CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 29 de março de 2017 ( 1 )

Processo C‑93/16

Ornua Co‑operative Limited, anteriormente The Irish Dairy Board Co‑operative Limited

contra

Tindale & Stanton Ltd España SL

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Audiencia Provincial de Alicante (Audiência Provincial de Alicante, Espanha)]

«Reenvio prejudicial — Marca da União Europeia — Regulamento (CE) n.o 207/2009 — Caráter unitário — Artigo 1.o — Risco de confusão — Ofensa ao prestígio — Artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c) — Marcas em conflito que incluem uma indicação de proveniência geográfica — Coexistência pacífica das marcas em conflito numa parte do território da União»

Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial foi submetido no âmbito de um litígio com origem num conflito entre os sinais KERRYGOLD e KERRYMAID. Se bem que os sinais em causa, protegidos, respetivamente, como marca da União Europeia e marcas nacionais, coexistem pacificamente na Irlanda e no Reino Unido há mais de vinte anos, o presente litígio — pendente perante um órgão jurisdicional espanhol, chamado a pronunciar‑se na sua qualidade de tribunal de marcas da União Europeia — diz respeito a um conflito entre estes dois sinais no resto do território da União Europeia.

2.

O contexto particular do presente processo confere ao Tribunal de Justiça a oportunidade de desenvolver a sua jurisprudência relativa ao princípio do caráter unitário da marca da União Europeia ( 2 ). Deverá, designadamente, esclarecer como a análise do risco de confusão e da ofensa ao prestígio, nos termos do artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento (CE) n.o 207/2009 ( 3 ), deve integrar dois aspetos, a saber, por um lado, o facto de as marcas em conflito coexistirem pacificamente numa parte do território da União e, por outro, o facto de essas marcas incluírem uma indicação de proveniência geográfica ( 4 ).

Quadro jurídico

3.

O artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento n.o 207/2009 dispõe:

«A marca [da União Europeia] tem caráter unitário. A marca [da União Europeia] produz os mesmos efeitos em toda a [União]: só pode ser registada, transferida, ser objeto de renúncia, de decisão de extinção de direitos do titular ou de anulação, e o seu uso só pode ser proibido, para toda a [União]. Este princípio é aplicável salvo disposição em contrário do presente regulamento.»

4.

O artigo 9.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«A marca [da União Europeia] confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir um terceiro de utilizar, sem o seu consentimento, na vida comercial:

[…]

b)

Um sinal que, pela sua identidade ou semelhança com a marca [da União Europeia] e pela identidade ou semelhança dos produtos ou serviços abrangidos pela marca [da União Europeia] e pelo sinal, provoque o risco de confusão no espírito do público; o risco de confusão compreende o risco de associação entre o sinal e a marca;

c)

Um sinal idêntico ou similar à marca [da União Europeia], para produtos ou serviços que não sejam similares àqueles para os quais a marca [da União Europeia] foi registada, sempre que esta goze de prestígio na [União] e que o uso do sinal sem justo motivo tire partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca [da União Europeia] ou lhe cause prejuízo.»

5.

O artigo 12.o do mesmo regulamento dispõe:

«O direito conferido pela marca [da União Europeia] não permite ao seu titular proibir a um terceiro a utilização, na vida comercial:

[…]

b)

De indicações relativas […] à proveniência geográfica […],

[…]

desde que a utilização seja feita em conformidade com os usos honestos em matéria industrial ou comercial.»

Litígio no processo principal

6.

A sociedade irlandesa Ornua Co‑operative Limited, anteriormente The Irish Dairy Board Co‑operative Limited (a seguir «Ornua») é titular da marca nominativa da União Europeia KERRYGOLD, registada em 1998, bem como de duas marcas figurativas que contêm o mesmo elemento nominativo, registadas, respetivamente, em 1998 e 2011, para produtos alimentares (a seguir, conjuntamente, «marcas KERRYGOLD»).

