ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

11 de janeiro de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2008/909/JAI — Artigo 7.o — Requisito da dupla incriminação — Artigo 9.o — Motivo de recusa do reconhecimento e da execução baseado na inexistência de dupla incriminação — Nacional do Estado de execução condenado no Estado de emissão por inobservância de uma decisão de uma autoridade pública»

No processo C‑289/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Krajský súd v Prešove (Tribunal Regional de Prešov, Eslováquia), por decisão de 3 de junho de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de junho de 2015, no processo penal contra

Jozef Grundza

sendo interveniente:

Krajská prokuratúra Prešov,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça, presidente de secção, M. Berger (relatora), A. Borg Barthet, E. Levits e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 25 de maio de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

em representação do Governo sueco, por A. Falk, L. Swedenborg, C. Meyer‑Seitz, U. Persson, E. Karlsson e N. Otte Widgren, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger, J. Javorský e S. Gruenheid, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de julho de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24, a seguir «Decisão‑Quadro 2008/909»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo ao reconhecimento de uma sentença em matéria penal e à execução, na Eslováquia, de uma pena privativa da liberdade aplicada por um tribunal checo a Jozef Grundza.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do considerando 5 da Decisão‑Quadro 2008/909:

«Os direitos processuais em processo penal são um elemento crucial para garantir a confiança recíproca entre os Estados‑Membros no âmbito da cooperação judiciária. As relações entre Estados‑Membros, que se caracterizam por uma especial confiança mútua nos respetivos sistemas jurídicos, permitem o reconhecimento pelo Estado de execução de decisões proferidas pelas autoridades do Estado de emissão. Por conseguinte, dever‑se‑á contemplar a hipótese de aprofundar a cooperação prevista nos instrumentos do Conselho da Europa relativos à execução das sentenças em matéria penal, em particular quando cidadãos da União tiverem sido sujeitos a uma sentença penal e condenados a uma pena de prisão ou outra medida privativa de liberdade noutro Estado‑Membro. […]»

4

O artigo 3.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», dispõe:

«1.   A presente decisão‑quadro tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado‑Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença e executa a condenação imposta.

[…]

3.   A presente decisão‑quadro aplica‑se apenas ao reconhecimento de sentenças e à execução de condenações, na aceção da presente decisão‑quadro. […]

[…]»

5

Nos termos do artigo 7.o da Decisão‑Quadro 2008/909, sob a epígrafe «Dupla incriminação»:

«1.   As seguintes infrações, se forem puníveis no Estado de emissão com uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos, definida na legislação nacional do Estado de emissão, determinam, nos termos da presente decisão‑quadro e sem verificação da dupla incriminação do facto, o reconhecimento da sentença e a execução da condenação imposta:

participação numa organização criminosa,

terrorismo,

tráfico de seres humanos,

exploração sexual de crianças e pedopornografia,

tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas,

tráfico de armas, munições e explosivos,

corrupção,

fraude, […]

branqueamento dos produtos do crime,

falsificação de moeda, […]

cibercriminalidade,

crimes contra o ambiente, […]

auxílio à entrada e à permanência irregulares,

homicídio voluntário, ofensas corporais graves,

tráfico de órgãos e tecidos humanos,

rapto, sequestro e tomada de reféns,

racismo e xenofobia,

roubo organizado ou à mão armada,

tráfico de bens culturais, […]

burla,

extorsão de proteção e extorsão,

contrafação e piratagem de produtos,

falsificação de documentos administrativos e respetivo tráfico,

falsificação de meios de pagamento,

tráfico ilícito de substâncias hormonais e de outros estimuladores de crescimento,

tráfico ilícito de materiais nucleares e radioativos,

tráfico de veículos furtados,

violação,

fogo posto,

crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional,

desvio de avião ou navio,

sabotagem.

