CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 4 de julho de 2017 ( 1 )

Processo C‑320/16

Uber France SAS

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal de grande instance de Lille (Tribunal de Grande Instância de Lille, França)]

«Reenvio prejudicial — Regra técnica — Conceito — Obrigação de notificação — Sanção — Inoponibilidade aos particulares — Sistema de estabelecimento de relações entre clientes e condutores não profissionais — Aplicação UberPop — Diretiva 2006/123/CE — Âmbito de aplicação — Exclusão enquanto serviço no domínio dos transportes»

Introdução

1.

Este é o segundo processo no qual o Tribunal de Justiça se debruçará sobre as questões jurídicas relacionadas com o funcionamento da plataforma de transporte local Uber ( 2 ). No cerne do primeiro processo, no qual apresentei as minhas conclusões em 11 de maio de 2017 ( 3 ), estava a questão de saber se um serviço como o prestado pela Uber deve ser qualificado de serviço da sociedade da informação na aceção das disposições pertinentes do direito da União. Essa questão também se levanta no presente processo. No entanto, este processo diz respeito a um problema diferente, que é saber se determinadas disposições do direito nacional, aplicáveis aos serviços como o proposto pela Uber, deveriam ter sido notificadas enquanto regras relativas aos serviços na aceção das disposições do direito da União sobre a notificação técnica. Ora, como exporei adiante, esta questão é parcialmente independente da qualificação da atividade da Uber.

2.

Por conseguinte, consagrarei as presentes conclusões, principalmente, ao problema da notificação, remetendo, quanto à qualificação da atividade da Uber como serviço da sociedade da informação, para as minhas conclusões suprarreferidas.

Quadro jurídico

Direito da União

3.

O artigo 1.o, pontos 2, 5 e 11, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação ( 4 ), conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998 ( 5 ) (a seguir «Diretiva 98/34 alterada»), dispõe ( 6 ):

«Para efeitos da presente diretiva entende‑se por:

[…]

2)

“serviço”: qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços.

Para efeitos da presente definição, entende‑se por:

“à distância”: um serviço prestado sem que as partes estejam simultaneamente presentes;

“por via eletrónica”: um serviço enviado desde a origem e recebido no destino através de instrumentos eletrónicos de processamento (incluindo a compressão digital) e de armazenamento de dados, que é inteiramente transmitido, encaminhado e recebido por cabo, rádio, meios óticos ou outros meios eletromagnéticos,

“mediante pedido individual de um destinatário de serviços”: um serviço fornecido por transmissão de dados mediante pedido individual.

No anexo V figura uma lista indicativa dos serviços não incluídos nesta definição.

[…]

5)

“regra relativa aos serviços”: um requisito de natureza geral relativo ao acesso às atividades de serviços referidas no [ponto] 2 do presente artigo e ao seu exercício, nomeadamente as disposições relativas ao prestador de serviços, aos serviços e ao destinatário de serviços, com exclusão das regras que não visem especificamente os serviços definidos nessa mesma disposição.

[…]

Para efeitos da presente definição:

considera‑se que uma regra tem em vista especificamente os serviços da sociedade da informação sempre que, no que diz respeito à sua motivação e ao texto do seu articulado, tenha como finalidade e objeto específicos, na totalidade ou em determinadas disposições pontuais, regulamentar de modo explícito e circunscrito esses serviços,

não se considera que uma regra tem em vista especificamente os serviços da sociedade da informação se apenas disser respeito a esses serviços de modo implícito ou incidente;

[…]

11)

“regra técnica”: uma especificação técnica, outro requisito ou uma regra relativa aos serviços, incluindo as disposições administrativas que lhes são aplicáveis e cujo cumprimento seja obrigatório de jure ou de facto, para a comercialização, a prestação de serviços, o estabelecimento de um operador de serviços ou a utilização num Estado‑Membro ou numa parte importante desse Estado, assim como, sob reserva das disposições referidas no artigo 10.o, qualquer disposição legislativa, regulamentar ou administrativa dos Estados‑Membros que proíba o fabrico, a importação, a comercialização, ou a utilização de um produto ou a prestação ou utilização de um serviço ou o estabelecimento como prestador de serviços.

