CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE

apresentadas em 14 de setembro de 2017 ( 1 )

Processo C‑372/16

Soha Sahyouni

contra

Raja Mamisch

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique (Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Competência do Tribunal de Justiça — Regulamento (UE) n.o 1259/2010 — Cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial — Âmbito de aplicação — Artigo 1.o — Reconhecimento de um divórcio de natureza privada, registado por uma instância religiosa num Estado terceiro — Artigo 10.o — Exclusão da lei estrangeira aplicável — Acesso ao divórcio discriminatório em razão do sexo dos cônjuges — Análise in abstrato do caráter discriminatório — Irrelevância do eventual consentimento do cônjuge discriminado»

I. Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha) tem por objeto a interpretação do Regulamento (UE) n.o 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial ( 2 ), instrumento cujas disposições nunca foram objeto de uma análise de mérito pelo Tribunal de Justiça.

2.

O presente pedido de decisão inscreve‑se na continuidade de um pedido precedente, apresentado pelo referido órgão jurisdicional no âmbito do mesmo litígio no processo principal, o qual diz respeito a um processo judicial que se destina a obter o reconhecimento, na Alemanha, de uma decisão de divórcio adotada por uma instância religiosa na Síria. Esse primeiro reenvio prejudicial deu origem a um despacho, proferido em 12 de maio de 2016, no processo Sahyouni (C‑281/15) ( 3 ), nos termos do qual o Tribunal de Justiça se declarou manifestamente incompetente para decidir ( 4 ).

3.

O órgão jurisdicional de reenvio dirige‑se novamente ao Tribunal de Justiça para lhe submeter diversas questões prejudiciais relativas ao Regulamento n.o 1259/2010. Antes de as analisar, importa estabelecer que o Tribunal de Justiça é efetivamente competente para lhes responder — embora o reconhecimento de um divórcio que foi decretado num Estado terceiro, como o que está em causa no processo principal, não seja abrangido pelo âmbito de aplicação do referido regulamento — tendo em conta o facto de que resulta da decisão de reenvio que as regras pertinentes de direito alemão tornam este ato de direito da União aplicável a essas situações.

4.

A primeira questão submetida convida o Tribunal de Justiça a determinar se as disposições do Regulamento n.o 1259/2010 abrangem os divórcios qualificados de «privados», na medida em que estes assentam não numa decisão de caráter constitutivo de um tribunal ou de uma outra autoridade pública mas numa declaração de vontade dos cônjuges, unilateral ou mútua, eventualmente com a participação de caráter puramente declarativo de uma autoridade estrangeira.

5.

As outras questões, submetidas a título subsidiário, dizem respeito ao artigo 10.o do referido regulamento, que permite substituir a lei que deveria ser em princípio aplicável, quando esta gera uma discriminação entre os cônjuges em razão do seu sexo. A este respeito, o Tribunal de Justiça é interrogado, antes de mais, sobre a questão de saber se a apreciação da existência desse efeito discriminatório deve ser realizada in abstrato ou in concreto. Se se entender que esta apreciação deve ser feita tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, o Tribunal de Justiça deverá, em seguida, determinar se o consentimento para o divórcio eventualmente dado pelo cônjuge discriminado permite, contudo, aplicar a lei estrangeira discriminatória.

II. Quadro jurídico

A. Direito da União

6.

O Regulamento n.o 1259/2010 é apenas aplicável nos Estados‑Membros que participam na cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial que resulta deste instrumento ( 5 ).

7.

O seu considerando 9 refere que o Regulamento n.o 1259/2010 «deverá instituir um quadro jurídico claro e completo em matéria de lei aplicável ao divórcio e separação judicial nos Estados‑Membros participantes e garantir aos cidadãos soluções adequadas em termos de segurança jurídica, previsibilidade e flexibilidade, bem como impedir situações em que um cônjuge pede o divórcio antes do outro para que o processo seja regido por uma lei específica, que considera mais favorável à salvaguarda dos seus interesses».

8.

Nos termos do considerando 10 do referido regulamento, «[o] âmbito de aplicação material e as disposições [deste último] deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.o 2201/2003 [do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 ( 6 )]». Acrescenta‑se aí que o Regulamento n.o 1259/2010 «deverá ser aplicável apenas à dissolução ou suspensão do vínculo matrimonial» e que «[a] lei determinada pelas normas de conflito de leis [deste] deverá aplicar‑se aos fundamentos de divórcio e de separação judicial».

9.

O considerando 24 deste regulamento enuncia que «[e]m certas situações, deverá, no entanto, aplicar‑se a lei do tribunal em que o processo foi instaurado, quando a lei aplicável não preveja o divórcio ou não conceda a um dos cônjuges, em razão do seu sexo, igualdade de acesso ao divórcio ou à separação judicial. Tal não deverá, contudo, prejudicar a cláusula de ordem pública».

10.

O seu artigo 1.o prevê, no n.o 1, que o Regulamento n.o 1259/2010 é aplicável, «nas situações que envolvem um conflito de leis, ao divórcio e à separação judicial».

11.

Nos termos do artigo 4.o deste regulamento, intitulado «Aplicação universal», «[é] aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado‑Membro participante».

12.

O artigo 8.o do referido regulamento determina a lei aplicável na ausência de escolha pelas partes, exercida nos termos do artigo 5.o, estabelecendo como critérios de conexão sucessivos, em determinadas condições, a residência habitual dos cônjuges à data da instauração do processo em tribunal ou, na sua falta, a sua última residência habitual ou, na sua falta, a sua nacionalidade comum ou, na sua falta, a sede do tribunal onde o processo foi instaurado.

13.

Nos termos do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010, intitulado «Aplicação da lei do foro», «[s]empre que a lei aplicável por força dos artigos 5.o ou 8.o não preveja o divórcio ou não conceda a um dos cônjuges igualdade de acesso ao divórcio ou à separação judicial em razão do seu sexo, aplica‑se a lei do foro».

14.

O artigo 12.o do mesmo regulamento, intitulado «Ordem pública», prevê que «[a] aplicação de uma disposição da lei designada nos termos do presente regulamento só pode ser recusada se essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do foro».

B.  Direito alemão

1.  FamFG

15.

A Gesetz über das Verfahren in Familiensachen und in den Angelegenheiten der freiwilligen Gerichtsbarkeit ( 7 ) (Lei relativa aos processos em matéria de direito da família e de jurisdição voluntária, a seguir «FamFG») enuncia no seu artigo § 107, intitulado «Reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria matrimonial»:

«1)   As decisões proferidas no estrangeiro pelas quais um casamento é […] dissolvido com ou sem manutenção do vínculo matrimonial […] só são reconhecidas se a administração da justiça do Land verificar que estão preenchidos os requisitos para o reconhecimento. […]

[…]

6)   Se a administração da justiça do Land verificar que os requisitos do reconhecimento estão preenchidos, o cônjuge que não apresentou o requerimento pode pedir ao Oberlandesgericht que decida. […]

7)   É competente a Secção Civil do Oberlandesgericht onde a administração da justiça do Land tem jurisdição. […]»

16.

O § 109 da FamFG, intitulado «Exclusão do reconhecimento», prevê no seu n.o 1, ponto 4, que «[o] reconhecimento de uma decisão estrangeira é excluído, […] quando [esse] reconhecimento […] conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios essenciais do direito alemão, em especial quando esse reconhecimento for incompatível com os direitos fundamentais». Nos termos do n.o 5 do mesmo artigo, não é feita nenhuma análise da legalidade da decisão estrangeira.

2.  EGBGB

17.

Na sua versão em vigor até 28 de janeiro de 2013, o § 17, n.o 1, da Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (Lei introdutória do Código Civil, a seguir «EGBGB»), tinha a seguinte redação: «[o] divórcio está sujeito ao direito aplicável aos efeitos gerais do casamento na data da apresentação do pedido de divórcio. Se a dissolução do casamento não for possível ao abrigo desse direito, o divórcio é regulado pelo direito alemão se o cônjuge requerente do divórcio for alemão naquela data ou fosse alemão na data do casamento».

18.

Na sequência das alterações introduzidas por uma lei datada de 23 de janeiro de 2013 ( 8 ), a norma de conflito de leis acima referida foi revista de forma que o § 17, n.o 1, da EGBGB enuncia atualmente que «[a]s consequências patrimoniais do divórcio que não sejam reguladas por outras disposições da presente secção são abrangidas pelo direito aplicável ao divórcio nos termos do Regulamento (UE) n.o 1259/2010».

III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça.

19.

Como refere o despacho proferido pelo Tribunal de Justiça, em 12 de maio de 2016, no processo Sahyouni (C‑281/15) ( 9 ), Raja Mamisch e Soha Sahyouni casaram em 27 de maio de 1999, sob a jurisdição do tribunal islâmico de Homs (Síria). Possuem ambos nacionalidade síria, por nascimento, e nacionalidade alemã, adquirida por naturalização no caso de R. Mamisch e após o casamento no de S. Sahyouni. Depois de terem vivido na Alemanha até 2003, mudaram‑se para a Síria e depois residiram alternadamente na Alemanha, no Koweït e no Líbano. Atualmente, vivem de novo na Alemanha, em domicílios diferentes.

20.

Em 19 de maio de 2013, R. Mamisch declarou pretender divorciar‑se da esposa, tendo o seu representante pronunciado a fórmula de divórcio no tribunal religioso da sharia de Latakia (Síria). Em 20 de maio de 2013, esse tribunal decretou o divórcio entre os cônjuges.

21.

Resulta da decisão de reenvio que, em 12 de setembro de 2013, S. Sahyouni fez uma declaração, assinada por mão própria, relativa ao recebimento das prestações devidas nos termos da legislação religiosa, a saber, um total de 20000 dólares americanos (USD) (cerca de 15000 euros ( 10 )), que estava redigida nos seguintes termos: «[…] recebi todas as prestações que me eram devidas nos termos do contrato de casamento e em razão do divórcio unilateral e, pela presente, liberto‑o de todos os deveres para comigo por força do contrato de casamento e do despacho de divórcio n.o 1276 proferido pelo tribunal da sharia de Lakatia em 20 de maio de 2013 […]».

22.

Em 30 de outubro de 2013, R. Mamisch requereu o reconhecimento da decisão de divórcio proferida na Síria. Por decisão de 5 de novembro de 2013, o presidente do Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique) deferiu esse pedido, declarando que os requisitos legais de reconhecimento dessa decisão estavam preenchidos.

23.

Em 18 de fevereiro de 2014, S. Sahyouni pediu a anulação da referida decisão e a declaração de que os requisitos de reconhecimento da decisão de divórcio em causa não estavam reunidos.

24.

Por decisão de 8 de abril de 2014, o presidente do Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique) julgou improcedente o pedido de S. Sahyouni. Nos fundamentos da sua decisão, esse juiz declarou que, segundo ele, o reconhecimento da decisão de divórcio em causa era regulado pelo Regulamento n.o 1259/2010, também aplicável aos divórcios privados. Na ausência de uma escolha válida da lei aplicável e na falta de uma residência habitual comum do casal no ano anterior ao divórcio, a lei aplicável devia ser determinada nos termos do artigo 8.o, alínea c), do referido regulamento. Quando ambos os cônjuges têm dupla nacionalidade, o critério determinante é a nacionalidade efetiva na aceção do direito alemão ( 11 ), que era, na data do divórcio em causa, a nacionalidade síria. Por último, salientou que a ordem pública na aceção do artigo 12.o do Regulamento n.o 1259/2010 não se opunha ao reconhecimento da decisão proferida na Síria, uma vez que a esposa tinha aceitado a posteriori a forma do divórcio em questão, ao declarar aceitar as prestações subsequentes, e que, não obstante uma possível discriminação, o artigo 10.o deste regulamento também não se lhe opunha nessas circunstâncias.

25.

