ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

7 de julho de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão — Capacidade técnica dos operadores económicos — Efeito direto — Meios de prova — Relação de hierarquia entre a declaração do adquirente privado e a declaração unilateral do proponente — Princípio da proporcionalidade — Proibição de introduzir alterações substanciais aos meios de prova previstos»

No processo C‑46/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal), por decisão de 29 de janeiro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de fevereiro de 2015, no processo

Ambisig — Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA,

contra

AICP — Associação de Industriais do Concelho de Pombal,

sendo intervenientes:

Índice — ICT & Management, Lda,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça, presidente de secção, A. Tizzano (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, F. Biltgen, A. Borg Barthet e M. Berger, juízes,

advogado‑geral: M. Wathelet,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 28 de janeiro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Ambisig — Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA, por H. Rodrigues da Silva, advogado,

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e F. Batista, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por G. Braga da Cruz e A. Tokár, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de março de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii) segundo travessão, da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ambisig — Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA (a seguir «Ambisig»), à AICP — Associação de Industriais do Concelho de Pombal (a seguir «AICP») a respeito da decisão deste último organismo de excluir a candidatura da Ambisig de um concurso para a adjudicação de um contrato público de prestação de serviços.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 1, 2, 4, 32 e 46 da Diretiva 2004/18 enunciam:

«(1)

Sendo necessárias novas alterações às Diretivas 92/50/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços [(JO 1992, L 209, p. 1)], 93/36/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento [(JO 1993, L 199, p. 1)], e 93/37/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas [(JO 1993, L 199, p. 54)], para responder às exigências de simplificação e modernização formuladas, quer pelas entidades adjudicantes quer pelos operadores económicos, no âmbito das reações ao Livro Verde adotado pela Comissão em 27 de novembro de 1996, é conveniente, por razões de clareza, proceder à sua reformulação num só texto. […]

(2)

A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. […]

[…]

(4)

Os Estados‑Membros devem velar por que a participação de um proponente que seja um organismo de direito público num processo de adjudicação de contratos públicos não cause distorções de concorrência relativamente a proponentes privados.

[…]

(32)

A fim de favorecer o acesso das pequenas e médias empresas aos concursos públicos, é conveniente prever disposições em matéria de subcontratação.

[…]

(46)

A adjudicação de um contrato deve realizar‑se com base em critérios objetivos que assegurem o respeito dos princípios da transparência, da não discriminação e da igualdade de tratamento e que garantam a apreciação das propostas em condições de concorrência efetiva. […]»

4

O artigo 1.o, n.o 9, desta diretiva prevê:

«Por ‘entidades adjudicantes’ entende‑se o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais organismos de direito público.

Por ‘organismo de direito público’ entende‑se qualquer organismo:

a)

Criado para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com caráter não industrial ou comercial;

b)

Dotado de personalidade jurídica, e

c)

Cuja atividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público; ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte destes últimos; ou em cujos órgãos de administração, direção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.

As listas não exaustivas dos organismos e categorias de organismos de direito público que satisfazem os critérios referidos nas alíneas a), b) e c) do segundo parágrafo constam do anexo III. Os Estados‑Membros notificarão periodicamente a Comissão das alterações introduzidas nas suas listas.»

5

O artigo 48.o da referida diretiva, intitulado «Capacidade técnica e/ou profissional», prevê:

«1.   A capacidade técnica e/ou profissional dos operadores económicos será avaliada e verificada de acordo com os n.os 2 e 3.

2.   A capacidade técnica dos operadores económicos pode ser comprovada por um ou mais dos meios a seguir indicados, de acordo com a natureza, a quantidade ou a importância e a finalidade das obras, dos produtos ou dos serviços:

a)

i)

[...]

ii)

Lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos, com indicação dos montantes, datas e destinatários, públicos ou privados. Os fornecimentos e as prestações de serviços serão provados:

[…]

quando o destinatário tiver sido um adquirente privado, por declaração reconhecida do adquirente ou, na sua falta, por simples declaração do operador económico.

[…]»

Direito português

6

A Diretiva 2004/18 foi transposta para o ordenamento jurídico português pelo Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto‑Lei n.o 18/2008, de 29 de janeiro de 2008, alterado e republicado em anexo ao Decreto‑Lei n.o 287/2009, de 2 de outubro de 2009 (Diário da República, 1.a série, n.o 192, de 2 de outubro de 2009).