[…]»

4.

Nos termos do artigo 8.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 98/34 alterada:

«Sob reserva do disposto no artigo 10.o, os Estados‑Membros comunicarão imediatamente à Comissão qualquer projeto de regra técnica, exceto se se tratar da mera transposição integral de uma norma internacional ou europeia, bastando neste caso uma simples informação relativa a essa norma. Enviarão igualmente à Comissão uma notificação referindo as razões da necessidade do estabelecimento dessa regra técnica, salvo se as mesmas já transparecerem do projeto.»

Direito francês

5.

Os artigos L. 3120‑1 e seguintes do code des transports (Código dos Transportes) regulamentam os serviços de transporte rodoviário de pessoas, a título oneroso, em veículos com menos de dez lugares.

6.

O artigo L. 3124‑13 do mesmo código dispõe:

«É punido com dois anos de prisão e 300000 [euros] de multa o facto de organizar um sistema de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que se dedicam às atividades referidas no artigo L. 3120‑1, que não sejam empresas de transporte rodoviário que podem prestar os serviços ocasionais referidos no capítulo II do título I do presente livro nem táxis, veículos motorizados com duas ou três rodas ou veículos de transporte com motorista na aceção do presente título.

As pessoas coletivas declaradas penalmente responsáveis pelo delito previsto no presente artigo incorrem, além da multa segundo as modalidades previstas no artigo 131‑38 do code pénal [Código Penal], nas penas previstas nos n.os 2 a 9 do artigo 131‑39 do mesmo código. A proibição referida no n.o 2 do mesmo artigo 131‑39 incide sobre a atividade no exercício da qual ou por ocasião da qual a infração foi praticada. As penas previstas nos n.os 2 a 7 do referido artigo só podem ser proferidas por um prazo máximo de cinco anos.»

Factos, tramitação processual e questões prejudiciais

7.

A Uber France é uma sociedade de direito francês, filial da sociedade de direito neerlandês Uber BV, ela própria filial da sociedade Uber Technologies Inc., que tem a sua sede em São Francisco (Estados Unidos da América). A Uber BV é o operador de uma plataforma eletrónica que permite, através de um smartphone com a aplicação Uber instalada, contratar um serviço de transporte urbano nas cidades onde opera. Os serviços de transporte propostos pela plataforma Uber dividem‑se em diferentes categorias, em função da qualidade dos motoristas e do tipo de veículo. No âmbito do serviço denominado UberPop, são motoristas particulares não profissionais que asseguram com os seus próprios veículos o transporte de passageiros ( 7 ).

8.

No tribunal correctionnel (tribunal de grande instance, huitième chambre) de Lille [Tribunal Correcional (Tribunal de Grande Instância, Oitava Secção) de Lille, França], corre termos um processo judicial contra a Uber France, demandada por citação direta com constituição de parte civil de Nabil Bensalem, por diversos factos, nomeadamente a organização, desde 10 de junho de 2014, de um sistema de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que se dedicam ao transporte rodoviário de pessoas a título oneroso em veículos com menos de dez lugares, nas condições enunciadas no artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes.

9.

No âmbito desse processo, a Uber France alegou que o artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes não lhe era oponível, uma vez que constitui uma regra técnica (regra relativa aos serviços) que não foi notificada, em violação do artigo 8.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 98/34 alterada. Além disso, é facto assente que essa disposição não foi notificada. A questão que se discute é a sua qualificação como «regra técnica».

10.

Nestas condições, o tribunal de grande instance de Lille (Tribunal de Grande Instância de Lille) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve considerar‑se que o artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes, resultante da Lei n.o 2014‑1104, de 1 de outubro de 2014, relativa aos táxis e aos veículos de transporte com motorista, constitui uma regra técnica nova, não implícita, respeitante a um ou a vários serviços da sociedade de informação na aceção da [Diretiva 98/34 alterada], que devia obrigatoriamente ser notificado previamente à Comissão Europeia, nos termos do artigo 8.o desta diretiva; ou deve considerar‑se que está abrangido pela [Diretiva 2006/123 ( 8 )], que, no seu artigo 2.o, n.o 2, alínea d), exclui os transportes?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira parte da questão, deve considerar‑se que o incumprimento da obrigação de notificação prevista no artigo 8.o da [Diretiva 98/34] implica a inoponibilidade do artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes aos particulares?»

