ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

8 de junho de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.o TFUE — Liberdade de circulação e de residência nos Estados‑Membros — Cidadão que tem simultaneamente a nacionalidade do Estado‑Membro de residência e do Estado‑Membro de nascença — Mudança de apelido no Estado‑Membro de nascença sem aí ter residência habitual — Apelido correspondente ao apelido de nascença — Pedido de inscrição desse apelido no registo civil do Estado‑Membro de residência — Indeferimento desse pedido — Motivo — Não aquisição do apelido durante um período de residência habitual — Existência de outros procedimentos no direito nacional para obter o reconhecimento desse apelido»

No processo C‑541/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Amtsgericht Wuppertal (Tribunal de Primeira Instância de Wuppertal, Alemanha), por decisão de 24 de setembro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de outubro de 2015, no processo instaurado por

Mircea Florian Freitag,

sendo intervenientes:

Angela Freitag,

Vica Pavel,

Stadt Wuppertal,

Oberbürgermeister der Stadt Wuppertal,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, A. Prechal, A. Rosas (relator), C. Toader e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: R. Schiano, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 15 de setembro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo alemão, por M. Hellmann, T. Henze e J. Mentgen, na qualidade de agentes,

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e M. Castelo‑Branco, na qualidade de agentes,

em representação do Governo romeno, por A. Wellman e R. H. Radu, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti e G. von Rintelen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de novembro de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 18.o e 21.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo instaurado por Mircea Florian Freitag a respeito do reconhecimento, na Alemanha, e da inscrição no registo civil de uma alteração de apelido para um apelido adquirido legalmente na Roménia.

Quadro jurídico

Disposições relevantes da Lei de aprovação do Código Civil

3

O § 5 da Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (Lei de aprovação do Código Civil), de 21 de setembro de 1994 (BGBl. 1994 I, p. 2494, e retificação no BGBl. 1997 I, p. 1061), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «EGBGB»), sob a epígrafe «Estatuto pessoal», dispõe, no seu n.o 1, primeira e segunda frases:

«Em caso de remissão para o direito do Estado da nacionalidade de uma pessoa, se esta tiver a nacionalidade de vários Estados, aplica‑se o direito do Estado com o qual a pessoa tiver o nexo mais estreito, em particular em razão da sua residência habitual ou das circunstâncias da sua vida. Se a pessoa tiver também a nacionalidade alemã, este estatuto jurídico prevalece.»

4

O § 10 da EGBGB, sob a epígrafe «Nome», prevê no seu n.o 1:

«O nome de uma pessoa rege‑se pela lei do Estado da sua nacionalidade.»

5

O § 48 da EGBGB, sob a epígrafe «Escolha de um nome adquirido noutro Estado‑Membro da União», estabelece:

«Se o direito alemão regular o nome de uma pessoa, esta pode escolher, por declaração na conservatória de registo civil, o nome adquirido durante o período de residência habitual noutro Estado‑Membro da União e aí inscrito no registo civil, desde que isso não seja manifestamente incompatível com os princípios fundamentais do direito alemão. A escolha do nome retroage à data da inscrição no registo civil do outro Estado‑Membro, salvo se a pessoa declarar expressamente que a escolha do nome só deve produzir efeitos no futuro. A declaração tem de ser certificada ou autenticada por instrumento público. […]»

Lei relativa à alteração do nome

6

No direito alemão, a alteração do nome rege‑se pelo direito público, mais precisamente pelo procedimento previsto pela Gesetz über die Änderung von Familiennamen und Vornamen (NamÄndG) (Lei relativa à alteração dos apelidos e nomes próprios), de 5 de janeiro de 1938 (RGBl. 1938 I, p. 9), conforme alterada pelo § 54 da Lei de 17 de dezembro de 2008 (BGBl. 2008 I, p. 2586) (a seguir «lei relativa à alteração do nome»).

7

O § 1 da lei relativa à alteração do nome tem a seguinte redação:

«O apelido de um cidadão alemão ou de um apátrida que tenha o seu domicílio ou residência habitual [na Alemanha] pode ser alterado mediante pedido.»

8

O § 3, n.o 1, desta lei dispõe:

«O apelido apenas pode ser alterado se existir um motivo sério que justifique essa alteração».

9

Em conformidade com o disposto no § 3, n.o 2, da lei relativa à alteração do nome, as circunstâncias do caso concreto relevantes para efeitos da decisão devem ser apreciadas oficiosamente.

10

Nos termos do § 5, n.o 1, da lei relativa à alteração do nome, o pedido de alteração de apelido deve ser apresentado à autoridade administrativa inferior na circunscrição onde o requerente tem a sua residência ou permanece.