7

O artigo 165.o deste código tem a seguinte redação:

«1.   Os requisitos mínimos de capacidade técnica a que se refere a alínea h) do n.o 1 do artigo anterior devem ser adequados à natureza das prestações objeto do contrato a celebrar, descrevendo situações, qualidades, características ou outros elementos de facto relativos, designadamente:

a)

À experiência curricular dos candidatos;

b)

Aos recursos humanos, tecnológicos, de equipamento ou outros utilizados, a qualquer título, pelos candidatos;

c)

Ao modelo e à capacidade organizacionais dos candidatos, designadamente no que respeita à direção e integração de valências especializadas, aos sistemas de informação de suporte e aos sistemas de controlo de qualidade;

d)

À capacidade dos candidatos adotarem medidas de gestão ambiental no âmbito da execução do contrato a celebrar;

e)

À informação constante da base de dados do Instituto da Construção e do Imobiliário, I. P., relativa a empreiteiros, quando se tratar da formação de um contrato de empreitadas ou de concessão de obras públicas.

[…]

5.   Os requisitos mínimos de capacidade técnica referidos no n.o 1 e o fator ‘f’ referido na alínea i) do n.o 1 do artigo anterior não devem ser fixados de forma discriminatória.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8

Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, em 10 de dezembro de 2013, a AICP, na qualidade de entidade adjudicante, procedeu à abertura de um concurso limitado por prévia qualificação, com vista à celebração de um contrato de prestação de serviços para a «Implementação de Sistemas de Gestão do Ambiente, Qualidade e Plataforma Tecnológica em treze empresas».

9

O artigo 12.o, n.o 1, alíneas c) e f), do Programa do Procedimento estabelece o seguinte:

«Para qualificação dos candidatos é necessário apresentar os seguintes documentos da candidatura:

[…]

c)

Declaração do cliente, em papel timbrado e carimbado, a comprovar a implementação do sistema de gestão do ambiente e/ou da qualidade pelo concorrente, de acordo com o modelo de declaração constante do Anexo VIII ao presente programa. A declaração deverá conter o reconhecimento da assinatura e da qualidade em que assina, feita por notário, advogado ou outra entidade com competência;

[…]

f)

Declaração do cliente em papel timbrado e carimbado a comprovar a implementação de sistemas de gestão, desenvolvimento e implementação de plataforma tecnológica em rede, software de sistemas de gestão e as ações de coordenação pelo concorrente, indicando o respetivo valor, de acordo com o modelo de declaração constante do Anexo IX ao presente programa. A declaração deverá conter o reconhecimento da assinatura e da qualidade em que assina, feita por notário, advogado ou outra entidade com competência; […]»

10

Por decisão de 27 de março de 2014, a AICP aprovou o relatório final da qualificação elaborado pelo júri, qualificando a candidatura da Índice ICT & Management, Lda., e excluindo, nomeadamente, a candidatura da Ambisig, com o fundamento de que, por um lado, esta sociedade não tinha feito prova das condições relativas à sua capacidade técnica através de uma declaração emitida por um adquirente privado, reconhecida em conformidade com o previsto no artigo 12.o do Programa do Procedimento, e, por outro, não tinha comprovado nem sustentado uma impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção dessa declaração.

11

No âmbito do recurso interposto pela Ambisig contra essa decisão, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (Portugal), por sentença proferida em 11 de junho de 2014, acolheu parcialmente os fundamentos apresentados por esta sociedade, anulou a decisão da AICP e condenou esta última a aprovar, no prazo de 20 dias, um novo programa do procedimento.

12

A Ambisig apresentou reclamação dessa sentença para a conferência do referido tribunal, por considerar que foi erradamente que esse tribunal julgou improcedentes os fundamentos do recurso relativos, nomeadamente, à incompatibilidade das regras estabelecidas pela entidade adjudicante para comprovação da capacidade técnica dos candidatos com as exigências previstas a este respeito no artigo 48.o da Diretiva 2004/18.

13

Uma vez que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, reunido em conferência, indeferiu a reclamação da Ambisig por acórdão de 6 de agosto de 2014, esta interpôs recurso no órgão jurisdicional de reenvio, pelo motivo de esse acórdão também não ter reconhecido a ilegalidade, à luz do artigo 48.o da Diretiva 2004/18, das regras fixadas pela entidade adjudicante para comprovação da capacidade técnica dos candidatos.