11.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de junho de 2016. Foram apresentadas observações escritas pela Uber France, pelos Governos estónio, francês, neerlandês, polaco e finlandês e pela Comissão. As partes no processo principal, os Governos estónio, francês e neerlandês, o Órgão de Fiscalização da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) e a Comissão estiveram representados na audiência de 24 de abril de 2017.

Análise

Observações preliminares

12.

Ao formular as questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio partiu visivelmente da premissa de que a qualificação de um serviço como pertencente ao domínio dos transportes na aceção da Diretiva 2006/123 exclui a sua qualificação como serviço da sociedade da informação, o que torna inaplicável a obrigação de notificação das disposições que lhe dizem respeito nos termos da Diretiva 98/34 alterada. No entanto, não é certo que essa consequência automática se verifique, uma vez que a Diretiva 98/34 alterada não prevê para os transportes uma exclusão análoga à prevista no artigo 2.o, n.o 2, alínea d), da Diretiva 2006/123 ( 9 ). Na minha opinião, sem abordar a qualificação da atividade da Uber à luz da Diretiva 2006/123, basta analisar a questão de saber se a disposição em causa do direito francês constitui uma regra técnica — mais especificamente uma regra relativa aos serviços, pois é a única categoria de regras técnicas que está em causa — que devia ter sido notificada em conformidade com o artigo 8.o da Diretiva 98/34 alterada.

13.

Por conseguinte, com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 1.o, ponto 5, da Diretiva 98/34 alterada, lido em conjugação com o artigo 1.o, ponto 2, desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que uma disposição do direito nacional que proíbe e penaliza o facto de organizar um sistema de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que se dedicam a atividades de transporte de passageiros em violação das regras aplicáveis a essas atividades de transporte constitui uma regra relativa aos serviços, na aceção desta disposição, sujeita à obrigação de notificação nos termos do artigo 8.o da referida diretiva. A segunda questão prejudicial diz respeito às eventuais consequências para o processo principal da falta de notificação de tal disposição, caso se considere que esta constitui uma regra técnica.

14.

Estas questões suscitam, bem entendido, o problema de saber se um serviço como o UberPop, proposto pela Uber, pode ser qualificado de serviço da sociedade da informação. Consagrei a esta problemática as conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi ( 10 ), que me limitarei aqui a resumir, completando‑as em dois aspetos. Contudo, penso que a questão de saber se as disposições em causa do direito francês constituem regras técnicas pode ser resolvida independentemente da qualificação do serviço UberPop. Explicá‑lo‑ei na segunda parte da minha análise. Por último, o problema das eventuais consequências da falta de notificação constituirá o tema da terceira parte.

Quanto à qualificação do serviço da Uber

15.

Nas conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi, concluí que o serviço UberPop fornecido pela Uber era um serviço único complexo, composto por uma prestação de estabelecimento de relações entre passageiros e motoristas, através de um software para smartphones, e de uma prestação de transporte. Salientei além disso que, perante tal serviço misto, a sua componente fornecida por via eletrónica só pode ser considerada um serviço da sociedade da informação, para efeitos da aplicação da definição desses serviços contida no artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34 alterada, se for economicamente independente da componente que não é fornecida por essa via ou se constituir a prestação principal do serviço misto. Com efeito, a aplicação da regulamentação da União respeitante aos serviços da sociedade de informação (isto é, tanto da Diretiva 98/34 alterada como da Diretiva 2000/31 ( 11 )) a prestações que não são independentes nem principais em relação às que não se enquadram nessa regulamentação seria contrária à letra das disposições em questão, não cumpriria o seu objetivo e geraria insegurança jurídica, na medida em que essas outras prestações podem ser regulamentadas de maneira diferente em direito nacional, o que é especialmente o caso num domínio específico como o transporte ( 12 ).

16.