11

O ponto 27, n.o 1, do Allgemeine Verwaltungsvorschrift zum Gesetz über die Änderung von Familiennamen und Vornamen (NamÄndVwV) (Regulamento da Lei relativa à alteração dos apelidos e nomes próprios), de 11 de agosto de 1980, conforme alterado pela última vez pelo Regulamento de 11 de fevereiro de 2014 (BAnz. AT, de 18 de fevereiro de 2014, B2) (a seguir «regulamento da lei relativa à alteração do nome»), tem a seguinte redação:

«O nome das pessoas rege‑se em detalhe e — em princípio — de forma exaustiva pelas disposições pertinentes do direito civil. A alteração do nome, que se rege pelo direito administrativo público, visa eliminar os efeitos prejudiciais num caso concreto. A mesma assume um caráter excecional. Consequentemente, há que verificar em primeiro lugar se o objetivo prosseguido não pode ser atingido por uma declaração de alteração de nome por força do direito civil ou por um despacho do tribunal de menores.»

12

O ponto 28 do referido regulamento estabelece:

«Os apelidos apenas podem ser alterados se existir um motivo sério que justifique essa alteração. Verifica‑se um motivo sério quando o interesse legítimo do requerente […] na alteração do nome for superior aos eventuais interesses legítimos contrários de outros interessados […] e aos princípios relativos ao nome decorrentes das disposições legais, onde se inclui a função de regulação social do nome e o interesse público na manutenção do nome transmitido […]»

13

Nos termos do ponto 31 deste regulamento:

«Se a ponderação a realizar em conformidade com o disposto no ponto 28 revelar um interesse legítimo superior do requerente na alteração do apelido, existindo, consequentemente, um motivo sério para a alteração do nome, o pedido deve ser deferido. Os elementos tidos em conta na ponderação destinada a aferir a existência de um motivo sério não podem voltar a ser considerados de modo discricionário. Se não existir um motivo sério que justifique a alteração do nome, o pedido deve ser indeferido.»

14

O ponto 49 do regulamento da lei relativa à alteração do nome prevê:

«Quando um nacional alemão, que possui igualmente a nacionalidade de outro Estado, usa, nos termos do direito daquele Estado, um apelido diferente daquele que deve usar por força da legislação, no território de aplicação da lei, esta ambiguidade no uso do apelido pode ser eliminada, alterando‑se o apelido que deve ser usado no território de aplicação da lei para o apelido que deve ser usado nos termos do direito do outro Estado. Ao invés, se renunciar ao outro apelido, é necessário remeter o interessado para as autoridades do outro Estado do qual possui igualmente a nacionalidade.»

15

Do indeferimento do pedido de alteração do apelido pela autoridade administrativa competente cabe recurso administrativo. Se, ao invés, a autoridade administrativa competente deferir o pedido de alteração do apelido, deve assegurar que a alteração do apelido dá lugar a uma atualização ou é declarada no registo civil.

Factos do litígio no processo principal e questão prejudicial

16

O requerente no processo principal nasceu em 25 de abril de 1986, na Roménia, tendo recebido o apelido Pavel. É filho de Angela Freitag e de Vica Pavel, cidadãos romenos, e é de nacionalidade romena.

17

Após o divórcio dos seus pais, a sua mãe casou com um cidadão alemão, M. Freitag.

18

Por decisão judicial de 21 de maio de 1997, M. Freitag adotou o requerente no processo principal, tendo este adquirido a nacionalidade alemã e usando, desde então, o apelido Freitag.

19

Por decisão do Conselho Distrital de Brașov (Roménia) de 9 de julho de 2013, o apelido do requerente no processo principal foi, a requerimento deste, novamente alterado para Pavel. Durante o processo de alteração do apelido na Roménia, o requerente no processo principal tinha a sua residência habitual na Alemanha.

20

Em seguida, na posse do seu novo passaporte romeno emitido sob o apelido Pavel, dirigiu‑se à Standesamt der Stadt Wuppertal (Conservatória do Registo Civil de Wuppertal, Alemanha) requerendo que a alteração do apelido fosse também reconhecida na Alemanha e que a sua inscrição no registo civil fosse atualizada em conformidade.

21

A Conservatória do Registo Civil de Wuppertal e o Oberbürgermeister der Stadt Wuppertal (presidente do município de Wuppertal, Alemanha), na qualidade de autoridade inferior de supervisão do registo civil, submeteram o caso à apreciação do Amtsgericht Wuppertal (Tribunal de Primeira Instância de Wuppertal, Alemanha), por terem dúvidas quanto à possibilidade de inscrição no registo civil de um ato posterior.

