ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

8 de setembro de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 49.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Jogos de fortuna e azar — Restrições — Razões imperiosas de interesse geral — Proporcionalidade — Contratos públicos — Condições de participação num concurso e avaliação da capacidade económica e financeira — Exclusão do proponente por não apresentação de declarações de capacidade económica e financeira, emitidas por duas instituições bancárias distintas — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 47.o — Aplicabilidade»

No processo C‑225/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunale di Reggio Calabria (Tribunal de Regio de Calabre, Itália), por decisão de 28 de fevereiro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de maio de 2015, no processo penal contra

Domenico Politanò,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, C. Toader (relatora), A. Rosas, A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 13 de abril de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação de D. Politanò, por D. Agnello e D. Neto, avvocati,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por C. Russo, avvocato dello Stato,

em representação do Governo belga, por M. Jacobs e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes, assistidas por P. Vlaemminck, R. Verbeke e B. Van Vooren, advocaten,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Möller, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti, H. Tserepa‑Lacombe e A. Tokár, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 16 de junho de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.o TFUE, dos princípios da igualdade de tratamento e da efetividade e do artigo 47.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra Domenico Politanò por infração à legislação italiana que regula a recolha de apostas.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e d), e n.o 4, da Diretiva 2004/18:

a)

‘Contratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva.

[…]

d)

‘Contratos públicos de serviços’ são contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II.

[…]

4.   ‘Concessão de serviços’ é um contrato com as mesmas características que um contrato público de serviços, com exceção de que a contrapartida dos serviços a prestar consiste quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento.»

4

O artigo 17.o desta diretiva, que tem por epígrafe «Concessões de serviços», previa:

«Sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 3.o, a presente diretiva não é aplicável às concessões de serviços definidas no n.o 4 do artigo 1.o»

5

O artigo 47.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Capacidade económica e financeira», tinha a seguinte redação:

«1.   A prova da capacidade económica e financeira do operador económico pode ser feita, regra geral, por um ou mais dos elementos de referência seguintes:

a)

Declarações bancárias adequadas ou, se necessário, prova de que se encontra seguro contra riscos profissionais;

b)

Balanços ou extratos de balanços, sempre que a publicação de balanços seja exigida pela legislação do país onde o operador económico estiver estabelecido;

c)

Uma declaração relativa ao volume de negócios global e, eventualmente, ao volume de negócios no domínio de atividades objeto do contrato, respeitante no máximo aos últimos três exercícios disponíveis, em função da data de criação ou do início de atividades do operador económico, desde que estejam disponíveis as referências desse volume de negócios.

2.   Um operador económico pode, se necessário e para um contrato determinado, recorrer às capacidades de outras entidades, independentemente da natureza jurídica do vínculo que tenha com elas. Deverá nesse caso provar à entidade adjudicante que disporá efetivamente dos recursos necessários, por exemplo, através da apresentação do compromisso de tais entidades nesse sentido.

3.   Nas mesmas condições, um agrupamento de operadores económicos referido no artigo 4.o pode recorrer às capacidades dos participantes no agrupamento ou de outras entidades.

4.   As entidades adjudicantes devem especificar no anúncio de concurso ou no convite à apresentação de propostas qual o elemento ou elementos de referência previstos no n.o 1 que escolheram, bem como quaisquer outros elementos de referência que devam ser apresentados.

5.   Se, por motivo fundamentado, o operador económico não puder apresentar as referências pedidas pela entidade adjudicante, poderá provar a sua capacidade económica e financeira por qualquer outro documento que essa entidade considere adequado.»

6

A Diretiva 2004/18 foi revogada pela Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014 (JO 2014, L 94, p. 65).

Direito italiano

7

O artigo 10.o, n.os 9 octies e 9 novies, do decreto‑legge n. 16 — Disposizioni urgenti in materia di semplificazioni tributarie, di efficientamento e potenziamento delle procedure di accertamento (Decreto‑Lei n.o 16, que aprova disposições urgentes em matéria de simplificação fiscal, de melhoria da eficácia e de reforço dos procedimentos de controlo), de 2 de março de 2012 (GURI n.o 52, de 2 de março de 2012, p. 1), convertido em lei, após alteração, pela Lei n.o 44, de 26 de abril de 2012 (suplemento ordinário do GURI n.o 99, de 28 de abril de 2012) (a seguir «Decreto‑Lei de 2012») prevê:

«9 octies   No âmbito de uma reorganização das disposições em matéria de jogos públicos, incluindo as disposições em matéria de apostas sobre eventos desportivos, nomeadamente hípicos, e não desportivos, as disposições do presente número têm por objetivo favorecer a referida reorganização, através de um primeiro alinhamento temporal dos prazos das concessões para a recolha das apostas em causa, respeitando a exigência de adaptação das regras nacionais de seleção das pessoas que, por conta do Estado, recolhem apostas sobre eventos desportivos, incluindo hípicos, e não desportivos, aos princípios formulados no acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 16 de fevereiro de 2012, nos processos apensos C‑72/10 e C‑77/10. Para o efeito, atendendo à caducidade próxima de um grupo de concessões para a recolha das referidas apostas, a Administração Autónoma dos Monopólios do Estado abre imediatamente e, em todo o caso, o mais tardar em 31 de julho de 2012, um concurso para a seleção das pessoas responsáveis pela recolha dessas apostas, respeitando, pelo menos, os seguintes critérios:

a)

possibilidade de participação das pessoas que já exerciam uma atividade de recolha de jogos num dos Estados do Espaço Económico Europeu, por aí terem a sede legal ou operacional, ao abrigo de uma autorização válida e eficaz emitida segundo as disposições em vigor na ordem jurídica do referido Estado, e que sejam igualmente idóneas e fiáveis e possuam as capacidades económicas e patrimoniais indicadas pela Administração Autónoma dos Monopólios do Estado, tendo em conta as disposições sobre esta matéria constantes da Lei n.o 220, de 13 de dezembro de 2010, e do Decreto‑Lei n.o 98, de 6 de julho de 2011, convertido, após alteração, na Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011;

b)

adjudicação de concessões, válidas até 30 de junho de 2016, para a recolha, exclusivamente numa rede física, de apostas sobre eventos desportivos, nomeadamente hípicos, e não desportivos, em agências, até ao máximo de 2000, que tenham por atividade exclusiva a comercialização de produtos de jogos públicos, sem obrigação de distâncias mínimas entre as agências ou relativamente a outros pontos de recolha, já ativos, de apostas idênticas;

c)

prevê‑se, como componente do preço, um valor de base do mercado de 11000 euros por agência;

d)

celebração de contratos de concessão de teor conforme aos princípios estabelecidos no referido acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 16 de fevereiro de 2012, bem como às disposições nacionais compatíveis, em vigor em matéria de jogos públicos;

e)

possibilidade de gerir as agências em qualquer município ou província, sem limites numéricos de caráter territorial nem condições mais favoráveis em comparação com concessionários já autorizados a recolher apostas idênticas ou que, em todo o caso, se possam revelar favoráveis a estes últimos;

f)

constituição de cauções em conformidade com o disposto no artigo 24.o do Decreto‑Lei n.o 98, de 6 de julho de 2011, convertido, após alteração, na Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011.

9 novies   Os concessionários para a recolha das apostas referidos no n.o 9 octies, cujos contratos terminem em 30 de junho de 2012, prosseguem a atividade de recolha até à data da celebração dos contratos de concessão adjudicados em conformidade com o referido número. São revogados os n.os 37 e 38 do artigo 24.o do Decreto‑Lei n.o 98, de 6 de julho de 2011, convertido, após alteração, na Lei n.o 111, de 15 de julho de 2011, a alínea e) do n.o 287 do artigo 1.o da Lei n.o 311, de 30 de dezembro de 2004, bem como a alínea e) do n.o 4 do artigo 38.o do Decreto‑Lei n.o 223, de 4 de julho de 2006, convertido, após alteração, na Lei n.o 248, de 4 de agosto de 2006.»

8

Em 2012, as autoridades italianas abriram procedimentos concursais ao abrigo do disposto no Decreto‑Lei de 2012. O artigo 3.2 das regras administrativas de adjudicação das concessões e de assinatura das convenções anexas ao aviso de concurso correspondente (a seguir «aviso de concurso Monti») estabelecia a obrigação de os proponentes constituídos há menos de dois anos e cujas receitas globais provenientes da atividade de operador de jogos fossem inferiores a dois milhões de euros durante os dois últimos exercícios apresentarem declarações emitidas pelo menos por duas instituições bancárias, para demonstrarem a sua capacidade económica e financeira.