7.

A sociedade espanhola Tindale & Stanton Ltd España SL (a seguir «T&S») importa e distribui, em Espanha, sob o sinal KERRYMAID, os produtos lácteos da Kerry Group plc.

8.

A Kerry Group é titular das marcas nominativas nacionais KERRYMAID, registadas na Irlanda e no Reino Unido.

9.

Em 29 de janeiro de 2014, a Ornua intentou, junto do Juzgado de lo Mercantil de Alicante (Tribunal de Comércio de Alicante, na qualidade de tribunal de marcas da União Europeia, Espanha), uma ação de contrafação contra a T&S, relativa à alegada violação das marcas KERRYGOLD devido à utilização do sinal KERRYMAID. Esta ação assentava no artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009.

10.

Este órgão jurisdicional julgou a ação improcedente, com fundamento no facto de a única semelhança entre as marcas em conflito resultar do elemento comum «Kerry», que se refere ao condado irlandês conhecido pela criação de gado bovino, e no facto de que era pacífico que estas marcas coexistiam pacificamente na Irlanda e no Reino Unido.

11.

Com efeito, segundo este órgão jurisdicional, as consequências da coexistência pacífica nestes dois Estados‑Membros deveriam, tendo em conta o caráter unitário da marca da União Europeia, ser extrapoladas para todo o território da União. Pela mesma razão, não pode existir um partido indevidamente tirado do caráter distintivo ou do prestígio das marcas invocadas, uma vez que a utilização do sinal KERRYMAID em Espanha se destina à comercialização de um produto que é, há muitos anos, comercializado noutros Estados‑Membros sem oposição do titular das marcas KERRYGOLD.

12.

A Ornua interpôs recurso desta sentença para o órgão jurisdicional de reenvio.

13.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que as marcas KERRYGOLD gozam de prestígio em toda a União. Salienta que o titular destas marcas reconhece a sua coexistência pacífica com a marca KERRYMAID unicamente na Irlanda e no Reino Unido. O órgão jurisdicional de reenvio tem, assim, dúvidas quanto à possibilidade de ter em conta esta circunstância no momento da análise do risco de confusão e da ofensa ao prestígio em todo o território da União.

Questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

14.

Nestas circunstâncias, a Audiencia Provincial de Alicante (Audiência Provincial de Alicante, Espanha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 9.o, n.o 1, alínea b), [do Regulamento n.o 207/2009], na medida em que exige que haja um risco de confusão para que o titular da marca [da União Europeia] possa proibir um terceiro de utilizar na vida comercial, sem o seu consentimento, um sinal, nos casos previstos no mesmo, pode ser interpretado num sentido que permita excluir o risco de confusão quando a marca [da União Europeia] anterior coexistiu pacificamente, por tolerância do titular, durante anos, em dois Estados‑Membros da União com marcas nacionais semelhantes, de modo que a ausência de risco de confusão nesses dois Estados possa ser extrapolada a outros Estados‑Membros, ou ao conjunto da União, tendo em conta o tratamento unitário imposto pela marca [da União Europeia]?

2)

No caso previsto no número anterior, é possível ter em consideração as circunstâncias geográficas, demográficas, económicas, ou de outra índole, dos Estados em que se verificou a coexistência, para avaliar o risco de confusão, de modo a que possa ser extrapolada a um terceiro Estado, ou ao conjunto da União, a ausência de risco de confusão nesses Estados?

3)

Quanto ao caso previsto na alínea c) do n.o 1 do artigo 9.o [do Regulamento n.o 207/2009] e em consequência do tratamento unitário imposto pela marca [da União Europeia], deve este preceito ser interpretado no sentido de que, na hipótese de a marca anterior ter coexistido com o sinal controvertido durante um certo número de anos em dois Estados‑Membros da União sem oposição do titular dessa marca anterior, essa tolerância do titular relativamente à utilização do sinal posterior nesses dois Estados em especial pode ser extrapolada ao restante território da União para efeitos de determinar a utilização por um terceiro de um sinal posterior com justo motivo?»