S. Sahyouni interpôs recurso dessa decisão de improcedência. Por despacho de 2 de junho de 2015, o Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique) suspendeu a instância e pediu ao Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre diversas questões prejudiciais relativas à interpretação do Regulamento n.o 1259/2010.

26.

No processo Sahyouni (C‑281/15), por despacho de 12 de maio de 2016 ( 12 ), o Tribunal de Justiça declarou‑se manifestamente incompetente para responder a essas questões com os fundamentos, nomeadamente, de que o Regulamento n.o 1259/2010 não era aplicável ao reconhecimento de uma decisão de divórcio que já tinha sido proferida num Estado terceiro e que o órgão jurisdicional de reenvio não tinha fornecido nenhum elemento suscetível de estabelecer que o direito nacional tornara aplicáveis as disposições do referido regulamento a tais situações de forma direta e incondicional. No entanto, sublinhou que esse órgão jurisdicional mantinha a faculdade de submeter um novo pedido de decisão prejudicial quando estivesse em condições de fornecer ao Tribunal de Justiça todos os elementos que permitissem a este tribunal decidir.

27.

Foi neste contexto que, por decisão de 29 de junho de 2016, entrada no Tribunal de Justiça em 6 de julho de 2016, o Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique) decidiu suspender a instância uma segunda vez e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O divórcio privado — no caso vertente decretado por um tribunal religioso na Síria com base na sharia, [por] declaração unilateral de um cônjuge — insere‑se no âmbito [de aplicação visado no artigo 1.o] do [Regulamento n.o 1259/2010]?

2)

Em caso de resposta afirmativa à [primeira questão], ao aplicar o Regulamento [n.o 1259/2010] nos casos do divórcio privado, [a análise do seu artigo 10.o]:

a)

Deve [basear‑se,] em termos abstratos, [numa comparação da qual resulte que, embora a lei aplicável] nos termos do artigo 8.o [do Regulamento n.o 1259/2010] reconhe[ça a ambos os] cônjuges o direito ao divórcio, [sujeita], contudo, [um deles, em razão do seu] sexo, a requisitos processuais e materiais diferentes dos previstos para o outro cônjuge, ou

b)

A aplicabilidade da referida norma depende de a aplicação da lei estrangeira — que é discriminatória em abstrato — ser igualmente discriminatória no caso concreto?

3)

Em caso de resposta afirmativa à [segunda questão, alínea b)], o facto de o cônjuge discriminado o seu consentimento [ao] divórcio, incluindo através da aceitação de uma compensação, pode fundamentar a não aplicação dessa norma?»

28.

No presente processo, foram apresentadas observações escritas pelos Governos alemão, belga, francês, húngaro e português, bem como pela Comissão Europeia. Na audiência de 31 de maio de 2017, R. Mamisch, os Governos alemão e húngaro e a Comissão apresentaram observações orais.

IV. Análise

29.

Tendo em conta as objeções levantadas sobre este assunto, importa, antes de proceder à análise das questões submetidas ao Tribunal de Justiça, examinar se este é competente para lhes responder no presente processo, contrariamente ao que foi declarado relativamente ao pedido de decisão prejudicial apresentado anteriormente pelo órgão jurisdicional de reenvio no âmbito do mesmo litígio no processo principal.

A.  Quanto à competência do Tribunal de Justiça

30.

Antes de mais, refiro que, na minha opinião, o Tribunal de Justiça está suficientemente esclarecido para se poder pronunciar sobre as questões que lhe são submetidas no presente processo, em conformidade com a sua jurisprudência, nos termos da qual a sua própria competência pode ser baseada no facto de o direito nacional tornar aplicável ao litígio no processo principal as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida.

1.  Quanto aos ensinamentos a retirar da jurisprudência do Tribunal de Justiça

31.

Antes de mais, importa recordar que resulta de jurisprudência constante que a presunção de pertinência que se prende com as questões submetidas a título prejudicial por um órgão jurisdicional nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade só pode ser afastada em casos excecionais ( 13 ). A recusa de um pedido de decisão prejudicial pode designadamente justificar‑se se for manifesto que o direito da União não se pode aplicar, nem direta nem indiretamente, às circunstâncias do caso concreto ( 14 ).

32.

No caso em apreço, conforme o Tribunal de Justiça declarou no despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni (C‑281/15) ( 15 ), o litígio no processo principal está fora do âmbito de aplicação do direito da União, uma vez que nem o Regulamento n.o 1259/2010, nem o Regulamento n.o 2201/2003, nem nenhum outro ato jurídico da União é aplicável a esse litígio, que tem por objeto um pedido de reconhecimento, num Estado‑Membro, de uma decisão de divórcio proferida por uma autoridade religiosa num Estado terceiro.

33.

No que se refere, mais especificamente, ao Regulamento n.o 1259/2010 ( 16 ), cujas disposições eram expressamente indicadas no pedido de decisão prejudicial no referido processo, o Tribunal de Justiça salientou que apenas estabelece as normas de conflito de leis aplicáveis, nos Estados‑Membros participantes ( 17 ), em matéria de divórcio e de separação judicial, mas não regula o reconhecimento de uma decisão de divórcio já proferida ( 18 ).

34.

Por conseguinte, seguindo os princípios estabelecidos no processo Dzodzi ( 19 ) e aperfeiçoados em jurisprudência ulterior ( 20 ), só se o órgão jurisdicional de reenvio tiver estabelecido suficientemente a aplicabilidade do Regulamento n.o 1259/2010 nos termos do direito do Estado‑Membro onde tem jurisdição, nas circunstâncias do litígio que esse órgão jurisdicional é chamado a decidir, é que o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre as questões que são submetidas, não obstante o facto de o referido litígio não se enquadrar diretamente no âmbito de aplicação desse regulamento.

35.

A este respeito, recordo ( 21 ) que o Tribunal de Justiça pode declarar‑se competente para responder às questões prejudiciais que lhe são submetidas mesmo quando as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida não forem aplicáveis aos factos do litígio no processo principal, no caso de as referidas disposições se terem tornado aplicáveis de forma direta e incondicional pelo direito nacional. Com efeito, quando nas soluções que dá a situações não abrangidas pelo âmbito de aplicação do ato da União em causa, uma legislação nacional se adequa às soluções adotadas pelo referido ato, existe um interesse manifesto da União em que, para evitar divergências de interpretação futuras, as disposições transcritas desse ato sejam interpretadas de modo uniforme. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é chamado a verificar se existem indicações suficientemente precisas para ser possível estabelecer esta remissão para o direito da União, tendo em atenção informações prestadas sobre esse assunto pelo pedido de decisão prejudicial ( 22 ).

36.

Resulta também dessa jurisprudência que, mesmo que a legislação que transpõe uma diretiva para o direito nacional não tenha reproduzido textualmente as disposições do direito da União objeto das questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça pode ser competente para decidir a título prejudicial, quando a decisão de reenvio admita a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça a essas disposições é vinculativa para a resolução do processo principal ( 23 ). É determinante que o órgão jurisdicional de reenvio considere que os conceitos que figuram no direito nacional devem efetivamente ser objeto da mesma interpretação que os conceitos análogos do direito da União e que está a esse respeito vinculado pela interpretação dos referidos conceitos que será dada pelo Tribunal de Justiça ( 24 ).

37.

Em conformidade com os requisitos do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio indicar em que medida o litígio que lhe é submetido apresenta um elemento de conexão com as disposições do direito da União referidas no pedido de decisão prejudicial, que torna a interpretação solicitada necessária para a solução desse litígio ( 25 ). Com efeito, no âmbito de um reenvio prejudicial, compete apenas aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, e não ao Tribunal de Justiça, determinar a finalidade e o conteúdo das regras de direito nacional aplicáveis ao litígio no processo principal, e a maneira como estas devem ser executadas, de forma que o Tribunal de Justiça está vinculado pelo ponto de vista expresso a esse propósito pelo órgão jurisdicional de reenvio ( 26 ).

38.

Em especial, no caso em que o direito da União é tornado aplicável pelas disposições do direito nacional, compete apenas ao juiz nacional apreciar o alcance exato dessa remissão para o direito da União. Se considerar que o conteúdo de disposições do direito da União é aplicável, em consequência dessa remissão direta e incondicional, à situação não abrangida pelas referidas disposições que está na origem do litígio que lhe é submetido, esse juiz pode apresentar um pedido de decisão prejudicial nas condições previstas no artigo 267.o TFUE ( 27 ). Contudo, o Tribunal de Justiça assegura‑se geralmente de que as regras do direito da União, conforme interpretadas por ele próprio, foram efetivamente tornadas aplicáveis sem possibilidade de o juiz nacional as afastar ( 28 ) e sem que essa ampliação do âmbito de aplicação das referidas regras seja contrária à vontade expressa do legislador da União ( 29 ).

39.

Para confirmar que as autoridades competentes de um Estado‑Membro decidiram efetivamente aplicar um tratamento idêntico às situações não abrangidas pelo ato da União em causa e às situações reguladas por este, o Tribunal de Justiça toma em consideração não só o conteúdo das disposições nacionais, mas também elementos complementares, tais como o preâmbulo e a exposição dos motivos da legislação pertinente ( 30 ). A este propósito, o Tribunal de Justiça tem em conta tanto a decisão de reenvio ( 31 ) como todos os elementos das observações apresentadas perante ele, em especial o ponto de vista formulado pelo Governo do Estado‑Membro cuja ordem jurídica está em causa, ainda que a apreciação final do conteúdo do direito nacional continue reservada ao órgão jurisdicional de reenvio ( 32 ).

40.

É à luz destes ensinamentos que importa apreciar se o Tribunal de Justiça dispõe de elementos suficientes para se poder declarar competente no presente processo, ao contrário do que tinha concluído relativamente ao precedente pedido de decisão prejudicial submetido no âmbito do mesmo litígio no processo principal ( 33 ).

2.  Quanto à existência de uma conexão suficiente com o direito da União

41.

Os Governos belga e húngaro sustentam que o Tribunal de Justiça não é competente, pelo facto de não resultar da decisão de reenvio que o ordenamento jurídico alemão remete de forma direta e incondicional para o Regulamento n.o 1259/2010 quando é pedido na Alemanha o reconhecimento de um divórcio privado decretado no estrangeiro. Na audiência, a Comissão mitigou o parecer que tinha formulado inicialmente no mesmo sentido, tendo em conta as explicações dadas pelo Governo alemão no presente processo.

42.

Tanto R. Mamisch como os Governos alemão, francês e português consideram, pelo seu lado, que o direito alemão torna o referido regulamento aplicável a um litígio como o do processo principal e que, em conformidade com a jurisprudência acima recordada, o Tribunal de Justiça é, por conseguinte, competente para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Este é também o meu ponto de vista.

43.

É verdade que o órgão jurisdicional de reenvio não esclarece qual a regra do direito alemão que conduz, na sua opinião, a uma necessária aplicação do Regulamento n.o 1259/2010 no caso do «reconhecimento» de um divórcio privado ocorrido no estrangeiro, o que implica na prática uma fiscalização da validade desse divórcio, à luz da lei identificada como devendo regular este último, para lhe permitir produzir os seus efeitos a Alemanha ( 34 ). No entanto, é um facto assente que o órgão jurisdicional de reenvio é o único competente para interpretar o direito nacional ( 35 ). Ora, este refere expressamente que o direito alemão torna aplicáveis, na aceção da jurisprudência referida ( 36 ), as regras de conflito de leis enunciadas pelo referido regulamento, no âmbito do litígio que lhe é submetido. Acresce que essa afirmação é claramente corroborada pelas indicações dadas pelo Governo alemão a respeito do quadro jurídico nacional no presente processo.

44.

Nos fundamentos do seu despacho, o órgão jurisdicional de reenvio estabelece uma diferença, no que se refere ao reconhecimento da Alemanha de divórcios decretados no estrangeiro, entre os que são decretados com a participação de caráter constitutivo de um tribunal ou de outra autoridade estatal e os, qualificados de «divórcios privados», que assentam numa manifestação de vontade unilateral ou mútua das partes, mesmo com a eventual participação de uma autoridade estrangeira, de caráter meramente declaratório, por exemplo através do registo do divórcio ( 37 ).