9

A Diretiva 2004/18 foi transposta para a ordem jurídica italiana pelo decreto legislativo n. 163 — Codice dei contratti pubblici relativi a lavori, servizi e forniture in attuazione delle direttive 2004/17/CE e 2004/18/CE (Decreto legislativo n.o 163, que cria o Código dos Contratos de Empreitada de Obras Públicas, de serviços e de fornecimento em aplicação das Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE), de 12 de abril de 2006 (suplemento ordinário do GURI n.o 100, de 2 de maio de 2006).

10

Nos termos do artigo 41.o desse decreto legislativo, os requisitos a cumprir para demonstrar a capacidade económica e financeira exigida para a execução da prestação são especificados pela entidade adjudicante. Contudo, de acordo com o mesmo artigo, o concorrente que, por motivo fundamentado, não puder apresentar as referências bancárias ou contabilísticas exigidas pode provar essa capacidade por qualquer outro documento considerado adequado pela entidade adjudicante.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

Em 6 de fevereiro de 2015, numa inspeção efetuada no estabelecimento comercial denominado «Betuniq» sito em Polistena (Itália), gerido por D. Politanò e dependente da UniqGroup Ltd, sociedade de direito maltês, os serviços da polícia administrativa da Questura di Reggio Calabria (polícia da Região da Calábria, Itália) constataram que a atividade de recolha de apostas era aí exercida sem concessão prévia.

12

Desta forma, por decisão de 13 de fevereiro de 2015, o Giudice per le indagini preliminari (juiz de instrução) do Tribunale di Palmi (Tribunal de Palmi, Itália) ordenou a apreensão preventiva dos bens utilizados para a referida atividade.

13

D. Politanò recorreu dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, invocando a incompatibilidade de certas cláusulas do aviso de concurso Monti com os artigos 49.° e 56.° TFUE.

14

Assim, segundo o recorrente no processo principal, a sua conduta não constitui uma infração, uma vez que a recolha de apostas sobre eventos desportivos por conta da sociedade maltesa UniqGroup deve ser considerada lícita, dado que a legislação interna é contrária aos artigos 49.° e 56.° TFUE.

15

A este respeito, sustenta que a UniqGroup foi excluída do procedimento concursal aberto em 2012 pelo facto de não ter apresentado duas declarações de capacidade económica e financeira emitidas por duas instituições bancárias diferentes, conforme exigido pelo artigo 3.2 das regras administrativas anexas ao aviso de concurso Monti.

16

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, num procedimento concursal onde concorram operadores de jogos a dinheiro estabelecidos em diversos Estados‑Membros, como o que está em causa no processo principal, haveria que respeitar necessariamente o artigo 47.o da Diretiva 2004/18, que prevê a possibilidade de avaliar a capacidade económica e financeira dos operadores económicos «por qualquer outro documento que [a entidade adjudicante] considere adequado».

17

A definição, pelas autoridades italianas, de condições de participação rígidas no procedimento concursal deveria necessariamente ser conciliada com o princípio da máxima participação nos concursos, devendo‑se assegurar a todos os interessados a possibilidade de demonstrarem a sua capacidade económica e financeira mediante qualquer documento, diferente dos requeridos pela entidade adjudicante, considerado adequado.

18

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, decorre daí que essas autoridades deveriam indicar expressamente os critérios considerados adequados e úteis para demonstrar a capacidade económica e financeira exigida, de modo a que cada proponente pudesse, em todo o caso, demonstrá‑la de forma útil.

19

Ora, esse órgão jurisdicional considera que, no caso vertente, as regras administrativas anexas ao aviso de concurso Monti não permitiram à UniqGroup provar a sua capacidade económica e financeira por outros meios, a não ser pela produção dos documentos aí especificados.

20

Nestas circunstâncias, o Tribunale di Reggio Calabria (Tribunal de Regio de Calabre, Itália) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem o artigo 49.o TFUE e os princípios da igualdade de tratamento e da efetividade ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional em matéria de jogos de fortuna e azar que prevê o lançamento de um novo concurso (regulado no artigo 10.o, n.o 9 octies, [do Decreto‑Lei de 2012]) para a adjudicação de concessões que contém cláusulas de exclusão do concurso por incumprimento do requisito relativo à capacidade económica e financeira como consequência da falta de critérios alternativos respeitantes a duas referências bancárias de duas instituições financeiras diferentes?