14

Nestas circunstâncias, o Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Não regulando a legislação portuguesa a matéria contida no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…], é tal normativo diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa no sentido de que confere aos particulares um direito que estes podem fazer valer contra as entidades adjudicantes?

2)

O disposto no [artigo] 48.°, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…] deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de normas, estabelecidas por entidade adjudicante, que não permitem ao operador económico provar as prestações de serviços através de declaração assinada pelo próprio, exceto se este comprovar impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado?

3)

O disposto no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…] deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de normas, estabelecidas por entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

15

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que, na falta da sua transposição para o direito interno, preenche as condições para conferir aos particulares direitos que podem ser invocados nos órgãos jurisdicionais nacionais contra as entidades adjudicantes.

16

A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quando o Estado não tenha feito a transposição de uma diretiva para o direito nacional nos prazos previstos ou quando tenha feito uma transposição incorreta, os particulares têm o direito de invocar contra o Estado nos órgãos jurisdicionais nacionais apenas as disposições dessa diretiva que, atendendo ao seu conteúdo, sejam incondicionais e suficientemente precisas (v., neste sentido, acórdãos de 12 de dezembro de 2013, Portgás, C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 18 e jurisprudência referida; de 14 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale, C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 31; e de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.o 31).

17

Ora, há que constatar, como salientou o advogado‑geral no n.o 25 das suas conclusões, que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 satisfaz estes critérios, dado que, por um lado, enuncia uma obrigação que não requer nenhuma medida complementar nem está subordinada à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, indica, de forma clara e completa, os elementos que podem ser solicitados aos operadores económicos para comprovar a sua capacidade técnica, nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos.

18

Além disso, o Tribunal de Justiça já decidiu neste sentido a propósito da Diretiva 92/50, que foi revogada e substituída pela Diretiva 2004/18.

19

Assim, nos n.os 46 e 47 do acórdão de 24 de setembro de 1998, Tögel (C‑76/97, EU:C:1998:432), o Tribunal de Justiça considerou que as disposições do título IV da Diretiva 92/50, entre as quais figurava, nomeadamente, o seu artigo 32.o, n.o 2, cujo conteúdo o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 reproduz em termos quase idênticos, eram suscetíveis de ter efeito direto.

20

Assim, há ainda que precisar, a fim dar uma resposta útil à primeira questão, se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 pode ser oposto a qualquer entidade qualificada de «entidade adjudicante», na aceção do artigo 1.o, n.o 9, desta diretiva.

21

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, embora uma diretiva não possa, por si mesma, criar obrigações para um particular, nem possa, por conseguinte, ser invocada, enquanto tal, contra ele (v., designadamente, acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 37 e jurisprudência referida, e de 15 de janeiro de 2015, Ryanair, C‑30/14, EU:C:2015:10, n.o 30), quando os sujeitos de direito podem invocar uma diretiva não contra um particular, mas contra o Estado, podem fazê‑lo qualquer que seja a qualidade em que este último age. Com efeito, deve evitar‑se que o Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito da União (v., neste sentido, acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 38 e jurisprudência referida, e de 12 de dezembro de 2013, Portgás, C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 23).

22

Por conseguinte, as disposições de uma diretiva suscetíveis de produzir efeitos diretos podem ser invocadas não só contra uma entidade pública mas também um organismo que, seja qual for a sua forma jurídica, tenha sido encarregado, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público e que disponha, para esse efeito, de poderes que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares (acórdão de 12 de dezembro de 2013, Portgás, C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 24 e jurisprudência referida).

23

No caso em apreço, no que se refere à situação da AICP, parece resultar dos esclarecimentos prestados pelo Governo português na audiência no Tribunal de Justiça que esta entidade, ao mesmo tempo que se enquadra no conceito de «entidade adjudicante», na aceção do artigo 1.o, n.o 9, da Diretiva 2004/18, constitui uma associação de empresas de direito privado que não reúne as condições referidas para lhe poderem ser opostas as disposições desta diretiva, uma vez que não presta nenhum serviço de interesse público sob controlo de uma autoridade pública nem dispõe de poderes que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares, o que, todavia, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

24

Nessa hipótese, incumbe todavia a esse órgão jurisdicional interpretar o direito interno, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da Diretiva 2004/18 para atingir o resultado prosseguido pelo seu artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, e dar, assim, cumprimento ao artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE (v., neste sentido, acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 24 e jurisprudência referida, e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 31).