45.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, ao abrigo da prática jurídica alemã, as regras de natureza processual que constam do § 107 da FamFG ( 38 ) são aplicáveis ao reconhecimento dessas duas categorias de divórcios. Em contrapartida, relativamente às normas substantivas, é comum, mas não unanimemente, aceite que a análise dos divórcios privados cujo reconhecimento é pedido deve ser efetuada pelos órgãos jurisdicionais alemães, não à luz dos requisitos do artigo 109.o da FamFG ( 39 ), como é o caso dos divórcios decretados por uma autoridade pública, mas em conformidade com as regras enunciadas pelo Regulamento n.o 1259/2010 ( 40 ).

46.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta tese está correta, dado que não é concebível decidir sobre um divórcio de nacionais de Estados terceiros na Alemanha de acordo com disposições diferentes das aplicáveis ao reconhecimento de um divórcio já decretado no estrangeiro. Por outro lado, se a aplicação do Regulamento n.o 1259/2010 fosse excluída em relação aos divórcios privados, haveria um vazio jurídico no direito alemão, não desejado pelo legislador alemão, que em 2003 suprimiu a antiga norma de conflito de leis aplicável, nomeadamente, ao reconhecimento dos divórcios privados decretados no estrangeiro ( 41 ), que constava do § 17, n.o 1, da EGBGB ( 42 ), porque esse legislador a considerou obsoleta precisamente em razãoda existência do referido regulamento.

47.

A este respeito, o Governo alemão explica que, na Alemanha, o reconhecimento dos divórcios que resultam de uma decisão, de caráter constitutivo, de um tribunal ou de uma outra entidade estatal estrangeira não está sujeito a uma fiscalização da legalidade dessa decisão ( 43 ), mas apenas a uma verificação de ordem processual ( 44 ) do cumprimento dos requisitos enunciados no § 109 da FamFG ( 45 ). Em contrapartida, o reconhecimento dos divórcios privados ( 46 ) só é admitido na Alemanha depois de uma fiscalização da sua validade ( 47 ), a qual deve ser efetuada à luz das disposições de direito substantivo do Estado designado pelas normas de conflito de leis pertinentes ( 48 ), a saber, atualmente, as do Regulamento n.o 1259/2010.

48.

Esse Governo esclarece que o legislador alemão revogou, efetivamente, a norma de conflito de leis prevista no antigo § 17, n.o 1, da EGBGB, porque considerou que, com a entrada em vigor do Regulamento n.o 1259/2010, a lei aplicável à dissolução do casamento devia ser determinada exclusivamente com base nas disposições do referido regulamento, em consequência do efeito universal previsto para o artigo 4.o deste regulamento. Além disso, como indicam claramente os trabalhos parlamentares referidos nas observações escritas do Governo alemão ( 49 ), o legislador nacional partiu do princípio de que o Regulamento n.o 1259/2010 também era aplicável aos divórcios de natureza privada. Resulta destes pressupostos que já não há em direito alemão uma norma autónoma de conflito de leis para determinar o direito aplicável a um divórcio como o que está em causa no processo principal.

49.

Por conseguinte, é diretamente em consequência da supressão deliberada da norma de conflito alemã que permitia identificar a lei aplicável à apreciação da validade de divórcios privados decretados no estrangeiro ( 50 ) que, por um lado, a aplicação do Regulamento n.o 1259/2010 relativamente a este tipo de processos se tornou necessária em direito alemão, em conformidade com a intenção do legislador nacional e em virtude de uma prática aparentemente generalizada dos órgãos jurisdicionais nacionais ( 51 ), e que, por outro, a interpretação vinculativa das disposições deste regulamento pelo Tribunal de Justiça é efetivamente indispensável, segundo a apreciação do órgão jurisdicional de reenvio, para decidir o litígio no processo principal.

50.

Além disso, sublinho que a premissa de que o legislador alemão partiu, acerca do âmbito de aplicação material do referido regulamento, não põe em causa de forma evidente uma vontade expressa do legislador da União, como era o caso noutros processos ( 52 ). Embora, na minha opinião, essa premissa esteja na realidade mal fundamentada ( 53 ), esse erro não tem relevância para efeitos da apreciação da competência do Tribunal de Justiça, apreciação para a qual é suficiente que exista uma remissão para o direito da União pelo direito nacional nas condições acima recordadas.

51.

Tendo em atenção todos estes elementos, não é de forma alguma manifesto ( 54 ) que as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida não possam ser aplicáveis, neste caso indiretamente ( 55 ), no âmbito do litígio que foi submetido ao órgão jurisdicional de reenvio. Uma vez que, do meu ponto de vista, os requisitos instituídos pela jurisprudência referida ( 56 ) estão preenchidos, considero que está fundamentada a competência do Tribunal de Justiça no presente processo.

B.  Quanto à eventual inclusão de divórcios de natureza privada no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1259/2010 (primeira questão)

52.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre a questão de saber se os divórcios nos quais não foi proferida nenhuma decisão com efeito constitutivo por uma autoridade pública — tribunal ou outra emanação do Estado — se enquadra no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o1259/2010.

53.

A título preliminar, observo que é possível questionar a pertinência desta questão prejudicial, dado que, pelas razões suprarreferidas ( 57 ), as disposições do Regulamento n.o 1259/2010 só são aplicáveis ao litígio no processo principal por efeito da remissão direta para este regulamento realizada pelo direito alemão para determinar a lei aplicável no âmbito dos processos judiciais relativos ao reconhecimento de divórcios privados decretados no estrangeiro. Por conseguinte, podia considerar‑se que a tomada de posição solicitada ao Tribunal de Justiça sobre o âmbito de aplicação do referido regulamento não é necessária para decidir este litígio, uma vez que o direito alemão impõe que tais processos sejam, em todo o caso, regidos por este regulamento.

54.

Contudo, existe na minha opinião um interesse efetivo em que o Tribunal de Justiça dê uma resposta à questão suscitada, para assegurar, em conformidade com a jurisprudência acima referida ( 58 ), uma interpretação unívoca do conceito de «divórcio» na aceção do Regulamento n.o 1259/2010 e, portanto, uma aplicação uniforme deste regulamento nos ordenamentos jurídicos de todos os Estados‑Membros participantes. No caso em apreço, na hipótese de o Tribunal de Justiça responder negativamente, como pretendo propor, as autoridades alemãs seriam, concretamente, levadas a adaptar na medida necessária as regras de direito nacionais, como o Governo alemão admitiu na audiência.

55.

O problema da eventual cobertura desses divórcios de natureza privada pelo referido regulamento é suscitado, neste caso, em relação a um sistema jurídico de inspiração muçulmana, o da Síria, que admite que os laços do casamento sejam dissolvidos por um ato de vontade do marido seguido de um simples registo ou de uma decisão com efeito meramente declaratório de uma autoridade religiosa. No entanto, esta problemática levanta‑se mais genericamente em relação a todos os tipos de divórcios existentes obtidos sem a participação constitutiva de uma autoridade pública, quer resultem de uma manifestação de vontade unilateral quer de uma manifestação de vontade comum das partes.

56.

Nas suas observações, R. Mamisch e os Governos alemão e francês consideram que os divórcios privados devem ser regulados pelas disposições do Regulamento n.o 1259/2010, pelo menos em circunstâncias como as do processo principal ( 59 ). Em contrapartida, os Governos belga, húngaro e português e a Comissão sustentam o contrário, que é também a minha opinião, pelos seguintes fundamentos.

57.

Antes de mais, pode constatar‑se que a redação das disposições do Regulamento n.o 1259/2010, em particular a do seu artigo 1.o, relativo ao âmbito de aplicação deste instrumento, não fornece indicações úteis para responder à questão prejudicial, uma vez que o conceito de «divórcio» não é aí definido de forma alguma.

58.

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre da exigência de uma aplicação uniforme do direito da União que, quando um ato da União não remete para o direito dos Estados‑Membros para definir um conceito específico, como é este o caso, esse conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma, que o Tribunal de Justiça procura tendo em conta a sistemática geral, os objetivos e a génese da regulamentação em causa ( 60 ).

59.

Relativamente à sistemática geral do Regulamento n.o 1259/2010, R. Mamisch e o Governo alemão alegam que a exclusão dos divórcios privados do seu âmbito de aplicação material não decorre de uma visão de conjunto sistemática das disposições do referido regulamento. Não partilho da sua análise.

60.

Este tipo de divórcios não está, na verdade, explicitamente excluído do referido âmbito, ao invés de uma outra forma de rutura do vínculo conjugal que é a anulação do casamento ( 61 ). No entanto, numerosas disposições do Regulamento n.o 1259/2010 atribuem um lugar central à intervenção de um «tribunal», conforme definido de forma flexível no seu artigo 3.o, ponto 2 ( 62 ), e à existência de um «procedimento» para efeito de dissolução ou de suspensão do vínculo matrimonial ( 63 ). Tal indica, na minha opinião, que o legislador da União entendeu só abranger os «divórcios» na aceção do referido regulamento no contexto de decisões proferidas por autoridades com carácter público que sejam competentes na matéria ( 64 ).

61.

Esclareço, a este propósito, que não é determinante que esse legislador tenha inserido no Regulamento n.o 1259/2010 as disposições que figuram no seu artigo 10.o, que permitem ao juiz chamado a pronunciar‑se afastar a aplicação de uma lei estrangeira discriminatória na medida em que preveja um acesso ao divórcio que distingue os cônjuges em razão do seu sexo ( 65 ). Com efeito, não se pode excluir que essa lei seja aplicável no âmbito de um divórcio de natureza pública, e não de natureza privada, como é o caso em apreço.

62.

Relativamente aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 1259/2010, os Governos alemão e francês sustentam que o âmbito de aplicação do referido regulamento deve ser concebido de forma ampla pelo facto de, devido ao seu caráter universal, se destinar a regular todas as situações de divórcio possíveis de acordo com os direitos substantivos potencialmente aplicáveis. É verdade que, em conformidade com o seu artigo 4.o, as leis de qualquer ordenamento jurídico — e não apenas as leis dos Estados‑Membros participantes — são aplicáveis nos termos desse regulamento ( 66 ) e que alguns ordenamentos jurídicos de Estados não membros da União reconhecem o divórcio privado sob diversas formas. Todavia, entendo que estas considerações não são determinantes no que se refere ao alcance dos tipos de divórcio abrangidos pelo Regulamento n.o 1259/2010, tendo em conta não só argumentos antes apresentados, mas também elementos complementares, ligados à sua génese.

63.

À semelhança dos Governos belga, húngaro e português e da Comissão, considero que o conteúdo do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser tomado em consideração no âmbito da interpretação do Regulamento n.o 1259/2010, tendo em conta as ligações estreitas historicamente existentes entre estes dois atos ( 67 ), ainda que um diga respeito aos conflitos de competência jurisdicional e o outro aos conflitos de leis. Com efeito, nos termos do considerando 10, primeiro período, do Regulamento n.o 1259/2010, «[o] âmbito de aplicação material e as disposições [deste] deverão ser coerentes com o Regulamento [n.o 2201/2003]», e outras disposições deste primeiro regulamento evocam expressamente as relações com este último ( 68 ).

64.

Ora, é admitido por todos os interessados que aqui apresentaram observações escritas que o termo «divórcio» utilizado no Regulamento n.o 2201/2003 não abrange os divórcios privados, tendo em conta que este regula unicamente a competência dos tribunais dos Estados‑Membros ( 69 ) bem como o reconhecimento e a execução das decisões proferidas por eles, nomeadamente em matéria de divórcio ( 70 ). O termo idêntico que consta do Regulamento n.o 1259/2010 devia, na minha opinião, ser interpretado no mesmo sentido, para assegurar a coerência com este ato vizinho pretendida pelo legislador da União, de forma que as decisões que emanam de autoridades não estatais não podem ser abrangidas pelo âmbito de aplicação destes dois instrumentos.

