, na recusa dos seus pedidos de visto, não foi tomado em conta o invocado risco de violação do artigo 3.o da CEDH. Ora, uma vez que as próprias autoridades belgas consideraram que a situação dos recorrentes no processo principal constitui uma situação humanitária excecional, atendendo às razões humanitárias e às obrigações internacionais que incumbem à Bélgica, está demonstrado «o estado de necessidade» exigido pelo artigo 25.o do Código de Vistos. Consequentemente, o direito à emissão dos vistos requeridos pelos recorrentes no processo principal foi adquirido com base no direito da União. A este respeito, os recorrentes no processo principal fazem referência ao acórdão de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862).

35.

Em contrapartida, o Estado belga, recorrido no processo principal, considera que não é de modo algum obrigado, com base no artigo 3.o da CEDH ou do artigo 33.o da Convenção de Genebra, a admitir no seu território uma pessoa estrangeira, sendo a única obrigação que lhe incumbe a este respeito a de não repulsão.

36.

O órgão jurisdicional de reenvio afirma, antes de mais, que, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para que os recorrentes no processo principal possam invocar o artigo 3.o da CEDH, devem encontrar‑se sob a jurisdição belga, como decorre do artigo 1.o da CEDH. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem precisou que o conceito de «jurisdição» é principalmente territorial e, em princípio, a jurisdição é exercida em todo o território de um Estado. Contudo, a questão que se coloca é saber se a aplicação da política de vistos e a tomada de decisões quanto a pedidos de visto podem ser consideradas como o exercício de uma jurisdição efetiva. O mesmo se aplica quanto à questão de saber se um direito de entrada decorre, como corolário do princípio da não repulsão e da obrigação de tomar medidas preventivas, nomeadamente do artigo 33.o da Convenção de Genebra.

37.

Seguidamente, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a aplicação do artigo 4.o da Carta, que corresponde ao artigo 3.o da CEDH, não depende do exercício de uma jurisdição, mas da aplicação do direito da União. Tendo os pedidos de visto em questão sido apresentados com base no artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos, as decisões controvertidas foram tomadas ao abrigo de um regulamento da União Europeia e aplicam o direito da União. Contudo, o alcance territorial do direito de asilo consagrado no artigo 18.o da Carta é controverso, atendendo ao artigo 3.o da Diretiva 2013/32.

38.

Por último, à luz da redação do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre a extensão da margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros. Com efeito, atendendo à natureza vinculativa das obrigações internacionais, em conjugação com a Carta, poderia excluir‑se qualquer margem de apreciação a este respeito.

39.

Foi nestas condições que o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

As ‘obrigações internacionais’, a que se refere o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do [Código de Vistos], abrangem todos os direitos garantidos pela [Carta], incluindo, em especial, os garantidos pelos artigos 4.° e 18.° e compreendem também as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros, nos termos da [CEDH] e do artigo 33.o da [Convenção de Genebra]?

2.

Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, deve o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do [Código de Vistos], ser interpretado no sentido de que, sem prejuízo da margem de apreciação de que dispõe tendo em conta as circunstâncias em causa, o Estado‑Membro a que foi submetido um pedido de visto com validade territorial limitada é obrigado a emitir o visto pedido, quando exista um risco de violação do artigo 4.o e/ou do artigo 18.o da [Carta], ou de outra obrigação internacional a que está vinculado? A existência de vínculos entre o requerente e o Estado a que foi submetido o pedido de visto (por exemplo, relações familiares, famílias de acolhimento, fiadores e patrocinadores, etc.) influencia a resposta a esta questão?»

40.

Na sequência do pedido o órgão jurisdicional de reenvio, e em conformidade com o artigo 108.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a Secção designada decidiu submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente. Além disso, nos termos do artigo 113.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, a Secção designada pediu que o processo fosse remetido à Grande Secção.

41.

As questões prejudiciais foram objeto de observações escritas por parte dos recorrentes no processo principal, do Governo belga e da Comissão.

42.

Estas partes interessadas, bem como os Governos checo, dinamarquês, alemão, estónio, francês, húngaro, maltês, neerlandês, austríaco, polaco, esloveno, eslovaco e finlandês apresentaram alegações orais na audiência de 30 de janeiro de 2017.

Análise

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

43.

A título principal, o Governo belga alega que o Tribunal de Justiça não tem competência para responder às questões prejudiciais, uma vez que a situação dos recorrentes no processo principal não é abrangida pelo direito da União.

44.

Este governo observa, em primeiro lugar, que o Código de Vistos rege apenas os vistos com duração máxima de três meses num período de seis meses («vistos de curta duração») ( 8 ) e que o artigo 32.o, n.o 1, alínea b), deste código obriga os Estados‑Membros a recusar o visto se existirem dúvidas razoáveis quanto à intenção do requerente de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar. Segundo o Governo belga, o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos derroga simplesmente a obrigação de recusar um visto com base no artigo 32.o, n.o 1, deste código e estabelece, de modo exaustivo, os motivos de recusa que os Estados‑Membros são autorizados a derrogar. Estes motivos de recusa abrangem apenas os casos em que o requerente do visto não preenche as condições de entrada estabelecidas pelo artigo 6.o, n.o 1, alíneas a), c), d) e e), do Código das Fronteiras Schengen, para as quais remete o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), i), do Código de Vistos, e são enunciados no artigo 32.o, n.o 1, alínea a), i), ii) iii) e vi), deste código. Daqui decorre, segundo o Governo belga, que, embora o artigo 32.o do Código de Vistos se aplique, em conformidade com a sua redação, «sem prejuízo do n.o 1 do artigo 25.o», deste código, esta exclusão não abrange o motivo de recusa previsto no artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do referido código ( 9 ). Um visto com validade territorial limitada só poderia, portanto, ser emitido para uma estada não superior a três meses. Remetendo para os acórdãos de 8 de novembro de 2012, Iida (C‑40/11, EU:C:2012:691) e de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291), o Governo belga considera que, uma vez que os recorrentes no processo principal não preenchem as condições exigidas para a concessão de um visto de curta duração com base no Código de Vistos, a sua situação não é regida pelo direito da União.

45.

Em segundo lugar, este governo alega que nem as disposições em matéria de asilo nem as disposições da Carta permitem estabelecer uma ligação entre a situação dos recorrentes no processo principal e o direito da União. Com efeito, antes de mais, o regime comum de asilo europeu aplica‑se apenas, nos termos do artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2013/32, aos pedidos apresentados no território dos Estados‑Membros ou nas suas fronteiras, com exclusão dos pedidos de asilo diplomático ou territorial apresentados em representações dos Estados‑Membros. Em seguida, uma vez que não é aplicado o direito da União no que respeita à situação dos recorrentes no processo principal, a Carta não pode ser aplicada. Por último, o Governo belga salienta que não foi adotado pela União nenhum ato legislativo quanto às condições de entrada e de estada superior a três meses dos nacionais de países terceiros por razões humanitárias. Os Estados‑Membros mantêm, portanto, a sua competência nesta matéria.

46.

Sem invocar a incompetência do Tribunal de Justiça, a Comissão apresenta argumentos análogos aos expostos no n.o 44 das presentes conclusões. Na sua opinião, um pedido de visto com o objetivo de entrar no território de um Estado‑Membro para aí requerer proteção internacional não pode ser entendido como um pedido de visto de curta duração. Tal pedido deve ser tratado como um pedido de visto de longa duração, nos termos do direito nacional.

47.

A maioria dos governos que participaram na audiência no Tribunal de Justiça aderiu à posição do Governo belga e da Comissão, concluindo pela inaplicabilidade do Código de Vistos nas circunstâncias do processo principal.

48.

Na minha opinião, todas estas objeções devem ser rejeitadas.

49.

Resulta dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio — e foi confirmado pelo Governo belga na audiência – que os recorrentes no processo principal requereram, ao abrigo do Código de Vistos, a emissão de um visto de curta duração com validade territorial limitada, a saber, uma autorização de entrada no território belga para uma duração total não superior a 90 dias. Resulta igualmente dos elementos dos autos que as autoridades competentes qualificaram, examinaram e trataram os pedidos dos recorrentes no processo principal, durante todo o procedimento, como pedidos de visto ao abrigo do Código de Vistos. Estes pedidos foram necessariamente considerados admissíveis nos termos do artigo 19.o deste código ( 10 ), uma vez que as decisões de recusa de emissão dos vistos requeridos foram tomadas em conformidade com o artigo 23.o, n.o 4, alínea c), do referido código. Por outro lado, as decisões controvertidas foram redigidas utilizando um «formulário de decisão visto de curta duração» e a recusa de emissão dos vistos baseou‑se num dos motivos indicados no artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos.

50.

A intenção dos recorrentes no processo principal de pedirem o estatuto de refugiados depois de entrarem no território belga não pode alterara a natureza nem o objeto dos seus pedidos. Em particular, não pode transformá‑los em pedidos de visto de longa duração nem colocar tais pedidos fora do âmbito de aplicação do Código de Vistos e do direito da União, ao contrário do que vários Estados‑Membros sustentaram na audiência no Tribunal de Justiça.

51.

Consoante a interpretação que o Tribunal de Justiça vier a dar ao artigo 25.o do Código de Vistos e à sua articulação com o artigo 32.o deste código ( 11 ), tal intenção poderia, quando muito, constituir um motivo de recusa dos pedidos dos recorrentes no processo principal, em aplicação das regras do referido código, mas não decerto um motivo de não aplicação do código.

52.

Ora, é precisamente a legalidade de tal recusa que constitui o objeto do processo principal e que está no cerne das questões submetidas a título prejudicial pelo órgão jurisdicional de reenvio, as quais visam obter uma clarificação quanto às condições de aplicação do artigo 25.o do Código de Vistos em circunstâncias como as do processo principal.

53.

Por outro lado, observo que os recorrentes no processo principal não tinham qualquer necessidade de pedir vistos de longa duração. Com efeito, se tivessem sido autorizados a entrar no território belga, e admitindo que, depois de terem apresentado pedidos de asilo, estes não tivessem sido tratados antes de caducarem os seus vistos de curta duração, o seu direito a permanecer nesse território por mais de 90 dias teria decorrido do seu estatuto de requerentes de asilo, nos termos do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2013/32. Consequentemente, este direito teria resultado do seu estatuto de beneficiários de proteção internacional.

54.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é manifestamente competente para responder às questões submetidas pelo Conseil du contentieux des étrangers.

55.

Os acórdãos de 8 de novembro de 2012, Iida (C‑40/11, EU:C:2012:691) e de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291), referidos pelo Governo belga, não permitem apoiar as alegações de incompetência do Tribunal de Justiça aduzidas por esse governo.

56.

Antes de mais, nesses acórdãos, o Tribunal de Justiça não se declarou incompetente, mas respondeu às questões que lhe foram submetidas.

57.

Seguidamente, o presente processo distingue‑se claramente dos processos que deram origem aos referidos acórdãos, em que o Tribunal de Justiça concluiu que a situação dos recorrentes nos litígios nos respetivos processos principais não era regulada pelo direito da União e não tinha nenhum elemento de conexão com tal direito ( 12 ). Mais precisamente, o Tribunal de Justiça declarou, nesses acórdãos, que os referidos recorrentes não podiam ser considerados beneficiários da Diretiva 2004/38/CE ( 13 ), nem, no que respeita aos recorrentes no processo principal que deu origem ao acórdão de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291), da Diretiva 2003/86 ( 14 ) e, consequentemente, que estes atos não lhes eram aplicáveis ( 15 ).

58.

Em contrapartida, no presente processo, os recorrentes no processo principal apresentaram pedidos de visto de curta duração ao abrigo de um regulamento da União que harmoniza os procedimentos e as condições de emissão de tais vistos e que lhes é aplicável. A sua situação é, com efeito, abrangida pelo Código de Vistos, tanto ratione personae como ratione materiae.

59.

Por um lado, o Código de Vistos aplica‑se, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 2, a «todos os nacionais de países terceiros que devam possuir um visto quando atravessam as fronteiras externas dos Estados‑Membros, nos termos do Regulamento […] n.o 539/2001» ( 16 ), que, nomeadamente, fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto. Ora, a Síria é um desses países terceiros ( 17 ). Enquanto cidadãos sírios, os recorrentes no processo principal estavam, portanto, obrigados a obter um visto para entrarem no território dos Estados‑Membros.

60.