25

A este respeito, importa recordar que a obrigação do juiz nacional de se referir ao conteúdo de uma diretiva quando procede à interpretação e aplicação das normas pertinentes do direito interno é limitada pelos princípios gerais do direito e não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional (v., neste sentido, acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 25 e jurisprudência referida, e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 32).

26

Assim, no caso de não ser possível uma interpretação do direito nacional conforme com a Diretiva 2004/18, a parte lesada pela não conformidade desse direito nacional com o direito da União poderia invocar a jurisprudência resultante do acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428), para obter, sendo caso disso, a reparação do dano sofrido (v., neste sentido, acórdão de 26 de março de 2015, Fenoll, C‑316/13, EU:C:2015:200, n.o 48 e jurisprudência referida).

27

Em face das considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que, na falta da sua transposição para o direito interno, preenche as condições para conferir aos particulares direitos que podem ser invocados nos órgãos jurisdicionais nacionais contra as entidades adjudicantes, desde que estas sejam entidades públicas ou tenham sido encarregadas, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público e disponham, para esse efeito, de poderes que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares.

Quanto à segunda questão

28

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que não permitem ao operador económico provar a sua capacidade técnica através de uma declaração unilateral, exceto se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado.

29

A este respeito, há que recordar, a título preliminar, que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 prevê que a capacidade técnica dos operadores económicos pode ser comprovada pela apresentação de uma lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos que precederam a publicação do anúncio de concurso.

30

No caso de o destinatário dessas operações ser um adquirente privado, o segundo travessão desta disposição prevê que a prova desses fornecimentos ou serviços pode ser feita de duas formas, concretamente, «por declaração reconhecida do adquirente ou, na sua falta, por simples declaração do operador económico».

31

A questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio diz precisamente respeito à relação entre estes dois meios de prova, na medida em que pretende determinar se estão em pé de igualdade, podendo o operador demonstrar livremente a sua capacidade técnica de forma indiferenciada quer por declaração reconhecida do adquirente quer por simples declaração por si redigida, ou se, pelo contrário, o legislador da União estabeleceu uma hierarquia entre os referidos meios de prova, estando o recurso de um operador a tal declaração unilateral limitado apenas às hipóteses em que não consegue obter a referida declaração reconhecida.

32

A este respeito, importa constatar que os termos em que está redigido o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, atendendo ao seu sentido habitual na linguagem corrente, não suscitam qualquer dúvida razoável.

33

Com efeito, conforme pôs em evidência o advogado‑geral no n.o 43 das suas conclusões, a expressão «na sua falta», empregue na referida disposição, remete, no seu sentido comum, para uma relação não de equivalência, mas de subsidiariedade entre os meios de prova em questão.

34

Daqui resulta que, numa interpretação literal, o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser entendido no sentido de que um operador económico só pode ser autorizado pelas entidades adjudicantes a fazer a prova da sua capacidade técnica através de uma declaração unilateral se não conseguir obter a declaração reconhecida do adquirente privado.

35

De resto, essa interpretação é corroborada pelo contexto em que são utilizados os termos deste artigo e pelos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2004/18 (v., neste sentido, acórdão de 22 de março de 2012, GENESIS, C‑190/10, EU:C:2012:157, n.o 41 e jurisprudência referida).

36

Em primeiro lugar, no que diz respeito ao contexto do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta disposição estabelece um sistema fechado que limita os modos de avaliação e de verificação de que dispõem as entidades adjudicantes (v., neste sentido, acórdão de 18 de outubro de 2012, Édukövízig e Hochtief Construction, C‑218/11, EU:C:2012:643, n.o 28). Daqui decorre que, embora as referidas entidades não possam estabelecer novos meios de prova na matéria, também não podem limitar o alcance dos meios de prova já previstos.

37

Ora, só uma interpretação literal do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, conforme resulta do n.o 34 do presente acórdão, é compatível com este contexto. Com efeito, é ponto assente que uma leitura alternativa desta disposição, segundo a qual as entidades adjudicantes deveriam permitir a qualquer operador económico a livre escolha entre um ou outro dos meios de prova previstos, prejudicaria o efeito útil e, consequentemente, o próprio alcance do meio de prova baseado na declaração reconhecida do adquirente privado, na medida em que é verosímil que cada operador se limitaria, em todos os casos, a apresentar uma declaração unilateral para dar cumprimento a esta disposição.