Segundo as informações disponíveis sobre o modo de funcionamento da Uber, sob reserva das constatações de facto finais dos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do serviço UberPop, a prestação do estabelecimento de relações, efetuada por via eletrónica, não é independente da prestação do transporte, uma vez que está indissociavelmente ligada a este e as duas prestações são de facto fornecidas pela sociedade Uber. Esta, incontestavelmente prestadora do estabelecimento de relações, exerce efetivamente também um controlo preponderante sobre a prestação de transporte propriamente dita. Em seguida, também considerei que a prestação do estabelecimento de relações era secundária em relação à prestação de transporte que constitui a verdadeira razão de ser económica do serviço UberPop no seu conjunto ( 13 ). Concluí daqui que tal serviço não deve ser considerado um serviço da sociedade da informação na aceção da definição desses serviços constante do artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34 alterada ( 14 ).

17.

Mantenho esta opinião no âmbito do presente processo e remeto para as conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi, para maiores detalhes. Limitar‑me‑ei a completar em dois aspetos as considerações que figuram nessas conclusões.

18.

Em primeiro lugar, na minha opinião, a situação da Uber deve ser distinguida da do litígio que deu origem ao acórdão Vanderborght, no qual o Tribunal de Justiça proferiu o seu acórdão alguns dias antes da apresentação das minhas conclusões no processo Asociación Profesional Elite Taxi. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a publicidade a uma prática dentária feita através de um sítio Internet criado pelo médico em causa se enquadra no conceito de «serviço da sociedade da informação» ( 15 ).

19.

Ora, embora nessa situação exista um serviço destinado aos utilizadores (diferentes do referido médico propriamente dito), trata‑se de um serviço de caráter informativo. Destina‑se, em todo o caso, principalmente, não às pessoas que já fazem parte da clientela do médico em questão mas ao público em geral, na expectativa de angariar novos clientes. Essa informação tanto pode conduzir como não (é, aliás, provavelmente o que acontece na maior parte dos casos) à prestação subsequente de serviços dentários. Embora essa publicidade esteja sem dúvida estreitamente ligada à prática dentária enquanto tal, não tem, pelo contrário, nenhuma relação com cuidados dentários concretos prestados a pacientes particulares.

20.

A situação é diferente no caso do serviço de estabelecimento de relações no âmbito da plataforma Uber, que se dirige a pessoas que já são clientes da Uber e que tem por objetivo a realização de uma prestação concreta de transporte. Esse estabelecimento de relações é, aliás, o passo obrigatório para se poder beneficiar da prestação de transporte no âmbito do sistema da Uber.

21.

Tendo em conta estas diferenças, penso que os ensinamentos tirados do acórdão Vanderborght não podem ser diretamente aplicados para efeitos da análise da questão da qualificação de serviços como o UberPop como serviços da sociedade da informação.

22.

Em segundo lugar, quero sublinhar que a situação no âmbito do serviço prestado pela Uber é claramente diferente da relação de um franqueador com os seus franqueados no âmbito de um contrato de franquia. É verdade que o franqueador também pode exercer um controlo apertado sobre as atividades dos franqueados, ao ponto de os clientes considerarem os franqueados mais como sucursais do franqueador do que como empresas independentes. No entanto, o papel do franqueador limita‑se a fornecer serviços (licenças de marcas, conhecimento, fornecimento de equipamentos, consultoria, etc.) aos franqueados. O franqueador não tem nenhuma relação com os utilizadores dos serviços finais, uma vez que os franqueados são os únicos prestadores desses serviços finais. Por conseguinte, os serviços do franqueador são independentes dos serviços finais, ainda que, nesse âmbito, o franqueador defina as condições de prestação destes últimos. Pelo contrário, a Uber está diretamente implicada na prestação do serviço final aos utilizadores, de modo que deve ser considerada prestadora desse serviço, contrariamente a um franqueador.

Quanto à qualificação da disposição nacional em causa como regra técnica

23.

Ainda que o Tribunal de Justiça devesse declarar que o serviço UberPop é um serviço da sociedade da informação, isso não prejudica em nada a qualificação da disposição do direito francês em causa como regra técnica. Com efeito, qualquer disposição que diga respeito, seja de que maneira for, aos serviços da sociedade da informação, não entra automaticamente na categoria das regras técnicas.

24.