65.

Uma consulta dos trabalhos preparatórios que levaram à adoção do Regulamento n.o 1259/2010 não fornece diretamente indicações conclusivas no presente processo, uma vez que não encontrei nenhum indício de que a questão dos divórcios privados tivesse sido especificamente evocada. No entanto, esse silêncio parece‑me revelador de que, como alegaram quer o Governo húngaro quer a Comissão, aquando da adoção do referido regulamento, o legislador da União teve apenas em mente as situações em que o divórcio é decretado por um tribunal estatal ou por uma outra autoridade pública. Com efeito, não é contestado que, como aliás salientou o Parlamento alemão ( 71 ), nessa época, nos ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros participantes na cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria matrimonial ( 72 ), apenas organismos de caráter público podiam adotar decisões com valor jurídico na matéria ( 73 ).

66.

Na medida em que a eventual inclusão dos divórcios de natureza privada não foi aparentemente objeto de debate nas negociações que precederam a adoção do Regulamento n.o 1259/2010 e em consequência das outras considerações acima expostas ( 74 ), considero que o Tribunal de Justiça não se pode pronunciar num sentido que incorpore esse tipo de divórcios no âmbito de aplicação do referido regulamento. A decisão de proceder a essa inclusão pertence apenas ao legislador da União, se o considerar oportuno, após um debate formal e uma análise aprofundada das implicações concretas que essa operação poderia ter, à luz dos diversos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros participantes ( 75 ) e tendo em conta particularidades das diferentes formas possíveis de divórcios privados.

67.

Por conseguinte, considero que o Regulamento n.o 1259/2010 deve ser interpretado no sentido de que os divórcios de natureza privada, a saber, decretados sem a participação com caráter constitutivo de um tribunal ou de uma autoridade pública, não se enquadram no seu âmbito de aplicação.

C.  Quanto às modalidades de aplicação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 em caso de desigualdade de acesso ao divórcio (segunda e terceira questões)

68.

As questões seguintes são submetidas e, por conseguinte, só devem ser analisadas a título subsidiário. Tanto a segunda questão, que está subdividida em duas partes, como a terceira questão, que está expressamente ligada à última destas partes, incidem sobre a interpretação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010, que permite aplicar a lei do foro a título derrogatório, quando a lei estrangeira que seria em princípio aplicável, por força de outras disposições deste regulamento, não permite nenhum divórcio ( 76 ) ou prevê que o acesso à separação judicial ou ao divórcio, como no litígio no processo principal, varia em função de os cônjuges pertencerem a um ou a outro sexo ( 77 ).

69.

Estas duas questões dizem respeito às modalidades de aplicação do referido artigo 10.o, por um lado, sob o ponto de vista da forma — abstrata ou concreta —como deve ser analisada a discriminação causada pela referida lei estrangeira, e, por outro, sob o ponto de vista do papel que deve ser reconhecido ao eventual consentimento do cônjuge discriminado relativamente ao divórcio desigual.

1.  Quanto à análise in abstrato do caráter discriminatório do acesso ao divórcio por força da aplicação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010

70.

A segunda questão prejudicial é submetida apenas na hipótese de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente à primeira questão e declarar que os divórcios privados, como o que está em causa no processo principal, se enquadram no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 1259/2010. Tendo em conta a resposta negativa que preconizo dar à precedente questão, considero que não há que responder à segunda questão ( 78 ). Todavia, formularei algumas observações sobre esta matéria, por uma preocupação de exaustividade.

71.

Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 deve ser interpretado no sentido de que a aplicação da lei do foro nele prevista deve ocorrer quando a lei estrangeira, aplicável nos termos dos artigos 5.o ou 8.o deste regulamento ( 79 ), implica uma discriminação entre os cônjuges in abstracto — atendendo ao conteúdo desta última lei —, independentemente do facto de esta ser ou não discriminatória in concreto — atendendo às circunstâncias do caso em apreço ( 80 ).

72.

O Governo alemão propõe interpretar este artigo 10.o no sentido de que, aquando da análise da validade de um divórcio privado decretado no estrangeiro, o direito do órgão jurisdicional que procede a essa análise só é aplicável se, no caso concreto, a lei estrangeira aplicável causar uma discriminação em detrimento de um dos cônjuges. R. Mamisch partilha deste ponto de vista.

73.

Os Governos francês, húngaro e português e a Comissão consideram, em contrapartida, que é suficiente que a análise do caráter discriminatório da lei estrangeira, para efeitos de aplicação do referido artigo 10.o, seja efetuada in abstrato, sem se prender com as especificidades da situação das pessoas em causa, o que é também a minha opinião, por todas as razões adiante expostas.

74.

Em primeiro lugar, considero que tal interpretação respeita a redação tanto do artigo 10.o como do considerando 24 do Regulamento n.o 1259/2010.

75.

É certo que o referido artigo 10.o não dá indicações explícitas quanto à forma como se deve apreciar se a lei estrangeira em princípio aplicável desfavorece um dos cônjuges em razão do seu sexo. No entanto, o referido artigo não contém nenhuma menção da qual resulte que a lei do foro apenas pode derrogar uma lei que prevê um acesso desigual ao divórcio quando esta produz efeitos discriminatórios no caso concreto, como considera o órgão jurisdicional de reenvio. Conforme sublinha o Governo francês, resulta, pelo contrário, da formulação deste artigo que é suficiente que a lei estrangeira seja discriminatória pelo seu conteúdo para que seja afastada pelo órgão jurisdicional de um Estado‑Membro participante.

76.

Considero que o conteúdo do considerando 24 do Regulamento n.o 1259/2010 também não apoia a tese defendida pelo órgão jurisdicional de reenvio, por R. Mamisch e pelo Governo alemão. É possível que a redação do referido considerando na sua versão em língua alemã se preste a confusão, na medida em que a expressão preliminar «Em certas situações,» é diretamente seguida de termos que significam «nas quais a lei aplicável […] não reconhece […] uma igualdade de acesso ao divórcio ou à separação judicial» ( 81 ). As palavras de ligação que sublinhei podiam levar a pensar que importa analisar os efeitos concretos desta lei em relação à situação específica dos cônjuges em causa ( 82 ).

77.

Todavia, a formulação adotada noutras versões linguísticas é desprovida de tal fonte de ambiguidade ( 83 ). Com base nestas últimas e tendo em conta os trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 1259/2010 ( 84 ), parece‑me que a utilização da referida expressão preliminar remete simplesmente para as situações descritas no artigo 10.o para definir os casos concretos que abrange, como afirma a Comissão, e que não pode ser entendida no sentido de que reflete uma vontade do legislador de limitar a aplicação desta disposição apenas aos divórcios em que a discriminação visada ocorreu in concreto.

78.

Em todo o caso, em conformidade com jurisprudência constante, a redação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de base única à interpretação dessa disposição nem lhe poder ser atribuído caráter prioritário em relação às outras versões linguísticas. Efetivamente, a necessidade de uma aplicação e, por conseguinte, de uma interpretação uniforme de um ato da União exclui que este seja considerado isoladamente numa das suas versões. Por conseguinte, em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto do direito da União, o alcance da disposição em causa deve ser apreciado em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento ( 85 ).

79.

Ora, a interpretação que proponho que o Tribunal de Justiça adote é, na minha opinião, confirmada, em segundo lugar, pela sistemática geral do Regulamento n.o 1259/2010. Mais especificamente, o artigo 10.o do referido regulamento deve ser interpretado à luz do seu artigo 12.o, o qual permite recusar a aplicação de uma disposição da lei designada nos termos desse instrumento quando a sua aplicação seja manifestamente incompatível com a ordem pública do foro, bem como à luz do seu considerando 25, relativo ao conteúdo deste artigo 12.o ( 86 ).

80.

A este propósito, R. Mamisch e o Governo alemão alegam que, na medida em que constitui uma derrogação às regras que designam a lei em princípio aplicável, e uma expressão específica da exceção geral de ordem pública suprarreferida, o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 deve ser interpretado de forma estrita, donde decorre que a existência de uma discriminação deve ser procurada caso a caso, pelo menos no âmbito da análise da validade de um divórcio já decretado no estrangeiro ( 87 ).

81.

Pela minha parte, à semelhança dos Governos húngaro e português e da Comissão, considero inapropriado proceder a uma interpretação restritiva do âmbito de aplicação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010, por via de «redução teleológica» segundo os termos utilizados pelo órgão jurisdicional de reenvio, que levaria a exigir que a lei estrangeira fosse discriminatória não só em consequência do seu conteúdo, mas também à luz dos seus efeitos concretos.

82.

Uma comparação tanto da redação como do espírito dessas disposições demonstra que o artigo 10.o não pode ser entendido como uma simples declinação da reserva de ordem pública enunciada no artigo 12.o do referido regulamento ( 88 ), apesar de estas disposições serem complementares ( 89 ). Com efeito o artigo 10.o está formulado em termos mais amplos, dado que permite derrogar a lei estrangeira na sua totalidade, e não unicamente afastar «uma disposição» isolada considerada incompatível com a ordem pública do foro, como prevê o artigo 12.o Por outro lado, contrariamente ao artigo 12.o, que dá aos juízes nacionais a liberdade de interpretarem de forma discricionária a existência de uma violação da ordem pública, o artigo 10.o não contém tal margem de interpretação ( 90 ), mas destina‑se a ser aplicado de forma quase automática, assim que o tribunal em que o processo foi instaurado constate que as condições que enuncia estão efetivamente reunidas ( 91 ).

83.

O preâmbulo do Regulamento n.o 1259/2010 corrobora esta análise, uma vez que o considerando 25 esclarece que o tribunal em que o processo foi instaurado pode recorrer à exceção prevista no artigo 12.o para «recusar a aplicação de uma disposição da lei estrangeira a um caso específico quando isso for manifestamente contrário à ordem pública do foro» ( 92 ), isto é, tendo em atenção os efeitos concretos desta lei no caso em apreço, ao passo que não há expressão equivalente no considerando 24 em relação ao artigo 10.o ( 93 ).

84.

Em terceiro lugar e sobretudo, a tese que defendo responde plenamente, na minha opinião, à finalidade específica da disposição cuja interpretação é pedida. Parece‑me que o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 se destina a proteger um direito tão fundamental, a saber, o direito ao divórcio em condições de igualdade entre homens e mulheres, que não pode ser possível restringi‑lo, nem mesmo nos termos da lei em princípio aplicável ao divórcio, independentemente do facto de essa lei ser designada pela vontade das pessoas em causa ou por efeito de outras disposições do referido regulamento ( 94 ). O direito a um tratamento sem discriminações, em especial baseadas no sexo, constitui efetivamente, conforme sublinha o Governo português, um dos direitos fundamentais consagrados tanto pelos Tratados como pelo artigo 21.o da Carta ( 95 ).

85.

Tendo em atenção o considerando 30 do Regulamento n.o 1259/2010 ( 96 ) e os trabalhos que levaram à adoção deste instrumento ( 97 ), partilho do parecer do Governo húngaro e da Comissão segundo o qual o legislador da União considerou que a discriminação visada pelo seu artigo 10.o, a saber, baseada no sexo dos cônjuges, se reveste de uma gravidade tal que deve conduzir à rejeição absoluta, sem nenhuma possibilidade de exceção casuística, da totalidade da lei que de outra forma deveria ser aplicada ( 98 ). Esta finalidade não seria conseguida se fosse permitido que uma lei estrangeira discriminatória produzisse efeitos no território de um Estado‑Membro participante pelo facto de o cônjuge discriminado in abstracto não ter sido lesado in concreto.

86.