Por outro lado, nem o artigo 1.o, n.o 1, do Código de Vistos, que enuncia o objetivo deste código, nem o seu artigo 2.o, ponto 2), que define o conceito de «visto», fazem referência aos motivos pelos quais o visto é pedido. Estas disposições descrevem esse objetivo e definem esse conceito referindo‑se apenas à duração da autorização de estada que pode ser requerida e concedida. As razões que justificaram o pedido de visto só são tomadas em conta para efeitos da aplicação do artigo 25.o do Código de Vistos e na apreciação da existência dos motivos de recusa previstos no artigo 32.o deste código, ou seja, numa fase adiantada do tratamento do pedido de visto. Esta interpretação é corroborada pelo artigo 19.o do Código de Vistos. Nos termos do n.o 2 deste artigo, o pedido de visto «é admissível» se o consulado competente concluir que estão preenchidas as condições referidas no n.o 1 do referido artigo. Ora, entre estas condições não figura a apresentação, pelo requerente, dos documentos comprovativos enumerados no artigo 14.o do Código de Vistos, nomeadamente os previstos nas alíneas a) e d) deste artigo, a saber, respetivamente, os documentos comprovativos do objetivo da viagem e as informações que permitam avaliar a intenção do requerente de sair do território dos Estados‑Membros antes de caducar o visto requerido. Daqui decorre que os pedidos dos recorrentes no processo principal, destinados a obter um visto de duração limitada a 90 dias, são abrangidos pelo âmbito de aplicação material do Código de Vistos, independentemente das razões pelas quais foram apresentados, e foram corretamente considerados admissíveis pelas autoridades consulares belgas nos termos do artigo 19.o deste código.

61.

A situação dos recorrentes no processo principal é, portanto, regida pelo Código de Vistos e, consequentemente, pelo direito da União, incluindo no caso em que se devesse concluir que os seus pedidos foram corretamente recusados. Com efeito, como o Tribunal de Justiça esclareceu no acórdão de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862), os motivos de recusa de visto são fixados exaustivamente pelo Código de Vistos ( 18 ) e devem ser aplicados respeitando as disposições pertinentes do mesmo.

62.

Esta conclusão não é posta em causa pela alegação do Governo belga, aduzida igualmente pela Comissão e por vários Estados‑Membros na audiência, segundo a qual o Código de Vistos não permite a apresentação de um pedido de visto baseado no seu artigo 25.o

63.

Antes de mais, tal argumento, que é, de resto, excessivamente formalista, é contrário ao artigo 23.o, n.o 4, alínea b), do Código de Vistos, que inclui, entre as decisões que podem ser tomadas quanto a um «pedido» de visto declarado admissível nos termos do artigo 19.o deste código, a decisão de emitir um visto com validade territorial limitada, nos termos do artigo 25.o do referido código.

64.

Seguidamente, observo que, no anexo I do Código de Vistos, consta um único formulário harmonizado de pedido. O cabeçalho deste formulário refere‑se genericamente a um «Pedido de Visto Schengen», sem especificar o tipo de visto, entre os regidos por este código, – a saber, visto uniforme, de trânsito ou com validade territorial limitada – para o qual o pedido é apresentado. É só ao preencher o ponto 21 deste formulário, intitulado «Principal(ais) objetivo(s) da viagem», no qual figuram várias quadrículas, correspondendo cada uma a um motivo de viagem (estudos, turismo, visita oficial, razões médicas, etc.), que o requerente fornece pormenores quanto ao tipo de visto pedido (por exemplo, ao assinalar a quadrícula «trânsito aeroportuário» se pedir um visto desse tipo). Uma vez que esta lista de motivos não é exaustiva [a última quadrícula corresponde à rubrica «outros (especificar)»], o requerente pode perfeitamente, à semelhança dos recorrentes no processo principal, indicar que o seu pedido de visto se funda em razões humanitárias, nos termos do artigo 25.o do Código de Vistos. Isto é aliás confirmado pela circunstância de, na parte do referido formulário reservada à administração, sob a rubrica «Decisão relativa ao visto», figurar igualmente, entre as opções possíveis em caso de decisão positiva, a emissão de um visto com validade territorial limitada.

65.

Em sentido mais geral, observo que nada no Código de Vistos proíbe um requerente de invocar, no momento da apresentação do seu pedido, a aplicação a seu favor do artigo 25.o deste código, quando não satisfaça uma das condições de entrada previstas no artigo 6.o, n.o 1, alíneas a), c), d) e e), do Código das Fronteiras Schengen ou quando considere que a sua situação é abrangida pela primeira disposição.

66.

No que respeita às circunstâncias do processo principal, recordo que resulta dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio, e foi confirmado pelo Governo belga na audiência, que os recorrentes no processo principal apresentaram os seus pedidos de visto em conformidade com o prescrito no Código de Vistos, apresentando tanto um formulário harmonizado de pedido do tipo do constante do anexo I deste código como os documentos comprovativos que o devem acompanhar.

67.

Por último, mesmo admitindo, como sustentam, nomeadamente, o Governo belga e a Comissão, que o Código de Vistos não permite apresentar um pedido de visto nos termos do seu artigo 25.o, tal circunstância não bastaria para colocar os recorrentes no processo principal fora do âmbito de aplicação do Código de Vistos, uma vez que requereram a emissão de um visto cujos procedimentos e condições de concessão são regidos por este código e que os seus pedidos foram tratados e recusados com base nas disposições do referido código.

68.

À luz das considerações precedentes, não é necessário responder aos argumentos do Governo belga expostos no n.o 45 das presentes conclusões, relativos à falta de pertinência das disposições em matéria de asilo, atendendo aos factos em causa no processo principal ( 19 ).

69.

Em contrapartida, os argumentos do Governo belga, bem como os da Comissão e os dos Estados‑Membros presentes na audiência relativos à aplicabilidade da Carta nas circunstâncias do processo principal serão examinados no contexto da análise da primeira questão prejudicial. A este respeito, quero esclarecer que foi essencialmente por uma questão de clareza, e embora correndo o risco de me repetir um pouco, que preferi tratar os argumentos relativos à incompetência do Tribunal de Justiça e à inaplicabilidade do Código de Vistos distintamente daqueles que, sobrepondo‑se em grande parte aos primeiros, respeitam à aplicabilidade da Carta e à aplicação do direito da União.

70.

Decorre do conjunto das observações anteriores que, ao contrário do que sustenta o Governo belga, a situação dos recorrentes no processo principal é efetivamente abrangida pelo direito da União. Consequentemente, o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões submetidas pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros).

Quanto à primeira questão prejudicial

71.

A primeira questão prejudicial comporta duas partes. Na primeira parte, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se a expressão «obrigações internacionais», constante do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, abrange os direitos garantidos pela Carta, nomeadamente, os enunciados nos seus artigos 4.° e 18.° Na segunda parte, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se esta expressão abrange as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros nos termos da CEDH e do artigo 33.o da Convenção de Genebra.

72.

Na minha opinião, não há muitas dúvidas quanto à resposta que deve ser dada à primeira parte da questão.

73.

A União dispõe de uma ordem jurídica própria, distinta da ordem internacional. Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, a Carta faz parte do direito primário da União e é, como tal, uma fonte do direito da União. Quando estão reunidas as condições para a sua aplicação, os Estados‑Membros são obrigados a respeitá‑la por força da sua adesão à União. Os imperativos que decorrem da Carta não se encontram, portanto, entre as «obrigações internacionais» previstas no artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, independentemente do alcance que deva ser dado a esta expressão.

74.

Tal não significa, todavia, que as decisões que os Estados‑Membros adotam com base nessa disposição não devam ser tomadas no respeito das normas da Carta.

75.

O âmbito de aplicação da Carta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual as disposições da Carta têm por destinatários os Estados‑Membros quando estes apliquem o direito da União. Os direitos fundamentais garantidos pela Carta devem, consequentemente, ser respeitados quando uma legislação nacional – e, mais genericamente, a ação do Estado‑Membro em questão — é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União ( 20 ).

76.

Por conseguinte, importa verificar se um Estado‑Membro que, em circunstâncias como as do processo principal, adota uma decisão pela qual recusa a emissão de um visto com validade territorial limitada requerido por razões humanitárias nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, aplica o direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta.

77.

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que as condições de emissão de tais vistos e o regime a que os mesmos estão sujeitos estão previstos por um regulamento da União, cujo objetivo se inscreve no desenvolvimento, através da criação de um «corpus comum» de normas, de uma política comum de vistos destinada a «facilitar as deslocações legítimas e a combater a imigração ilegal através de uma maior harmonização das legislações nacionais e das práticas de atuação a nível das missões consulares locais» ( 21 ).

78.

Nos termos do seu artigo 1.o, n.os 1 e 2, o Código de Vistos estabelece «os procedimentos e condições para a emissão de vistos de trânsito ou de estada prevista no território dos Estados‑Membros não superior a 90 dias em qualquer período de 180 dias» e, como já recordei atrás, aplica‑se a todos os nacionais de países terceiros que devam possuir um visto quando atravessam as fronteiras externas dos Estados‑Membros, nos termos do Regulamento n.o 539/2001 ( 22 ).

79.

Nos termos do artigo 2.o, ponto 2, alínea a), do Código de Vistos, o conceito de «visto», para efeitos deste código, é definido como «uma autorização emitida por um Estado‑Membro» para efeitos de «trânsito ou estada prevista no território dos Estados‑Membros de duração não superior a 90 dias em qualquer período de 180 dias». Este conceito abrange igualmente o «visto com validade territorial limitada», que é regido pelo artigo 25.o do Código de Vistos. Abstraindo das suas condições de emissão (e de recusa de emissão), este visto distingue‑se do «vista uniforme», definido no artigo 2.o, ponto 3, deste código, apenas no que respeita ao alcance territorial da autorização de entrada e de estada que concede, sendo este limitado, como indica o ponto 4 deste mesmo artigo 2.o, ao território de um ou mais Estados‑Membros.

80.

Daqui decorre que, ao emitir ou ao recusar a emissão de um visto com validade territorial limitada com base no artigo 25.o do Código de Vistos, as autoridades dos Estados‑Membros adotam uma decisão relativa a um documento que autoriza a passagem das fronteiras externas dos Estados‑Membros, que está sujeito a um regime harmonizado e agem, consequentemente, no âmbito e em aplicação do direito da União.

81.

Esta conclusão não pode ser posta em causa pelo eventual reconhecimento de um poder de apreciação do Estado‑Membro em questão quando aplica o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos.

82.

Com efeito, a circunstância de um regulamento da União reconhecer um poder de apreciação aos Estados‑Membros não obsta, como o Tribunal de Justiça esclareceu no seu acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 68 e 69), a que os atos adotados no exercício desse poder se inscrevam na aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, quando o referido poder de apreciação faz parte integrante do sistema normativo instaurado pelo regulamento em causa e deve ser exercido respeitando as outras disposições do mesmo ( 23 ).

83.

Ora, mesmo admitindo que o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deixa aos Estados‑Membros um poder de apreciação quanto à emissão de vistos por razões humanitárias — questão que será examinada no âmbito da análise da segunda questão prejudicial —, há que constatar que tais vistos se inscrevem na política comum de vistos e que são regidos por um regulamento da União, que estabelece as respetivas regras de competência, as condições e as modalidades da sua emissão, o seu alcance, bem como as causas de nulidade ou de revogação ( 24 ). Consequentemente, as decisões tomadas pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros com base na referida disposição constituem uma aplicação de procedimentos previstos pelo Código de Vistos e o eventual poder de apreciação que estas autoridades são chamadas a exercer ao adotarem tais decisões faz parte integrante do sistema normativo instaurado por este código.

84.

Nestas circunstâncias, há que concluir que, ao adotarem uma decisão nos termos do artigo 25.o do Código de Vistos, as autoridades de um Estado‑Membro aplicam o direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta e são, portanto, obrigadas a respeitar os direitos por esta garantidos.

85.

Esta conclusão decorre, de resto, do próprio texto do Código de Vistos, cujo considerando 29 coloca este código sob a égide dos direitos fundamentais e dos princípios da Carta ( 25 ). No prefácio do seu Manual relativo ao tratamento dos pedidos de visto e à alteração dos vistos emitidos ( 26 ) – que visa garantir uma aplicação harmonizada, nomeadamente, das disposições do Código de Vistos – a Comissão confirma este imperativo de respeito dos direitos fundamentais, salientando que estes direitos, conforme consagrados, nomeadamente, na Carta, devem ser garantidos a qualquer pessoa que peça um visto e que «o tratamento dos pedidos de visto deve […] respeitar plenamente a proibição de tratamentos desumanos e degradantes e a proibição de discriminação consagradas, respetivamente, nos artigos 3.° e 14.° da [CEDH] e nos artigos 4.° e 21.° da [Carta]».

86.

No que respeita, em segundo lugar, às circunstâncias do processo principal, tive já a oportunidade de salientar que decorre dos elementos dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio que os recorrentes no processo principal requereram, ao apresentarem os seus pedidos de visto, que lhes fosse aplicado o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, que as decisões controvertidas se baseiam no motivo de recusa de visto previsto no artigo 32.o, n.o 1, alínea b), in fine, do Código de Vistos, e que esta recusa foi proferida depois de se ter constatado que não estavam preenchidas as condições de emissão de vistos humanitários nos termos do artigo 25.o deste código, nomeadamente, a natureza excecional do procedimento e o caráter temporário da estada prevista.

87.