[…]

3.   Em relação às infrações não abrangidas pelo n.o 1, o Estado de execução pode sujeitar o reconhecimento da sentença e a execução da condenação à condição de a mesma se referir a factos que também constituam uma infração nos termos da legislação nacional do Estado de execução, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.

4.   No momento da aprovação da presente decisão‑quadro ou posteriormente, cada Estado‑Membro pode indicar, mediante declaração depositada junto do Secretariado‑Geral do Conselho, que não aplica o disposto no n.o 1. Esta declaração pode ser retirada a qualquer momento. As declarações ou a retirada das declarações são publicadas no Jornal Oficial da União Europeia

6

O artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2008/909, sob a epígrafe «Reconhecimento da sentença e execução da condenação», dispõe, no n.o 1:

«A autoridade competente do Estado de execução deve reconhecer a sentença enviada […] e tomar imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação, exceto se a autoridade competente decidir invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento e da execução previstos no artigo 9.o»

7

O artigo 9.o da Decisão‑Quadro 2008/909, sob a epígrafe «Motivos de recusa do reconhecimento e da execução», no n.o 1, alínea d), dispõe:

«A autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença e a execução da condenação se:

[…]

d)

Num caso a que se refere o n.o 3 do artigo 7.o e, se o Estado de execução tiver apresentado uma declaração ao abrigo do n.o 4 do artigo 7.o, num dos casos a que se refere o n.o 1 do artigo 7.o, a sentença disser respeito a factos que não constituam uma infração nos termos da legislação nacional do Estado de execução; todavia, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução de uma sentença não deve ser recusada pelo facto de a legislação nacional do Estado de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação nacional do Estado de emissão;».

Direito eslovaco

8

A Decisão‑Quadro 2008/909 foi transposta para a ordem jurídica eslovaca pela zákon č. 549/2011 o uznávaní a výkone rozhodnutí, ktorými sa ukladá trestná sankcia spojená s odňatím slobody v Európskej únii (Lei n.o 549/2011, relativa ao reconhecimento e execução das decisões pelas quais foi aplicada uma sanção penal privativa da liberdade na União Europeia), conforme alterada pela Lei n.o 344/2012 (a seguir «Lei n.o 549/2011»).

9

Os artigos 4.° e 16.° da Lei n.o 549/2011 transpõem para o direito eslovaco, respetivamente, os artigos 7.° e 9.° da Decisão‑Quadro 2008/909.

10

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Lei n.o 549/2011, que corresponde ao artigo 7.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909, «é possível reconhecer e executar uma sentença na República Eslovaca se o facto objeto dessa sentença constituir uma infração segundo a ordem jurídica eslovaca […]».

11

Segundo o artigo 4.o, n.o 2, da Lei n.o 549/2011, que transpõe o artigo 7.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, quando são pedidos o reconhecimento e a execução de uma decisão relativa a um crime pelo qual, no Estado de emissão, é possível aplicar uma pena privativa da liberdade de duração não inferior a três anos, e que, na certidão para a execução da referida decisão, seja qualificado pela autoridade judiciária do Estado de emissão por referência a um ou vários tipos de infração enumerados no artigo 4.o, n.o 3, da referida lei, o tribunal chamado a pronunciar‑se não procede a um controlo da dupla incriminação.

12

Na decisão de reenvio, especifica‑se que os tipos de infrações previstos no referido artigo 4.o, n.o 3, da Lei n.o 549/2011 correspondem às infrações mencionadas no artigo 7.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909.

13

O artigo 16.o, n.o 1, alínea b), da Lei n.o 549/2011, que corresponde ao artigo 9.o, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro n.o 2008/909, prevê que «[o] tribunal recusa o reconhecimento e a execução da decisão se os factos pelos quais a decisão foi emitida não constituírem crime no ordenamento jurídico da República Eslovaca e se não se tratar de um procedimento previsto no artigo 4.o, n.os 2 e 3, desta lei». No entanto, «em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução de uma sentença não deve ser recusada unicamente pelo facto de a ordem jurídica da República Eslovaca não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições, impostos, alfândegas e câmbios que a legislação do Estado de emissão».