Em quarto lugar, se assim fosse, a realização dos objetivos prosseguidos pela regulamentação da qual o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 constitui um elemento estaria, na minha opinião, comprometida. Com efeito, resulta dos seus considerandos 9, 21, 22 e 29 que o referido regulamento tem por objeto uniformizar as normas de conflitos de leis em matéria de divórcio e de separação judicial, para reforçar a segurança jurídica, a previsibilidade e a flexibilidade, prevenindo o risco de forum shopping, nos processos de divórcio de caráter internacional, e, consequentemente, facilitar a livre circulação de pessoas na União ( 99 ). Ora, se a derrogação prevista neste artigo 10.o devesse depender de uma avaliação feita in concreto pelos juízes nacionais competentes, os objetivos gerais acima referidos não seriam alcançados, uma vez que a lei finalmente aplicável seria determinada depois de uma análise casuística, e não de maneira sistemática, consequentemente segura e previsível.

87.

Por último, a interpretação que preconizo responde a considerações de ordem funcional. A este propósito, recordo que o Regulamento n.o 1259/2010 tem normalmente por objeto designar a lei aplicável ao divórcio em situações que contêm um elemento transfronteiriço, quando um órgão jurisdicional de um dos Estados‑Membros participantes é chamado a pronunciar‑se num pedido de divórcio ( 100 ), e não num pedido de reconhecimento de uma decisão de divórcio já proferida, conforme resulta no caso em apreço da aplicação das normas de direito alemão. Ora, como salienta o Governo francês, no âmbito normal de aplicação deste instrumento, parte‑se da hipótese de que o divórcio ainda não foi decretado ou declarado, pelo que a maior parte das vezes será difícil, se não impossível, determinar nesta fase prévia se a aplicação da lei designada nos termos dos artigos 5.o ou 8.o deste regulamento terá in concreto um efeito discriminatório em razão do sexo de um dos cônjuges no que se refere ao acesso ao divórcio.

88.

Para resolver este problema, considero impossível seguir a via, sugerida pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelo Governo alemão, segundo a qual se poderia adotar uma abordagem específica, «pelo menos», quando o órgão jurisdicional é chamado a analisar a validade de um divórcio já decretado no estrangeiro, como acontece no processo principal, e pode, por conseguinte, ter uma visão retrospetiva sobre a situação concreta. Na minha opinião, tendo em conta a necessidade de interpretar esta disposição do direito da União de forma objetiva, geral e uniforme ( 101 ), não é admissível alterar a interpretação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 consoante a instância diga respeito a um pedido de divórcio, situação normal de aplicação deste regulamento, em que basta existir uma discriminação abstrata, ou a um reconhecimento de uma decisão de divórcio, situação de aplicação deste regulamento que resulta do direito alemão, em que é preciso necessário constatar‑se uma discriminação concreta.

89.

Em conclusão, na minha opinião, importa responder à segunda questão prejudicial que o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 deve ser interpretado no sentido de que a lei do foro deve ser aplicada quando a lei estrangeira aplicável nos termos dos artigos 5.o ou 8.o deste regulamento induz uma discriminação in abstrato, tendo em conta o seu conteúdo, e não apenas quando esta última lei provoca uma discriminação in concreto, tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço.

2.  Quanto à irrelevância do eventual consentimento do cônjuge discriminado nos termos da aplicação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010

90.

A terceira questão é submetida apenas no caso de o Tribunal de Justiça declarar, em resposta à segunda questão, que se deve seguir a segunda via nela considerada, a saber, que a intervenção derrogatória da lex fori nos termos do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 pressupõe que a aplicação da lei estrangeira em princípio designada seja discriminatória, para um dos cônjuges, no caso em apreço. Uma vez que proponho dar a resposta contrária à segunda questão, considero que o Tribunal de Justiça não tem de se pronunciar sobre a terceira questão. Todavia, apresentarei algumas observações a seu respeito, a título subsidiário.

91.

Com a sua última questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça para determinar se a circunstância de o cônjuge discriminado ter consentido no divórcio, inclusive sob a forma de uma aceitação de uma compensação, permite não aplicar neste caso a regra prevista no artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010. Esse órgão jurisdicional refere que, perante um consentimento devidamente comprovado do cônjuge teoricamente lesado ( 102 ), está inclinado a não aplicar a referida regra, de forma que continuaria a aplicar‑se a lei designada pelo artigo 5.o ou pelo artigo 8.o deste regulamento. Acrescenta, referindo jurisprudência alemã nesse sentido, que em caso de aplicabilidade da lei síria, esta devia ser apreciada, no caso concreto, à luz da ordem pública alemã.

92.

O Governo alemão partilha desta análise, uma vez que considera que, no caso concreto, pode não haver discriminação na aceção do referido artigo 10.o, quando o cônjuge discriminado in abstracto pela lei aplicável nos termos de outras disposições do Regulamento n.o 1259/2010 tenha declarado consentir no divórcio, desde que esse consentimento tenha sido dado livremente e de uma maneira suscetível de ser comprovada indubitavelmente, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço ( 103 ). R. Mamisch expressou uma opinião semelhante na audiência ( 104 ).

93.

Em contrapartida, os Governos francês, húngaro e português e a Comissão sustentam a tese contrária, posição que também é a minha, pelos seguintes fundamentos.

94.

Em primeiro lugar, sublinho, à semelhança da Comissão, que a redação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 não contém nenhuma reserva que permita aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros participantes afastar a exceção enunciada nesta disposição no caso de a aplicação da lei estrangeira em princípio aplicável, por hipótese intrinsecamente discriminatória, não provocar na prática nenhum prejuízo para o cônjuge discriminado.

95.

Acresce que, resulta da formulação do artigo 10.o, assim como do considerando 24 do Regulamento n.o 1259/2010, que o fator de discriminação que justifica a aplicação derrogatória da lex fori é uma falta de «igualdade de acesso ao divórcio ou à separação judicial» ( 105 ). O Governo francês salienta, com razão, que importa não confundir a aceitação por um cônjuge das consequências de um processo de divórcio, por um lado, e a aceitação por esse mesmo cônjuge do princípio do divórcio, por outro ( 106 ). Ora, considero que só este último caso corresponde à expressão que é utilizada nas disposições supramencionadas. Esta análise parece‑me corroborada pelo facto de o referido regulamento abranger unicamente a dissolução do casamento propriamente dita, sendo que exclui expressamente do seu âmbito de aplicação questões jurídicas que não tenham sido suscitadas no início, mas sobretudo ao longo, ou até no termo, de um processo de divórcio, como os efeitos patrimoniais do casamento ou as obrigações de alimentos ( 107 ).

96.

Assim, parece‑me que a terceira questão prejudicial assenta numa premissa errada, na medida em que evoca o «facto de o cônjuge discriminado dar o seu consentimento [ao] divórcio, incluindo através da aceitação de uma compensação» ( 108 ). Com efeito, esta fórmula equipara, erradamente na minha opinião, a aceitação comprovada de um dos efeitos do divórcio ( 109 ) à suposta aceitação do princípio do próprio divórcio ( 110 ), apesar de os dois acontecimentos referidos se produzirem em fases bem diferentes do processo de divórcio ( 111 ).

97.

A este respeito, no litígio no processo principal, a circunstância de S. Sahyouni se ter oposto à decisão que admitiu o reconhecimento na Alemanha do divórcio decretado na Síria ( 112 ) parece‑me reveladora de que, não obstante o documento escrito nos termos do qual declarou aceitar a compensação paga pelo seu marido, não quis consentir no próprio divórcio.

98.

É certo que, por princípio, compete apenas ao tribunal onde o processo foi instaurado decidir sobre a apreciação de elementos factuais que constituem a existência e o alcance de um eventual consentimento dado por uma parte. No entanto, considero necessário esclarecer esse órgão jurisdicional quanto aos elementos que deve tomar em conta aquando da aplicação do artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 que possa ser levado a fazer ( 113 ).

99.

Em todo o caso, admitindo que o consentimento dado pela espessa discriminada ao divórcio seja considerado provado por esse órgão jurisdicional, tal constatação não pode levar a afastar a regra de direito enunciada no referido artigo.

100.

Com efeito, a abordagem equacionada pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua última questão prejudicial não está conforme, em segundo lugar, com os objetivos visados pelo Regulamento n.o 1259/2010, mais especificamente pelo seu artigo 10.o

101.

A este respeito, a Comissão afirma, nas suas observações escritas e orais, que a regra que consta deste artigo 10.o preenche uma função de proteção a favor do cônjuge discriminado, uma vez que se trata da parte que está em situação maior fraqueza, e que essa função ficaria comprometida se a referida regra tivesse caráter facultativo. Com efeito, haveria um risco de essa parte aceitar renunciar à aplicação da lei do foro, talvez sem mesmo saber que esta lhe era mais favorável ( 114 ).

102.

Resulta dos trabalhos preparatórios que levaram à adoção do Regulamento n.o 1259/2010 que o princípio da autonomia da vontade das partes imposto por este instrumento foi enquadrado, pela instauração de garantias especiais, tanto para fazer respeitar os «valores comuns da União Europeia» ( 115 ) como para proteger o cônjuge mais fraco ( 116 ). Ora, o dispositivo derrogatório previsto no seu artigo 10.o ficaria privado de efeito útil e, por conseguinte, os objetivos supramencionados não seriam alcançados, se o cônjuge discriminado pudesse aceitar perder o benefício, consentindo em ser objeto de um divórcio desigual, devido a coação exercida pelo seu cônjuge, em consequência da sua vontade pessoal de sair de uma situação conflituosa ou por simples ignorância dos seus direitos.

103.

Em terceiro lugar, um estudo do sistema em que se inscreve o artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 apoia a interpretação tanto literal como teleológica que proponho adotar. Com efeito, este artigo garante o primado dos requisitos que estabelece, não apenas sobre a lei escolhida pelos cônjuges, nos termos do artigo 5.o do referido regulamento, mas também sobre a lei aplicável na ausência de uma escolha por parte destes, nos termos do seu artigo 8.o Conforme a Comissão salientou, o artigo 10.o é aplicável a partir do momento em que as condições objetivas da sua aplicação estão preenchidas e permite privilegiar a lei do foro mesmo quando a lei discriminatória tenha sido expressamente designada pelas partes. Infere‑se daqui que a regra prevista no referido artigo, que assenta no respeito de valores considerados fundamentais, foi dotada de caráter imperativo e, por conseguinte, colocada, por vontade do legislador da União, fora da esfera da livre disposição dos seus direitos pelas pessoas em causa ( 117 ).

104.

Consequentemente, penso que no caso de se verificar que o cônjuge discriminado em razão do sexo — por efeito da lei aplicável segundo o artigo 5.o ou o artigo 8.o do Regulamento n.o 1259/2010 — consentiu no divórcio, esse consentimento não pode conduzir ao afastamento da lei do foro nos termos do artigo 10.o do referido regulamento, quando estejam reunidas as condições previstas por este último artigo. Por outras palavras, importa, na minha opinião, dar uma resposta negativa à terceira questão prejudicial, no caso de o Tribunal de Justiça se pronunciar sobre este pedido subsidiário.

V. Conclusão

105.

Tendo em atenção as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha), da seguinte forma:

1)

As disposições do Regulamento (UE) n.o 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial, em especial o seu artigo 1.o, devem ser interpretadas no sentido de que não se enquadram no seu âmbito de os divórcios decretados sem decisão com efeito constitutivo de um tribunal ou de uma outra autoridade pública, tal como um divórcio resultante da declaração unilateral de um cônjuge registada por um tribunal religioso.

2)

A título subsidiário, na hipótese de o Tribunal de Justiça declarar que esses divórcios de natureza privada se enquadram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1259/2010, o artigo 10.o deve ser interpretado no sentido de que, por um lado, a lei do foro é aplicável quando a lei estrangeira designada nos termos do artigo 5.o ou 8.o deste regulamento gere in abstrato uma discriminação em razão do sexo de um dos cônjuges, e, por outro, a circunstância de o cônjuge discriminado ter eventualmente consentido no divórcio é irrelevante para efeitos da aplicabilidade do referido artigo.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2010, L 343, p. 10. Este ato é usualmente denominado «Regulamento Roma III».