Por conseguinte, é ponto assente que, no processo principal, foi solicitada a intervenção das autoridades belgas e estas agiram com base e em aplicação das disposições do Código de Vistos.

88.

Consequentemente, as decisões controvertidas constituem uma aplicação deste código e, portanto, do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. Ao adotarem estas decisões, as referidas autoridades estavam obrigadas a respeitar os direitos garantidos pela mesma.

89.

Importa ainda salientar que os direitos fundamentais reconhecidos pela Carta, cujo respeito é imposto a todas as autoridades dos Estados‑Membros que atuem no âmbito do direito da União, são garantidos aos destinatários dos atos adotados por tais autoridades independentemente de qualquer critério de territorialidade.

90.

Como já demonstrei nos n.os 49 a 70 e 76 a 88 das presentes conclusões, a situação dos recorrentes no processo principal é abrangida pelo direito da União e os atos adotados a seu respeito constituem uma aplicação deste direito na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. A situação dos recorrentes no processo principal recai, portanto, no âmbito de aplicação da Carta, independentemente da circunstância de não se encontrarem no território de um Estado‑Membro e do facto de não terem um vínculo com tal território.

91.

O Tribunal de Justiça é muito claro a este respeito na sua jurisprudência: «[a] aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta» e «não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados» ( 27 ). Existe, portanto, um paralelismo entre a ação da União, quer através das suas instituições quer por intermédio dos seus Estados‑Membros, e a aplicação da Carta. Interrogada a este respeito pelo Tribunal de Justiça na audiência, a Comissão concordou com esta conclusão ( 28 ).

92.

Ora, caso se devesse considerar que a Carta não se aplica quando uma instituição ou um Estado‑Membro, ao aplicarem o direito da União, agem extraterritorialmente, tal equivaleria a afirmar que situações abrangidas pelo direito da União ficariam excluídas da aplicação dos direitos fundamentais da União, quebrando esse paralelismo. É manifesto que tal interpretação teria consequências que ultrapassariam o mero domínio da política de vistos.

93.

Por outro lado, e limitando‑me a este domínio, se a aplicação da Carta estivesse subordinada a um critério de vínculo territorial com a União (ou com um dos seus Estados‑Membros), além do critério do vínculo com o direito da União, a aplicação do conjunto do regime comum dos vistos previsto pelo Código de Vistos escaparia muito provavelmente ao respeito dos direitos previstos pela Carta, violando assim não só o princípio que rege a aplicação da mesma, como também a vontade clara do legislador da União, conforme expressa no considerando 29 do Código de Vistos, num momento em que a Carta não tinha ainda força vinculativa.

94.

Pelas mesmas razões, a aplicação da Carta à situação dos recorrentes no processo principal também não depende do exercício de uma qualquer forma de autoridade e/ou de controlo por parte do Estado belga em relação aos recorrentes, ao contrário do que prevê, relativamente à CEDH, o artigo 1.o desta, nos termos do qual os Estados partes nesta Convenção reconhecem os direitos e as liberdades definidos no título I da mesma «a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição» ( 29 ).

95.

Segundo a argumentação do Governo belga — a qual aderiram alguns Estados‑Membros na audiência — uma disposição análoga ao artigo 1.o da CEDH seria igualmente aplicável no sistema da Carta, pelo menos no que respeita aos direitos nela consagrados que correspondem aos garantidos pela CEDH. O Governo belga recorda que, nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, lido à luz das anotações relativas a este artigo ( 30 ), quando os direitos nela contidos correspondam a direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção, incluindo as restrições admitidas. Segundo este governo, o princípio inscrito no artigo 1.o da CEDH faz parte destas restrições e limita o âmbito de aplicação, nomeadamente, do artigo 4.o da Carta, que corresponde ao artigo 3.o da CEDH. Daí decorre que, uma vez que os recorrentes não estão sujeitos à jurisdição do Estado belga, a sua situação não é abrangida por esta disposição.

96.

São várias as razões que se opõem à interpretação proposta pelo Governo belga.

97.

Em primeiro lugar, o artigo 1.o da CEDH contém uma «cláusula de jurisdição» que funciona como critério de ativação da responsabilidade dos Estados partes da CEDH por eventuais violações das disposições desta Convenção. Ora, tal cláusula não consta da Carta. Como já salientei atrás, o único critério que condiciona a aplicação desta, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, está inscrito no seu artigo 51.o, n.o 1. Além disso, embora a referida cláusula condicione a aplicação da CEDH, não respeita, em contrapartida, ao «sentido» e ao «âmbito» que deve ser dado às suas disposições, a que se refere o artigo 52.o, n.o 3, da Carta.

98.

Em segundo lugar, a referência, feita nas anotações relativas ao artigo 52.o, n.o 3, da Carta, às «restrições» aos direitos nela previstos, deve ser entendida no sentido de que o direito da União não pode aplicar aos direitos da Carta que correspondem aos da CEDH restrições que não seriam admitidas no sistema desta última ( 31 ). Por outras palavras, esta disposição consagra a regra segundo a qual o direito da CEDH prevalece quando garanta uma proteção dos direitos fundamentais a um nível mais elevado.

99.

Em terceiro lugar, o artigo 52.o, n.o 3, in fine, da Carta precisa que a equivalência de sentido e de âmbito entre os direitos da Carta e os direito correspondentes da CEDH «não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla». Daqui decorre que o nível de proteção assegurado pela CEDH constitui apenas um nível mínimo, abaixo do qual a União não pode descer, podendo, em contrapartida, dar um âmbito mais amplo aos direitos garantidos pela Carta que correspondem aos da CEDH ( 32 ). Ora, a argumentação do Governo belga equivale, em substância, a afirmar que a União é obrigada a aplicar a tais direitos as mesmas restrições que as admitidas no sistema da CEDH para os direitos garantidos por esta Convenção. É manifesto que tal tese privaria a última frase do artigo 52.o, n.o 3, da Carta de qualquer efeito útil.

100.

Em quarto lugar, não é possível inferir da redação do artigo 4.o da Carta, que está formulado em termos universais, qualquer restrição quanto à situação territorial ou jurídica das pessoas visadas no referido artigo.

101.

Por último, a interpretação proposta pelo Governo belga provém de uma confusão entre a questão da aplicabilidade da Carta como parâmetro da legalidade dos atos adotados por um Estado‑Membro nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos e a do conteúdo e do alcance das obrigações que incumbem aos Estados‑Membros por força das disposições da Carta ao tratarem de um pedido de visto à luz desta disposição ( 33 ).

102.

Abordarei agora a segunda parte da primeira questão prejudicial, na qual o órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a esclarecer se a expressão «obrigações internacionais», constante do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, abrange as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros nos termos da CEDH e do artigo 33.o da Convenção de Genebra.

103.

Considero que não é útil para a resolução do litígio no processo principal que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre esta questão. Com efeito, independentemente do sentido e do alcance que se deva dar à referida expressão, é incontestável que a CEDH e a Convenção de Genebra constituem tanto um parâmetro de interpretação do direito da União em matéria de entrada, de estada e de asilo, como um parâmetro da legalidade da ação dos Estados‑Membros quando aplicam esse direito.

104.

O órgão jurisdicional de reenvio duvida, contudo, da aplicabilidade tanto da CEDH como da Convenção de Genebra à situação dos recorrentes no processo principal, por estes não satisfazerem o critério da territorialidade que condiciona a aplicação destes dois diplomas ( 34 ). Nas suas observações escritas, tanto o Governo belga como a Comissão defendem tal inaplicabilidade.

105.

As considerações expostas ao longo da análise da primeira parte desta primeira questão prejudicial levam‑me a concluir que o Tribunal de Justiça também não tem necessidade de se pronunciar sobre esse aspeto.

106.

Com efeito, resulta dessas considerações que, quando adotaram as decisões controvertidas, as autoridades belgas estavam obrigadas a respeitar as disposições da Carta, nomeadamente os seus artigos 4.° e 18.°, evocados pelo órgão jurisdicional de reenvio.

107.

Dado que os artigos 4.° e 18.° da Carta garantem uma proteção pelo menos equivalente à assegurada pelo artigo 3.o da CEDH e pelo artigo 33.o da Convenção de Genebra, não é necessário examinar se estes atos são aplicáveis à situação dos recorrentes no processo principal.

108.

Com base no conjunto das considerações precedentes, proponho que se responda à primeira questão prejudicial submetida pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) que o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deve ser interpretado no sentido de que a expressão «obrigações internacionais» constante do texto desta disposição não abrange a Carta, mas que o Estados‑Membros estão obrigados a respeitá‑la quando examinam, com base nessa disposição, um pedido de visto em apoio do qual são invocadas razões humanitárias, bem como quando adotam uma decisão sobre tal pedido.

Quanto à segunda questão prejudicial

109.

Com a sua segunda questão prejudicial, admitindo embora que o Estado‑Membro ao qual é requerida a emissão de um visto humanitário nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos goza de uma margem de apreciação das circunstâncias de cada processo, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, perante uma situação em que existe um risco comprovado de violação do artigo 4.o e/ou do artigo 18.o da Carta, esse Estado‑Membro não seria obrigado a emitir o referido visto. Também se interroga sobre se a existência de vínculos entre a pessoa que requer a aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos e o Estado‑Membro ao qual foi apresentado o pedido (por exemplo, relações familiares, famílias de acolhimento, fiadores e patrocinadores, etc.) influencia a resposta a esta questão.

110.

Pelas razões que adiante exporei, considero que se deve responder a esta questão em sentido afirmativo, independentemente da existência ou não de vínculos entre a pessoa e o Estado‑Membro ao qual foi apresentado o pedido.

111.

Nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, um visto com validade territorial limitada é emitido excecionalmente sempre que, por razões humanitárias, um Estado‑Membro considere necessário derrogar o princípio do respeito das condições de entrada previstas no artigo 6.o, n.o 1, alíneas a), c), d) e e), do Código das Fronteiras Schengen ( 35 ).

112.

Como já indiquei, o Governo belga sustenta que esta disposição só permite, a priori, derrogar, em substância, os motivos de recusa de visto previstos no artigo 32.o, n.o 1, alínea a), i), ii), iii) e vi), do Código de Vistos e não os motivos enumerado no artigo 32.o, n.o 1, alínea b), deste código. O Governo belga retira daí a conclusão que o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos não pode permitir a emissão de um visto territorialmente limitado a pessoas que não tenham a intenção de sair do seu território antes de caducar o visto requerido.

113.

Na minha opinião, esta objeção deve ser rejeitada.

114.

Como o Governo belga reconhece, resulta da redação do artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos que esta disposição se aplica «sem prejuízo» do artigo 25.o, n.o 1, deste código. Consequentemente, o motivo de recusa de visto, indicado no artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos, não obsta, em si, a que um Estado‑Membro aplique o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos.

115.

Isto é lógico. O artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos diz respeito aos casos de recusa de emissão de um visto quando existam «dúvidas razoáveis quanto à autenticidade dos documentos comprovativos apresentados pelo requerente ou à veracidade do seu conteúdo, à fiabilidade das declarações do requerente ou à sua intenção de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar». Ora, não há qualquer necessidade de indicar explicitamente que o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos permite derrogar um caso de recusa de emissão de um visto baseado em «dúvidas razoáveis quanto à autenticidade dos documentos comprovativos» quando este artigo autoriza já expressamente um Estado‑Membro a emitir um visto limitado territorialmente nos casos em que o requerente nem sequer está na posse de um documento de viagem válido que autorize o seu titular a passar a fronteira [condição do artigo 6.o, n.o 1, alínea a), do Código das Fronteiras Schengen]. De igual modo, se um Estado‑Membro tem a faculdade de aplicar o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos mesmo quando o nacional do país terceiro em questão não justifique de modo algum o objetivo e as condições da estada prevista [v. condição do artigo 6.o, n.o 1, alínea c), do Código das Fronteiras Schengen e motivo de recusa previsto no artigo 32.o, n.o 1, alínea a), ii)], ou quando esse nacional for, nomeadamente, considerado suscetível de perturbar a ordem pública ou a segurança pública [v. condição do artigo 6.o, n.o 1, alínea e), do Código das Fronteiras Schengen e o motivo de recusa previsto no artigo 32.o, n.o 1, alínea a), vi)], não vejo nenhuma razão pela qual fosse necessário indicar neste artigo que esta derrogação abrange igualmente os casos em que existam «dúvidas razoáveis» quanto à fiabilidade das declarações do requerente ou à sua intenção de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar. Trata‑se, em última análise, da aplicação do adágio «quem pode o mais, pode o menos».

116.

Ainda segundo esta lógica, importa também observar que, nos termos do artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos, um Estado‑Membro pode aplicar o artigo 25.o, n.o 1, deste código não obstante o motivo de recusa constante do artigo 32.o, n.o 1, alínea a), iv), do referido código, ou seja, não obstante a circunstância de a pessoa em questão já ter permanecido no território dos Estados‑Membros durante 90 dias num período de 180 dias. Se os Estados‑Membros estão autorizados a aplicar o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos numa situação em que a pessoa já permaneceu mais de 90 dias num período de 180 dias, devem, por maioria de razão, poder conceder um visto com validade territorial limitada a um nacional de um país terceiro relativamente ao qual existam dúvidas razoáveis quanto à sua intenção de sair do território antes de caducar o visto.