22

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que o requerente no processo principal tinha a sua residência habitual na Alemanha durante o processo de alteração do apelido na Roménia, o § 48 da EGBGB não é aplicável, uma vez que esta disposição subordina o direito de escolher um apelido adquirido noutro Estado‑Membro da União, mediante declaração à Conservatória do Registo Civil, à condição de o apelido em causa ter sido adquirido durante o período de residência habitual nesse outro Estado‑Membro, condição que não está preenchida no caso em apreço.

23

O órgão jurisdicional de reenvio precisa que também não é possível uma aplicação analógica do § 48 da EGBGB. Dos documentos relativos aos trabalhos legislativos resulta que o legislador pretendia, em especial, implementar as exigências decorrentes do acórdão de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul (C‑353/06, EU:C:2008:559), e que tinha consciência de que aquela disposição não abrange todas as situações de divergência de apelidos.

24

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se os artigos 18.o e 21.o TFUE exigem o reconhecimento da alteração do apelido efetuada noutro Estado‑Membro quando o interessado não tem a sua residência habitual nesse outro Estado‑Membro, mas tem com este, devido à sua dupla nacionalidade, uma outra conexão.

25

Nestas condições, o Amtsgericht Wupertal (Tribunal de Primeira Instância de Wupertal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 18.o […] e 21.o TFUE ser interpretados no sentido de que as autoridades de um Estado‑Membro estão obrigadas a reconhecer a alteração do apelido de um nacional desse Estado[…] quando este é simultaneamente nacional de um outro Estado‑Membro e re(adquiriu), nesse Estado‑Membro, o seu apelido originário de nascimento, através de uma alteração do apelido não relacionada com uma mudança do estatuto jurídico familiar, apesar de a aquisição do apelido não ter ocorrido durante a residência habitual do nacional no outro Estado‑Membro e ter resultado de um requerimento da iniciativa do referido nacional?»

Quanto à questão prejudicial

Observações preliminares

26

A título preliminar, importa indicar que o órgão jurisdicional de reenvio se baseia no § 48 do EGBGB quando, com a sua questão, procura saber se os artigos 18.o e 21.o TFUE se opõem a que as autoridades competentes de um Estado‑Membro se recusem a reconhecer o apelido legalmente obtido por um cidadão desse Estado‑Membro noutro Estado‑Membro do qual é também nacional, embora não tivesse a sua residência habitual naquele outro Estado‑Membro.

27

Há que salientar que, no seu pedido, o órgão jurisdicional de reenvio refere a existência, também sublinhada pelo Governo alemão e pela Comissão Europeia, de um procedimento distinto, de direito público, previsto pela lei relativa à alteração do nome e que permite requerer a alteração do apelido junto da autoridade administrativa.

28

Este procedimento da lei relativa à alteração do nome é aplicável, segundo o Governo alemão, em situações como a do requerente no processo principal, na medida em que, apesar do § 48 da EGBGB ser, em princípio, aplicável a este último, não preenche contudo o requisito da residência habitual noutro Estado‑Membro exigido por esta disposição. Segundo o Governo alemão, o procedimento previsto na lei relativa à alteração do nome permite que uma pessoa em situação comparável à do requerente no processo principal adquira o direito de utilizar o apelido obtido ao abrigo do ordenamento jurídico de um outro Estado‑Membro, apresentando um pedido nesse sentido junto da autoridade administrativa competente.

29

No âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, compete a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta perspetiva, compete ao Tribunal de Justiça, sendo o caso, reformular as questões que lhe são submetidas (v., designadamente, acórdão de 19 de setembro de 2013, Betriu Montull, C‑5/12, EU:C:2013:571, n.o 40).

30

Nestas condições, há que entender que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio visa, em substância, saber se os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a Conservatória do Registo Civil de um Estado‑Membro se recuse a reconhecer e a transcrever no registo civil um apelido legalmente obtido por um cidadão deste Estado‑Membro, noutro Estado‑Membro de que é também nacional, e correspondente ao seu apelido de nascença, com fundamento numa disposição do direito nacional que subordina a possibilidade de requerer tal transcrição mediante declaração na Conservatória do Registo Civil à condição de esse apelido ter sido adquirido durante um período de residência habitual nesse outro Estado‑Membro, enquanto outras disposições do direito nacional permitem ao mesmo cidadão apresentar um pedido de alteração de apelido a outra autoridade, que tem o poder discricionário de decisão quanto a esse pedido.