( 3 ) EU:C:2016:343.

( 4 ) Os principais fundamentos dessa decisão são resumidos no n.o 26 das presentes conclusões.

( 5 ) Este regulamento, que entrou em vigor em 30 de dezembro de 2010, é aplicável desde 21 de junho de 2012 nos Estados‑Membros que participaram nessa cooperação ab initio, dos quais a República Federal da Alemanha faz parte. Atualmente, é aplicável na Bélgica, na Bulgária, na Alemanha, na Grécia, em Espanha, em França, na Itália, na Letónio, na Lituânia, no Luxemburgo, na Hungria, em Malta, na Áustria, em Portugal, na Romênia e na Eslovénia. Também será aplicável na Estónia a partir de 11 de fevereiro de 2018 [v. Decisão (UE) 2016/1366 da Comissão, de 10 de agosto de 2016, que confirma a participação da Estónia na cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial (JO 2016, L 216, p. 23)].

( 6 ) JO 2003, L 338, p. 1.

( 7 ) Texto acessível, em línguas alemã e inglesa, no seguinte endereço Internet: http://www.gesetze‑im‑internet.de/famfg/index.html.

( 8 ) A saber, a Gesetz zur Anpassung der Vorschriften des Internationalen Privatrechts an die Verordnung (EU) Nr. 1259/2010 und zur Änderung anderer Vorschriften des Internationalen Privatrechts (Lei que adapta determinadas disposições do direito internacional privado ao Regulamento n.o 1259/2010 e altera outras disposições do direito internacional privado), de 23 de janeiro de 2013 (BGBl. 2013 I, p. 101), que entrou em vigor em 29 de janeiro de 2013.

( 9 ) EU:C:2016:343, n.os 9 a 14.

( 10 ) Com uma taxa de câmbio de cerca de 0,75 euro por 1 USD, em 12 de setembro de 2013.

( 11 ) Mais precisamente, na aceção do § 5, n.o 1, da EGBGB.

( 12 ) EU:C:2016:343, n.os 18 a 33.

( 13 ) V., nomeadamente, acórdãos de 31 de janeiro de 2017, Lounani (C‑573/14, EU:C:2017:71, n.o 56), e de 14 de junho de 2017, Menini e Rampanelli (C‑75/16, EU:C:2017:457, n.o 28).

( 14 ) V., nomeadamente, despacho de 16 de abril de 2008, Club Náutico de Gran Canaria (C‑186/07, não publicado, EU:C:2008:227, n.o 19), e acórdão de 7 de julho de 2011, Agafiţei e o. (C‑310/10, EU:C:2011:467, n.o 28).

( 15 ) EU:C:2016:343.

( 16 ) V. n.o 19 do despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni (C‑281/15, EU:C:2016:343).

( 17 ) Cuja lista figura na nota 5 das presentes conclusões.

( 18 ) Quanto ao Regulamento n.o 2201/2003, o Tribunal de Justiça recordou que o seu âmbito de aplicação está limitado ao reconhecimento das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais dos outros Estados‑Membros (v. n.os 20 a 22 do despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni, C‑281/15, EU:C:2016:343).

( 19 ) Acórdão de 18 de outubro de 1990 (C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360, n.os 36 e 37).

( 20 ) V., nomeadamente, as decisões referidas nos n.os 24 a 29 do despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni (C‑281/15, EU:C:2016:343).

( 21 ) V., também, as conclusões que apresentei no processo Europamur Alimentación (C‑295/16, EU:C:2017:506, n.os 43 e 44).

( 22 ) V., nomeadamente, acórdãos de 18 de outubro de 2012, Nolan (C‑583/10, EU:C:2012:638, n.os 45 e segs.), e de 7 de novembro de 2013, Romeo (C‑313/12, EU:C:2013:718, n.os 21 e segs.); despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni (C‑281/15, EU:C:2016:343, n.os 27 e segs.); acórdãos de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.os 53 e segs.), e de 5 de abril de 2017, Borta (C‑298/15, EU:C:2017:266, n.os 33 e 34).

( 23 ) V., neste sentido, acórdão de 7 de janeiro de 2003, BIAO (C‑306/99, EU:C:2003:3, n.os 90 e segs.).

( 24 ) Acórdão de 14 de março de 2013, Allianz Hungária Biztosító e o. (C‑32/11, EU:C:2013:160, n.o 23).

( 25 ) V., nomeadamente, despacho de 30 de janeiro de 2014, C. (C‑122/13, EU:C:2014:59, n.o 15), e acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten (C‑268/15, EU:C:2016:874, n.os 54 e 55).

( 26 ) V., nomeadamente, despacho de 30 de junho de 2011, Wamo (C‑288/10, EU:C:2011:443, n.os 26 e segs.); acórdãos de 13 de junho de 2013, Kostov (C‑62/12, EU:C:2013:391, n.os 24 e 25); de 21 de setembro de 2016, Etablissements Fr. Colruyt (C‑221/15, EU:C:2016:704, n.o 15); e de 4 de maio de 2017, HanseYachts (C‑29/16, EU:C:2017:343, n.o 34).

( 27 ) V. acórdãos de 18 de outubro de 1990, Dzodzi (C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360, n.os 41 e 42), e de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem (C‑28/95, EU:C:1997:369, n.o 33).

( 28 ) V., nomeadamente, acórdãos de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem (C‑28/95, EU:C:1997:369, n.os 28 e segs.); de 18 de outubro de 2012, Nolan (C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 51); e de 7 de novembro de 2013, Romeo (C‑313/12, EU:C:2013:718, n.o 33); despachos de 3 de setembro de 2015, Orrego Arias (C‑456/14, não publicado, EU:C:2015:550, n.os 23 a 25), e de 28 de junho de 2016, Italsempione — Spedizioni Internazionali (C‑450/15, não publicado, EU:C:2016:508, n.os 22 e 23).

( 29 ) Assim, no acórdão de 18 de outubro de 2012, Nolan (C‑583/10, EU:C:2012:638, n.os 53 a 57), o Tribunal de Justiça declarou‑se incompetente com fundamento de que o «ato da União [em causa] prev[ia] expressamente um caso de exclusão do seu âmbito de aplicação» nas circunstâncias do processo principal e que «não se pod[ia] afirmar ou presumir que exist[ia] um interesse da União em que, num domínio excluído pelo legislador da União do âmbito de aplicação do ato que adotou, se proced[esse] a uma interpretação uniforme das disposições desse ato».

( 30 ) V., nomeadamente, acórdão de 14 de março de 2013, Allianz Hungária Biztosító e o. (C‑32/11, EU:C:2013:160, n.o 21).

( 31 ) Entre outros, acórdão de 21 de julho de 2016, VM Remonts e o. (C‑542/14, EU:C:2016:578, n.o 18).

( 32 ) V., nomeadamente, acórdãos de 7 de novembro de 2013, Romeo (C‑313/12, EU:C:2013:718, n.o 25); de 14 de janeiro de 2016, Ostas celtnieks (C‑234/14, EU:C:2016:6, n.os 19 a 21); e de 5 de abril de 2017, Borta (C‑298/15, EU:C:2017:266, n.o 32).

( 33 ) No n.o [31] do despacho de 12 de maio de 2016, Sahyouni (C‑281/15, EU:C:2016:343), o Tribunal de Justiça salientou que o órgão jurisdicional de reenvio se tinha limitado, no referido pedido, a afirmar que o «presidente do Oberlandesgericht München [Tribunal Regional Superior de Munique] entendeu que a admissibilidade do reconhecimento da decisão é regulada pelo [Regulamento n.o 1259/2010]; entende que este também é aplicável aos divórcios privados».

( 34 ) Sublinho que o termo «reconhecimento» utilizado a este propósito na decisão de reenvio deve ser entendido, na aceção do direito alemão, no sentido de que visa a análise da legalidade de um divórcio privado decretado no estrangeiro — análise que requer que se resolva previamente um conflito de leis para determinar o regime jurídico aplicável a esse divórcio —, e não no sentido de que tem o mesmo significado que o conceito empregue no Regulamento n.o 2201/2003 quanto à receção na ordem jurídica de um Estado‑Membro de uma decisão proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro.

( 35 ) V. n.os 37 e 38 das presentes conclusões.

( 36 ) V. n.os 34 a 36 das presentes conclusões.

( 37 ) A decisão de reenvio refere que o direito sírio reconhece esse acordo bem como uma autorização de natureza declaratória de um juiz, remetendo para os artigos 85.o e segs. da Lei síria n.o 59, de 17 de setembro de 1953, conforme alterada pela Lei n.o 34, de 31 de dezembro de 1975, relativa ao estatuto pessoal, que estão reproduzidas em Bergmann, A., Ferid, M., e Henrich, D., Internationales Ehe‑ und Kindschaftsrecht, Verlag für Standesamtswesen, Francfort, 1981, vol. 17, parte «Syrie», pp. 11 e segs.

( 38 ) V. n.o 15 das presentes conclusões.

( 39 ) V. n.o 16 das presentes conclusões.

( 40 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere que partilha da posição dominante, esclarecendo que uma parte da doutrina e da jurisprudência alemãs consideram que o Regulamento n.o 1259/2010 só é aplicável quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro participante decide, ele próprio, sobre um pedido de divórcio, e não no âmbito de um processo de reconhecimento de um divórcio já decretado no estrangeiro.

( 41 ) V. acórdão do Bundesgerichtshof (Tribunal Federal de Justiça, Alemanha), de 28 de maio de 2008 (XII ZR 61/06, n.o 36), acessível no seguinte endereço Internet: http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi‑bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&nr=44298&pos=0&anz=1.

( 42 ) V. n.os 17 e 18 das presentes conclusões.

( 43 ) No caso em apreço, uma revisão do mérito é considerada inútil pelo facto de um órgão jurisdicional ou uma administração estrangeira só decretar um divórcio depois de ele próprio ter analisado os requisitos legais exigíveis para esse efeito.

( 44 ) Este modo de tratamento dos divórcios estrangeiros de natureza estatal é qualificado de «reconhecimento processual» («verfahrensrechtliche Anerkennung» em língua alemã).

( 45 ) Os órgãos jurisdicionais alemães não procedem a nenhuma fiscalização que vá além dos obstáculos ao reconhecimento listados por esse artigo, entre os quais figura o dano à ordem pública alemã.

( 46 ) Conforme definido no n.o 4 das presentes conclusões.

( 47 ) Do ponto de vista do direito alemão, justifica‑se uma verificação mais estrita, que ultrapasse a análise de determinados fundamentos de recusa, em relação a tais divórcios, uma vez que não há garantia da correta fundamentação equivalente à que resulta da participação constitutiva de uma autoridade pública.

( 48 ) Este modo de tratamento dos divórcios estrangeiros de natureza privada é qualificado de «reconhecimento com fundamento das normas de conflito de leis» («kollisionsrechtliche Anerkennung» em língua alemã), embora a utilização do termo «reconhecimento» seja, do meu ponto de vista, algo enganadora (v. também nota 34 das presentes conclusões).