117.

Como já salientei, tal não altera a natureza do visto concedido, que continua a ser um visto de curta duração, em conformidade com o Código de Vistos ( 36 ). Este visto não confere um direito de entrada irrevogável, como prevê o artigo 30.o do Código de Vistos.

118.

Além disso, a própria Comissão reconhece no seu Manual relativo ao tratamento dos pedidos de visto e à alteração dos vistos emitidos ( 37 ) que o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos constitui a base jurídica que autoriza os Estados‑Membros, durante um mesmo período de 180 dias, a emitir um visto com validade territorial limitada de 90 dias, na sequência da emissão de um visto uniforme e, portanto, a atenuar a aplicação rigorosa dos motivos de recusa do artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos.

119.

Consequentemente, o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos permite aos Estados‑Membros, nas precisas condições que estabelece, a saber, nomeadamente, por razões humanitárias, afastar todos os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, alíneas a) e b), deste código. A intenção do legislador da União, conforme se reflete nestas disposições, é clara. A expressão «sem prejuízo do n.o 1 do artigo 25.o», constante do artigo 32.o do Código de Vistos, só pode ter um significado, a saber, precisamente, o de autorizar a aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), deste código e, portanto, a emissão de um visto com validade territorial limitada, não obstante os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, alíneas a) e b), do referido código.

120.

Esclarecido isto, importa agora perguntar se o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deve ser interpretado no sentido de que prevê uma simples faculdade dos Estados‑Membros de afastarem os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, alíneas a) e b), do Código de Vistos ou se, em certas circunstâncias, pode ir ao ponto de lhes impor tal medida e, assim, de os levar a emitir um visto com validade territorial limitada por razões humanitárias.

121.

Pelas razões que exporei adiante, sou de opinião que o direito da União se opõe a uma interpretação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos no sentido de que confere apenas aos Estados‑Membros uma simples faculdade de emitir tais vistos. A minha posição assenta quer na redação e na economia das disposições do Código de Vistos quer na necessidade de os Estados‑Membros, no exercício da sua margem de apreciação, respeitarem os direitos garantidos pela Carta quando aplicam as referidas disposições.

122.

Resulta do artigo 23.o, n.o 4, do Código de Vistos que este regula exaustivamente os tipos de atos que devem ser adotados quando são submetidos pedidos de visto aos Estados‑Membros. Trata‑se, no processo principal, de uma decisão de emitir um visto com validade territorial limitada, em conformidade com o artigo 25.o deste código, ou de uma recusa de emissão de tal visto, em conformidade com o artigo 32.o do referido código.

123.

Ora, do mesmo modo que as decisões de recusa de emissão de um visto devem ser adotadas no âmbito do quadro instituído pelo artigo 32.o do Código de Vistos ( 38 ), as decisões de emitir um visto com validade territorial limitada devem ser tomadas no âmbito do quadro instituído pelo artigo 25.o, n.o 1, deste código.

124.

Daqui decorre, também à luz da articulação do artigo 25.o, n.o 1, e do artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos que sublinhei atrás, que um Estado‑Membro, ao qual um nacional de um país terceiro tenha requerido a emissão de um visto com validade territorial limitada por razões humanitárias, não pode furtar‑se à obrigação de examinar as razões invocadas suscetíveis de afastar a aplicação dos motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos.

125.

Esta interpretação é corroborada pela redação do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos que precisa que o visto com validade territorial limitada «é emitido» quando as condições desta disposição estejam preenchidas. Nesta hipótese, a utilização do verbo ser no presente do indicativo, que se encontra nas outras versões linguísticas do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos ( 39 ), impõe ao Estado‑Membro que conceda o visto com validade territorial limitada requerido.

126.

Nesta fase do raciocínio, parece‑me portanto evidente que o Código de Vistos impõe, no mínimo, a um Estado‑Membro que examine as razões humanitárias invocadas por um nacional de um país terceiro para afastar a aplicação dos motivos de recusa previstos no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos, com o objetivo de obter o benefício da aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), deste código.

127.

Se, em resultado deste exame, o Estado‑Membro considerar que essas razões são procedentes, o Código de Vistos exige que conceda a esse nacional um visto com validade territorial limitada.

128.

Não se pode negar, é certo, que, atendendo à redação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, o Estado‑Membro requerido mantém uma margem de apreciação das razões humanitárias que exigem o afastamento da aplicação dos motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos e, consequentemente, a emissão do visto com validade territorial limitada.

129.

Contudo, como já tive a oportunidade de afirmar ( 40 ), uma vez que se inscreve no âmbito de aplicação das disposições do Código de Vistos, esta margem de apreciação é necessariamente enquadrada pelo direito da União.

130.

Por um lado, a definição e o alcance da própria expressão «razões humanitárias» não podem, na minha opinião, ser deixadas à completa discrição dos Estados‑Membros. Embora não seja definido pelo Código de Vistos, trata‑se de um conceito de direito da União, dado que o artigo 25.o, n.o 1, deste código não remete de forma alguma para o direito nacional dos Estados‑Membros. Por outro lado, o facto de o visto emitido nos termos do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos ser, em princípio, válido apenas no território do Estado‑Membro de emissão ( 41 ) não significa que as razões humanitárias devam ser exclusivas desse Estado‑Membro. Há que reconhecer que a expressão «razões humanitárias» é muito ampla e, na minha opinião, não pode, em especial, ser limitada a casos de assistência médica ou sanitária do nacional do país terceiro em questão ou de um seu familiar, do tipo dos expostos nas decisões controvertidas no processo principal e evocados pelo Governo belga na audiência no Tribunal de Justiça. A redação do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos não corrobora tal interpretação e reduzir as razões humanitárias a um estado de saúde débil ou à doença demonstraria uma extrema estreiteza de espírito. Sem pretender definir tais razões no âmbito das presentes conclusões, considero, nesta fase, que não há, em qualquer caso, sombra de dúvida de que os motivos invocados pelos recorrentes no processo principal perante as autoridades belgas, relativos à necessidade de escaparem ao conflito armado e à violência indiscriminada que assolam a Síria, em particular a cidade de Alepo, e de escaparem aos alegados atos de tortura e de perseguição, nomeadamente em razão da sua pertença a uma minoria religiosa, se inserem no âmbito de aplicação das razões humanitárias, igualmente na aceção do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos. Se assim não fosse, esta expressão ficaria privada de qualquer sentido. De resto, caso se aceitasse a tese «minimalista» do Governo belga, chagar‑se‑ia à consequência paradoxal de que quanto mais gritantes fossem as razões humanitárias, menos seriam abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos.

131.

Por outro lado, como já esclareci atrás, quando um Estado‑Membro é levado a adotar uma decisão com vista à recusa de emissão de um visto com validade territorial limitada com fundamento em que as razões humanitárias invocadas pelo interessado não necessitam de afastar os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos, esse Estado‑Membro aplica inquestionavelmente o direito da União. A margem de apreciação do Estado‑Membro requerido deve, portanto, ser exercida no respeito dos direitos garantidos pela Carta.

132.

Por outras palavras, para se manter dentro dos limites da sua margem de apreciação, o Estado‑Membro requerido deve chegar à conclusão de que, ao se recusar a deferir a aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, apesar das razões humanitárias expostas pelo nacional do país terceiro em causa, não viola os direitos enunciados na Carta. Se o Estado‑Membro chegar à conclusão inversa, deve afastar os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos e emitir o visto com validade territorial limitada, em conformidade com o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), deste código.

133.

A exigência do respeito dos direitos garantidos pela Carta não suscita, em princípio, nenhum problema especial quando o Estado‑Membro decide ativar o procedimento previsto no artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos atendendo às razões humanitárias da situação sobre a qual deve decidir.

134.

Pode não ser esse o caso na hipótese de recusa de concessão do visto e, consequentemente, da aplicação de um ou mais motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos.

135.

Nessa hipótese, há que determinar se a inexistência ou a recusa de tomada em consideração das razões humanitárias específicas de uma determinada situação ou a recusa de emissão de um visto com validade territorial limitada implica a violação pelo Estado‑Membro das obrigações que lhe incumbem por força da Carta.

136.

Importa insistir no facto de que esta exigência não priva o Estado‑Membro de qualquer margem de apreciação. Assim, parece‑me de excluir que a recusa de deferir um pedido para assistir ao funeral de um familiar falecido no território de um Estado‑Membro, por dolorosa que seja para o interessado, possa implicar uma violação de um direito garantido pela Carta.

137.

Não será assim, na minha opinião, se, atendendo às circunstâncias e às razões humanitárias em questão, a recusa de emissão do visto conduzir a expor o requerente a um risco real de violação dos direitos consagrados pela Carta, muito especialmente dos direitos que são de caráter absoluto, como os relativos à dignidade do ser humano (artigo 1.o da Carta), ao direito à vida (artigo 2.o da Carta), à integridade do ser humano (artigo 3.o da Carta) e à proibição da tortura e dos tratos desumanos ou degradantes (artigo 4.o da Carta) ( 42 ) e, mais ainda, quando há o risco de estes direitos serem violados relativamente a pessoas particularmente vulneráveis, como as crianças de tenra idade cujos interesses superiores devem ser primordialmente tomados em conta em todos os atos praticados por autoridades públicas, em conformidade com o artigo 24.o, n.o 2, da Carta. A este respeito, recordo ainda que, no acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 94 a 98), que tinha por objeto a determinação do Estado‑Membro responsável pelo tratamento de um pedido de asilo, o Tribunal de Justiça já admitiu que uma mera faculdade de um Estado‑Membro, prevista por um ato de direito derivado da União, se possa transformar numa verdadeira obrigação desse mesmo Estado‑Membro para garantir o respeito do artigo 4.o da Carta.

138.

Por conseguinte, se nos limitarmos ao exame do artigo 4.o da Carta, especificamente visado pela segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que recordar, como já o fiz atrás, que o direito constante deste artigo corresponde ao que é garantido pelo artigo 3.o da CEDH, cuja redação é idêntica ( 43 ). Estas duas disposições consagram um dos valores fundamentais da União e dos seus Estados‑Membros, razão pela qual proíbem, em todas as circunstâncias, a tortura e as penas ou tratamentos desumanos ou degradantes ( 44 ). Daqui resulta que a proibição prevista no artigo 4.o da Carta se aplica mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como a luta contra o terrorismo e o crime organizado ( 45 ), ou face às pressões de um fluxo crescente de migrantes e de pessoas que procuram obter proteção internacional que se deslocam para os territórios dos Estados‑Membros, num contexto marcado igualmente pela crise económica ( 46 ).

139.

Por analogia com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 3.o da CEDH, o artigo 4.o da Carta impõe aos Estados‑Membros, quando aplicam o direito da União, não só uma obrigação negativa relativamente às pessoas, ou seja, proíbe‑os de recorrer à tortura e a tratos desumanos ou degradantes, mas também uma obrigação positiva, ou seja, impõe‑lhes que tomem medidas adequadas para impedir que essas pessoas sejam submetidas à tortura e a tratos desumanos ou degradantes, nomeadamente quando se trate de pessoas vulneráveis, inclusivamente quando esses maus tratos são praticados por particulares ( 47 ). Par conseguinte, a responsabilidade dos Estados‑Membros pode estar em causa, designadamente, quando as suas próprias autoridades não tenham tomado medidas razoáveis para impedir a concretização de um risco de tortura ou de tratos desumanos ou degradantes, de que tinham ou deviam ter tido conhecimento ( 48 ). Nos seus acórdãos de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 94, 106 e 113), e de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 90 e 94), o Tribunal de Justiça já declarou que, à semelhança do artigo 3.o da CEDH, o artigo 4.o da Carta impõe uma obrigação positiva aos Estados‑Membros em determinadas circunstâncias.

140.

Ao examinar a questão de saber se um Estado não cumpriu a sua obrigação positiva de adotar medidas razoáveis para evitar expor uma pessoa a um risco real de tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta, há que verificar, na minha opinião, por analogia com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 3.o da CEDH, quais são as consequências previsíveis dessa omissão ou dessa recusa em agir relativamente à pessoa em causa ( 49 ). Neste contexto, e atendendo aos atos requeridos no processo principal, importa tomar em conta a situação geral do país de origem da pessoa em causa e/ou a situação do país em que essa pessoa seria levada a ficar, bem como as circunstâncias específicas do caso do interessado ( 50 ). Embora o exame dessas situações e dessas circunstâncias à luz do artigo 4.o da Carta seja inevitável para determinar se, num caso preciso, o Estado‑Membro não cumpriu a obrigação positiva que lhe é imposta pela proibição prevista neste artigo, não se trata, em contrapartida, de constatar ou de provar a responsabilidade dos países terceiros em questão ou dos grupos ou outras entidades que agem nesses países à luz do direito internacional geral ou de qualquer outro modo ( 51 ).

