ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

28 de julho de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Âmbito de aplicação ratione materiae — Ação de repetição do indevido — Enriquecimento sem causa — Crédito que tem origem no reembolso injustificado de uma coima por infração do direito da concorrência»

No processo C‑102/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal de Recurso de Budapeste‑Capital, Hungria), por decisão de 16 de fevereiro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de março de 2015, no processo

Gazdasági Versenyhivatal

contra

Siemens Aktiengesellschaft Österreich,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, C. Toader (relatora), A. Rosas, A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de janeiro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Gazdasági Versenyhivatal, por L. Bak, irodavezető (Jogi Iroda),

em representação da Siemens Aktiengesellschaft Österreich, por C. Bán e Á. Papp, ügyvédek,

em representação da Hungria, por Z. Fehér, G. Koós e A. M. Pálfy, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze, J. Kemper e J. Mentgen, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. Varrone, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de abril de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Gazdasági Versenyhivatal (Autoridade da Concorrência, Hungria) à Siemens Aktiengesellschaft Österreich (a seguir «Siemens») a propósito de uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, proposta pela primeira contra a segunda.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 7 e 19 do Regulamento n.o 44/2001 enunciam:

«(7)

O âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial com exceção de certas matérias bem definidas.

[...]

(19)

Para assegurar a continuidade entre a Convenção de Bruxelas [de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção,] e o presente regulamento, há que prever disposições transitórias. A mesma continuidade deve ser assegurada no que diz respeito à interpretação das disposições da [referida] Convenção [...] pelo Tribunal de Justiça [da União Europeia,] e o protocolo de [3 de junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1975, L 204, p. 28)] também deve continuar a aplicar‑se aos processos já pendentes à data em que o regulamento entra em vigor.»

4

O artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento define o seu âmbito de aplicação ratione materiae, da seguinte forma:

«O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.»

5

O artigo 2.o, n.o 1, do referido regulamento prevê:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

6

O artigo 5.o deste regulamento, que figura na respetiva secção 2, sob a epígrafe «Competências especiais», do capítulo II, dispõe:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

[...]

3.

Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;

[...]»

Direito húngaro

Lei das práticas desleais

7

O artigo 83.o, n.o 5, da tisztességtelen piaci magatartás és a versenykorlátozás tilalmáról szóló 1996. évi LVII. törvény (Lei LVII de 1996, que proíbe as práticas comerciais desleais e a restrição da concorrência), na sua versão aplicável ao litígio do processo principal (a seguir «lei das práticas desleais»), prevê:

«Se a decisão da Autoridade da Concorrência tiver violado uma norma de direito e daí resultar o direito da contraparte ao reembolso da coima, são devidos juros sobre a quantia a reembolsar, à taxa correspondente ao dobro da taxa diária de base do banco central.»

Código de Processo Civil

8

Em conformidade com o artigo 130.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Civil, o tribunal declarará a ação inadmissível, sem proceder à citação das partes, quando, com base na lei ou em acordo internacional, estiver excluída a competência dos tribunais húngaros.

9

O artigo 157.o/A, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Civil dispõe que, nos casos em que não haja lugar a declarar a ação inadmissível sem proceder à citação das partes com base no artigo 130.o/A, n.o 1, alínea a), mas em que também não caiba declarar a competência dos tribunais húngaros com base em qualquer outro fundamento, o tribunal procederá à extinção da instância, se a parte demandada suscitar a exceção de incompetência.

Código Civil

10

Em conformidade com o artigo 301.o, n.o 1, da Lei IV de 1959, que aprova o Código Civil, no caso de uma dívida pecuniária, salvo disposição legal em contrário, o devedor é obrigado ao pagamento de juros calculados a contar da data do incumprimento, à taxa de base do banco central húngaro em vigor no dia imediatamente anterior ao semestre em que se verifique a mora, mesmo quando se trate de uma dívida que não vença juros. O facto de o devedor justificar a sua mora não o dispensa da obrigação de pagar juros.

11

Segundo o artigo 339.o, n.o 1, deste código, quem, ilicitamente, causar um dano a outrem, é responsável pela respetiva reparação. Pode excluir essa responsabilidade se provar que atuou de acordo com o que normalmente seria de esperar em idênticas circunstâncias.