A Diretiva 98/34 alterada distingue, com efeito, de entre as diferentes categorias de regras técnicas, as relativas aos serviços, esclarecendo que apenas são abrangidos os serviços da sociedade da informação. Segundo a definição que figura no artigo 1.o, ponto 5, desta diretiva, uma regra relativa aos serviços é um requisito de natureza geral relativo ao acesso às atividades de serviços e ao seu exercício. Para poder ser qualificado de regra técnica, é ainda preciso que esse requisito tenha por finalidade e objeto específicos regulamentar de modo explícito e circunscrito esses serviços. Pelo contrário, estão excluídas as regras que apenas digam respeito a esses serviços de modo implícito ou incidente.

25.

O artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes proíbe a organização de sistemas de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que exerçam a atividade de transporte em violação das regras aplicáveis a essas atividades de transporte. Essa proibição é acompanhada de sanções penais.

26.

Posso facilmente admitir que, como defende designadamente a Uber France nas suas observações, essa proibição visa principalmente os sistemas de estabelecimento de relações por via eletrónica. Com efeito, atualmente, esses sistemas só são técnica e economicamente viáveis se funcionarem com o apoio de tecnologias informáticas e, consequentemente, por via eletrónica, na aceção da Diretiva 98/34 alterada. Embora sempre tenha havido sistemas de estabelecimento de relações através de telecomunicações, a sua organização necessita de meios técnicos importantes (centrais de chamadas, terminais nos veículos), o que torna pouco provável que se possa organizar esse sistema com a participação de pessoas que exerçam ilegalmente a atividade de transporte.

27.

Por conseguinte, não me convencem os argumentos do Governo francês, segundo os quais a disposição em causa não visa especificamente os serviços da sociedade da informação, uma vez que esta disposição pode abranger outras categorias de intermediários no domínio dos transportes.

28.

Deste modo, há que constatar que essa disposição não se destina a proibir ou a regulamentar de outra forma a atividade de estabelecimento de relações entre clientes e prestadores de serviços de transporte em geral. A finalidade dessa disposição é apenas proibir e reprimir a atividade de intermediário no exercício ilegal da atividade de transporte. A atividade de intermediário nos serviços legais de transporte fica totalmente fora do âmbito de aplicação dessa disposição.

29.

Por conseguinte, partilho do ponto de vista do Governo polaco, expresso nas suas observações escritas, segundo o qual essa disposição apenas diz respeito aos serviços da sociedade da informação de modo incidente. Com efeito, a finalidade dessa disposição não é regulamentar especificamente esses serviços, mas assegurar a efetividade da regulamentação respeitante aos serviços de transporte, serviços que não são abrangidos pela Diretiva 98/34 alterada.

30.

Além disso, a disposição do artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes, na medida em que proíbe a organização de um sistema de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que exerçam a atividade de serviços de transporte em violação das regras aplicáveis, deve ser apreciada no seu contexto. Efetivamente, se uma atividade for ilegal, qualquer cumplicidade no exercício dessa atividade pode também ser considerada ilegal em direito nacional. É sobretudo assim quando essa cumplicidade reveste caráter de organização de um sistema e quando é acompanhada de um objetivo lucrativo ( 16 ). Por conseguinte, o contributo normativo do artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes reside, na realidade, principalmente, no estabelecimento de sanções penais pela participação numa atividade cuja ilegalidade já decorre da legislação nacional.

31.

Se qualquer disposição nacional que proíbe ou penaliza a intermediação em atividades ilegais devesse ser considerada uma regra técnica apenas pelo facto de essa intermediação se fazer, com toda a probabilidade, por via eletrónica, um grande número de regras internas dos Estados‑Membros, escritas e não escritas, deveria ser notificado a esse título. Isso levaria a um aumento indevido da obrigação de notificação ( 17 ), sem realmente contribuir para a realização dos objetivos desse procedimento, que visa prevenir a adoção pelos Estados‑Membros de medidas incompatíveis com o mercado interno e permitir uma melhor exploração das vantagens inerentes ao mercado interno pelos operadores económicos ( 18 ). Em vez disso, essa obrigação de notificação excessiva, punida pela inaplicabilidade das regras não notificadas ( 19 ), permitiria contornar a lei e geraria uma insegurança jurídica, inclusivamente nas relações entre particulares.