15.

A decisão de reenvio deu entrada na secretaria do Tribunal de Justiça em 15 de fevereiro de 2016. Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelos Governos alemão e francês e pela Comissão Europeia.

16.

O Tribunal de Justiça endereçou um pedido de esclarecimentos ao órgão jurisdicional de reenvio, ao qual este respondeu em 12 de dezembro de 2016. As partes no processo principal e a Comissão participaram na audiência que teve lugar em 18 de janeiro de 2017.

Análise

Observações preliminares

17.

O presente litígio exige a interpretação do artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009 quanto a dois aspetos.

18.

Por um lado, uma vez que as duas marcas em conflito coexistem pacificamente na Irlanda e no Reino Unido, o órgão jurisdicional de reenvio questiona — através das suas três questões prejudiciais — qual será a eventual conclusão a retirar desta circunstância para efeitos de apreciação do risco de confusão e da ofensa ao prestígio no resto do território da União.

19.

Por outro lado, o presente litígio também permitirá ao Tribunal de Justiça esclarecer as condições de análise de um risco de confusão entre marcas que incluem a mesma indicação de proveniência geográfica ( 5 ).

20.

Com efeito, resulta da decisão de reenvio que o termo «Kerry», comum às duas marcas em conflito, é o nome de um condado irlandês conhecido pela criação de gado bovino. A relevância deste aspeto — o qual não é explicitamente referido no enunciado das questões prejudiciais — foi confirmada por meio de um pedido de esclarecimentos endereçado pelo Tribunal de Justiça ao órgão jurisdicional de reenvio, ao passo que os interessados puderam exprimir‑se utilmente sobre esta questão na audiência. Cumpre, assim, alargar o âmbito das questões prejudiciais a este aspeto, em conformidade com a jurisprudência constante que autoriza tal procedimento com vista a fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio ( 6 ).

Quanto à aplicação do artigo 9. o do Regulamento n. o 207/2009 em caso de coexistência pacífica das marcas em conflito numa parte do território da União

21.

Através das suas três questões prejudiciais, que me proponho analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se e, em caso afirmativo, de que forma o facto de as marcas em conflito coexistirem pacificamente numa parte do território da União pode influir na análise da existência de um risco de confusão e de uma ofensa ao prestígio, por força do artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009, no resto do território da União.

22.

Observo, desde já, que a coexistência pacífica das marcas em conflito constitui um aspeto relativamente pouco desenvolvido na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

23.

No que se refere à análise do risco de confusão, resulta da jurisprudência constante que a existência de tal risco no espírito do público relevante deve ser apreciada globalmente, atentos todos os fatores relevantes do caso em apreço ( 7 ).

24.

A este respeito, o Tribunal de Justiça admitiu que não se pode excluir que a coexistência pacífica de marcas num mercado determinado possa eventualmente contribuir, juntamente com outros elementos, para diminuir o risco de confusão entre elas ( 8 ).

25.

Esta consideração também foi adotada na jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos processos de oposição, segundo a qual tal coexistência não só deve ser pacífica, como deve assentar na inexistência de risco de confusão para o público pertinente ( 9 ).

26.

Embora o Tribunal de Justiça ainda não tenha tido a possibilidade de esclarecer as condições associadas à aplicação do conceito de «coexistência pacífica», resulta, designadamente, desta jurisprudência que a coexistência pacífica das marcas em conflito no mercado em causa constitui um elemento pertinente que deve ser tido em conta na apreciação global do risco de confusão.

27.

No caso em apreço, é facto assente que a coexistência entre as marcas em conflito, pacífica e de longa duração, é suscetível de excluir a existência de um risco de confusão no mercado em causa na Irlanda e no Reino Unido.

28.