( 49 ) Nos termos da exposição de motivos do projeto da lei de 23 de janeiro de 2013, evocada no n.o 18 das presentes conclusões, «[a]penas o Tribunal de Justiça da União Europeia pode dar uma interpretação vinculativa ao Regulamento [n.o 1259/2010]. Por conseguinte, é a essa instituição que compete em primeiro lugar clarificar os pontos obscuros. Todavia, importa chamar a atenção para determinados pontos que podem ser importantes para uma interpretação do ato jurídico na Alemanha[.] O Regulamento [n.o 1259/2010] também é aplicável aos divórcios privados. É verdade que as suas disposições não regulam expressamente esse domínio de aplicação alargado, mas, nos termos do seu considerando 9, procura criar um quadro jurídico completo no domínio da lei aplicável ao divórcio e à separação judicial. O divórcio privado não figura entre os domínios aos quais o regulamento não é aplicável nos termos do seu artigo 1.o, n.o 2. O artigo 4.o, que prevê a aplicação universal do referido regulamento, não comporta nenhuma limitação no que se refere aos ordenamentos jurídicos que autorizam o divórcio privado. A única razão pela qual o Regulamento [n.o 1259/2010] se orienta, em determinadas áreas, pelo modelo ‘normal’ do divórcio e da separação judicial decretado por um órgão jurisdicional reside — segundo a nossa apreciação — no facto de o divórcio privado ser desconhecido nos ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros participantes» (v. Bundestag Drucksache n.o 17/11049, de 17 de outubro de 2012, p. 8, acessível no seguinte endereço Internet: http://dip21.bundestag.de/dip21/btd/17/110/1711049.pdf).

( 50 ) Embora alguns autores sugiram soluções para preencher o «vazio jurídico» que foi gerado por essa supressão segundo o órgão jurisdicional de reenvio (a saber, uma aplicação por analogia quer dos §§ 14 e 17 da antiga versão da EGBGB quer das disposições do Regulamento n.o 1259/2010), não deixa de ser verdade que resultam ainda daí grandes incertezas jurídicas, parece‑me, em direito alemão (v., nomeadamente, Helms, T., «Reform des internationales Scheidungsrechts durch die Rom III‑Verordnung», FamRZ, 2011, n.o 22, pp. 1765 e segs., e Pika, M., e Weller, M.‑P., «Privatscheidungen zwischen Europäischem Kollisions‑ und Zivilprozessrecht», IPRax, 2017, n.o 1, pp. 65 e segs.).

( 51 ) Sublinho que, por conseguinte, se trata aqui de uma regra de direito de origem jurisprudencial e não de uma simples suposta prática de uma autoridade administrativa, como a que levou o Tribunal de Justiça a rejeitar a sua competência no despacho de 28 de junho de 2016, Italsempione — Spedizioni Internazionali (C‑450/15, não publicado, EU:C:2016:508, n.os 22 e 23), com o fundamento de que «a descrição de uma prática nacional da Autoridade da concorrência não pode ser considerada uma remissão direta e incondicional para o direito da União».

( 52 ) Tal era o caso, nomeadamente, no processo referido na nota 29 das presentes conclusões.

( 53 ) Pelos fundamentos que serão referidos nos n.os 52 e segs. das presentes conclusões.

( 54 ) Em conformidade com a jurisprudência evocada no n.o 31 das presentes conclusões.

( 55 ) Recorde‑se que é facto assente que as disposições do Regulamento n.o 1259/2010 não são aplicáveis diretamente no caso em apreço (v. n.os 32 e 33 das presentes conclusões).

( 56 ) V. n.os 34 e segs. das presentes conclusões.

( 57 ) V. n.os 32 e segs. das presentes conclusões.

( 58 ) V. n.o 35 das presentes conclusões.

( 59 ) Esta tese também é defendida por uma parte da doutrina alemã, mas que parece não ser maioritária (v., nomeadamente, Wiese, V., «Article 1 [Rome III], Scope», em Rome Regulations, Commentary, sob a direção de G.‑P. Calliess, Kluwer Law International, Alphen aan den Rijn, 2.a edição, 2015, p. 861, n.o 12, e comentário do artigo 1.o do Regulamento n.o 1259/2010 de Corneloup, S., em Droit européen de divorce, Travaux de Centre de recherche sur le droit des marchés e des investissements internationaux, vol. 39, LexisNexis, Paris, 2013, pp. 497 a 499, n.os 9 e 10).

( 60 ) V., nomeadamente, acórdãos de 9 de novembro de 2016, Wathelet (C‑149/15, EU:C:2016:840, n.o 28), e de 9 de março de 2017, Pula Parking (C‑551/15, EU:C:2017:193, n.o 42).

( 61 ) V. artigo 1.o, n.o 2, alínea c), e considerando 10, segundo período, do referido regulamento.

( 62 ) A saber, «todas as autoridades dos Estados‑Membros participantes competentes nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento». Segundo o seu considerando 13, o Regulamento n.o 1259/2010 «deverá aplicar‑se independentemente da natureza do tribunal em que o processo é instaurado».

( 63 ) V., nomeadamente, artigo 1.o, n.o 2, artigo 5.o, n.os 2 e 3, artigos 8.o e 13.o bem como artigo 18.o, n.o 1, deste regulamento.

( 64 ) Segundo alguns autores, «tanto os tribunais em sentido estrito como as autoridades administrativas, incluindo os notários, serão levados a aplicar as novas regras, que abrangerão por isso mesmo diversas formas de divórcio, desde um processo judicial a um ato voluntário particular simplesmente autenticado, ou mesmo um divórcio privado. O que conta é o objeto do processo, não as suas modalidades. No entanto, continuam excluídas a priori do âmbito do diploma os processos puramente religiosos, uma vez que a autoridade não intervém neste caso em nome do Estado‑Membro participante, salvo se instituída por ele» (v. Hammje, P., «Le nouveau règlement [n.o 1259/2010]», Revue critique de droit international privé, 2011, pp. 291 e segs., n.o 7).

( 65 ) Uma vez que o referido artigo 10.o é objeto das outras questões submetidas ao Tribunal de Justiça no presente processo, dedicar‑lhe‑ei maiores desenvolvimentos a esse título (v. n.os 68 e segs. das presentes conclusões).

( 66 ) Com reserva das exceções previstas nos artigos 10.o e 12.o do Regulamento n.o 1259/2010 (quanto aos mecanismos previstos nestes artigos, v. n.os 79 e segs. das presentes conclusões).

( 67 ) Recordo que é sob a forma de uma revisão deste instrumento que foram iniciados originalmente os trabalhos legislativos que levaram à adoção do Regulamento n.o 1259/2010 [v. proposta de regulamento do Conselho que altera o Regulamento (CE) n.o 2201/2003 no que diz respeito à competência e introduz regras relativas à lei aplicável em matéria matrimonial, COM(2006) 399].

( 68 ) V. considerando 13 do Regulamento n.o 1259/2010 («[q]uando aplicável, deverá considerar‑se que o processo foi instaurado em conformidade com o Regulamento […] n.o 2201/2003») e o seu artigo 2.o (segundo o qual o Regulamento n.o 1259/2010 «não afeta a aplicação do Regulamento […] n.o 2201/2003»).

( 69 ) Conforme definidos no artigo 2.o, ponto 1, do Regulamento n.o 2201/2003 («todas as autoridades que nos Estados‑Membros têm competência nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento por força do artigo 1.o») em termos equivalentes aos utilizados no artigo 3.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1259/2010 (referido na nota 62 das presentes conclusões). A este propósito, observo que no âmbito dos trabalhos em curso sobre a revisão do Regulamento n.o 2201/2003, que diz principalmente respeito às suas disposições relativas à responsabilidade parental, está previsto esclarecer o conceito de «tribunal» de um Estado‑Membro, na aceção deste regulamento, de forma que remete de ora em diante mais claramente para «autoridades judiciais ou administrativas» de um Estado‑Membro [v. alterações do artigo 2.o do Regulamento n.o 2201/2003 que são preconizadas pela Comissão na sua proposta de regulamento do Conselho, de 30 de junho de 2016, COM(2016) 411 final, p. 35].

( 70 ) V., nomeadamente, artigo 1.o, n.o 1, alínea a); artigo 2.o, pontos 1 e 4; artigo 19.o, n.os 2 e 3, e artigo 21.o, n.o 1, de Regulamento n.o 2201/2003.

( 71 ) V. última frase do extrato do documento parlamentar referido na nota 49 das presentes conclusões.

( 72 ) A lista dos Estados‑Membros que participaram inicialmente nessa cooperação reforçada é referida no considerando 6 do Regulamento n.o 1259/2010.

( 73 ) Importa não confundir os casos de divórcios privados, como o do processo principal, e os casos de divórcios não judiciais, nos quais o juiz é substituído por uma outra autoridade pública (sobre este assunto, v. contributos de Bernand, Y., e Ferrand, F., em La rupture de mariage en droit comparé, sob a direção de F. Ferrand e H. Fulchiron, vol. 19 da collection Droit comparé e européen, Société de législation comparée, Paris, 2015, p. 49 e pp. 76 a 78).

( 74 ) Nos n.os 59 a 64 das presentes conclusões.

( 75 ) A prudência é tanto mais necessária quando foram constatadas nos Estados‑Membros participantes abordagens muito diferentes no que se refere à receção de decisões estrangeiras que consistem num repúdio (v. contribuição de Bidaud‑Garon, C., em La rupture de mariage en droit comparé, op. cit. na nota 73 das presentes conclusões, pp. 244 e 245).

( 76 ) Este primeiro caso raramente será encontrado na prática, porque poucos Estados proíbem o divórcio (v. casos referidos por Devers, A., e Farge, M., «Le nouveau droit international privé de divorce — À propos de règlement Rome III sur la loi applicable au divorce», Droit de la famille, 2012, n.o 6, estudo 13, n.o 28), e não constitui o objeto do presente litígio no processo principal, mas deve, contudo, ser recordado aquando da interpretação do referido artigo 10.o no presente processo.

( 77 ) Ao referir‑se aos artigos 85.o e 105.o da lei síria acima mencionada (nota 37 das presentes conclusões), o órgão jurisdicional de reenvio indica que, se o direito sírio for aplicável no caso em apreço não confere à esposa uma igualdade de acesso ao divórcio, na medida em que, embora reconheça, a par do divórcio por mútuo consentimento, um divórcio judicial por iniciativa da mulher, este divórcio está expressamente sujeito a uma ação judicial e a outras condições — a saber, uma doença ou enfermidade do marido — ao passo que confere ao marido um direito ilimitado para se divorciar unilateralmente.

( 78 ) Assim, o Governo belga absteve‑se de analisar a segunda e a terceira questões prejudiciais tendo em conta a resposta que propôs que fosse dada à primeira questão.

( 79 ) Recordo que a lei designada pelo Regulamento n.o 1259/2010 deve ser aplicada ainda que seja a de um Estado‑Membro não participante na cooperação reforçada ou a de um Estado terceiro.

( 80 ) Esta problemática difere daquela que consiste em saber se a apreciação do carácter discriminatório da lei estrangeira deve ser feita de maneira formal, visando uma estrita igualdade de direitos dos cônjuges face ao acesso ao divórcio, ou antes de maneira substantiva, visando uma simples equivalência desses direitos.

( 81 ) «In bestimmten Situationen, in denen das anzuwendende Rex […]» (o sublinhado é meu). Uma formulação equivalente figura, nomeadamente, na versão em língua dinamarquesa: «I visse situationer, hvor den valgte lov […]» (o sublinhado é meu).

( 82 ) Sobre esta problemática, v. Lein, E., «Article 10 [Rome III], Application of the Law to the Forum», em Rome Regulations, Commentary, op. cit., nota 59, n.o 11 e nota 24.

( 83 ) V., nomeadamente, versões em língua espanhola: «En algunas situaciones es oportuno, […] por ejemplo cuando la ley aplicable […]», em língua inglesa: «In certain situations, such as where the applicable law […]», em língua francesa: «Dans certaines situations, […] comme lorsque la loi applicable […]», em língua portuguesa: «Em certas situações, […] quando a lei aplicável […]» e em língua sueca: «I vissa situationer, till exempel när tillämplig lag […]» (o sublinhado é meu).