32.

Se o artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes pode ser compreendido, conforme sustenta a Uber France nas suas observações, no sentido de que se dirige especificamente contra o funcionamento da plataforma Uber, tal deve‑se ao facto de a Uber, ao desenvolver o seu serviço UberPop, ter deliberadamente escolhido um modelo económico inconciliável com a regulamentação nacional da atividade de transporte de passageiros ( 20 ). Com efeito, esse modelo é baseado em prestações de motoristas não profissionais que, por definição, não dispõem das autorizações necessárias em direito francês para exercer a atividade de transporte. No entanto, isso não faz da referida disposição uma regra que regula as atividades de intermediário no domínio dos transportes em geral.

33.

Por estas razões, penso que o artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes apenas diz respeito de modo incidente aos serviços de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que efetuam prestações de serviços de transporte, na medida em que esse estabelecimento de relações diga respeito ao exercício ilegal das referidas prestações. Por conseguinte, a disposição em causa deve ser excluída do âmbito de aplicação da Diretiva 98/34 alterada, em conformidade com o artigo 1.o, ponto 5, quinto parágrafo, segundo travessão, desta diretiva.

34.

Esta exclusão é devida não ao facto de a disposição em causa se enquadrar no domínio penal, mas ao facto de essa disposição não proibir nem reprimir uma atividade que tem o caráter de um serviço da sociedade da informação de maneira geral, mas apenas na medida em que essa atividade constitui um ato de cumplicidade no exercício de uma outra atividade que é ilegal e que, além disso, se encontra fora do âmbito de aplicação da Diretiva 98/34 alterada.

Quanto às eventuais consequências da falta de notificação da disposição nacional em causa

35.

Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, que consequências deve tirar, no processo principal, da falta de notificação do artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes.

36.

É evidente que se o Tribunal de Justiça seguir a minha proposta de resposta à primeira questão prejudicial, declarando que a disposição em causa não constitui uma regra técnica na aceção da Diretiva 98/34 alterada e, por conseguinte, não é abrangida pela obrigação de notificação, esta segunda questão prejudicial deixa de ser pertinente. No entanto, por uma questão de exaustividade, irei analisá‑la, uma vez que a resposta que se impõe permite ter uma visão completa do problema.

37.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa às consequências da falta de notificação de regras técnicas está bem assente. Em princípio, tal falta constitui um vício processual na adoção das regras técnicas em causa e acarreta a inaplicabilidade dessas regras técnicas, com a consequência de não poderem ser opostas aos particulares ( 21 ). Por conseguinte, ao qualificar de vício processual a falta de notificação, o Tribunal de Justiça aplica‑lhe a mesma sanção que a prevista no caso de incompatibilidade material de uma norma interna com uma norma de direito da União ( 22 ).

38.

Assim, um particular que se queira subtrair à aplicação de uma regra pode invocar o facto de esta não ter sido notificada, sem que seja necessário determinar se essa regra é materialmente contrária às liberdades do mercado interno. Essa inoponibilidade pode até beneficiar os operadores cuja atividade, apesar de abrangida pela regra em questão, não constitui um serviço da sociedade da informação, em particular pelo facto de o seu papel não se limitar a prestações fornecidas por via eletrónica ( 23 ). Penso, nomeadamente, no caso que nos interessa no presente processo, o da Uber. Como já desenvolvi nas conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi, a sua atividade não se enquadra no conceito de serviço da sociedade da informação ( 24 ), embora possa ser objeto de procedimento judicial ao abrigo do artigo L. 3124‑13 do Código dos Transportes. No entanto, essa consequência resulta do caráter de vício processual da falta de notificação, que invalida, em relação a cada particular, a regra não notificada.

39.

Consequentemente, importa responder à segunda questão prejudicial que se o artigo L. 3124‑13 devesse ser considerado no sentido de que constitui uma regra relativa aos serviços na aceção do artigo 1.o, ponto 5, da Diretiva 98/34 alterada, seria inoponível aos particulares, na medida em que não foi notificado em conformidade com o artigo 8.o desta diretiva.