12

O artigo 361.o do referido código tem a seguinte redação:

«(1)   Quem, sem causa justificativa, obtiver uma vantagem patrimonial à custa de outrem, é obrigado a restituir essa vantagem.

(2)   Se o enriquecimento se tiver extinguido antes da ação de repetição do indevido, o seu beneficiário não está obrigado à sua restituição, exceto se

a)

devesse razoavelmente contar com a obrigação de restituição e puder ser declarado responsável pela extinção do enriquecimento, ou

b)

o enriquecimento tiver sido obtido contra as regras da boa‑fé.

[...]»

13

Nos termos do artigo 364.o deste código, as regras da indemnização aplicam‑se por analogia ao enriquecimento sem causa.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

14

A Autoridade da Concorrência aplicou à Siemens, sociedade estabelecida na Áustria, uma coima de 159000000 forints húngaros (HUF) (cerca de 507000 euros) por ter violado o disposto em matéria de direito da concorrência. A Siemens impugnou essa coima perante os tribunais administrativos húngaros. No entanto, uma vez que este recurso não tem efeito suspensivo no direito húngaro, esta sociedade pagou a coima.

15

Em primeira instância, o tribunal administrativo reduziu o montante da coima para 27300000 HUF (cerca de 87000 euros). Esta decisão foi confirmada em sede de recurso.

16

Com base no acórdão do tribunal administrativo de recurso, a Autoridade da Concorrência reembolsou à Siemens, em 31 de outubro de 2008, a quantia de 131700000 HUF (cerca de 420000 euros), que representa a diferença entre o montante da coima inicialmente fixado por esta autoridade e o montante aplicado pelos órgãos jurisdicionais administrativos de primeira instância e de recurso. A referida autoridade pagou também à Siemens a quantia de 52016230 HUF (cerca de 166000 euros), com base no artigo 83.o, n.o 5, da lei das práticas desleais, a título de juros vencidos sobre essa quantia.

17

Não obstante, tendo a Autoridade da Concorrência recorrido do acórdão do tribunal administrativo de recurso, a Kúria (Tribunal Supremo, Hungria) considerou que a coima inicialmente aplicada era justificada. Por conseguinte, em 25 de novembro de 2011, a Siemens restituiu à Autoridade da Concorrência a quantia de 131700000 HUF, recusando‑se a restituir a quantia de 52016230 HUF, correspondente aos juros pagos por esta autoridade.

18

Em 12 de julho de 2013, a Autoridade da Concorrência propôs no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria) uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, ao abrigo do artigo 361.o, n.o 1, do Código Civil, com vista à restituição da referida quantia de 52016230 HUF, acrescida de juros de mora vencidos desde 2 de novembro de 2008, primeiro dia útil seguinte à data do reembolso indevido da quantia de 131700000 HUF à Siemens.

19

A referida autoridade pediu também à Siemens o pagamento da quantia de 29183277 HUF (cerca de 93000 euros), correspondente aos juros calculados sobre o montante de 131700000 HUF, relativos ao período compreendido entre 2 de novembro de 2008 e 24 de novembro de 2011, dia anterior à data de restituição desta última quantia à Autoridade da Concorrência, alegando que esta quantia devia ter estado na sua posse durante esse período, uma vez que a sua decisão inicial foi considerada legal ex tunc.

20

No Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital), a Autoridade da Concorrência alegou que o enriquecimento sem causa constitui matéria extracontratual, pelo que a regra de competência especial prevista no artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001 é aplicável no presente caso.

21

Por seu lado, a Siemens invocou uma exceção de incompetência, por meio da qual pediu o arquivamento do processo, alegando que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001 não era aplicável ao caso vertente e que, assim, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 1, do referido regulamento, eram os tribunais austríacos, e não os húngaros, que eram competentes para conhecer do processo principal.

22

Tendo o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital), por despacho de 12 de junho de 2014, dado provimento à exceção de incompetência, a Autoridade da Concorrência recorreu desse despacho para o órgão jurisdicional de reenvio.

23

Este órgão jurisdicional observa que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente o acórdão de 18 de julho de 2013, ÖFAB (C‑147/12, EU:C:2013:490), não fornece indicações claras que lhe permitam pronunciar‑se sobre a questão de saber se os tribunais húngaros dispõem ou não de competência especial, na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001, para conhecer de um litígio como o que está em causa no processo principal. Considera que o crédito que a Autoridade da Concorrência alega ter sobre a Siemens não é um crédito contratual. No entanto, entende que a aplicação da regra de competência especial enunciada nessa disposição não pode ser excluída.