( 84 ) Inicialmente, o artigo 10.o deste regulamento foi concebido em relação direta com as disposições que designam a lei em princípio aplicável ao divórcio ou à separação judicial, e mais especificamente, com a regra enunciada no seu artigo 8.o (relativo à lei aplicável na ausência de escolha pelas partes), sendo que o atual artigo 9.o (relativo à conversão da separação judicial em divórcio) não figurava na versão inicial. Do mesmo modo, o considerando 24 do referido regulamento (que se reporta ao referido artigo 10.o) estava inserido logo depois do atual considerando 21 (que se reporta ao artigo 8.o), e, na minha opinião, é à luz desta antiga localização que se deve entender a expressão «Em certas situações», que figura no seu início, como um limite em relação aos princípios que então a precediam, sendo esta análise corroborada pela expressão «no entanto», que foi mantida neste considerando 24 (v. considerandos 19 e 20 e artigos 4.o e 5.o da proposta de regulamento apresentada pela Comissão em 24 de março de 2010 [COM(2010) 105 final], documento revisto em 16 de abril de 2010; Lein, E., op. cit., nota 82, n.o 11, in fine).

( 85 ) V., nomeadamente, acórdãos de 15 de março de 2017, Al Chodor (C‑528/15, EU:C:2017:213, n.os 30 a 32); de 26 de abril de 2017, Popescu (C‑632/15, EU:C:2017:303, n.o 35); e de 8 de junho de 2017, Sharda Europe (C‑293/16, EU:C:2017:430, n.o 21).

( 86 ) Nos termos do referido considerando 25, «[e]m circunstâncias excecionais, por considerações de interesse público, os tribunais dos Estados‑Membros participantes deverão ter possibilidade de recusar a aplicação de uma disposição da lei estrangeira a um caso específico quando isso for manifestamente contrário à ordem pública do foro. No entanto, os tribunais não deverão poder aplicar a exceção de ordem pública para recusar uma disposição da lei de outro Estado quando tal seja contrário à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, [a seguir ‘Carta'], em especial ao seu artigo 21.o, que proíbe qualquer forma de discriminação».

( 87 ) O Governo alemão sustenta que, neste contexto específico, não há nenhuma necessidade de aplicar integralmente a lei do foro, derrogando a lei estrangeira do divórcio conforme prevê o referido artigo 10.o, o qual está formulado para a situação genérica de um divórcio que é decretado com efeito constitutivo por uma decisão judicial, quando a discriminação abstrata operada por essa lei não tenha tido incidência concreta no caso em apreço.

( 88 ) Estas duas disposições estão separadas por uma outra, o artigo 11.o, que é relativo à exclusão do reenvio para as normas de direito internacional privado do Estado cuja lei é designada.

( 89 ) A exceção de ordem pública prevista no artigo 12.o do Regulamento n.o 1259/2010 pode ser aplicada quando as condições de aplicação do seu artigo 10.o não estão reunidas (em especial quando a discriminação em causa é baseada num critério diferente do sexo dos cônjuges).

( 90 ) Neste sentido, v. Devers, A., e Farge, M., op. cit., nota 76, n.o 28.

( 91 ) Este modo de aplicação, in abstracto, do referido artigo 10.o não significa, no entanto, que os juízes nacionais estejam privados do poder, ou dispensados do dever, de verificar se a lei designada nos termos de outras disposições do Regulamento n.o 1259/2010 é realmente discriminatória pelo seu conteúdo. Assim, não se pode presumir que as legislações de inspiração muçulmana devem ser, regra geral, afastadas com fundamento neste artigo (a este respeito, v. Möller, L.‑M., «No Fear of Talâq: Reconsideration of Muslim Divorce Laws in Light of the Rome III Regulation», Journal of Private International Law, 2014, vol. 10, n.o 3, pp. 461 a 487).

( 92 ) O sublinhado é meu.

( 93 ) Neste sentido, v. Lein, E., op. cit, nota 82, n.o 25 e doutrina referida pela autora. O último período que figura no considerando 24 («[t]al não deverá, contudo, prejudicar a cláusula de ordem pública») reforça, do meu ponto de vista, a distinção feita entre a regra prevista no artigo 10.o do Regulamento n.o 1259/2010 e a exceção de ordem pública que figura no seu artigo 12.o

( 94 ) Resulta da fundamentação de toda a primeira proposta que levou à adoção deste artigo 10.o que o objetivo inicial do legislador era «resolver os problemas com que se deparam determinadas mulheres estrangeiras que pedem a separação ou o divórcio em alguns dos Estados‑Membros», permitindo‑lhes aceder aos mesmos, não obstante a aplicabilidade da lei do Estado do qual têm a nacionalidade (v. alterações 25 e 30 propostas no relatório do Parlamento Europeu, de 21 de outubro de 2008, A6‑2008/361, sobre a proposta de regulamento COM(2006) 399, op. cit., nota 67].

( 95 ) Valores que são, aliás, comuns a outros Estados europeus, sabendo‑se que o princípio da igualdade entre cônjuges aquando da dissolução do casamento é proclamado no artigo 5.o do Protocolo n.o 7, anexo à Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinado no Conselho da Europa em 22 de novembro de 1984.

( 96 ) Nos termos do seu considerando 30, o Regulamento n.o 1259/2010 «respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos na [Carta], nomeadamente no seu artigo 21.o, que proíbe a discriminação em razão, designadamente, do sexo, […]» e «deverá ser aplicado pelos tribunais dos Estados‑Membros participantes respeitando esses direitos e esses princípios».

( 97 ) V. proposta de regulamento COM(2010) 105 final, pontos 5.3 e 6 da exposição de motivos (especialmente comentários dos artigos 2.o, 3.o e 5.o); considerados 14, 20 e 34, e artigo 3.o, n.o 1, e artigo 5.o Em particular, é aí referido explicitamente, no comentário do artigo 2.o dessa proposta que «foram aditadas cláusulas de salvaguarda para prevenir a aplicação de leis estrangeiras sobre o divórcio ou a separação judicial incompatíveis com os valores comuns da União Europeia» (o sublinhado é meu).

( 98 ) Quanto às preocupações formuladas, mais especificamente, pelos Estados‑Membros escandinavos quanto à génese deste artigo e às consequências a retirar daí para a sua interpretação, v. Möller, L.‑M., op. cit., nota 91, pp. 467 a 470.

( 99 ) V. também proposta de regulamento COM(2010) 105 final, n.os 2 e 5.3 da exposição de motivos, onde se salienta que a simplificação induzida beneficiará tanto os cônjuges como os profissionais da justiça.

( 100 ) É verdade que a substituição total de uma lei estrangeira discriminatória pela lei do foro, nos termos do artigo 10.o deste regulamento, pode causar problemas na medida em pode ter como consequência a criação de obstáculos ao reconhecimento num Estado terceiro, com o qual as partes tenham vínculos mais estreitos, de uma decisão de divórcio proferida num Estado‑Membro participante (a este respeito, v., nomeadamente, Lein, E., op. cit., nota 82, n.o 27 e doutrina referida). Contudo, a Comissão refere com razão que a solução para este problema incumbe ao legislador e que não pode ser resolvida, contornando a redação clara deste artigo 10.o, através de uma conexão deste último com o artigo 12.o do referido regulamento.

( 101 ) Isto pressupõe que a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça seja válida quaisquer que sejam as circunstâncias específicas do litígio no processo principal, as particularidades do caso jurídico concreto considerado ou as especificidades do direito do Estado‑Membro onde se situa o tribunal onde o processo foi instaurado. A este respeito, recordo que, segundo o seu considerando 9, o Regulamento n.o 1259/2010 visa «instituir um quadro jurídico claro e completo» no seu âmbito de aplicação e que o capítulo II, no qual figura o artigo 10.o, tem a epígrafe «Regras uniformes sobre a lei aplicável ao divórcio e à separação judicial» (o sublinhado é meu).

( 102 ) Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no caso em apreço, o facto de o cônjuge ter declarado, num documento assinado, que tinha recebido prestações financeiras e que dava ao marido quitação das suas obrigações nos termos do contrato de casamento pode ser considerado uma aceitação, por parte da interessada, do divórcio decretado.

( 103 ) O Governo alemão esclareceu que, do seu ponto de vista, pode não haver liberdade suficiente quer quando o cônjuge favorecido pela lei aplicável tenha coagido o outro cônjuge, utilizando a sua posição de força, para que aceite a compensação, quer quando o cônjuge abstratamente discriminado tenha dado o seu consentimento sem ter plenamente consciência do alcance da sua decisão ou com base em informações insuficientes, o que compete ao tribunal onde o processo foi instaurado analisar.

( 104 ) R. Mamisch alegou que o artigo 10.o não deve ser aplicado em detrimento da pessoa que beneficia de uma proteção contra as discriminações, o que, na sua opinião, é o caso, se não for possível reconhecer um repúdio, apesar de o cônjuge em questão ter aceitado livremente tal divórcio porque pretendia voltar a casar.

( 105 ) O sublinhado é meu.

( 106 ) O Governo francês deduz daqui que a circunstância de o cônjuge discriminado ter aceitado receber uma compensação não constitui um elemento suscetível de comprovar a sua vontade de consentir no divórcio e, por conseguinte, a existência de um processo de divórcio que respeite o princípio da igualdade de tratamento entre os cônjuges na aceção do artigo 10.o

( 107 ) V. artigo 1.o, n.o 2, alíneas e) e g), do referido regulamento e considerando 10.

( 108 ) O sublinhado é meu.

( 109 ) No caso em apreço, o pagamento de uma compensação financeira, efetuada em 12 de setembro de 2013.

( 110 ) Divórcio ocorrido, neste caso, por via de repúdio proferido pelo marido e em seguida registado por uma instância religiosa, em 19 e 20 de maio de 2013.

( 111 ) A equiparação feita pelo órgão jurisdicional de reenvio explica‑se talvez pelo facto de, segundo as normas alemãs de conflito de leis, esse pagamento em dinheiro poder ser regulado pela lei aplicável ao próprio divórcio, e não aos seus efeitos jurídicos, se fosse analisado como uma compensação, e não como a prestação de alimentos da esposa após o divórcio (v., neste sentido, Möller, L.‑M., op. cit., nota 91, p. 476 e nota 53).

( 112 ) Decisão evocada no n.o 22 das presentes conclusões.

( 113 ) Recorde‑se que o Tribunal de Justiça tem competência para fornecer todas as indicações, baseadas nos autos no processo principal e nas observações que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir ao órgão jurisdicional de reenvio decidir (v., nomeadamente, acórdão de 5 de junho de 2014, I, C‑255/13, EU:C:2014:1291, n.o 55).

( 114 ) A este respeito, a Comissão estabelece uma analogia com outros domínios do direito da União (nomeadamente a proteção dos consumidores), onde tais normas são imperativas, precisamente para evitar que a parte mais fraca, que provavelmente pode ser verdadeiramente pressionada pela parte mais forte, renuncie aos direitos que lhe são garantidos e perca então a proteção que o direito da União lhe quer conferir.

( 115 ) V. também n.os 84 e segs. das presentes conclusões.

( 116 ) V., nomeadamente, proposta de regulamento COM(2010) 105 final [n.os 2.2, 2.3 in fine, 5.3 e 6 (especialmente, comentários dos artigos 2.o, 3.o e 5.o) da exposição de motivos, considerandos 14, 20 e 24; artigo 3.o, n.o 1, e artigo 5.o], bem como parecer do Comité Económico e Social Europeu de 29 de abril de 2010 (JO 2011, C 44, p. 167, n.os 3.3 e 3.4).

( 117 ) Na mesma ótica, o acórdão TEDH de 22 de março de 2012, Konstantin Markin c. Rússia (ECLI:CE:ECHR:2012:0322JUD003007806, § 150), põe em evidência que, «tendo em conta a importância fundamental que reveste a proibição da discriminação baseada no sexo, não se pode admitir a possibilidade de renunciar ao direito de não ser objeto de tal discriminação, uma vez que semelhante renúncia colidiria com um interesse público importante».