38

Em segundo lugar, no que se refere aos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2004/18, importa salientar que o sistema nela estabelecido se destina, nomeadamente, como resulta dos seus considerandos 2, 4 e 46, a evitar a distorção de concorrência entre os proponentes privados e a assegurar o respeito pelos princípios da transparência, da não discriminação e da igualdade de tratamento.

39

Ora, é igualmente coerente com a prossecução dos objetivos indicados no número precedente do presente acórdão uma interpretação literal do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, como resulta do n.o 34 do presente acórdão, destinada a privilegiar o meio de prova assente numa declaração reconhecida, emitida pelo cliente privado do operador económico em causa, na medida em que, por um lado, garante maior transparência e segurança jurídica quanto à efetiva capacidade técnica deste operador e, por outro, permite prevenir o controlo sucessivo das declarações fornecidas pelos operadores económico, que a entidade adjudicante deve efetuar nos termos do artigo 44.o, n.o 1, e do artigo 45.o, n.o 2, alínea g), da Diretiva 2004/18.

40

Em conformidade com o princípio da proporcionalidade, que constitui um princípio geral do direito da União, as regras estabelecidas pelas entidades adjudicantes quanto à utilização dos dois meios de prova previstos no artigo 48.o, n.o 2, alínea a, ii) segundo travessão, da Diretiva 2004/18 não devem exceder o necessário para alcançar os objetivos pretendidos pela mesma diretiva (v., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, Impresa Edilux e SICEF, C‑425/14, EU:C:2015:721, n.o 29 e jurisprudência referida).

41

Daqui resulta que, como salientaram o advogado‑geral do n.o 50 das suas conclusões e a Comissão nas suas observações escritas, são desproporcionais as regras de um procedimento de concurso que só autorizem um operador económico a apresentar uma declaração unilateral para comprovar a sua capacidade técnica se demonstrar a impossibilidade absoluta de obter uma declaração do adquirente privado. Com efeito, essas regras geram para o operador um ónus excessivo relativamente ao que é necessário para evitar a distorção de concorrência e assegurar o respeito pelos princípios da transparência, da não discriminação e da igualdade de tratamento no domínio dos contratos públicos.

42

Em contrapartida, são conformes com o princípio da proporcionalidade as regras de um procedimento de concurso nos termos das quais um operador económico possa também utilizar tal declaração unilateral quando demonstre, através de elementos objetivos e a verificar caso a caso, a existência de uma dificuldade séria que o impeça de obter essa declaração, por exemplo, devido à má vontade do adquirente privado em causa, na medida em que estas regras não geram para o operador em questão um ónus probatório excessivo em relação à prossecução desses mesmos objetivos.

43

Sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, este parece ser o caso das regras constantes do procedimento de concurso estabelecido pela AICP e que são contestadas no âmbito do litígio no processo principal.

44

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à aplicação de regras estabelecidas por uma entidade adjudicante, como as que estão em causa no processo principal, que não permitem a um operador económico provar a sua capacidade técnica através de uma declaração unilateral, exceto se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado.

Quanto à terceira questão

45

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão da candidatura do proponente, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.

46

A este respeito, importa salientar que a expressão constante do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, em língua francesa, «certification de l’acheteur», na versão em língua portuguesa lê‑se «declaração reconhecida do adquirente», o que leva a pensar que, para ser válida, a declaração do adquirente privado deve conter uma assinatura reconhecida.

47

Todavia, como salientam as partes que apresentaram observações escritas, a redação da maioria das outras versões linguísticas desta disposição está formulada noutros termos, os quais parecem levar a uma interpretação menos restritiva do alcance desse meio de prova. Com efeito, resulta, nomeadamente, das versões em língua alemã («vom Erwerber ausgestellte Bescheinigung»), espanhola («certificado del comprador»), italiana («attestazione dell’acquirente») e inglesa («purchaser’s certification») que a expressão «declaração reconhecida do adquirente» deve ser entendida no sentido de que permite ao operador económico fazer a prova da sua capacidade técnica através de um simples documento redigido, sem qualquer formalismo específico, por um ou mais dos seus clientes privados, que ateste os principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos, com indicação dos montantes e datas dessas prestações.