A presente discussão centra‑se, assim, na questão de saber se essa circunstância deve ser tida em conta para efeitos de apreciação de tal risco em Espanha, território em que a alegada contrafação terá sido cometida, bem como no resto do território da União.

29.

A Ornua considera que, para poder ser tida em conta na apreciação de um risco de confusão com a marca da União Europeia, a coexistência pacífica deve ser constatada em todo o território da União. Esta consideração decorre, segundo a Ornua, do princípio do caráter unitário da marca da União Europeia, bem como do facto de o efeito de tal marca se estender a todo o território da União. A coexistência numa parte do território da União não permite, segundo a Ornua, retirar qualquer conclusão relativamente ao resto desse território.

30.

Esta interpretação é partilhada, no essencial, pelos Governos alemão e francês. A Comissão também refere que a coexistência pacífica entre as marcas em conflito deve, em princípio, ser demonstrada em todo o território no qual ocorre a alegada infração e, por conseguinte, tratando‑se da marca da União Europeia, em todo o território da União. A Comissão acrescenta, contudo, que não é de excluir que a situação no território em que as marcas em conflito coexistem possa fornecer informações úteis para a avaliação do risco de confusão noutros mercados.

31.

Observo que uma interpretação semelhante — que exige a demonstração da coexistência pacífica em todo o território da União — também resulta da prática do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) relativa aos processos de oposição ( 10 ), validada pelo Tribunal ( 11 ). De acordo com esta abordagem, se o risco de confusão existir potencialmente em todo o território da União, devido ao alcance da marca da União Europeia, a inexistência de risco de confusão devido à coexistência deve, por sua vez, ser constatada em todo o território da União.

32.

A T&S propõe uma interpretação diferente e considera que a coexistência pacífica constitui um elemento relevante, ainda que apenas diga respeito a uma parte do território da União. Segundo a T&S, quando as marcas em conflito coexistiram numa parte substancial do território da União sem criar um risco de confusão, pode concluir‑se que tal risco não existe em nenhuma parte da União.

33.

Nenhuma destas duas posições, que se situam em dois polos radicalmente opostos, merece a minha aprovação.

34.

É certo que o sistema da marca da União Europeia assenta no princípio do caráter unitário desta marca, o qual exige a sua proteção uniforme em todo o território da União.

35.

No entanto, decorre das características do sistema instituído pelo Regulamento n.o 207/2009 que, em determinadas situações, a apreciação do risco de confusão de um sinal com a marca da União Europeia não conduz a um resultado único, válido para todo o território da União.

36.

No acórdão combit Software, o Tribunal de Justiça decidiu que este princípio do caráter unitário não se opõe a que um tribunal de marcas da União Europeia constate que a utilização de um sinal cria um risco de confusão com uma marca da União Europeia numa parte do território da União, embora não crie esse risco noutra parte deste território, nem a que este tribunal extraia as consequências desta constatação, proferindo, a título excecional e com base nos elementos que, em princípio, lhe são submetidos pelo demandado, uma decisão de cessação territorialmente limitada ( 12 ).

37.

Com efeito, quando se constatar que não existe nenhum risco de confusão numa certa parte da União, o comércio legítimo que resulta da utilização do sinal em questão nessa parte da União não pode ser proibido ( 13 ).

38.

Resulta deste mesmo acórdão que a constatação da violação do direito exclusivo conferido pela marca da União Europeia pode, a título excecional, ser territorialmente limitada. Também decorre deste acórdão que a inexistência de um risco de confusão entre as marcas em conflito numa parte do território da União não exclui a constatação desse risco noutra parte deste território.

39.

Por conseguinte — contrariamente ao que sustenta a T&S —, ainda que estivesse comprovado, através do argumento relativo à coexistência pacífica, que a utilização das marcas em conflito não cria nenhum risco de confusão na Irlanda e no Reino Unido, esta circunstância não impede, por si só, a constatação da existência desse risco noutra parte da União.