2)

Deve [o] artigo 47.o da Diretiva [2004/18] ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional em matéria de jogos de fortuna e azar que prevê o lançamento de um novo concurso (regulado no artigo 10.o, n.o 9 octies, [do Decreto‑Lei de 2012]) para a adjudicação de concessões que contém cláusulas de exclusão do concurso por incumprimento do requisito relativo à capacidade económica e financeira como consequência da falta de documentos e possibilidades alternativas, como as previstas na legislação supranacional?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade

21

O Governo italiano e, quanto à segunda questão exclusivamente, a Comissão Europeia, consideram que o pedido de decisão prejudicial deve ser declarado inadmissível uma vez que a decisão de reenvio não expõe suficientemente o quadro factual de modo a permitir que o Tribunal de Justiça forneça uma resposta útil.

22

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas (acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 26 e jurisprudência referida).

23

Resulta igualmente de jurisprudência constante que a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar no qual se inserem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam essas questões. Além disso, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que conduziram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário apresentar questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 27 e jurisprudência referida).

24

Acresce que o Tribunal de Justiça já observou que as exigências recordadas nos n.os 22 e 23 do presente acórdão podem mais facilmente ser observadas quando o pedido de decisão prejudicial se inscreve num contexto já amplamente conhecido (v., nomeadamente, despacho de 17 de julho de 2014, 3D I, C‑107/14, não publicado, EU:C:2014:2117, n.o 12 e jurisprudência referida).

25

Ora, resulta da decisão de reenvio que, por um lado, a mesma descreve com clareza e precisão suficiente o quadro jurídico e factual do processo principal e que, por outro, as indicações nela contidas permitem determinar o alcance das questões colocadas, como aliás decorre das observações escritas dos vários governos e da Comissão.

26

Nestas circunstâncias, há que considerar que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto à segunda questão

27

Com a segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 47.o da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe aos operadores que queiram participar num concurso para adjudicação de concessões em matéria de jogos e de apostas a obrigação de fazer prova da sua capacidade económica e financeira mediante declarações emitidas por, pelo menos, duas instituições bancárias, sem permitir que essa capacidade seja demonstrada por quaisquer outros documentos.

28

A título preliminar, há que examinar se a referida diretiva é aplicável num processo como o que está em causa no processo principal.

29

A este respeito, importa precisar que a Diretiva 2004/18 trata dos procedimentos de adjudicação de contratos públicos e não dos procedimentos cujo objeto seja a concessão de serviços, que, por força do artigo 17.o desta diretiva, estão excluídos do seu âmbito de aplicação. Com efeito, esta última disposição exclui expressamente a concessão de serviços, que o artigo 1.o, n.o 4, da referida diretiva define como o contrato com as mesmas características que um contrato público de serviços, com a exceção de que a contrapartida dos serviços a prestar consiste quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento.

30

Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, resulta da comparação das definições de contrato público de serviços e de concessão de serviços, dadas, respetivamente, pelo n.o 2, alíneas a) e d), e pelo n.o 4 do artigo 1.o da Diretiva 2004/18, que a diferença entre um contrato de público de serviços e uma concessão de serviços reside na contrapartida da prestação de serviços. O contrato de serviços inclui uma contrapartida que, sem ser a única, é paga diretamente pela entidade adjudicante ao prestador de serviços, ao passo que, no caso da concessão de serviços, a contrapartida dos serviços a prestar consiste unicamente no direito de exploração do serviço ou nesse direito acompanhado de um pagamento (v. acórdão de 10 de março de 2011, Privater Rettungsdienst und Krankentransport Stadler, C‑274/09, EU:C:2011:130, n.o 24 e jurisprudência referida).

31

Decorre ainda dessa jurisprudência que, embora o modo de remuneração seja, assim, um dos elementos determinantes para uma qualificação de uma concessão de serviços, tal qualificação implica que o concessionário assuma o risco ligado à exploração dos serviços em questão e que a falta de transferência para o prestador do risco ligado à prestação de serviços indica que a operação visada constitui um contrato público de serviços e não uma concessão de serviços (v., neste sentido, acórdão de 10 de março de 2011, Privater Rettungsdienst und Krankentransport Stadler, C‑274/09, EU:C:2011:130, n.o 26 e jurisprudência referida).

32

Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 51 das suas conclusões, no processo principal, o prestador de serviços, por um lado, não recebe nenhuma remuneração da entidade adjudicante e, por outro, suporta a totalidade do risco associado ao exercício da atividade de recolha e transmissão das apostas.

33

Segue‑se que a concessão relativa à organização de apostas, como a que está em causa no processo principal, não pode ser qualificada de contrato público de serviços na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2004/18.