141.

Ao fiscalizar a existência do risco de expor uma pessoa a tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta que resulta da omissão ou da recusa de um Estado‑Membro de tomar medidas razoáveis num contexto como o do processo principal, considero que o Tribunal de Justiça se deve basear nos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio e referir‑se prioritariamente aos factos de que o Estado‑Membro tinha ou devia ter conhecimento no momento em que decidiu aplicar os motivos de recusa previstos no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos, podendo informações posteriores, se for caso disso, confirmar ou infirmar o modo como o Estado‑Membro apreciou o fundamento dos receios do interessado ( 52 ).

142.

Uma vez que o artigo 267.o TFUE se baseia numa repartição de competências entre o órgão jurisdicional de reenvio e o Tribunal de Justiça, é ao primeiro que compete igualmente verificar os elementos de que o Estado belga dispunha ou de que devia ter conhecimento no momento da adoção das decisões controvertidas. Para esse efeito, e a fim de examinar a situação geral do país de origem ou do país em que o interessado seria levado a ficar e o risco real que este corre, considero que esse órgão jurisdicional deve dar especial importância às informações provenientes de fonte fiáveis e objetivas, como as instituições da União, os órgãos e as agências das Nações Unidas ou as fontes governamentais, bem como as organizações não‑governamentais (ONG) de reconhecida seriedade, em particular, as informações contidas nos relatórios recentes provenientes de associações internacionais independentes de defesa dos direitos humanos, como a Amnesty International ou a Human Rights Watch ( 53 ). Os critérios pertinentes para apreciar a fiabilidade destes relatórios são a autoridade e a reputação dos seus autores, a seriedade dos inquéritos que lhes deram origem, a coerência das suas conclusões bem como a sua confirmação por outras fontes ( 54 ).

143.

Na minha opinião, importa contudo tomar em conta as numerosas dificuldades com que se deparam os governos e as ONG para recolherem informações em situações perigosas e instáveis. Nem sempre é possível conduzir inquéritos muito perto de um conflito. Em tais casos, pode ser necessário tomar por base informações prestadas por fontes que têm um conhecimento direto da situação ( 55 ), à semelhança dos enviados de órgãos de imprensa.

144.

Sem privar o órgão jurisdicional de reenvio da sua tarefa de examinar com maior pormenor estas informações tendo em conta as fontes fiáveis e objetivas acima referidas, parece‑me importante — atendendo à notoriedade de certos factos e à facilidade de acesso a um grande número de fontes relativas à situação na Síria, à situação da população síria, bem como à situação dos países limítrofes desse Estado, e para dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil e rápida e esclarecer o Tribunal de Justiça sobre a orientação do acórdão a proferir — destacar os principais elementos de que o Estado belga tinha ou devia ter conhecimento no momento da adoção das decisões controvertidas ( 56 ).

145.

Resulta, antes de mais, da própria decisão de reenvio que o Estado belga não contestou de modo algum a descrição fundamentada feita pelos recorrentes no processo principal da violência indiscriminada, de grande intensidade, que assola a Síria, dos abusos e das graves violações dos direitos humanos cometidos nesse país, em particular em Alepo, a sua cidade de origem. As autoridades belgas competentes não podiam seguramente ignorar o caráter apocalíptico, ou «catastrófico» – segundo a expressão utilizada nas decisões controvertidas – da situação geral na Síria, tanto mais que, como os recorrentes no processo principal também observaram perante o órgão jurisdicional de reenvio, este último já tinha salientado, antes da adoção das decisões controvertidas, que era «do conhecimento público» que a situação de segurança na Síria era dramática, à luz do conjunto dos elementos alarmantes que lhe tinham sido apresentados ( 57 ).

146.

A notoriedade do drama humanitário e da situação apocalíptica que vive a população civil na Síria, se ainda fosse necessário demonstrá‑la, é corroborada por múltiplas informações e documentos oficiais. Assim, num documento divulgado em setembro de 2016 ( 58 ), ou seja, cerca de um mês antes da adoção das decisões controvertidas, a própria Comissão salientava que o conflito sírio tinha «desencadeado a maior crise humanitária do mundo desde a [Segunda] Guerra mundial» e observava que a situação humanitária continuava a degradar‑se na Síria dada a intensificação dos combates, o agravamento das violências, o desrespeito generalizado das normas de direito internacional e as graves violações dos direitos humanos. A Comissão lamentava igualmente a extrema vulnerabilidade da população síria, uma vez que os civis eram as primeiras vítimas de práticas que se tornaram «moeda corrente», como «violações e outras violências sexuais, desaparecimentos forçados, deslocações sob coação, recrutamento de crianças soldados, execuções sumárias e bombardeamentos que [os] visam deliberadamente». Acresce que, no que respeita a Alepo, a Comissão salientava que a intensidade dos bombardeamentos e dos confrontos tinha feito inúmeras vítimas civis e deixara mais de dois milhões de pessoas sem água nem eletricidade, temendo ser cercadas e sujeitas a ataques aéreos contínuos.

147.

Algumas semanas mais tarde, o Conselho de Segurança das Nações Unidas dizia‑se «alarmado pelo facto de a desastrosa situação humanitária na cidade de Alepo continuar a deteriorar‑se» ( 59 ), indignado «perante a escalada da violência, que atingiu um nível inaceitável e perante a morte […] de dezenas de milhares de crianças» e «profundamente preocupado com a constante deterioração da terrível situação humanitária que a Síria conhece e com o número de pessoas que necessitam de ajuda humanitária urgente, nomeadamente de assistência médica» ( 60 ). O Conselho de Segurança das Nações Unidas insistia igualmente na necessidade de «pôr termo aos ataques que visam os civis e as instalações civis, em particular os ataques contra as escolas e as instalações médicas, […] os bombardeamentos indiscriminados com morteiros, os atentados com carros armadilhados, os atentados suicidas […], o facto de sujeitar civis à fome como método de combate, nomeadamente sitiando zonas habitadas, e o recurso generalizado à tortura, aos maus tratos, às execuções arbitrárias, […] aos desaparecimentos forçados, à violência sexual […] e às violências e abusos graves cometidos contra crianças» ( 61 ).

148.

Seguidamente, no momento em que o Estado belga devia adotar as decisões controvertidas, as autoridades belgas não só estavam informadas sobre a situação geral de extrema vulnerabilidade dos civis sírios acima descrita, como não podia razoavelmente ignorar, conforme resulta dos autos do processo principal, as circunstâncias específicas dos recorrentes. Com efeito, é pacífico que os recorrentes no processo principal a) residiam, todos os cinco, na cidade sitiada de Alepo ( 62 ), sendo três deles crianças de tenra idade, tendo o mais velho dos irmãos apenas dez anos, b) são de confissão cristã, tendo as crianças sido batizadas segundo o rito cristão ortodoxo, e que, consequentemente, fazem parte de um grupo de pessoas relativamente ao qual existem razões sérias e verosímeis para crer que é foi visado, ou mesmo perseguido, por diferentes grupos armados na Síria ( 63 ) e c) apresentaram documentos em apoio do seu pedido de visto, não contestados perante o órgão jurisdicional de reenvio, que corroboram concretamente o facto de a família ter sido vítima de diferentes atos de violência cometidos por grupos armados que atuam em Alepo, nomeadamente que o pai da família foi alvo de um sequestro por um desses grupos armados, durante o qual foi espancado e torturado, antes de ser finalmente libertado contra pagamento de um resgate.

149.

À luz destes elementos, é inegável que os recorrentes no processo principal estavam expostos na Síria, pelo menos, a riscos reais de tratos desumanos de extrema gravidade que são claramente abrangidos pelo âmbito de aplicação da proibição prevista no artigo 4.o da Carta.

150.

Além disso, ao adotar as decisões controvertidas, o Estado belga sabia ou devia saber que as consequências previsíveis dessas decisões não deixariam aos recorrentes no processo principal senão a escolha entre exporem‑se aos perigos, aos sofrimentos e aos tratos desumanos evocados acima, suscetíveis até de os levar à morte, ou submeterem‑se a outros tipos de tratos equivalentes, ao tentarem chegar ilegalmente ao território de um Estado‑Membro para aí apresentarem o seu pedido de proteção internacional. Com efeito, está perfeitamente documentado que os nacionais sírios, entre os quais aqueles que tentam obter proteção internacional, que chegam, em desespero, a pagar ( 64 ), com a ajuda de traficantes sem escrúpulos, uma travessia marítima para a União correndo risco de vida, são, se não morrerem afogados ou por outros razões, espancados, violentados e/ou deixados ao abandono em embarcações improvisadas à deriva ( 65 ) até que sejam, na melhor das hipóteses, recolhidos por guardas costeiras ou por ONG que fretam navios de busca e salvamento no mar ( 66 ).

151.

Na minha opinião, não há qualquer dúvida de que tais tratos são proibidos pelo artigo 4.o da Carta.

152.

Consequentemente, havia razões sérias para crer que a recusa pelo Estado belga de emitir um visto com validade territorial limitada incitaria diretamente os recorrentes no processo principal, se não ficassem na Síria, a exporem‑se, em desespero, a sofrimentos físicos e morais com perigo de vida para exercerem o direito à proteção internacional que requereram ( 67 ). Que um Estado‑Membro possa, em tais circunstâncias, abster‑se de tomar as medidas ao seu alcance para evitar expor a tais riscos nacionais de um país terceiro que procuram obter proteção internacional constitui igualmente, na minha opinião, uma violação do artigo 4.o da Carta.

153.

Nas circunstâncias do processo principal, não me parece que esta apreciação possa ser de modo algum infirmada pelo argumento segundo o qual os recorrentes no processo principal teriam podido refugiar‑se no Líbano, país limítrofe da Síria, onde se situava o consulado do Reino da Bélgica junto do qual requereram a aplicação do artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos.

154.

É certo que, desde o início do conflito na Síria, mais de um milhão de sírios foram registados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) como refugiados no Líbano ( 68 ). Contudo, em maio de 2015, o Governo libanês notificou a ACNUR de que o registo de novos refugiados sírios devia ser suspenso ( 69 ). Esta suspensão era ainda aplicável no momento em que o Estado belga devia adotar as decisões controvertidas, como os recorrentes no processo principal recordaram perante o órgão jurisdicional de reenvio. O Líbano não é parte contratante na Convenção de Genebra ( 70 ) e os novos refugiados não registados, privados da possibilidade de obterem o estatuto de requerentes de asilo nesse país, corriam o risco de serem detidos e presos por estada ilegal ( 71 ), como afirmaram, de resto, os recorrentes no processo principal tanto perante o órgão jurisdicional de reenvio como perante o Tribunal de Justiça. A situação deste grupo de pessoas, do qual os recorrentes no processo principal eram, portanto, suscetíveis de fazer parte caso se deslocassem para o Líbano em violação da legislação deste país, é, consequentemente, mais precária do que a dos refugiados registados, que vivem muito frequentemente em abrigos rudimentares, como garagens ou simples tendas, num país onde não existe nenhum campo oficial ( 72 ), e cujo acesso à alimentação e à água, aos cuidados de saúde, bem como à educação já é extremamente difícil, senão precário ( 73 ). Além disso, a imprensa internacional e várias ONG relataram durante o ano de 2016 repetidos atos de violência contra refugiados sírios resultantes, nomeadamente, das tensões crescentes com a população local, em particular nas regiões mais pobres do país ( 74 ). Alguns observadores dos direitos humanos salientavam mesmo durante o ano de 2016 que a situação no conjunto dos países de acolhimento limítrofes da Síria se tinha tornado de tal modo insustentável que muitos sírios regressavam à Síria, com perigo de vida, nomeadamente, a zonas onde os combates continuavam a lavrar com violência ( 75 ). Por fim, no que respeita mais particularmente à situação dos cristãos, como os recorrentes no processo principal, representantes de organizações intergovernamentais e de ONG fizeram eco dos receios de ostracismo, de intimidação e de violências graves contra esta minoria religiosa, tanto no Líbano como noutros países limítrofes, como a Jordânia, inclusivamente dentro dos próprios campos de refugiados ( 76 ).

155.

À luz destas circunstâncias, que o Estado belga conhecia ou devia conhecer no momento da adoção das decisões controvertidas, este Estado‑Membro não podia, portanto, invocar um hipotético argumento segundo o qual não lhe incumbia nenhuma obrigação de emitir um visto com validade territorial limitada uma vez que os recorrentes no processo principal tinham podido exercer o seu direito de requerer e obter uma proteção internacional no Líbano. Na minha opinião, é manifesto que tal direito não podia ser exercido concreta e efetivamente nesse país por sírios que fugiram da Síria depois de maio de 2015. Consequentemente, mesmo admitindo que o Estado belga tenha invocado a possibilidade de os recorrentes no processo principal se deslocarem para o Líbano, considero que, atendendo às informações disponíveis sobre a situação neste país, o Estado belga não podia concluir que estava isento do cumprimento da obrigação positiva que lhe incumbia por força do artigo 4.o da Carta ( 77 ).