40.

No entanto — contrariamente à posição defendida pela Ornua — daí não resulta, em meu entender, que a coexistência pacífica numa parte do território da União seja irrelevante para a análise do risco de confusão com uma marca da União Europeia.

41.

A apreciação de um risco de confusão, num litígio relativo à violação do direito exclusivo conferido pela marca da União Europeia, requer uma análise global de todos os fatores relevantes potencialmente relacionados com todo o território da União. Neste contexto, a relevância de um elemento não pode ser excluída pelo simples facto de se referir à situação existente apenas numa parte do território da União.

42.

A coexistência pacífica das duas marcas à escala nacional pode resultar de diferentes circunstâncias. Não se pode excluir que, a este respeito, a inexistência de risco de confusão numa parte do território da União onde as marcas em causa foram utilizadas de forma prolongada e intensiva possa ser indicativa da inexistência desse risco noutras partes da União, quando as condições do mercado e a perceção do público relevante não variem significativamente ( 14 ).

43.

Assim, quando, como no caso em apreço, está demonstrado que a utilização dos sinais em causa não cria risco de confusão numa parte do território da União onde estes sinais há muito tempo coexistem pacificamente há muito tempo, este elemento é suscetível de ter incidência na apreciação do risco de confusão noutras zonas de conflito potencial.

44.

Parece‑me que esta poderá ter sido a intenção do órgão jurisdicional espanhol de primeira instância, ao referir que a única semelhança entre as marcas em conflito resultava da indicação geográfica «Kerry» e que, por outro lado, estas marcas coexistiam pacificamente na Irlanda e no Reino Unido, pelo que não existiam motivos para considerar que a atividade da T&S pudesse suscitar confusão noutra parte da União.

45.

Com efeito, tal como resulta da minha análise infra ( 15 ), o facto de as marcas em conflito incluírem uma indicação de proveniência geográfica, a saber, a referência ao condado irlandês — o que poderia ser uma das circunstâncias que explicam a coexistência pacífica na Irlanda e no Reino Unido — constitui um elemento relevante para efeitos de apreciação do risco de confusão à escala da União.

46.

É certo que, como bem observaram os Governos alemão e francês, assim como a Comissão, a coexistência pacífica em alguns Estados‑Membros não pode ser extrapolada para o resto da União. Tal extrapolação automática deve ser excluída. Também não é menos verdade que, em minha opinião, as circunstâncias que envolvem a coexistência pacífica numa parte do território da União podem constituir um indício pertinente para a apreciação de um risco de confusão em toda a União.

47.

Em face do exposto, considero, assim, que a coexistência pacífica dos sinais em conflito numa parte do território da União constitui um elemento que, sem ser decisivo, pode ser tomado em consideração no âmbito da apreciação global de um risco de confusão com uma marca da União Europeia noutra parte deste território, nos termos do artigo 9.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009.

48.

A mesma consideração vale, em minha opinião, para a análise prevista no artigo 9.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 207/2009, que introduz uma proteção mais alargada a favor das marcas que gozam de prestígio.

49.

A constatação relativa a qualquer das ofensas (ao caráter distintivo ou ao prestígio da marca anterior) previstas nesta disposição deve assentar, designadamente, na existência de uma ligação entre as marcas em conflito, consequência de um certo grau de semelhança entre elas. A existência dessa ligação deve ser apreciada globalmente, tendo em conta todos os fatores pertinentes do caso em apreço, entre os quais figura o risco de confusão no espírito do público ( 16 ).

50.

Pelos mesmos motivos que invoquei em relação ao artigo 9.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009, no âmbito da apreciação global exigida pela alínea c) desse artigo, cumpre ter em conta, sendo caso disso, o facto de as marcas coexistirem pacificamente numa parte do território da União.

51.