48

Importa recordar, a respeito desta divergência linguística, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a redação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de base única à interpretação dessa disposição e também não lhe pode ser atribuído caráter prioritário em relação às outras versões linguísticas. Com efeito, as disposições do direito da União devem ser interpretadas e aplicadas de maneira uniforme, à luz das versões redigidas em todas as línguas da União. Assim, em caso de divergência entre as diversas versões linguísticas de um texto de direito da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da economia geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento (acórdão de 15 de outubro de 2015, Grupo Itevelesa e o., C‑168/14, EU:C:2015:685, n.o 42 e jurisprudência referida).

49

No que se refere à economia geral do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, conforme foi recordado no n.o 36 do presente acórdão, este artigo estabelece um sistema fechado que limita a possibilidade de que dispõem as entidades adjudicantes de prever novos meios de prova ou de formular exigências suplementares que acarretem uma alteração substancial quanto à natureza e às condições de produção dos meios já previstos.

50

Ora, impõe‑se constatar que a exigência do reconhecimento da assinatura da declaração do adquirente privado introduziria um formalismo constitutivo de uma tal alteração substancial ao primeiro dos dois meios de prova previstos no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, tornando mais complexas as diligências a realizar por um operador económico para cumprir as exigências do seu ónus probatório, o que seria contrário à economia geral deste artigo.

51

Quanto à finalidade da Diretiva 2004/18, há que recordar que, como resulta dos seus considerandos 1 e 2, a mesma estabelece regras de coordenação destinadas, nomeadamente, a simplificar e a modernizar os processos nacionais de adjudicação de contratos públicos, a fim de facilitar a livre circulação de mercadorias, a liberdade de estabelecimento, a livre prestação de serviços e a abertura à concorrência desses contratos.

52

Em especial, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta diretiva visa favorecer o acesso das pequenas e médias empresas aos concursos públicos, como enuncia o seu considerando 32 (v., neste sentido, acórdãos de 10 de outubro de 2013, Swm Costruzioni 2 e Mannocchi Luigino, C‑94/12, EU:C:2013:646, n.o 34, e de 7 de abril de 2016, Partner Apelski Dariusz, C‑324/14, EU:C:2016:214, n.o 34).

53

Ora, como salientou o advogado‑geral nos n.os 80 e 81 das suas conclusões, o facto de se subordinar o valor probatório da declaração do adquirente privado à autenticação da sua assinatura por uma terceira entidade introduziria um formalismo suscetível não de abrir os contratos públicos à maior concorrência possível, mas de restringir e limitar a participação dos operadores económicos, nomeadamente estrangeiros, nesses contratos.

54

Com efeito, devido aos prazos reduzidos normalmente fixados para a apresentação das candidaturas nos procedimentos de concurso e às divergências existentes entre as diferentes legislações nacionais quanto ao reconhecimento das assinaturas dos atos, não é de excluir que vários operadores, sobretudo estrangeiros, poderiam ser dissuadidos de apresentar as suas propostas, perante a dificuldade prática de apresentar, no Estado‑Membro onde decorre o procedimento de adjudicação do contrato, uma declaração com a assinatura regularmente reconhecida.

55

Por consequência, a economia geral e a finalidade da Diretiva 2004/18 levam a optar pela interpretação segundo qual a «declaração reconhecida» do adquirente privado, que figura na versão em língua portuguesa do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, desta diretiva, requer apenas a apresentação de uma declaração redigida por esse adquirente, não podendo as entidades adjudicantes exigir outro formalismo, como o reconhecimento da assinatura do referido adquirente por uma qualquer entidade competente.

56

Em face das considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de regras estabelecidas por uma entidade adjudicante, como as que estão em causa no processo principal, que, sob pena de exclusão da candidatura do proponente, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.

Quanto às despesas

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que, na falta da sua transposição para o direito interno, preenche as condições para conferir aos particulares direitos que possam ser invocados nos órgãos jurisdicionais nacionais contra as entidades adjudicantes, desde que estas sejam entidades públicas ou tenham sido encarregadas, por um ato de uma autoridade pública, de prestar, sob controlo desta, um serviço de interesse público e disponham, para esse efeito, de poderes que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares.

 

2)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à aplicação de regras estabelecidas por uma entidade adjudicante, como as que estão em causa no processo principal, que não permitem a um operador económico provar a sua capacidade técnica através de uma declaração unilateral, exceto se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado.

 

3)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de regras estabelecidas por uma entidade adjudicante, como as que estão em causa no processo principal, que, sob pena de exclusão da candidatura do proponente, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: português.