14

Nos termos do artigo 348.o, n.o 1, alínea d), da zákon 300/2005 Z.z., Trestný zákon (Código Penal eslovaco), «[q]uem impedir ou dificultar consideravelmente a execução de uma decisão da autoridade judiciária ou de outra autoridade pública, […] exercendo uma atividade que lhe foi proibida por essa decisão […], é punido com pena privativa da liberdade até dois anos».

Direito checo

15

Nos termos do artigo 337.o, n.o 1, alínea a), da zákon n.o 40/2009 Sb., Trestní zákoník (Código Penal checo), «[q]uem impedir ou dificultar consideravelmente a execução de uma decisão da autoridade judiciária ou de outra autoridade pública, […] exercendo uma atividade que lhe foi proibida por essa decisão ou para a qual lhe foi retirada ou perdeu a correspondente autorização com base noutra disposição normativa […], é punido com pena privativa da liberdade até dois anos».

Litígio no processo principal e questão prejudicial

16

Em 3 de outubro de 2014, o Okresní soud v Chebu (tribunal distrital de Cheb, República Checa) condenou J. Grundza, de nacionalidade eslovaca, a uma pena cumulativa de quinze meses de reclusão por furto e por desobediência a uma decisão de uma autoridade pública, em concreto, inobservância da proibição temporária de conduzir que lhe tinha sido aplicada por decisão do Magistrát mesta Přerov (município de Přerov, República Checa), em 12 de fevereiro de 2014.

17

A sentença de 3 de outubro de 2014, acompanhada da certidão prevista no anexo 1 da Decisão‑Quadro 2008/909, foi transmitida ao Krajský súd v Prešove (Tribunal Regional de Prešov, Eslováquia) para efeitos do respetivo reconhecimento e da execução da referida pena na Eslováquia.

18

Na decisão de reenvio, este tribunal especifica que o órgão judicial do Estado de emissão, no caso a República Checa, não considerou os delitos em causa no processo principal como infrações enumeradas no artigo 7.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, pelo que a execução da pena cumulativa de quinze meses de reclusão está dependente de os factos objeto da sentença de 3 de outubro de 2014 serem também constitutivos de uma infração segundo a ordem jurídica eslovaca.

19

Ora, o referido tribunal tem dúvidas quanto à questão de saber se o requisito da dupla incriminação está preenchido no que respeita aos factos qualificados de «delito de desobediência a uma decisão de uma autoridade pública».

20

A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o artigo 348.o, n.o 1, alínea d), do Código Penal eslovaco, relativo à infração consistente em desobediência a uma decisão oficial, só é aplicável às decisões judiciais ou de outro órgão «eslovaco» que sejam executórias no «território eslovaco».

21

Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a apreciação do facto pelo qual J. Grundza foi condenado na República Checa mostra, in concreto, que não se trata de uma «infração» na aceção do artigo 348.o, n.o 1, alínea d), do Código Penal eslovaco, na medida em que esse facto não corresponde aos elementos factuais constitutivos da infração consistente em desobediência a uma decisão oficial na aceção dessa disposição. Com efeito, J. Grundza foi condenado por desobediência a uma decisão adotada por uma autoridade da República Checa que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, só produz efeitos no território desse Estado‑Membro.

22

O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se igualmente sobre se, atendendo ao objetivo prosseguido pela Decisão‑Quadro 2008/909, que é o de facilitar a reinserção social de uma pessoa condenada, designadamente reforçando a cooperação entre os Estados‑Membros na execução das sentenças em matéria penal em casos como o que está em causa no processo principal, em que um interesse protegido pela ordem jurídica do Estado de emissão foi violado, a dupla incriminação não deve ser apreciada in abstrato, isto é, como se tivesse sido violado um interesse protegido pela ordem jurídica do Estado de execução.