Assim, embora no enunciado da terceira questão prejudicial o órgão jurisdicional de reenvio mencione a possibilidade de ter em conta a coexistência pacífica como justo motivo para a utilização, considero que esta circunstância deve ser tida em conta no âmbito da apreciação global relativa à existência de uma ligação entre as marcas. Na inexistência dessa ligação, não haverá necessidade de avaliar a existência de um justo motivo.

52.

Recordo, a este respeito, que a condição relativa ao prestígio deve ser considerada preenchida quando a marca da União Europeia goze de prestígio numa parte substancial do território da União, podendo essa parte, se for caso disso, corresponder nomeadamente ao território de um único Estado‑Membro ( 17 ). Em meu entender, a circunstância relativa a uma coexistência pacífica poderia ser ainda mais relevante neste contexto, quando diga respeito à parte da União que serve de referência para demonstrar o prestígio da marca anterior.

53.

Tendo em conta todas estas observações, considero que as disposições do artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009 devem ser interpretadas no sentido de que o facto de as marcas em conflito coexistirem pacificamente numa parte do território da União, sem suscitar confusão, não significa que o risco de confusão esteja automaticamente excluído noutra parte deste território. Não obstante, esta coexistência constitui um elemento relevante, que pode, sendo caso disso, ser tido em conta no âmbito da apreciação global do risco de confusão e da existência de uma ligação entre as marcas em causa, que fundamentam, respetivamente, cada uma destas disposições.

Quanto à aplicação do artigo 9. o do Regulamento n. o 207/2009 no caso de marcas que contêm uma indicação de proveniência geográfica

54.

Observo que, ao adotar o Regulamento n.o 207/2009, o legislador da União reconheceu a existência de um interesse geral em preservar a disponibilidade das indicações que possam servir para designar a proveniência geográfica dos produtos em causa. Esta consideração subjaz a várias disposições deste regulamento, designadamente as relativas aos motivos absolutos de recusa, à limitação dos efeitos de uma marca, bem como aos efeitos de uma marca coletiva ( 18 ).

55.

Nos termos do artigo 12.o, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009, o titular da marca da União Europeia não pode proibir a um terceiro a utilização, na vida comercial, de indicações relativas, designadamente, à proveniência geográfica de um produto, desde que a utilização seja feita em conformidade com os usos honestos em matéria industrial ou comercial. Uma limitação análoga está prevista no artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2008/95/CE ( 19 ).

56.

Esta limitação dos direitos exclusivos conferidos por uma marca visa conciliar os interesses do titular de uma marca com os interesses de outros produtores no mercado interno, tendo em conta a axiologia do direito das marcas, como elemento essencial do sistema de concorrência não falseado que o Tratado FUE pretende estabelecer e manter ( 20 ).

57.

A existência de um interesse geral em preservar a disponibilidade dos sinais ou das indicações que possam servir para designar a proveniência geográfica, em especial os nomes geográficos, foi reconhecida na jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 21 ).

58.

Para invocar o interesse geral em causa, basta que o nome geográfico seja suscetível de designar a proveniência dos produtos em causa. Há que determinar, também, se um nome geográfico designa um lugar que apresenta atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa ou se é razoável pensar que, no futuro, tal nexo possa ser estabelecido ( 22 ).

59.

Assim, no âmbito do litígio com origem num conflito entre o sinal «KERRY Spring» e a marca GERRI, para bebidas refrigerantes, o Tribunal de Justiça decidiu que o titular de uma marca nacional só pode proibir o uso da indicação de proveniência geográfica relativa a outro Estado‑Membro se esse uso não for conforme às práticas honestas em matéria industrial e comercial. O mero facto de existir um risco de confusão auditiva entre dois sinais não basta para se concluir que o uso dessa indicação na vida comercial não é conforme às práticas honestas ( 23 ).

60.

Estas considerações, salientadas pelo Tribunal de Justiça tendo em conta a grande diversidade linguística da então Comunidade Europeia, composta por quinze Estados‑Membros, são ainda mais relevantes nos dias de hoje.