24

Em especial, o referido órgão jurisdicional questiona‑se sobre se o princípio da interpretação autónoma, mais estrita, que prevalece relativamente ao artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001, deve ser interpretado no sentido de que permite aplicar esta regra de competência especial num litígio como o que está em causa no processo principal, em que a responsabilidade da demandada se funda exclusivamente no enriquecimento sem causa e não na existência de culpa ou noutro fundamento de responsabilidade.

25

Nestas condições, o Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Regional de Recurso de Budapeste‑Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Pode ser considerado relativo a ‘matéria extracontratual’, na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do [Regulamento n.o 44/2001], o pedido, decorrente do reembolso de uma coima aplicada num processo relativo à repressão de práticas anticoncorrenciais, paga pela contraparte, que tem sede social noutro Estado‑Membro, à qual foi reconhecido o direito ao reembolso posteriormente declarado injustificado, pedido esse apresentado pela autoridade da concorrência contra a contraparte com vista à devolução dos juros legais devidos em caso de reembolso e pagos pela referida autoridade?»

Quanto à questão prejudicial

26

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pela matéria extracontratual, na aceção desta disposição, uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, através da qual a Autoridade da Concorrência de um Estado‑Membro procura obter de uma sociedade estabelecida num Estado‑Membro o reembolso de juros que pagou a essa sociedade na sequência de uma decisão dos órgãos jurisdicionais administrativos do primeiro Estado‑Membro, de reduzir o montante da coima que tinha sido aplicada àquela sociedade pela referida autoridade, uma vez que o órgão jurisdicional supremo anulou posteriormente esta última decisão e repôs o montante inicial da referida coima.

27

A título preliminar, importa analisar se esta ação entra no âmbito de aplicação ratione materiæ do Regulamento n.o 44/2001.

28

A este respeito, cabe recordar que, uma vez que o Regulamento n.o 44/2001 substitui a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições dessa Convenção é válida igualmente para as do referido regulamento, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes (acórdão de 14 de novembro de 2013, Maletic, C‑478/12, EU:C:2013:735, n.o 27 e jurisprudência referida).

29

Como resulta do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, o âmbito de aplicação do referido regulamento está, como o da Convenção de Bruxelas, limitado ao conceito de «matéria civil e comercial».

30

Para garantir, tanto quanto possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e das obrigações que decorrem do Regulamento n.o 44/2001 para os Estados‑Membros e as pessoas interessadas, não se deve interpretar o conceito de «matéria civil e comercial» como uma simples remissão para o direito interno de qualquer dos Estados em questão. O referido conceito deve ser considerado um conceito autónomo que tem de ser interpretado com referência, por um lado, aos objetivos e ao sistema do referido regulamento e, por outro, aos princípios gerais resultantes das ordens jurídicas nacionais no seu conjunto (acórdão de 23 de outubro de 2014, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑302/13, EU:C:2014:2319, n.o 24 e jurisprudência referida).

31

Para determinar se uma matéria está ou não abrangida pelo âmbito de aplicação deste regulamento, importa analisar os elementos que caracterizam a natureza das relações jurídicas entre as partes no litígio ou o objeto deste (v., neste sentido, acórdãos de 11 de abril de 2013, Sapir e o., C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 32 e jurisprudência referida, e de 12 de setembro de 2013, Sunico e o., C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 33 e jurisprudência referida).

32

O Tribunal de Justiça considerou assim que, embora determinados litígios que opõem uma entidade pública a uma pessoa de direito privado possam estar abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001, o mesmo já não acontece se essa entidade pública atuar no exercício da autoridade pública (v., neste sentido, acórdãos de 11 de abril de 2013, Sapir e o., C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 33 e jurisprudência referida, e de 12 de setembro de 2013, Sunico e o., C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 34).

33

Para determinar se é este o caso no âmbito de um litígio como o do processo principal, há assim que identificar a relação jurídica existente entre as partes no litígio e examinar o fundamento e as modalidades de exercício da ação intentada (v., neste sentido, acórdãos de 15 de maio de 2003, Préservatrice foncière TIARD, C‑266/01, EU:C:2003:282, n.o 23; de 11 de abril de 2013, Sapir e o., C‑645/11, EU:C:2013:228, n.o 34; e de 12 de setembro de 2013, Sunico e o., C‑49/12, EU:C:2013:545, n.o 35).