156.

No momento da adoção das decisões controvertidas, o Estado belga devia, portanto, ter chegado à conclusão de que, ao recusar reconhecer a necessidade de emitir um visto com validade territorial limitada pelas razões humanitárias invocadas pelos recorrentes no processo principal e ao aplicar os motivos de recusa enumerados no artigo 32.o, n.o 1, do Código de Vistos, havia razões particularmente sérias e comprovadas para pensar que expunha os recorrentes no processo principal a um risco real de sofrerem os tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta.

157.

Com efeito, para ser perfeitamente claro, de que alternativas dispunham os recorrentes no processo principal? Ficar na Síria? Inconcebível. Entregarem‑se a traficantes sem escrúpulos, correndo perigo de vida, para tentarem chegar às costas da Itália ou da Grécia? Intolerável. Resignarem‑se a ser refugiados ilegais no Líbano, sem perspetiva de proteção internacional, correndo mesmo o risco de serem expulsos para a Síria? Inadmissível.

158.

Parafraseando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a Carta tem como objetivo a proteção de direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efetivos ( 78 ).

159.

Ora, é inegável, à luz das informações contidas nos autos do processo principal, que os recorrentes nesse processo teriam obtido a proteção internacional que requerem se tivessem conseguido ultrapassar os obstáculos de uma viagem ilegal, tão perigosa quanto extenuante, e chegar, apesar de tudo, à Bélgica ( 79 ). A recusa de emissão do visto requerido tem, portanto, como consequência direta incitar os recorrentes no processo principal a porem em perigo a sua vida, incluindo a dos seus filhos de tenra idade, para exercerem o seu direito a uma proteção internacional.

160.

Tendo em conta o Código de Vistos e os compromissos assumidos pelos Estados‑Membros, esta consequência é intolerável. Afigura‑se, em qualquer caso, contrária ao direito garantido pelo artigo 4.o da Carta ( 80 ).

161.

À luz do caráter absoluto deste direito, é evidente que a inexistência de relações familiares ou de outra natureza dos recorrentes no processo principal na Bélgica é uma circunstância irrelevante para a resposta que deve ser dada à segunda questão prejudicial.

162.

Sem excluir que a recusa que as autoridades belgas opuseram aos recorrentes no processo principal viola igualmente o direito consagrado no artigo 18.o da Carta, considero, à luz de todas as considerações precedentes, que não é necessário pronunciarmo‑nos sobre esta questão.

163.

Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio do seguinte modo: o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deve ser interpretado o sentido de que, atendendo às circunstâncias do processo principal, o Estado‑Membro ao qual um nacional de um país terceiro tenha requerido a emissão de um visto com validade territorial limitada, com fundamento na existência de razões humanitárias, é obrigado a emitir tal visto se existirem razões sérias e comprovadas para crer que a recusa de emissão desse documento aterá como consequência direta expor esse nacional a sofrer tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta, ao privá‑lo de uma via legal para exercer o seu direito de requerer uma proteção internacional nesse Estado‑Membro.

164.

É evidente que esta proposta foi cuidadosamente ponderada.

165.

Antes de mais, é a única que, na minha opinião, é digna dos «valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana» ( 81 ) em que assenta a construção europeia e que são defendidos e promovidos pela União e pelos seus Estados‑Membros, tanto nos seus territórios como nas suas relações com os países terceiros ( 82 ). Na sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça contribuiu em grande medida para o reforço destes valores, colocando‑se frequentemente na posição de guardião dos direitos fundamentais das pessoas, muito especialmente as mais vulneráveis, incluindo os nacionais de países terceiros que necessitam de proteção internacional ( 83 ). Estes valores devem ter um sentido, concretizar‑se e orientar a aplicação do direito da União quando este oferece as condições de os honrar, como é o caso, no presente processo, do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos. Na minha opinião, é a credibilidade da União e dos seus Estados‑Membros que está em causa.

166.

Houve algo que me impressionou ao reler a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para efeitos do tratamento do presente processo: as constatações desse tribunal relativas às situações, sempre horríveis e dramáticas, em que foi declarada a responsabilidade de um Estado signatário da CEDH por não ter cumprido as suas obrigações positivas nos termos do artigo 3.o da CEDH, são sistematicamente constatações feitas a posteriori, na maior parte dos casos quando os tratos em questão foram fatais para as vítimas. Tal está muito provavelmente associado, pelo menos em parte, à natureza do processo perante no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e à necessidade de esgotar as vias de recurso internas antes de recorrer a esse tribunal. O certo é que, nesses processos, as medidas de prevenção nunca foram adotadas e foram infelizmente cometidos atos irreparáveis.

167.

No presente processo, pelo contrário, ainda há esperança, neste momento, para os recorrentes no processo principal, e foi naturalmente essa uma das razões que levaram o Tribunal de Justiça a acionar a tramitação urgente. A proposta que acabo de apresentar ao Tribunal de Justiça demonstra, de resto, que existe uma via humanitária, no quadro do direito da União, que obriga os Estados‑Membros a prevenir violações manifestas dos direitos absolutos das pessoas que requerem proteção internacional antes que seja demasiado tarde.

168.

O Tribunal de Justiça tem, portanto, a oportunidade não só de recordar, vigorosamente, espero, o respeito dos valores humanitários e dos direitos humanos que a União e os seus Estados‑Membros se comprometeram a honrar, mas também, e sobretudo, de dar aos recorrentes no processo principal a esperança de serem poupados a mais sofrimentos e tratos desumanos.

169.

Esta orientação não significa, para retomar o argumento do Estado belga exposto nas decisões controvertidas, que os Estados‑Membros sejam obrigados a admitir no seu território «todas as pessoas que vivem uma situação catastrófica», o que equivaleria a autorizar a entrada de «todas as populações dos países em vias de desenvolvimento, em guerra ou devastados por catástrofes naturais».

170.

Pelo contrário, trata‑se, insisto, de honrar, no sentido mais nobre deste termo, por razões humanitárias incontestáveis, as obrigações que decorrem do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos e do artigo 4.o da Carta, a fim de permitir aos recorrentes no processo principal, três dos quais são, recordo, crianças de tenra idade, exercer o seu direito à proteção internacional, sem a qual ficarão diretamente expostos a tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta, tratos de que o Estado‑Membro em questão tinha conhecimento ou devia ter conhecimento no momento da adoção das decisões de não emitir o visto requerido.

171.

É certo que o círculo de pessoas afetadas pode revelar‑se mais amplo do que é atualmente na prática dos Estados‑Membros. Este argumento não é, contudo, pertinente à luz da obrigação de respeitar, em todas as circunstâncias, os direitos fundamentais de caráter absoluto, nomeadamente o previsto no artigo 4.o da Carta. O caráter excecional de um procedimento não é, do ponto de vista dos princípios, contraditório com um afluxo, mesmo importante, de pessoas. A Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados‑Membros ao acolherem estas pessoas e suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento ( 84 ), é disso exemplo. Com efeito, o mecanismo instituído por este ato constitui igualmente um procedimento «de caráter excecional» que visa assegurar às pessoas em fuga de zonas de conflito armado ou vítimas de violações sistemáticas ou generalizadas dos direitos humanos, uma proteção imediata e temporária no território dos Estados‑Membros ( 85 ).

172.

Além disso, o espetro, referido por muitos dos governos que participaram na audiência no Tribunal de Justiça, de um congestionamento das representações consulares dos Estados‑Membros face a um fluxo incontrolável de pedidos de vistos humanitários que seriam apresentados com base no Código de Vistos deve, na minha opinião, ser relativizado. Além do facto de este argumento não ser manifestamente de natureza jurídica, os obstáculos práticos à apresentação de tais pedidos não devem, decerto, ser subestimados, ainda que não os corrobore. A situação dos recorrentes no processo principal constitui também uma notável ilustração de tais obstáculos. Com efeito, os recorrentes tiverem de obter uma reunião no consulado do Reino da Bélgica no Líbano, condição sine qua non para lhes ser concedido um salvo‑conduto de 48 horas no território libanês a partir de maio de 2015 ( 86 ), percorrer centenas de quilómetros num país em guerra e no caos para se deslocarem a Beirute e se apresentarem pessoalmente no referido consulado, para satisfazerem a exigência deste último ( 87 ) e, por fim, regressar à Síria enquanto aguardavam a decisão das autoridades belgas! Por outro lado, embora seja muito provável que os recorrentes no processo principal se tenham dirigido ao consulado do Reino da Bélgica em Beirute depois de terem tomado conhecimento da operação muito mediatizada durante a qual, no verão de 2015, várias centenas de nacionais sírios, de confissão cristã e originários de Alepo, tinham obtido um visto com validade territorial limitada emitido pelas autoridades belgas ( 88 ), o Governo belga não alegou a existência de um fluxo maciço de pedidos deste tipo, que congestionasse as suas representações diplomáticas nos países limítrofes da Síria, na sequência dessa operação.

173.

Seguidamente, a proposta que formulei no n.o 163 das presentes conclusões é também perfeitamente coerente com os objetivos de luta contra o tráfico de seres humanos, a prevenção da imigração clandestina e as redes de criminalidade organizada ( 89 ). Com efeito, ao oferecer uma via legal de acesso à proteção internacional em certas circunstâncias, sob o controlo das autoridades dos Estados‑Membros, a interpretação que defendi do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos permite, pelo menos em parte, evitar que as pessoas que tentam obter tal proteção, nomeadamente as mulheres e as crianças, sejam apanhadas e exploradas pelas redes criminosas de tráfico e de introdução clandestina de migrantes ( 90 ). Inversamente, como já salientei, a recusa de emissão de um visto com validade territorial limitada nas circunstâncias do processo principal equivale, em última análise, a incitar diretamente os recorrentes no processo principal, para poderem invocar o direito à proteção internacional no território de um Estado‑Membro, a confiarem as suas vidas àqueles contra quem a União e os seus Estados‑Membros envidam atualmente, em especial no Mediterrâneo, grandes esforços operacionais e financeiros para erradicar e desmantelar as atividades criminosas!

174.

Por último, a interpretação que aqui defendo do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, assegura, na devida proporção, o respeito do «princípio da solidariedade e da partilha equitativa de responsabilidades entre os Estados‑Membros», que deve reger o conjunto das políticas da União relativas aos controlos nas fronteiras, ao asilo e à imigração, em conformidade com o artigo 80.o TFUE ( 91 ). A este respeito, e limitando‑me a um único aspeto, a objeção do Governo belga, segundo a qual admitir que um Estado‑Membro é obrigado, em determinadas circunstâncias, a emitir um visto nos termos do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos equivaleria a autorizar uma pessoa a escolher o Estado‑Membro em que pretende que o seu pedido de proteção seja examinado, parece‑me francamente deslocada. Em condições extremas como as que são suportadas pelos recorrentes no processo principal, a possibilidade de escolha destes é tão limitada como a possibilidade dos Estados‑Membros da bacia mediterrânica de se transformarem em países sem litoral. Em qualquer caso, o argumento do Governo belga não pode prevalecer sobre o caráter absoluto do direito garantido pelo artigo 4.o da Carta e sobre a obrigação positiva que este impõe aos Estados‑Membros.

175.

Antes de concluir, permiti‑me que recorde quanto o mundo inteiro, em especial aqui, na Europa, se indignou e se emocionou profundamente ao ver, há dois anos, o corpo sem vida do pequeno Alan, que tinha dado à costa numa praia, depois de a sua família ter tentado, com a ajuda de passadores e de uma embarcação improvisada e sobrecarregada de refugiados sírios, chegar, através da Turquia, à ilha grega de Cós. Dos quatro membros da sua família, só o pai escapou ao naufrágio. A indignação é louvável e salutar. No presente processo, o Tribunal de Justiça tem, todavia, a oportunidade de ir mais longe, como proponho que faça, consagrando a via legal de acesso à proteção internacional que resulta do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos. Mas não nos enganemos: não é porque a emoção o dita, mas porque o direito da União o impõe.

Conclusão

176.

Atendendo a todas as considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica), do seguinte modo:

«1)

O artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos, deve ser interpretado no sentido de que a expressão ‘obrigações internacionais’ constante do texto desta disposição não abrange a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Quando examinam, com base no artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 810/2009, um pedido de visto em apoio do qual são invocadas razões humanitárias e quando adotam uma decisão sobre tal pedido, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar as disposições da Carta dos Direitos Fundamentais.

2)

O artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 810/2009 deve ser interpretado o sentido de que o Estado‑Membro ao qual um nacional de um país terceiro tenha requerido a emissão de um visto com validade territorial limitada, com fundamento na existência de razões humanitárias, é obrigado a emitir tal visto se, atendendo às circunstâncias do caso concreto, existirem razões sérias e comprovadas para crer que a recusa de emissão desse documento aterá como consequência direta expor esse nacional a sofrer tratos proibidos pelo artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais, ao privá‑lo de uma via legal para exercer o seu direito de requerer uma proteção internacional nesse Estado‑Membro. A inexistência de relações familiares ou de outra natureza desse nacional no Estado‑Membro requerido não influencia esta resposta.»