23

Nestas condições, o Krajský súd v Prešove (Tribunal Regional de Prešov) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro [2008/909/JAI] ser interpretados no sentido de que o requisito da dupla incriminação está preenchido apenas quando os factos a que se refere a decisão a reconhecer constituam in concreto, ou seja, com base numa apreciação concreta da previsão legal, um crime (independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua denominação) também nos termos da lei do Estado de execução, ou se para preencher tal requisito é suficiente que a previsão legal constitua geralmente (em abstrato) um crime também nos termos da lei do Estado de execução?»

Quanto à questão prejudicial

24

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/909 devem ser interpretados no sentido de que o requisito da dupla incriminação está preenchido numa situação, como a que está em causa no processo principal, em que o reconhecimento da sentença e a execução da pena são pedidos para atos que foram qualificados, no Estado de emissão, de «infração penal consistente em desobediência a uma decisão oficial praticada no território do Estado de emissão», e em que, embora exista no direito do Estado de execução uma infração penal tipificada de maneira semelhante, uma disposição nacional deste último Estado exige, para que essa infração seja estabelecida, que a decisão oficial tenha sido aprovada por uma autoridade competente que opere no seu próprio território.

25

A título preliminar, cumpre observar que, para responder utilmente a esta questão, não é pertinente uma análise centrada nos conceitos de uma apreciação in concreto ou in abstrato do requisito da dupla incriminação.

26

A este respeito, saliente‑se, em primeiro lugar, que a Decisão‑Quadro 2008/909, que constitui um instrumento de harmonização mínima, designadamente o seu artigo 7.o, relativo ao requisito da dupla incriminação, não menciona esses conceitos.

27

Em segundo lugar, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 26 das suas conclusões, os Estados‑Membros têm posições divergentes relativamente à definição exata dos referidos conceitos no contexto da dupla incriminação.

28

Para responder à questão conforme reformulada, recorde‑se que, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909, o Estado de execução pode sujeitar o reconhecimento da sentença e a execução da condenação por infrações não abrangidas pela lista das 32 infrações previstas no n.o 1 à condição de os factos a que a mesma se refere também serem constitutivos de uma infração nos termos da sua legislação nacional, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação. Noutros termos, esta disposição permite ao Estado de execução sujeitar o reconhecimento da sentença e a execução da condenação à condição de estar preenchido o requisito da dupla incriminação.

29

Correlativamente, o artigo 9.o da Decisão‑Quadro 2008/909, respeitante aos motivos de recusa do reconhecimento e da execução, prevê, no n.o 1, alínea d), a faculdade de a autoridade competente do Estado de execução recusar o reconhecimento da sentença proferida no Estado de emissão e a execução da condenação, aplicada igualmente neste último Estado, quando o requisito da dupla incriminação não estiver preenchido.

30

Resulta da decisão de reenvio que os atos pelos quais J. Grundza foi condenado, designadamente a desobediência a uma decisão de uma autoridade pública, não foram considerados, pela autoridade competente do Estado de emissão, ou seja, a República Checa, como infrações abrangidas pelo artigo 7.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909.

31

Portanto, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909, o reconhecimento da sentença de 3 de outubro de 2014 e a execução da pena cumulativa de quinze meses de reclusão estão sujeitos à constatação, pela autoridade eslovaca competente, de que os factos objeto dessa sentença constituem uma infração também segundo a ordem jurídica eslovaca, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação no Estado de emissão.

32

Dito isto, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (acórdãos de 16 de julho de 2015, Lanigan, C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.o 35, e de 8 de novembro de 2016, Ognyanov, C‑554/14, EU:C:2016:835, n.o 31).

33

No que respeita, em primeiro lugar, aos termos do artigo 7.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909, importa recordar, à semelhança do advogado‑geral no n.o 47 das suas conclusões, que esta disposição delimita o âmbito da apreciação da dupla incriminação, na medida em que exige que a autoridade competente do Estado de execução verifique se os factos em causa «também constitu[e]m uma infração» nos termos do seu direito nacional, «independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação».