61.

Mesmo admitindo que a indicação de proveniência geográfica relativa a um Estado‑Membro seja suscetível, para consumidores noutro Estado‑Membro, de ser considerada como semelhante ao termo incorporado numa marca, o titular da marca não pode proibir esse uso, desde que a mesma seja feita em conformidade com os usos honestos. A semelhança entre os termos não pode, assim, ser tida em consideração para se concluir pela existência de um risco de confusão.

62.

No caso em apreço, tal como resulta da decisão de reenvio, o termo «Kerry», comum aos dois sinais em conflito, é o nome de um condado irlandês conhecido pela criação de gado bovino, que pode, assim, servir de indicação de proveniência dos produtos lácteos em causa no processo principal.

63.

Nestas condições, o tribunal de marcas da União Europeia não pode ter em conta essa semelhança entre os sinais, resultante da utilização feita em conformidade com os usos honestos desta indicação geográfica, para declarar a existência de um risco de confusão com a marca da União Europeia ou uma ofensa ao prestígio dessa marca.

64.

Com efeito, cabe a este tribunal assegurar que a constatação da violação dos direitos exclusivos conferidos pela marca da União Europeia nessas circunstâncias não infringe a limitação dos efeitos desta marca prevista no artigo 12.o, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009.

65.

Em face do exposto, considero que o artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009, deve ser interpretado no sentido de que o facto de as marcas em causa incluírem o mesmo termo, que constitui uma indicação de proveniência geográfica utilizada em conformidade com os usos honestos, não pode servir de fundamento para declarar a existência de um risco de confusão com uma marca da União Europeia ou de uma ofensa ao prestígio dessa marca.

Conclusão

66.

Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo ao pedido de decisão prejudicial submetido pela Audiencia Provincial de Alicante (Audiência Provincial de Alicante, Espanha):

1)

O artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que o facto de as marcas em conflito coexistirem pacificamente numa parte do território da União, sem suscitar confusão, não significa que o risco de confusão esteja automaticamente excluído noutra parte deste território. Não obstante, esta coexistência constitui um elemento relevante, que pode, sendo caso disso, ser tido em conta no âmbito da apreciação global do risco de confusão e da existência de uma ligação entre as marcas em causa, que fundamentam, respetivamente, cada uma destas disposições.

2)

O artigo 9.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 207/2009 deve ser interpretado no sentido de que o facto de as marcas em causa incluírem o mesmo termo, que constitui uma indicação de proveniência geográfica utilizada em conformidade com os usos honestos, não pode servir de fundamento para declarar a existência de um risco de confusão com uma marca da União Europeia ou de uma ofensa ao prestígio dessa marca.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) V. acórdãos de 12 de abril de 2011, DHL Express France (C‑235/09, EU:C:2011:238) e de 22 de setembro de 2016, combit Software (C‑223/15, EU:C:2016:719).

( 3 ) Regulamento do Conselho de 26 de fevereiro de 2009 sobre a marca da União Europeia (JO 2009, L 78, p. 1), na sua versão aplicável ratione temporis no caso em apreço. Do artigo 9.o, n.o 2, alíneas b) e c), deste regulamento, na redação que lhe foi dada pelo Regulamento (UE) n.o 2015/2424 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015 (JO 2015, L 341, p. 21), constam disposições essencialmente análogas.

( 4 ) Utilizo o termo resultante do texto do artigo 12.o do Regulamento n.o 207/2009. Vários instrumentos jurídicos internacionais e da União utilizam os termos «indicação de proveniência» e «indicação geográfica», estando o seu alcance jurídico exato dependente do instrumento em questão.

( 5 ) V. acórdãos de 4 de maio de 1999, Windsurfing Chiemsee (C‑108/97 e C‑109/97, EU:C:1999:230), e de 7 de janeiro de 2004, Gerolsteiner Brunnen (C‑100/02, EU:C:2004:11).