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2009, L 243, p. 1.

( 3 ) V. Relatório do Parlamento Europeu sobre a proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo ao Código de Vistos da União [COM(2014) 164], documento A8‑0145/2016, de 22 de abril de 2016.

( 4 ) Na exposição de motivos das alterações propostas pelo Parlamento relativas aos «vistos humanitários», o relator indica (p. 100) que «optou por uma abordagem prudente e adequada em termos jurídicos baseada no reforço e no desenvolvimento das disposições já existentes no texto» atual do Código de Vistos (o sublinhado é meu).

( 5 ) JO 2008, L 218, p. 60.

( 6 ) JO 2013, L 180, p. 60.

( 7 ) JO 2016, L 77, p. 1.

( 8 ) V., neste sentido, acórdão de 10 de abril de 2012, Vo (C‑83/12 PPU, EU:C:2012:202, n.o 36).

( 9 ) A parte da argumentação do Governo belga relativa à articulação entre o artigo 25.o, n.o 1, e o artigo 32.o do Código de Vistos será abordada nos n.os 111 e segs. das presentes conclusões.

( 10 ) Contudo, não resulta dos autos se os pedidos dos recorrentes no processo principal foram «todavia» considerados admissíveis «por razões humanitárias», em aplicação do artigo 19.o, n.o 4, do Código de Vistos.

( 11 ) Quanto à relação entre estes dois artigos, v n.os 111 e segs. das presentes conclusões.

( 12 ) V. acórdãos de 8 de novembro de 2012, Iida (C‑40/11, EU:C:2012:691, n.os 80 e 81) e de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291, n.o 42).

( 13 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77; retificações no JO 2004, L 229, p. 35, e no JO 2005, L 197, p. 34).

( 14 ) Diretiva do Conselho, de 22 de setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar (JO 2003, L 251, p. 12).

( 15 ) V. acórdão de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o. (C‑87/12, EU:C:2013:291, n.os 24 a 33), em que o Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que a Diretiva 2003/86 não era aplicável aos membros da família de K. Ymeraga porque este era cidadão luxemburguês e, por outro, que a Diretiva 2004/38 também não lhes era aplicável, dado que K. Ymeraga não tinha exercido o seu direito de livre circulação. V. igualmente acórdão de 8 de novembro de 2012, Iida (C‑40/11, EU:C:2012:691 os n.os 61 e 65), em que o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 2004/38, invocada por Y. Iida para obter um «cartão de residência de membro da família de um cidadão da União» com base no direito alemão, não se aplicava à sua situação, dado que não acompanhava nem se reunia com o membro da sua família, cidadão da União, que tinha exercido a sua liberdade de circulação.

( 16 ) Regulamento (CE) n.o 539/2001 do Conselho, de 15 de março de 2001, que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação (JO 2001, L 81, p. 1).

( 17 ) Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, e com a lista constante do Anexo I do Regulamento n.o 539/2001.

( 18 ) V. acórdão de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.o 65).

( 19 ) A este respeito, limito‑me a salientar que, contrariamente ao que esse governo parece subentender, os recorrentes no processo principal não apresentaram pedidos de asilo diplomático, que não são abrangidos, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2013/32, pelo âmbito de aplicação desta nem pelo regime comum de asilo europeu. Alegam, em contrapartida, que foi violado o seu direito de asilo, conforme garantido pelo artigo 18.o da Carta, em razão da recusa de entrada que lhes foi oposta pelas autoridades belgas, recusa essa que os priva de uma via de acesso legal à proteção internacional concedida em conformidade com o referido regime. Não é de excluir, portanto, que a situação dos recorrentes no processo principal possa ser considerada ligada ao direito da União também em razão do seu estatuto de beneficiários potenciais de tal proteção.

( 20 ) V., neste sentido, acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 21).

( 21 ) Em conformidade com o Programa da Haia: reforço da liberdade, da segurança e da justiça na União Europeia (JO 2005, C 53, p. 1). V. considerando 3 do Código de Vistos.

( 22 ) V. n.o 58, supra.

( 23 ) V. igualmente, neste sentido, acórdão de 26 de setembro de 2013, IBV & Cie (C‑195/12, EU:C:2013:598, n.os 48, 49 e 61).

( 24 ) Quanto ao alcance da harmonização prosseguida pelo Código de Vistos, v. acórdãos de 10 de abril de 2012, Vo (C‑83/12 PPU, EU:C:2012:202, n.o 42) e de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.os 49 e 50).

( 25 ) Nos termos do considerando 29 do Código de Vistos, este código «respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos, designadamente, na [CEDH] e na Carta».

( 26 ) Versão consolidada baseada na decisão da Comissão de 19 de março de 2010, que estabelece o Manual relativo ao tratamento dos pedidos de visto e à alteração dos vistos emitidos [C(2010) 1620 final] e nas decisões de execução da Comissão de 4 de agosto de 2011, [C(2011) 5501 final] e de 29 de abril de 2014, C(2014) 2727. Este manual contém as instruções operacionais (orientações, boas práticas e recomendações) destinadas ao pessoal consular e aos agentes das outras autoridades encarregadas de instruir os pedidos de visto e de se pronunciar sobre os mesmos, bem como às autoridades encarregadas de alterar os vistos emitidos.

( 27 ) V. acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 21), e de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281, n.o 34).

( 28 ) É evidente que, se respeitarmos tal paralelismo, não pode estar em causa a criação pela Carta de novas competências a favor da União nem uma alteração das competências existentes, na aceção do artigo 51.o, n.o 2, da Carta.

( 29 ) Quanto à interpretação do artigo 1.o da CEDH, v., nomeadamente, TEDH, 12 de dezembro de 2001, Bankovic e o. c. Bélgica e o. (CE:ECHR:2001:1212DEC005220799, n.os 61 e 67); TEDH, 29 de março de 2010, Medvedyev e o. c. França e Espanha (CE:ECHR:2010:00329JUD000339403, n.os 63 e 64); TEDH, 7 de julho de 2011, Al‑Skeini e o. c. Reino Unido (CE:ECHR:2011:0707JUD005572107); e TEDH de 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa e o. c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.o 72)].

( 30 ) Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17). Em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e com o artigo 52.o, n.o 7, da Carta, estas anotações devem ser tidas em conta para a interpretação da mesma. V., também, acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 47 e jurisprudência referida).

( 31 ) As anotações relativas ao artigo 52.o, n.o 3, da Carta precisam que «ao impor restrições a esses direitos, o legislador deve respeitar exatamente as normas estabelecidas pelo regime de restrições previsto pela CEDH».

( 32 ) As anotações relativas ao artigo 52.o, n.o 3, da Carta precisam, a este respeito, que as restrições admitidas aos direitos previstos pela CEDH «passam […] a ser aplicáveis aos direitos a que este número diz respeito, sem que tal atente contra a autonomia do direito da União e do Tribunal de Justiça da União Europeia».

( 33 ) Esta questão será examinada no âmbito da análise da segunda questão prejudicial.

( 34 ) O Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) afirma que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que o conceito de «jurisdição» na aceção do artigo 1.o da CEDH é principalmente territorial, dado que o âmbito de aplicação desta Convenção é, salvo em caso de circunstâncias excecionais, limitado ratione loci aos territórios dos Estados partes [v., nomeadamente, TEDH, 12 de dezembro de 2001, Bankovic e o. c. Bélgica e o. (CE:ECHR:2001:1212DEC005220799, n.os 61 e 67); TEDH, 29 de março de 2010, Medvedyev e o. c. França e Espanha (CE:ECHR:2010:00329JUD000339403, n.os 63 e 64); TEDH, 7 de julho de 2011, Al‑Skeini e o. c. Reino Unido (CE:ECHR:2011:0707JUD005572107); e TEDH, 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.o 72)]. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, aplica‑se igualmente uma condição de territorialidade ao artigo 33.o da Convenção de Genebra.

( 35 ) Logicamente, o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), i), do Código de Vistos não se refere ao artigo 6.o, n.o 1, alínea b), do Código das Fronteiras Schengen que exige que os nacionais de países terceiros estejam na posse de um visto válido.

( 36 ) V. n.os 49 a 51 das presentes conclusões.

( 37 ) Referido na nota de roda pé 26, ponto 9.1.2, p. 80.

( 38 ) V. acórdão de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.o 37).

( 39 ) V., nomeadamente, as versões deste artigo nas línguas alemã («wird […] erteilt»), espanhola («[s]e expedirá»), italiana («sono rilasciati»), portuguesa («é emitido»), finlandesa («myönnetään»), sueca («ska […] utfärdas») e inglesa («shall be issued»).

( 40 ) V. n.os 82 e 83 das presentes conclusões.

( 41 ) Recordo que, em conformidade com o artigo 25.o, n.o 2, do Código de Vistos, este visto pode também, excecionalmente, ser válido para o território de mais do que um Estado‑Membro.

( 42 ) O caráter absoluto do direito consagrado no artigo 4.o da Carta, que está estreitamente relacionado com o do respeito da dignidade do ser humano, foi recordado pelo Tribunal de Justiça. V., neste sentido, acórdãos de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 85) e de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 56).

( 43 ) V., neste sentido, as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17) e acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 86).

( 44 ) Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 87).

( 45 ) V. acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 87), bem como, por analogia, TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 195 e jurisprudência referida).

( 46 ) V., por analogia, TEDH, 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa e o. c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.o 122).

( 47 ) V., nomeadamente, por analogia, TEDH, 28 de março de 2000, Mahmut Kaya c. Turquia (CE:ECHR:2000:0328JUD002253593, n.o 115); TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 198); TEDH, 25 de abril de 2013, Savriddin Dzhurayev c. Rússia (CE:ECHR:2013:0425JUD007138610, n.o 179); e TEDH, 23 de fevereiro de 2016, Nasr e Ghali c. Itália (CE:ECHR:2016:0223JUD004488309, n.o 283).

( 48 ) V., nomeadamente, por analogia, TEDH, 28 de março de 2000, Mahmut Kaya c. Turquia (CE:ECHR:2000:0328JUD002253593, n.o 115); TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 198); e TEDH, 23 de fevereiro de 2016, Nasr e Ghali c. Itália (CE:ECHR:2016:0223JUD004488309, n.o 283).

( 49 ) V. nomeadamente, neste sentido, TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 213). V., igualmente, TEDH, 23 de fevereiro de 2016, Nasr e Ghali c. Itália (CE:ECHR:2016:0223JUD004488309, n.o 289).

( 50 ) V., nomeadamente, neste sentido, TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 213), e TEDH, 23 de fevereiro de 2016, Nasr e Ghali c. Itália (CE:ECHR:2016:0223JUD004488309, n.o 289).

( 51 ) V., por analogia, neste sentido, TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 212 e jurisprudência referida).

( 52 ) V., neste sentido, por analogia, TEDH, 13 de dezembro de 2012, El‑Masri c. antiga República Jugoslava da Macedónia (CE:ECHR:2012:1213JUD003963009, n.o 214).

( 53 ) V. nomeadamente, por analogia, neste sentido, TEDH, 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (CE:ECHR:2008:0228JUD003720106, n.os 131 e 143); TEDH, 17 de julho de 2008, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.os 227 e 255); TEDH, 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa e o. c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.os 116 e 118); e TEDH de 23 de agosto de 2016, J.K. e o. c. Suécia (CE:ECHR:2016:0823JUD005916612, n.o 90). Noutro contexto, v., igualmente, neste sentido, acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 59 e jurisprudência referida).

( 54 ) V., por analogia, TEDH, 3 de julho de 2014, Geórgia c. Rússia (I) (CE:ECHR:2014:0703JUD001325507, n.o 138), e TEDH, 23 de agosto de 2016, J.K e o. c. Suécia (CE:ECHR:2016:0823JUD005916612, n.os 88 e 90).

( 55 ) V., por analogia, TEDH, 23 de agosto de 2016, J.K e o. c. Suécia (CE:ECHR:2016:0823JUD005916612, n.o 89).

( 56 ) No acórdão de 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia (CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, n.o 366), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que o Reino da Bélgica tinha violado a obrigação positiva prevista no artigo 3.o da CEDH depois de ter declarado que, no momento da adoção da medida em questão nesse processo, os «factos eram notórios e facilmente verificáveis a partir de um grande número de fontes».

( 57 ) V. Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), acórdão n.o 175973, de 7 de outubro de 2016, X/III c. Estado belga, p. 8. V., igualmente, Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), acórdão n.o 176363, de 14 de outubro de 2016, X/I c. Estado belga, p. 8.