34

Atendendo ao exposto, há que responder à segunda questão que a referida diretiva e, em especial, o seu artigo 47.o devem ser interpretados no sentido de que uma regulamentação nacional que regula a adjudicação de concessões no domínio dos jogos de fortuna e azar, como a que está em causa no processo principal, não é abrangida pelo seu âmbito de aplicação.

Quanto à primeira questão

35

A título preliminar, saliente‑se que, embora, certamente, o órgão jurisdicional de reenvio tenha referido, na redação da primeira questão, os princípios da igualdade de tratamento e da efetividade, da decisão de reenvio não consta qualquer precisão sobre as razões que levaram esse órgão jurisdicional a questionar‑se sobre a interpretação destes princípios no âmbito do processo principal nem sobre a relação entre estes princípios e a legislação nacional em causa no processo principal.

36

Atendendo ao exposto, há que considerar que, com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que este se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe aos operadores que queiram participar num concurso para adjudicação de concessões em matéria de jogos e de apostas a obrigação de fazer prova da sua capacidade económica e financeira mediante declarações emitidas pelo menos por duas instituições bancárias, sem permitir que essa capacidade seja igualmente demonstrada por outros meios.

37

Em primeiro lugar, é jurisprudência constante que devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento e/ou à livre prestação de serviços as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício das liberdades garantidas pelos artigos 49.° e 56.° TFUE (v. acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.o 45 e jurisprudência referida).

38

Uma disposição de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita o exercício de uma atividade económica à obtenção de uma concessão e impõe, nesse contexto, aos proponentes a obrigação de produzir declarações emitidas por dois operadores bancários distintos, é suscetível de dissuadir os operadores económicos de participarem num procedimento concursal, pelo que pode constituir uma restrição à liberdade de estabelecimento na aceção do artigo 49.o TFUE.

39

Em seguida, importa recordar que a regulamentação dos jogos de fortuna ou azar é um dos domínios em que há divergências consideráveis de ordem moral, religiosa e cultural entre os Estados‑Membros. Na falta de harmonização na matéria a nível da União Europeia, os Estados‑Membros beneficiam de um amplo poder de apreciação na escolha do nível de proteção do consumidor e da ordem social que considerem mais adequado (v., neste sentido, acórdão de 22 de janeiro de 2015, Stanley International Betting e Stanleybet Malta, C‑463/13, EU:C:2015:25, n.os 51 e 52 e jurisprudência referida).

40

Consequentemente, os Estados‑Membros podem fixar os objetivos da sua política em matéria de jogos de fortuna ou azar e, eventualmente, definir com precisão o nível de proteção pretendido. No entanto, as restrições que os Estados‑Membros impõem devem preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça a respeito, nomeadamente, da sua justificação por razões imperiosas de interesse geral e da sua proporcionalidade (v., neste sentido, acórdão de 8 de setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, EU:C:2009:519, n.o 59 e jurisprudência referida).

41

Importa, assim, verificar se uma restrição, como a que está em causa no processo principal, pode ser admitida a título de medidas derrogatórias, por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública, expressamente previstas nos artigos 51.° e 52.° TFUE, aplicáveis, igualmente, em matéria de livre prestação de serviços nos termos do artigo 62.o TFUE, ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (acórdão de 12 de junho de 2014, Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 22 e jurisprudência referida).

42

No caso vertente, o Governo italiano sustenta que a disposição restritiva em causa é justificada, no quadro do objetivo da luta contra a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar, pelo interesse em assegurar a continuidade da atividade legal de recolha de apostas a fim de conter o desenvolvimento de uma atividade ilegal paralela e pelo interesse de proteger o consumidor. Assim, é indispensável que a capacidade económica e financeira dos titulares de concessões lhes permita exercer duradouramente a sua atividade no mercado.

43

A este respeito, recorde‑se que tal objetivo pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral capaz de justificar uma restrição às liberdades fundamentais como a que está em causa no processo principal (v., neste sentido, acórdão de 28 de janeiro de 2016, Laezza, C‑375/14, EU:C:2016:60, n.os 34 e 35). O Tribunal de Justiça já declarou, aliás, que o objetivo relacionado com a luta contra a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar é suscetível de justificar as restrições às liberdades fundamentais que decorrem de uma regulamentação restritiva (v., neste sentido, acórdãos de 12 de setembro de 2013, Biasci e o., C‑660/11 e C‑8/12, EU:C:2013:550, n.o 23, e de 28 de janeiro de 2016, Laezza, C‑375/14, EU:C:2016:60, n.o 32).