31

Há que acrescentar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 21.o TFUE comporta não apenas o direito de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros mas também uma proibição de qualquer discriminação em razão da nacionalidade. Consequentemente, importa examinar a situação do requerente no processo principal à luz apenas desta disposição (acórdão de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 65; v., por analogia, acórdão de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 34).

Quanto ao âmbito de aplicação do direito da União

32

A título preliminar, importa examinar se a situação do requerente no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação material do direito da União e, em particular, pelas normas que regem o exercício, por um cidadão da União, do seu direito de livre circulação e proíbem a discriminação.

33

Resulta de jurisprudência assente que, embora, no estado atual do direito da União, as normas que regulam a inscrição nos atos de registo civil do apelido de uma pessoa sejam da competência dos Estados‑Membros, estes últimos devem, todavia, no exercício desta competência, respeitar o direito da União, em particular as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade reconhecida a qualquer cidadão da União de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros (acórdãos de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello, C‑148/02, EU:C:2003:539, n.o 25; de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul, C‑353/06, EU:C:2008:559, n.o 16; de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.os 38 e 39; de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 63; e de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 32).

34

Segundo jurisprudência constante, existe uma conexão com o direito da União relativamente a cidadãos de um Estado‑Membro que residem legalmente no território de outro Estado‑Membro (acórdão de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello, C‑148/02, EU:C:2003:539, n.o 27). É esse o caso do requerente no processo principal, que tem cidadania romena e reside no território da República Federal da Alemanha, da qual é também nacional.

Quanto à existência de uma restrição à livre circulação na aceção do artigo 21.o TFUE

35

Recorde‑se que o Tribunal de Justiça decidiu reiteradamente que uma regulamentação nacional desfavorável a certos cidadãos nacionais, pelo simples facto de estes terem exercido o seu direito de livre circulação e permanência noutro Estado‑Membro, constitui uma restrição às liberdades reconhecidas no artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União (acórdãos de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul, C‑353/06, EU:C:2008:559, n.o 21; de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.o 53; de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 68; e de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 36).

36

Decorre também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a recusa das autoridades de um Estado‑Membro em reconhecer o apelido de um nacional desse Estado, que tenha exercido o seu direito de livre circulação e que seja também nacional de outro Estado‑Membro, conforme determinado neste último Estado‑Membro, pode causar entraves ao exercício do direito, consagrado no artigo 21.o TFUE, de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros. Com efeito, podem advir confusões e inconvenientes de uma eventual divergência entre os dois apelidos postos a uma mesma pessoa (v., neste sentido, acórdão de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 37).

37

A este respeito, há que recordar que diversas ações da vida quotidiana, tanto no domínio público como privado, exigem a apresentação da prova da própria identidade e, quando se trata de uma família, a prova da natureza das relações familiares existentes entre os diferentes membros desta (acórdãos de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn, C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 73, e de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 43).

38

Para um nacional que tem a nacionalidade de dois Estados‑Membros, como é o caso do requerente no processo principal, existe um risco concreto, em razão do facto de ter dois apelidos diferentes, a saber, os apelidos Pavel e Freitag, de dever dissipar dúvidas quanto à sua identidade e à autenticidade dos documentos apresentados ou à veracidade dos dados contidos nesses documentos, o que, tal como o Tribunal de Justiça declarou, constitui uma circunstância suscetível de entravar o exercício do direito decorrente do artigo 21.o TFUE (v. acórdãos de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.o 70, e de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff, C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 40).

39

Consequentemente, a recusa da Conservatória do Registo Civil de um Estado‑Membro em reconhecer e inscrever no registo civil o apelido obtido legalmente por um nacional desse Estado‑Membro noutro Estado‑Membro do qual também é nacional, com fundamento numa norma jurídica nacional que subordina a possibilidade de requerer tal inscrição mediante declaração na Conservatória do Registo Civil à condição de o apelido em causa ter sido adquirido durante o período de residência habitual nesse outro Estado‑Membro, é suscetível de causar entraves ao exercício do direito de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros, consagrado no artigo 21.o TFUE.