( 58 ) V. Comissão Europeia, Aide humanitaire et protection civile, Fiche‑info ECHO, Crise syrienne, setembro de 2016, disponível no sítio Internet: http://ec.europa.eu/echo/files/aid/countries/factsheets/syria_fr.pdf#view=fit.

( 59 ) Resolução 2328 (2016) adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 19 de dezembro de 2016.

( 60 ) Resolução 2332 (2016) adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 21 de dezembro de 2016.

( 61 ) Resolução 2332 (2016) adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 21 de dezembro de 2016.

( 62 ) Segundo as informações publicadas em 20 de outubro de 2016 pela secção francesa da Amnesty International, entre 19 de setembro e 16 de outubro de 2016, Alepo tinha sofrido pelo menos 600 ataques aéreos, em que centenas de civis terão sido mortos, milhares feridos, e dezenas de infraestruturas essenciais destruídas ou danificadas. V., e este respeito, Amnesty International: https://www.amnesty.fr/conflits‑armes‑et‑populations/actualites/alep‑de‑nouvelles‑preuves‑de‑crimes‑de‑guerre.

( 63 ) V., entre as diferentes fontes, Rand, S., «Syria: Church on Its Knees», Open Doors Advocacy Report, May 2012, disponível no sítio Internet https://www.opendoorsuk.org/pray/documents/Syria_Advocacy_Report.pdf, Eghdamian K., «Religious Plurality and the Politics of Representation in Refugee Camps: Accounting for the Lived Experiences of Syrian Refugees Living in Zaatari», Oxford Monitor of Forced Migration, n.o 1, 2014, p. 38, bem como as declarações do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em abril de 2016: http://www.thewhig.com/2016/04/03/syrian‑christian‑refugees‑persecuted. No capítulo relativo à Síria do seu relatório anual para 2016, a United States Commission for International on Religious Freedom (USCIRF) recorda que concluiu em dezembro de 2015 que o grupo armado Daech/Estado islâmico cometia um genocídio contra várias minorias religiosas, entre as quais os cristãos sírios: v. http://www.uscirf.gov/sites/default/files/USCIRF_AR_2016_Tier1_2_Syria.pdf.

( 64 ) Segundo um estudo da Organização Internacional para as Migrações (OIM), realizado em 2016 junto de mais de 6000 nacionais sírios e iraquianos chegados à Europa, o preço pago pela passagem para a Europa variava entre aproximadamente 1000 USD e 5000 USD por pessoa: v. http://migration.iom.int/docs/Analysis_Flow_Monitoring_Surveys_in_the_Mediterranean_and_Beyond_8_December_2016.pdf.

( 65 ) Frequentemente simples botes insufláveis.

( 66 ) Segunda a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), quase 5000 homens, mulheres e crianças morreram em 2016 ao tentarem atravessar o Mediterrâneo; estes dados são apenas estimativas na medida em muitos corpos nunca são recuperados. A MSF fretou três navios em 2015 e 2016 para a busca e o salvamento no mar e a maioria das pessoas salvas provinha da Síria: v. http://www.msf.fr/actualite/dossiers/operations‑recherche‑et‑sauvetage‑migrants‑en‑mediterranee. Segundo o ACNUR, entre janeiro e novembro de 2016, chegaram mais de 350000 pessoas, por via marítima, à Grécia e à Itália, sendo a maioria de nacionalidade síria. As estimativas do número de mortes e de desaparecimentos no Mediterrâneo são aproximadamente as mesmas que as da MSF. V. documentos acessíveis no sítio Internet: http://data.unhcr.org/mediterranean/regional.php. Na sua resolução de 12 de abril de 2016 sobre a situação no Mediterrâneo e a necessidade de uma abordagem holística da UE em relação à migração, o Parlamento salientava que «as redes criminosas e os passadores exploram o desespero de pessoas que tentam entrar na UE para fugir de perseguições ou da guerra», «que os itinerários seguros e legais para os refugiados entrarem na UE são limitados e que muitas pessoas continuam a assumir o risco de enveredar por vias perigosas»: v. http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=‑//EP//TEXT+TA+P8‑TA‑2016‑0102+0+DOC+XML+V0//PT.

( 67 ) Num relatório de 8 de maio de 2015 (Doc. A/HRC/29/36, n.o 34), o Relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos dos migrantes salientava que a recusa de assegurar uma entrada legal na União constituía, em si, «um fator chave» das «causas profundas» do recurso aos passadores pelas pessoas em fuga de uma situação de crise humanitária que procuram obter proteção interacional: v. www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/.../A_HRC_29_36_FRE.DOCX.

( 68 ) V. https://data.unhcr.org/syrianrefugees/country.php?id=122.

( 69 ) V. ACNUR, Vulnerability Assessment of Syrian Refugees in Lebanon, 2016, p. 13. Estas medidas destinam‑se explicitamente a reduzir o afluxo de refugiados para o Líbano: v. http://www.lemonde.fr/proche‑orient/article/2015/01/05/le‑liban‑regule‑l‑entree‑des‑refugies‑syriens‑en‑leur‑imposant‑d‑obtenir‑un‑visa_4549504_3218.html.

( 70 ) Para todos os efeitos úteis, recordo que, mesmo admitindo que um Estado terceiro tenha ratificado a Convenção de Genebra, esta circunstância não significa que exista uma presunção inilidível do respeito desta Convenção e dos direitos fundamentais relativamente às pessoas que procuram proteção internacional e aos requerentes de asilo: v. acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 102 a 104).

( 71 ) V., nomeadamente, Human Rights Watch, World Report, 2016, Lebanon, https://www.hrw.org/world‑report/2016/country‑chapters/lebanon. V., igualmente, Janmyr, M., «Precarity in Exile: the Legal Status of Syrian Refugees in Lebanon», Refugee Survey Quaterly, n.o 4, 2016, pp. 58 a 78.

( 72 ) V. Comissão Europeia, Aide humanitaire et protection civile, Fiche‑info ECHO, Crise syrienne, setembro de 2016, disponível no sítio http://ec.europa.eu/echo/files/aid/countries/factsheets/syria_fr.pdf#view=fit.

( 73 ) Segundo o estudo do ACNUR, Vulnerability Assessment of Syrian Refugees in Lebanon, pp. 3 e 35, 42% das famílias têm abrigos que não respeitam os padrões humanitários mínimos, e quase metade das crianças entre os 6 e os 14 anos não frequentam a escola e estão sujeitas a numerosas doenças e infeções. Só 15% das crianças sírias no Líbano recebem uma quantidade suficiente de alimentação correspondente aos padrões da Organização Mundial da Saúde.

( 74 ) V., nomeadamente, http://observers.france24.com/fr/20160708‑tensions‑latentes‑entre‑libanais‑syriens‑camp‑refugie‑incendie e http://www.al‑monitor.com/pulse/originals/2016/09/lebanon‑plan‑return‑syrian‑refugees.html. V., igualmente, Balouziyeh, J. M. B., Hope and Future. The Story of Syrian Refugees, Time Books, 2016, pp. 56 e 57.

( 75 ) V. Amnesty International, «Cinq ans de crise, cinq millions de réfugiés syriens», 30 de março de 2016, https://www/amnesty.org/fr/latest/news/2016/03.

( 76 ) Eghdamian, K., «Religious Plurality and the Politics of Representation in Refugee Camps: Accounting for the Lived Experiences of Syrian Refugees Living in Zaatari», Oxford Monitor of Forced Migration, n.o 1, 2014, p. 38, bem como Johnston, G., «Syrian Christian refugees persecuted», 3 de abril de 2016, http://www.thewhig.com/2016/04/03/syrian‑christian‑refugees‑perscuted.

( 77 ) V., neste sentido, TEDH, 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa e o. c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.o 146 a 158), que declara a responsabilidade do Estado italiano, nos termos do artigo 3.o da CEDH, por não se ter assegurado de que as pessoas expulsas para um país terceiro intermediário, que não ratificou a Convenção de Genebra, beneficiavam de garantias suficientes de que não corriam o risco de serem reenviadas arbitrariamente para o seu país de origem, atendendo, nomeadamente, à inexistência de um procedimento de asilo no país terceiro intermediário e à impossibilidade de obter o reconhecimento pelas autoridades desse país do estatuto de refugiados concedido pelo ACNUR.

( 78 ) Para decisões recentes, v., nomeadamente, TEDH, 1 de junho de 2010 (versão retificada em 3 de junho de 2010), Gäfgen c. Alemanha (CE:ECHR:2010:0601JUD002297805, n.o 123), e TEDH, 26 de abril de 2016, Murray c. Países Baixos (CE:ECHR:2016:0426JUD001051110, n.o 104).

( 79 ) Baseando‑se em informações provenientes do Commissariat général aux réfugiés et aux apatrides (Comissariado‑geral para os refugiados e os apátridas) na Bélgica, os recorrentes no processo principal alegaram perante o órgão jurisdicional de reenvio, sem que o Estado belga o contestasse, que, em 2015, quase 98% das decisões do Commissariat général aux réfugiés et aux apatrides relativas a nacionais sírios tinham resultado na concessão de uma proteção internacional. Parece que a grande maioria terá chegado por vias ilegais.

( 80 ) V., neste sentido, por analogia, a opinião concordante do juiz Pinto de Albuquerque apresentada no acórdão do TEDH, 23 de fevereiro de 2012 (versão retificada em 16 de novembro de 2016), Hirsi Jamaa e o. c. Itália (CE:ECHR:2012:0223JUD002776509, n.o 73).

( 81 ) Preâmbulo do Tratado UE.

( 82 ) Recordo que, nos termos do artigo 3.o, n.os 1 e 5, TUE, «[a] União tem por objetivo promover a paz [e] os seus valores» e «afirma e promove os seus valores»«[n]as suas relações com o resto do mundo», contribuindo para «proteção dos direitos do Homem, em especial os da criança» (o sublinhado é meu). Nos termos do artigo 4.o TUE, os Estados‑Membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados e abstêm‑se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União.

( 83 ) V., em particular, acórdão de 17 de fevereiro de 2009, Elgafaji (C‑465/07, EU:C:2009:94), no que respeita ao acesso à proteção subsidiária de um nacional de um país onde existe um conflito armado interno que gera uma violência indiscriminada, acórdãos de 5 de setembro de 2012, Y e Z (C‑71/11 e C‑99/11, EU:C:2012:518), e de 7 de novembro de 2013, X e o. (C‑199/12 a C‑201/12, EU:C:2013:720), quanto ao acesso ao estatuto de refugiado por parte de nacionais de um país terceiro relativamente aos quais se tenha demonstrado que o regresso ao país de origem os exporá a um risco real de perseguição em razão da sua prática religiosa ou em razão da sua homossexualidade.

( 84 ) JO 2001, L 212, p. 12.

( 85 ) A circunstância de o procedimento previsto pela Diretiva 2001/55 não ter sido acionado em benefício dos nacionais sírios, por surpreendente que possa parecer, não é decisiva quanto ao argumento jurídico que acabo de expor.

( 86 ) Quanto a estas condições, v., nomeadamente, https://www.refugees‑lebanon.org/en/news/35/qa‑on‑new‑entry‑renewal‑procedures‑for‑syrians‑in‑lebanon.

( 87 ) Resulta, com efeito, dos autos que o pedido inicial apresentado em nome dos recorrentes no processo principal, através do seu advogado, no consulado no Reino da Bélgica no Líbano foi considerado inadmissível na medida em que os recorrentes no processo principal não se tinham deslocado pessoalmente ao referido consulado.

( 88 ) Quanto a esta operação, v., nomeadamente, http://www.lesoir.be/930953/article/actualite/belgique/2015‑07‑08/belgique‑secouru‑244‑chretiens‑alep e http://www.myria.be/fr/donnees‑sur‑la‑migration/asile‑et‑protection‑internationale/visas‑humanitaires.

( 89 ) Estes objetivos constam, respetivamente, dos artigos 79.oTFUE e 83.° TFUE.

( 90 ) Na sua comunicação de 10 de fevereiro de 2016 ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre a situação de execução das ações prioritárias da Agenda Europeia da Migração [COM (2016) 85 final], a Comissão salienta (p. 2) que «[é] imperioso irmos além de meras iniciativas para contrariar as consequências de fluxos migratórios não controlados e irregulares. Com efeito, devemos ser capazes de gerir efetivamente esses fluxos, proporcionando às pessoas que necessitem de proteção possibilidades legais e organizadas de entrada no território da União Europeia». De igual modo, na sua resolução de 12 de abril de 2016 (ponto R) sobre a situação no Mediterrâneo e a necessidade de uma abordagem holística da UE em relação à migração, o Parlamento destaca precisamente que assegurar que os requerentes de asilo e aos refugiados sigam «itinerários seguros e legais» para entrarem na União pode permitir à União e aos Estados‑Membros «pôr em causa o modelo empresarial dos passadores de seres humanos». V., neste sentido, http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=‑//EP//TEXT+TA+P8‑TA‑2016‑0102+0+DOC+XML+V0//PT.

( 91 ) V. acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 93).