34

Conforme resulta da própria redação do referido artigo 7.o, n.o 3, o requisito necessário e suficiente para a apreciação da dupla incriminação reside na circunstância de os factos que deram lugar à condenação no Estado de emissão serem igualmente constitutivos de uma infração no Estado de execução. Daí decorre que não é necessário que as infrações sejam idênticas nos dois Estados‑Membros em causa.

35

Esta interpretação é corroborada pela expressão «independentemente dos […] elementos constitutivos ou da […] qualificação» da infração conforme prevista no Estado de execução, da qual resulta claramente, como salientou o advogado‑geral nos n.os 48 e 49 das suas conclusões, que não se exige uma correspondência exata entre todos os elementos constitutivos da infração, tal como definida respetivamente pela legislação do Estado de emissão e do Estado de execução, nem na designação ou na qualificação dessa infração segundo os direitos nacionais respetivos.

36

Portanto, esta disposição consagra uma perspetiva flexível, pela autoridade competente do Estado de execução, na apreciação do requisito da dupla incriminação, tanto no que respeita aos elementos constitutivos da infração como à qualificação da mesma.

37

Assim, o elemento pertinente para efeitos da apreciação da dupla incriminação reside, segundo o próprio teor do artigo 7.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/909, na correspondência entre, por um lado, os elementos factuais na base da infração, tais como plasmados na sentença proferida no Estado de emissão, e, por outro, a definição da infração no direito do Estado de execução.

38

Resulta das considerações anteriores que, na apreciação da dupla incriminação, incumbe à autoridade competente do Estado de execução verificar se os elementos factuais na base da infração, tais como plasmados na sentença da autoridade competente do Estado de emissão, seriam igualmente, como tais, passíveis de sanção penal no território do Estado de execução se tivessem ocorrido nesse território.

39

Em segundo lugar, o contexto em que se inscrevem os artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/909 aponta igualmente no sentido dessa apreciação da dupla incriminação.

40

A este propósito, observe‑se que, como dispõe o seu artigo 26.o, a Decisão‑Quadro 2008/909 substitui, no que respeita às relações entre Estados‑Membros, diversos instrumentos de direito internacional a fim de reforçar, nos termos do seu considerando 5, a cooperação na execução das sentenças em matéria penal.

41

Ora, diversamente desses instrumentos de direito internacional, a Decisão‑Quadro 2008/909 assenta, antes de mais, no princípio do reconhecimento mútuo, que constitui, em conformidade com o seu considerando 1, lido à luz do artigo 82.o, n.o 1, TFUE, a «pedra angular» da cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia, a qual, segundo o referido considerando 5, se baseia numa especial confiança mútua dos Estados‑Membros nos respetivos sistemas judiciários (v., neste sentido, acórdão de 8 de novembro de 2016, Ognyanov, C‑554/14, EU:C:2016:835, n.os 46 e 47).

42

O princípio do reconhecimento mútuo implica, por força do artigo 8.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, que, em princípio, a autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença que lhe foi enviada e toma imediatamente todas as medidas necessárias à execução da condenação.

43

Como observou o advogado‑geral no n.o 36 das suas conclusões, esse princípio do reconhecimento mútuo resultou, designadamente, na criação, no artigo 7.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, de uma lista de infrações penais relativamente às quais foi dispensada a verificação do requisito da dupla incriminação.

44

Além disso, mesmo para as infrações que não figuram nessa lista, importa observar que o artigo 7.o, n.o 3, dessa decisão‑quadro estabelece uma mera faculdade para o Estado de execução de sujeitar o reconhecimento da sentença e a execução da condenação ao preenchimento do requisito da dupla incriminação.

45

Neste contexto, essa faculdade permite aos Estados‑Membros, como salientou o advogado‑geral no n.o 68 das suas conclusões, recusar o reconhecimento da sentença e a execução de uma condenação por comportamentos que não consideram moralmente condenáveis e que, como tal, não constituem uma infração.