44

Contudo, importa ainda analisar se a restrição em causa no processo principal é adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não ultrapassa o que é necessário para alcançar esse objetivo, garantindo, nomeadamente, que a regulamentação nacional em causa responde verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma maneira coerente e sistemática (v., neste sentido, acórdão de 12 de julho de 2012, HIT e HIT LARIX, C‑176/11, EU:C:2012:454, n.o 22 e jurisprudência referida).

45

Quanto à questão de saber se a referida restrição é adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido, observe‑se que as declarações bancárias emitidas por duas instituições bancárias distintas, como as exigidas pela disposição em causa no processo principal, são suscetíveis de demonstrar a capacidade económica e financeira do proponente para exercer a atividade de recolha de apostas.

46

Com efeito, a obrigação de fornecer declarações emitidas por duas instituições bancárias é manifestamente suscetível de assegurar que o operador económico dispõe de capacidade económica e financeira que lhe permita cumprir as obrigações que poderá contrair para com os apostadores vencedores. A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a exigência de dispor de capital social de determinado montante pode ser útil para garantir tal capacidade económica e financeira (v., neste sentido, acórdão de 15 de setembro de 2011, Dickinger e Ömer, C‑347/09, EU:C:2011:582, n.o 77).

47

Há, além disso, que determinar se, tendo em conta o amplo poder de apreciação de que beneficiam, no domínio não harmonizado dos jogos de fortuna ou azar, as autoridades nacionais para determinar as exigências que comporta a proteção do consumidor e da ordem social (v., neste sentido, acórdão de 12 de junho de 2014, Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 32 e jurisprudência referida), a obrigação de produção de duas declarações provenientes de duas instituições bancárias distintas não ultrapassa o que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido, devendo essa apreciação ser efetuada à luz dos objetivos prosseguidos pelas autoridades competentes do Estado‑Membro interessado e do nível de proteção que as mesmas pretendem garantir (v. acórdão de 15 de setembro de 2011, Dickinger e Ömer, C‑347/09, EU:C:2011:582, n.o 46 e jurisprudência referida).

48

Neste contexto, importa observar, como salientado, em substância, pelo advogado‑geral nos n.os 80 e 81 das suas conclusões, que, tendo em conta a natureza especial das atividades económicas do setor dos jogos de fortuna e azar, a exigência feita aos proponentes com menos de dois anos de existência e cujas receitas globais ligadas à atividade de operador de jogos eram inferiores a dois milhões de euros nos últimos dois exercícios de apresentação das declarações adequadas emitidas pelo menos por duas instituições bancárias não parece ir além do que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido.

49

Cabe, porém, ao órgão jurisdicional de reenvio, tendo em conta as indicações do Tribunal de Justiça, verificar, através da apreciação global das circunstâncias que envolvem a adjudicação de novas concessões, se as restrições impostas pelo Estado‑Membro em causa preenchem os requisitos que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça quanto à sua proporcionalidade (v., neste sentido, acórdão de 12 de junho de 2014, Digibet e Albers, C‑156/13, EU:C:2014:1756, n.o 40 e jurisprudência referida).

50

Atendendo às considerações expostas, há que responder à primeira questão que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe aos operadores que queiram participar num concurso para adjudicação de concessões em matéria de jogos e de apostas a obrigação de fazer prova da sua capacidade económica e financeira mediante declarações emitidas por, pelo menos, duas instituições bancárias, sem permitir que essa capacidade seja igualmente demonstrada por outros meios, desde que tal disposição preencha as condições de proporcionalidade fixadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

A Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, e, em especial, o seu artigo 47.o devem ser interpretados no sentido de que uma regulamentação nacional que regula a adjudicação de concessões no domínio dos jogos de fortuna e azar, como a que está em causa no processo principal, não é abrangida pelo seu âmbito de aplicação.

 

2)

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma disposição nacional, como a que está em causa no processo principal, que impõe aos operadores que queiram participar num concurso para adjudicação de concessões em matéria de jogos e de apostas a obrigação de fazer prova da sua capacidade económica e financeira mediante declarações emitidas por, pelo menos, duas instituições bancárias, sem permitir que essa capacidade seja igualmente demonstrada por outros meios, desde que tal disposição preencha as condições de proporcionalidade fixadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.