40

Contudo, o Governo alemão sustenta que, uma vez que o direito alemão contém outras bases jurídicas para proceder à alteração do apelido a pedido do interessado, a saber, as disposições pertinentes da lei relativa à alteração do nome, não há um entrave à livre circulação de pessoas que possa surgir de uma divergência de apelidos. Com efeito, embora o § 3, n.o 1, da lei relativa à alteração do nome subordine uma tal alteração à condição de que seja justificada por um motivo sério, resulta do ponto 49 do regulamento da lei relativa à alteração do nome que a eliminação de uma divergência de apelidos relativa a cidadãos alemães com dupla nacionalidade constitui um tal motivo sério. Assim, numa situação como a que está em causa no processo principal, o interessado poderia obter o reconhecimento do apelido legalmente adotado no outro Estado‑Membro mediante apresentação de um pedido, ao abrigo da lei relativa à alteração do nome, junto da autoridade administrativa competente.

41

A este respeito, para que uma regulamentação como a regulamentação alemã relativa ao apelido, tomada no seu conjunto, possa ser considerada compatível com o direito da União, é necessário que as disposições ou o procedimento interno que permitem apresentar um pedido de alteração de apelido não tornem impossível ou excessivamente difícil a implementação dos direitos conferidos pelo artigo 21.o TFUE. Em princípio, é pouco relevante saber, do ponto de vista do direito da União, qual a disposição nacional ou o procedimento interno ao abrigo do qual o requerente pode fazer valer os seus direitos no que respeita ao seu apelido.

42

Com efeito, na falta de regulamentação da União em matéria de alteração do apelido, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades previstas pelo direito nacional destinadas a assegurar a proteção dos direitos que decorrem para os cidadãos do direito da União, desde que, por um lado, essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as relativas a direitos com origem na ordem jurídica interna (princípio da equivalência) e, por outro, não tornem impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., designadamente, por analogia, acórdãos de 12 de setembro de 2006, Eman e Sevinger, C‑300/04, EU:C:2006:545, n.o 67; de 3 de julho de 2014, Kamino International Logistics e Datema Hellmann Worldwide Logistics, C‑129/13 e C‑130/13, EU:C:2014:2041, n.o 75; e de 8 de março de 2017, Euro Park Service, C‑14/16, EU:C:2017:177, n.o 36).

43

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se lhe é possível implementar ele próprio os direitos conferidos pelo artigo 21.o TFUE e reconhecer o direito ao reconhecimento do nome adquirido em circunstâncias como as do processo principal ou se o requerente no processo principal deve recorrer ao procedimento de direito público previsto na lei relativa à alteração do nome.

44

Conforme indicado no n.o 40 do presente acórdão, o Governo alemão sustenta que a eliminação de uma divergência de apelidos constitui um «motivo sério» na aceção do § 3, n.o 1, da lei relativa à alteração do nome. Além disso, o exercício dos direitos de um cidadão como o requerente no processo principal, ao abrigo do disposto no artigo 21.o TFUE, não é posto em causa pelo poder de apreciação de que as autoridades alemãs competentes dispõem.

45

A este respeito, há que sublinhar que um tal poder de apreciação deve ser exercido pelas autoridades competentes de modo a assegurar o pleno efeito do artigo 21.o TFUE.

46

Em especial, importa que o procedimento existente no direito alemão que visa permitir a alteração do apelido seja suscetível de assegurar que a existência de um «motivo sério» possa ser atendida em circunstâncias como as do processo principal, nas quais o nexo do interessado ao Estado‑Membro no qual obteve o seu nome é, além da sua residência habitual, a sua nacionalidade, a fim de permitir o reconhecimento do apelido obtido noutro Estado‑Membro.

47

Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o artigo 21.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que a Conservatória do Registo Civil de um Estado‑Membro recuse o reconhecimento e a inscrição no registo civil do apelido obtido legalmente por um nacional desse Estado‑Membro noutro Estado‑Membro, do qual também é nacional, e que corresponde ao seu apelido de nascença, com fundamento numa disposição do direito nacional que subordina a possibilidade de obter tal inscrição mediante declaração na Conservatória do Registo Civil à condição de esse apelido ter sido adquirido durante um período de residência habitual nesse outro Estado‑Membro, a menos que existam em direito nacional outras disposições que permitam efetivamente o reconhecimento do referido apelido.

Quanto às despesas

48

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

O artigo 21.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que a Conservatória do Registo Civil de um Estado‑Membro recuse o reconhecimento e a inscrição no registo civil do apelido obtido legalmente por um nacional desse Estado‑Membro noutro Estado‑Membro, do qual também é nacional, e que corresponde ao seu apelido de nascença, com fundamento numa disposição do direito nacional que subordina a possibilidade de obter tal inscrição mediante declaração na Conservatória do Registo Civil à condição de esse apelido ter sido adquirido durante um período de residência habitual nesse outro Estado‑Membro, a menos que existam em direito nacional outras disposições que permitam efetivamente o reconhecimento do referido apelido.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.