46

Resulta dos elementos precedentes que o requisito da dupla incriminação constitui uma exceção à regra do princípio do reconhecimento da sentença e da execução da condenação. Assim sendo, o âmbito de aplicação do motivo de recusa do reconhecimento da sentença e da execução da condenação, baseado na inexistência de dupla incriminação, conforme referido no artigo 9.o, n.o 1, alínea d) da Decisão‑Quadro 2008/909, deve ser interpretado restritivamente, a fim de limitar os casos de recusa do reconhecimento e da execução.

47

Assim, a apreciação da dupla incriminação pela autoridade competente do Estado de execução, a que se refere o artigo 7.o, n.o 3, dessa decisão‑quadro, visa verificar se os elementos factuais na base da infração, tal como foram plasmados na sentença da autoridade competente do Estado de emissão, seriam igualmente, enquanto tais, passíveis de sanção penal no território do Estado de execução se tivessem ocorrido nesse território.

48

A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio salientou que a infração em causa no processo principal constitui uma violação de uma decisão oficial de uma autoridade pública checa e, consequentemente, viola o interesse protegido pela República Checa, pelo que, em quaisquer circunstâncias, não se pode considerar preenchido o requisito da dupla incriminação.

49

No entanto, no âmbito da apreciação da dupla incriminação, a autoridade competente do Estado de execução deve verificar não se o interesse protegido pelo Estado de emissão foi violado, mas se, na hipótese de a infração em causa ter tido lugar no território do Estado‑Membro a que pertence essa autoridade, se teria considerado que um interesse semelhante, protegido pelo direito nacional desse Estado, tinha sido violado.

50

Em terceiro lugar, recorde‑se que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/909, esta tem por objetivo estabelecer as regras que permitem a um Estado‑Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhecer uma sentença e executar a condenação.

51

Ora, a interpretação estrita do artigo 9.o, n.o 1, alínea d), da referida decisão‑quadro contribui para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa condenada, designadamente numa situação, como a que está em causa no processo principal, em que essa pessoa é um nacional do Estado de execução.

52

No caso em apreço, resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça que J. Grundza foi condenado pela autoridade judicial checa competente por ter, designadamente, conduzido um veículo a motor no território desse Estado‑Membro apesar da existência de uma decisão de uma autoridade pública checa que o proibia.

53

Para apreciar se o requisito da dupla incriminação está preenchido no processo principal, incumbe assim ao órgão jurisdicional de reenvio, responsável pelo reconhecimento e execução da sentença condenatória, verificar se, na hipótese de esses elementos factuais, a saber, a condução de um veículo a motor apesar da existência de uma decisão oficial que proibia esse comportamento, terem ocorrido no território do Estado‑Membro a que pertence esse órgão jurisdicional, os mesmos teriam sido passíveis de sanção penal à luz do direito nacional desse Estado. Se assim for, deve considerar‑se preenchido o requisito da dupla incriminação.

54

À luz das considerações anteriores, há que responder à questão submetida que os artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/909 devem ser interpretados no sentido de que se deve considerar preenchido o requisito da dupla incriminação numa situação como a que está em causa no processo principal, no caso de os elementos factuais na base da infração, tal como foram plasmados na sentença da autoridade competente do Estado de emissão, serem igualmente, enquanto tais, passíveis de sanção penal no território do Estado de execução se ocorressem nesse território.

Quanto às despesas

55

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

Os artigos 7.°, n.o 3, e 9.°, n.o 1, alínea d), da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, devem ser interpretados no sentido de que se deve considerar preenchido o requisito da dupla incriminação numa situação como a que está em causa no processo principal, no caso de os elementos factuais na base da infração, tal como foram plasmados na sentença da autoridade competente do Estado de emissão, serem igualmente, enquanto tais, passíveis de sanção penal no território do Estado de execução se ocorressem nesse território.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: eslovaco.