34

A este respeito, há que salientar que, embora ações de direito privado propostas com vista a garantir o respeito do direito da concorrência estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 (v., neste sentido, acórdãos de 23 de outubro de 2014, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑302/13, EU:C:2014:2319, n.o 28 e jurisprudência referida, e de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 56), é, no entanto, evidente, como salientou o advogado‑geral no n.o 34 das suas conclusões, que uma sanção imposta por uma autoridade administrativa no exercício dos poderes regulamentares que lhe são conferidos pela legislação nacional se enquadra no conceito de «matéria administrativa», excluída do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1. Tal é o caso, em especial, de uma coima aplicada devido a uma violação das disposições do direito nacional que proíbem restrições à concorrência.

35

No caso vertente, embora o litígio no processo principal não incida diretamente sobre a coima que a Autoridade da Concorrência aplicou à Siemens devido a uma violação do disposto em matéria de direito da concorrência, não é menos verdade que este litígio está intrinsecamente relacionado com a referida coima e com o diferendo que opôs as partes do processo principal quanto à sua legalidade. Com efeito, os créditos invocados pela Autoridade da Concorrência no âmbito do referido litígio têm origem na circunstância de a coima, num primeiro momento, ter sido paga pela Siemens, num segundo momento, ter sido restituída pela referida autoridade, na sequência da decisão dos tribunais administrativos de primeira instância e de recurso no sentido de reduzir o respetivo montante, e, por último, ter sido novamente paga na sua totalidade pela Siemens, na sequência da decisão da Kúria (Tribunal Supremo) de repor o respetivo montante inicial.

36

No que diz respeito ao crédito correspondente aos juros que a Autoridade da Concorrência tinha pago à Siemens no momento da restituição parcial da coima, isto é, a quantia de 52016230 HUF, há que constatar, como salientou o advogado‑geral no n.o 39 das suas conclusões, que este surgiu automaticamente em aplicação do artigo 83.o, n.o 5, da lei das práticas desleais.

37

Com efeito, parece decorrer da prática processual administrativa húngara que, sempre que uma coima aplicada pela referida autoridade é anulada ou reduzida pelos órgãos jurisdicionais administrativos, a empresa em causa recebe juros nos termos do artigo 83.o, n.o 5, da lei das práticas desleais, juros esses que a referida autoridade procura depois recuperar, caso a coima seja posteriormente reposta no seu montante inicial.

38

Daqui decorre que o litígio no processo principal, em que a Autoridade da Concorrência procura obter da Siemens o pagamento de um crédito que decorre de uma coima que aplicou a esta empresa, constitui matéria administrativa.

39

O facto de a Autoridade da Concorrência ter proposto uma ação contra a Siemens nos tribunais cíveis húngaros não muda nada a este respeito.

40

A este título, o Tribunal de Justiça declarou que, independentemente da natureza do processo que o direito nacional lhe oferece, o facto de um recorrente intentar uma ação judicial para recuperação de encargos com base num direito de crédito que tem origem num ato de autoridade pública é suficiente para que a sua ação seja considerada excluída do âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas (v., neste sentido, acórdão de 16 de dezembro de 1980, Rüffer, 814/79, EU:C:1980:291, n.o 15).

41

Além disso, diferentemente do processo em que foi proferido o acórdão de 11 de abril de 2013, Sapir e o. (C‑645/11, EU:C:2013:228), no qual estava em causa uma ação de repetição do excedente pago por erro por uma autoridade administrativa, o crédito em causa no processo principal não foi pago à Siemens por erro, mas surgiu em virtude da lei aplicável ao processo administrativo em causa no processo principal.

42

Daqui decorre que uma ação de repetição do indevido como a que está em causa no processo principal não está abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 44/2001.

43

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial que uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, como a que está em causa no processo principal, que tem origem no reembolso de uma coima imposta no âmbito de um procedimento de direito da concorrência, não está abrangida pela «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o do Regulamento n.o 44/2001.

Quanto às despesas

44

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

Uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, como a que está em causa no processo principal, que tem origem no reembolso de uma coima imposta no âmbito de um procedimento de direito da concorrência, não está abrangida pela «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.