( 6 ) V., designadamente, acórdãos de 7 de dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.o 59), e de 7 de março de 2013, Efir (C‑19/12, não publicado, EU:C:2013:148, n.o 27).

( 7 ) V., designadamente, acórdão de 22 de junho de 1999, Lloyd Schuhfabrik Meyer (C‑342/97, EU:C:1999:323, n.o 18).

( 8 ) Acórdão de 3 de setembro de 2009, Aceites del Sur‑Coosur/Koipe (C‑498/07 P, EU:C:2009:503, n.o 82).

( 9 ) Acórdãos de 11 de maio de 2005, Grupo Sada/IHMI — Sadia (GRUPO SADA) (T‑31/03, EU:T:2005:169, n.o 86), e de 11 de dezembro de 2007, Portela & Companhia/IHMI — Torrens Cuadrado e Sanz (Bial) (T‑10/06, não publicado, EU:T:2007:371, n.o 76).

( 10 ) As linhas de orientação do EUIPO preveem que, se a marca anterior invocada para fundamentar a oposição for uma marca da União Europeia, o requerente deve demonstrar a coexistência em toda a União. V. «Linhas de orientação relativas ao exame efetuado no Instituto», Parte C‑2‑6, p. 7 (https://euipo.europa.eu/ohimportal/pt/trade‑mark‑guidelines).

( 11 ) Acórdão de 10 de abril de 2013, Höganäs/IHMI — Haynes (ASTALOY) (T‑505/10, não publicado, EU:T:2013:160, n.os 49 e 50).

( 12 ) Acórdão de 22 de setembro de 2016, combit Software (C‑223/15, EU:C:2016:719, n.o 36).

( 13 ) Acórdão de 22 de setembro de 2016, combit Software (C‑223/15, EU:C:2016:719, n.os 31 e 32); v., também, nesse sentido, acórdão de 12 de abril de 2011, DHL Express France (C‑235/09, EU:C:2011:238, n.os 46 a 48).

( 14 ) Observo que a Comissão indica, embora excluindo qualquer extrapolação automática, que nada obsta a que o juiz nacional tenha em conta as informações relativas à situação noutros Estados‑Membros, quando as características linguísticas e socioculturais, bem como as do mercado em causa, sejam comparáveis.

( 15 ) V. n.o 65 das presentes conclusões.

( 16 ) V., por analogia, acórdão de 27 de novembro de 2008, Intel Corporation (C‑252/07, EU:C:2008:655, n.os 30, 41 e 42, e jurisprudência referida).

( 17 ) V., neste sentido, acórdãos de 6 de outubro de 2009, PAGO International (C‑301/07, EU:C:2009:611, n.os 27 e 29), e de 3 de setembro de 2015, Iron & Smith (C‑125/14, EU:C:2015:539, n.o 19).

( 18 ) Respetivamente, artigo 7.o, n.o 1, alínea c), artigo 12.o, alínea b), e artigo 66.o, n.o 2, do Regulamento n.o 207/2009.

( 19 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 2008, L 299, p. 25).

( 20 ) V., neste sentido, a respeito da disposição idêntica contida no artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Primeira Diretiva do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (89/104/CEE) (JO 1989, L 40, p. 1), acórdão de 7 de janeiro de 2004, Gerolsteiner Brunnen (C‑100/02, EU:C:2004:11, n.o 16).

( 21 ) V., por analogia, acórdão de 4 de maio de 1999, Windsurfing Chiemsee (C‑108/97 e C‑109/97, EU:C:1999:230, n.o 26).

( 22 ) Acórdão de 4 de maio de 1999, Windsurfing Chiemsee (C‑108/97 e C‑109/97, EU:C:1999:230, n.o 31).

( 23 ) Acórdão de 7 de janeiro de 2004, Gerolsteiner Brunnen (C‑100/02, EU:C:2004:11, n.os 25 e 27).