40.

Por último, no que se refere à obrigação de notificação nos termos do artigo 15.o, n.o 7, da Diretiva 2006/123, suscitada pela Comissão na audiência, recordo que, na minha opinião ( 25 ), embora a atividade da Uber não seja considerada um serviço da sociedade da informação devido ao seu caráter complexo, enquadra‑se sem dúvida alguma no domínio dos transportes, o que a exclui do âmbito de aplicação desta diretiva.

Conclusão

41.

À luz de todas as considerações que precedem, proponho responder do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo tribunal de grande instance de Lille (Tribunal de Grande Instância de Lille, França):

O artigo 1.o, ponto 5, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998, conjugado com o ponto 2 deste artigo, deve ser interpretado no sentido de que uma disposição do direito nacional que proíbe e penaliza a organização de um sistema de estabelecimento de relações entre clientes e pessoas que se dedicam às atividades de transporte de passageiros em violação das regras aplicáveis a essas atividades de transporte não constitui uma regra relativa aos serviços sujeita à obrigação de notificação nos termos do artigo 8.o desta diretiva.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Um terceiro pedido de decisão prejudicial relativo a esta problemática foi julgado inadmissível por despacho de 27 de outubro de 2016, Uber Belgium (C‑526/15, não publicado, EU:C:2016:830).

( 3 ) V. as conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).

( 4 ) JO 1998, L 204, p. 37.

( 5 ) JO 1998, L 217, p. 18.

( 6 ) Em conformidade com o artigo 11.o da Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 2015, L 241, p. 1), a Diretiva 98/34 foi revogada em 7 de outubro de 2015. No entanto, continua a ser aplicável, ratione temporis, aos factos do processo principal.

( 7 ) Para uma descrição mais detalhada da plataforma Uber, v. n.os 12 a 15 das conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).

( 8 ) Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO 2006, L 376, p. 36).

( 9 ) Sabendo‑se que um serviço no domínio dos transportes não é necessariamente um serviço de transporte em sentido estrito (v. acórdão de 15 de outubro de 2015, Grupo Itevelesa e o., C‑168/14, EU:C:2015:685).

( 10 ) C‑434/15, EU:C:2017:364.

( 11 ) Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico») (JO 2000, L 178, p. 1).

( 12 ) V. n.os 29 a 38 das conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).

( 13 ) V. n.os 39 a 64 das conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).

( 14 ) V. n.os 65 e 66 das conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).

( 15 ) Acórdão de 4 de maio de 2017, Vanderborght (C‑339/15, EU:C:2017:335, n.o 39).

( 16 ) Recordo que só as prestações contra remuneração podem ser consideradas serviços da sociedade da informação na aceção da Diretiva 98/34 alterada.

( 17 ) Um aumento da obrigação de notificação («notification creep») já evocado, aliás, no n.o 62 das conclusões que o advogado‑geral M. Bobek apresentou no processo M. e S. (C‑303/15, EU:C:2016:531).

( 18 ) V. acórdão de 4 de fevereiro de 2016, Ince (C‑336/14, EU:C:2016:72, n.o 82).

( 19 ) V. supra.

( 20 ) A este respeito, importa observar que a Uber não pode invocar o direito da União para pôr em causa a regulamentação respeitante às prestações de serviços de transporte propriamente ditas, uma vez que, nesse domínio, em conformidade com os artigos 58.° e 90.° TFUE, é necessária uma ação positiva do legislador da União.

( 21 ) V., nomeadamente, acórdão de 30 de abril de 1996, CIA Security International (C‑194/94, EU:C:1996:172, n.o 54), e, por último, acórdão de 4 de fevereiro de 2016, Ince (C‑336/14, EU:C:2016:72, n.o 67).

( 22 ) V. acórdão de 30 de abril de 1996, CIA Security International (C‑194/94, EU:C:1996:172, n.o 42).

( 23 ) V., em particular, n.os 29 a 38 das presentes conclusões.

( 24 ) V. n.os 15 e 16 das presentes conclusões.

( 25 ) V. n.os 67 a 70 das conclusões que apresentei no processo Asociación Profesional Elite Taxi (C‑434/15, EU:C:2017:364).